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RPD || Entrevista especial - Ex-secretário da Receita critica reforma tributária: 'Juntar tributos não é simplificar'
Entrevistado especial desta 23ª edição da Revista Política Democrática Online, Everardo Maciel avalia que a proposta de reforma tributária apresentada pelo governo Bolsonaro tem a intenção de cobrar mais do setor de serviços, que sofrerá com o aumento da carga
Por Caetano Araujo e José Luiz Oreiro
A reforma tributária voltou à pauta do Congresso Nacional neste segundo semestre de 2020. Além das propostas em tramitação na Câmara dos Deputados (PEC 45/2019) e no Senado Federal (PEC 110/2019), o governo Jair Bolsonaro enviou aos parlamentares um texto próprio para ser analisado. Como essas mudanças podem afetar o cidadão? O ex-secretário da Receita Federal durante os anos de 1995 a 2002 (Governo FHC), Everardo Maciel, responde a essa e a outras questões na entrevista especial desta 23a edição da Revista Política Democrática Online. Everardo Maciel também é consultor jurídico e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática Online (RPD) - A proposta da reforma tributária do governo não promete harmonização de tendências e, menos ainda, horizonte promissor para o contribuinte. Quais são os problemas centrais dessa proposta?
Everardo Maciel (EM) - Existem hoje três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para a qual se solicitou tratamento de urgência no Congresso Nacional. Logo em seguida esse pedido de urgência foi retirado, alegando-se que ele estava obstruindo a tramitação de um projeto de alterações no Código de Trânsito. A alegação é claramente inverossímil.
O projeto de instituição da CBS, por sua vez, seria acompanhado de outras iniciativas, sempre anunciadas de forma imprecisa e jamais encaminhadas. Definitivamente, não sei qual é a proposta do governo. Por aí, já se pode ver a confusão que envolve o assunto.
RPD: Por que isso?
EM: A matéria tributária é muito árida, o que faculta muitas especulações, em geral recheadas de chavões e dogmatismos, além de falsas ilações.
Um chavão recorrente é a pretensão de simplificar o sistema tributário brasileiro. Essa pretensão se traduz, com frequência, em fusão de tributos. Juntar tributos não necessariamente simplifica. Um exemplo disso é a proposta de criação da CBS, a partir da fusão do PIS com a COFINS.
PIS e COFINS são contribuições regidas por uma mesma legislação e pagas por um mesmo documento de arrecadação. A diferença se dá não no âmbito tributário, mas no da destinação das receitas. O PIS financia o seguro-desemprego, o abono salarial e o BNDES, e a COFINS é uma das fontes de financiamento da seguridade social.
A determinação do valor a pagar na sistemática cumulativa do PIS/COFINS consiste em mera multiplicação de uma alíquota por uma base de cálculo. Já na CBS, proposta pelo governo, é bem diferente. Veja o que estabelece o artigo 11 do projeto de lei: "É vedada a apropriação de crédito em relação a bens e serviços vinculados a receitas não sujeita a incidência ou isenta da contribuição...Na hipótese de haver bens e serviços vinculados simultaneamente a receitas que permitam e a receitas que não permitam a apropriação de tais credos, a vinculação a cada tipo de receita será feito por meio da aplicação de um dos seguintes métodos. ... Apropriação direta por meio de um sistema de contabilidade de custos integrado e vinculado com a escrituração". Evidente que não há nenhuma simplificação; ao contrário, a apuração se tornaria bem mais complexa.
A propósito, registro que o modelo cumulativo de tributação do PIS/COFINS, que se pretende extinguir, é justamente o que está sendo adotado para taxação dos serviços digitais em países da Europa e até da Ásia. Não é uma é tributação de consumo, mas de renda. No Brasil, ao tempo em que se diz que tributamos demasiadamente o consumo em comparação com a renda, se propõe, na PEC 45, fundir o PIS/COFINS com os impostos de consumo (ICMS, ISS, IPI). Afirma-se uma coisa e se faz justamente o oposto, em completo desencontro entre o discurso e a ação.
RPD: Qual sua opinião sobre o imposto de bens e serviços, que seria uma espécie de IVA para a economia brasileira, uma das propostas que está no Congresso Nacional, baseada em estudo do Centro de Cidadania Fiscal? Resolve o problema tributário brasileiro? É uma má ideia?
EM: Eu acho uma péssima ideia. Repetem-se chavões. Há de se esclarecer que o IVA não é um imposto, é uma forma de extração. Tributação do imposto de renda no regime do real é um imposto sobre o valor agregado. O primeiro país do mundo que adotou no consumo o imposto do valor agregado até o varejo foi o Brasil, com o ICM, imposto que, entretanto, se deformou muito.
A intenção é fundir PIS, COFINS, ICMS, ISS e IPI, mediante criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que conviveria com um Imposto Seletivo, cuja base de incidência não é clara.
Ora, o IPI já é um imposto seletivo. Caso se pretenda reduzir sua base de incidência, basta atribuir alíquota zero aos produtos que se pretenda desonerar por meio de um simples decreto. A única explicação para essa esdrúxula solução seria uma agenda oculta, como, por exemplo, acabar com a Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio da Amazônia.
A rigor, as propostas de criação do IBS ou da CBS representam monumental redistribuição de carga tributária entre os setores, com inevitável repercussão sobre o preço dos bens e serviços.
Essa redistribuição não é divulgada. Omite-se convenientemente para interditar o debate, obrigando os estudiosos e os próprios contribuintes a fazerem os cálculos das repercussões, para, em seguida, veiculá-los na mídia e no Congresso.
RPD: Quem ganha e quem perde com essas propostas?
EM: A lista de perdedores é imensa. Começa com os mais 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais. Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médicas.
Para justificar o aumento da tributação dos serviços de educação e saúde, argumenta-se que quem faz uso desses serviços são ricos, desconhecendo a imensa demanda da classe média. De mais a mais, essa oneração haveria de sobrecarregar o SUS e a rede pública de ensino, gerando custos para o setor público.
Outro alvo desse aumento de carga tributária é o agronegócio, precisamente o setor quem tem sustentado o modesto desempenho do PIB brasileiro. Pretende-se tributar o setor pesadamente, na contracorrente do que se faz no resto do mundo.
No Brasil, 98% dos produtores rurais são pessoas físicas equiparadas a jurídicas, que produzem e vendem para a indústria processadora sem transferir crédito.
A indústria processadora de produtos de origem animal e vegetal toma um crédito presumido, na apuração do PIS/COFINS, que varia de 40 a 60%.
No projeto da CBS, o crédito presumido é reduzido para 15%, e se elimina a isenção dos insumos. Em decorrência, haveria redução da margem do produtor ou da indústria ou então elevação dos preços para o consumidor final, o que é lamentável.
Na longa lista de perdedores, até o livro foi incluído. Desde 1946, o livro é desonerado de tributos, por força de um projeto apresentado por Jorge Amado, deputado constituinte eleito pelo Partido Comunista Brasileiro e integrante da bancada da Bahia. A remuneração de um escritor corresponde a 10% do preço de capa. A CBS pretende taxar os livros com uma alíquota de 12%, o que equivale a confiscar aquela remuneração. Além disso, os livros didáticos representam cerca de 50% do total comercializado, sendo que grande parte é adquirida pelos governos. Trata-se, portanto, de uma ideia estapafúrdia. Mais grave, sem nenhum valor arrecadatório.
No projeto do IBS, as instituições financeiras são as principais ganhadoras, que seriam totalmente desoneradas da vigente tributação do PIS/COFINS, cujo montante anual é de 25 a 30 bilhões de reais.
Acrescente-se que as propostas do IBS e da CBS preveem cobrança com alíquota única, que é a forma mais regressiva de tributação do consumo, como mostra estudo recente produzido pela OCDE.
RPD: Existem problemas no ICMS e no ISS?
EM: Sim, existem, como de resto em todos os lugares do mundo. Por exemplo, as fraudes no IVA europeu, tão elogiado nestas bandas, chegam a 50 bilhões de euros anuais, de acordo com dados divulgados pela Procuradoria Geral da União Europeia no ano passado.
O ICMS tem problemas relacionados com a grande diversidade de alíquotas nominais e efetivas, devolução de créditos acumulados. O disciplinamento do ISS é claudicante. E ambos carecem de regras para a prática da competição fiscal e prevenção da guerra fiscal.
A solução dos problemas desses impostos é perfeitamente viável pela via infraconstitucional, mantida a atual competência tributária dos Estados e dos Municípios.
RPD: Como prevenir a guerra fiscal?
EM: Aqui, se costuma confundir guerra fiscal com competição fiscal, que é algo inerente à história dos tributos em todo o mundo desde sempre. Guerra fiscal é a competição fiscal ilícita, contra a lei.
A guerra fiscal do ICMS tomou corpo depois da Constituição de 1988, por dois motivos: primeiro, porque inexiste até hoje a lei complementar para disciplinar a concessão e revogação de benefícios fiscais, conforme previra aquela Constituição, preservando-se o regramento previsto na Lei Complementar nº 24, de 1975, cujas sanções pelo seu descumprimento tornaram-se letra morta em razão de mudanças constitucionais posteriores; segundo, porque a União demitiu de si a responsabilidade pela coordenação do ICMS, com a extinção do órgão por isso responsável, na reforma administrativa do governo Collor.
Exigência sem sanção e tributação de índole nacional sem coordenação criaram as condições propícias para expansão da guerra fiscal do ICMS. O remédio para esse problema é tão somente editar a lei complementar, fixando os critérios para concessão e revogação de benefícios e as sanções pelo descumprimento, bem como restabelecer a coordenação nacional.
A proposta do IBS veda a concessão de benefícios fiscais, substituindo-os por subsídios consignados na proposta orçamentária anual. Isto é de um irrealismo atroz ou é uma forma dissimulada de extinguir a competição fiscal, indispensável à correção das desigualdades regionais de renda, como preconizado na Constituição. Qual investidor que vai fazer um investimento acreditando que durante dez anos os orçamentos anuais irão consignar subsídio para sua atividade, concorrendo com gastos públicos clássicos, como educação, saúde e segurança pública?
RPD: E quanto à oportunidade do debate sobre a reforma tributário?
EM: Creio que é um debate completamente inoportuno, que consome a atenção política e a energia política necessárias ao enfrentamento da pandemia e seus graves desdobramentos, em termos econômicos e sociais.
Afora isso, é uma discussão desabastecida de um diagnóstico do sistema tributário brasileiro, alternativas de soluções e mensuração dos impactos sobre contribuintes, preços e entes federativos.
Se você quer tributar mais a escola e a consulta médica e reduzir a tributação de geladeiras, que o diga e abra a discussão na sociedade. O que não pode é tratar de matéria tão sensível, com agendas ocultas. Não foi apresentada uma página sequer mostrando as repercussões das propostas.
É completamente desarrazoado discutir reformas estruturais em meio a uma pandemia, com base em apresentações em PowerPoint e videoconferências.
RPD: Qual é, então, o principal problema tributário brasileiro?
EM: O principal problema tributário brasileiro, à luz da minha experiência, é o processo tributário, que compromete a segurança jurídica e inibe investimentos.
Só no âmbito federal, os litígios tributários, no final de 2018, totalizavam R$ 3,44 trilhões. Os processos de execução da dívida ativa representam 38% dos 80 milhões de processos em tramitação na Justiça brasileira.
Esses litígios têm três fontes: o fisco, o contribuinte e a indeterminação de alguns conceitos.
A litigiosidade gerada pelo fisco decorre da inexistência de limites para o lançamento. Autos de infração insubsistentes geram custos financeiros e reputacionais apenas para o contribuinte. Não há sucumbência para o fisco. A solução para esse problema consiste em estabelecer a integração entre o processo administrativo e o judicial, como havia sido proposto por grandes tributaristas, como Rubens Gomes de Sousa, Gilberto Ulhoa Canto e Geraldo Ataliba. Essa integração permitiria que a parte vencida no processo administrativo pudesse requerer revisão da decisão em um tribunal do Judiciário.
A segunda fonte de litígio é o contribuinte. A possibilidade de questionamento da matéria tributária no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, isto é, perante um juiz de primeira instância, pode gerar desequilíbrios concorrenciais entre contribuintes e insegurança jurídica, pois o tempo médio entre o ingresso da ação e o desfecho no STF é de 20 anos. É nesse contexto que prospera a indústria das teses, pois a matéria tributária na Constituição tem extensão amazônica. Apenas como exemplo, o número de palavras do capítulo tributário da Constituição Brasileira é o dobro do número de palavras de toda a Constituição americana. É, por conseguinte, enorme a possibilidade de questionamento constitucional da matéria tributária.
A terceira fonte de litígio são conceitos indeterminados que motivam controvérsias administrativas e judiciais, como planejamento tributário abusivo, dedutibilidade do ágio, interposição fraudulenta no comércio exterior.
Há claramente a necessidade de conferir-se nova construção normativa para esses conceitos, promovendo-se a resolução do contencioso atual por meio de transação.
Na pauta de problemas tributários, deve ser acrescentado o burocratismo, completamente esquecido nos projetos de reforma tributária. Por fim, há os problemas específicos dos tributos, como mencionado.
RPD - Em relação aos perigos de expansão, fortalecimento, dos paraísos fiscais no mundo e o que isso pode trazer muitos problemas para nós, quais seriam as diretrizes do governo de forma a enfrentar esse problema?
EM - O Brasil foi o primeiro país do mundo que conceituou, objetivamente, paraíso fiscal. Em legislação de 1996, ficou estabelecido que paraíso fiscal é um país ou dependência que tributa imposto de renda da pessoa jurídica com alíquota igual ou inferior a 20%. Além disso, estabeleceu contramedidas para os negócios com paraísos fiscais, ao elevar de 15 para 25% a retenção na fonte nas operações de remessa e tornar obrigatório o ajuste por preços de transferência ainda que o negócio fosse realizado por empresas não vinculadas.
Somente em 1918, a União Europeia estabeleceu critérios para qualificar uma jurisdição tributária como paraíso fiscal. Ainda que tenha admitido a possibilidade de adoção de contramedidas, nenhum país as implementou, sem que fosse surpreendente, porque, na União Europeia, se encontram vistosos paraísos fiscais, como Luxemburgo e Irlanda.
A erosão das bases tributárias, como deslocamento de lucros para paraísos fiscais, é seguramente o maior tributário contemporâneo. Dois exemplos dessa patologia: os investimentos diretos em Luxemburgo são equivalentes aos efetivados na China e nos Estados Unidos; os investimentos em empresa de fachada no mundo são maiores que o PIB da Alemanha e da China.
Esse problema é tão grave que, em 2013, o G-20, reunido em Moscou, decidiu conferir mandato à OCDE para desenvolver um programa chamado BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), com o objetivo de indicar soluções para esse problema. Apesar de muito ambicioso, o programa não apresentou, até agora, nenhum resultado concreto.
RPD: Você considera os problemas da centralização tributária um óbice à reforma? E a progressividade dos nossos tributos é uma outra questão problemática?
EM: Começo com a centralização. É difícil falar se há ou não centralização tributária, quando sequer temos um federalismo fiscal bem estruturado. Não se sabe com clareza a repartição de responsabilidades públicas entre os entes federativos. Então como se falar em centralização? A precisa partilha de receitas coexiste com uma imprecisa e lacunosa repartição de encargos públicos.
A previsão constitucional (art. 23, parágrafo único) para regulamentar por lei complementar o federalismo cooperativo jamais prosperou.
Quanto à progressividade no sistema tributário, a verdade é que não existe estudo consistente sobre a matéria no Brasil. Os trabalhos divulgados estão assentados em hipóteses frágeis e juízos de valor questionável.
Cada vez se fortalece a convicção de que a progressividade melhor se efetiva pelo lado do gasto público.
A despeito disso, há situações específicas de evidente regressividade no sistema tributário, como a extinta dedutibilidade da correção monetária do patrimônio líquido das empresas no âmbito do IRPJ. Por conta dessa regra, grandes empresas em circunstâncias de inflação elevada praticamente não recolhiam aquele imposto.
A eliminação dessa dedutibilidade, em 1995, abriu espaço para adoção de inúmeras medidas, como a redução das alíquotas nominais do IRPJ, a adoção dos juros remuneratórios do capital próprio, a isenção na distribuição de resultados, a ampliação do limiar do lucro presumido, a instituição do Simples para as pequenas e microempresas, etc. Como consequência dessa reforma, entre 1996 e 2002, o IRPJ, como proporção do PIB, cresceu, 50% e a arrecadação teve um aumento de 117% acima do IPCA. Portanto, funcionou, deu certo.
RPD || Editorial: Defesa da democracia e combate à corrupção
Sabemos todos que a saúde das democracias depende diretamente da eficácia na identificação de episódios de corrupção e na punição dos responsáveis, assim como na capacidade de prevenir a recorrência desses casos. Afinal, ordenamentos institucionais que se revelam impotentes nesses quesitos tendem a ter sua legitimidade junto aos eleitores corroída.
A história recente no Brasil demonstrou o acerto dessa premissa. Entre nós, a revelação progressiva das regras ocultas do financiamento da política levou à desconfiança crescente nas instituições, em particular nos principais partidos políticos do país e suas lideranças mais significativas. Em termos eleitorais, contudo, o resultado desse processo, até o momento, não foi a renovação das forças do campo democrático, a partir de novas regras e práticas, mas a vitória de uma coalizão retrógada, com componentes francamente autoritários, engajada no desmonte do tipo de Estado erguido a partir da Constituição de 1988.
Essa conjuntura delicada exige clareza das forças empenhadas na defesa da democracia em torno de pontos fundamentais.
Em primeiro lugar, cumpre reafirmar que a defesa da democracia permanece no centro da agenda política do País. Até porque, sempre, o grau de corrupção de um país é inversamente proporcional à qualidade de sua democracia. Não há serviço de inteligência nem tecnologias de informação e controle capazes de competir com a imprensa livre e plural, o Judiciário independente e a autonomia do Ministério Público.
Em segundo lugar, é preciso sempre lembrar que a contrapartida dos atores políticos face à independência do Judiciário é o acatamento de suas decisões, uma vez esgotada a possibilidade de recurso no interior de suas regras. Ou seja, a única atitude democrática em casos de denúncia de ilicitudes por parte de mandatários, candidatos ou dirigentes partidários é deixar com a Justiça a palavra final. E, no caso de a Justiça mudar de posição, passa a ser dela também a penúltima, além da última palavra.
Em outras palavras, a defesa da democracia exige a preservação da fronteira entre decisões da política, nas quais vigora o princípio da maioria, e decisões da Justiça, que dependem da aplicação das leis por um corpo de funcionários qualificado. A resposta democrática às falhas da Justiça é a reforma das regras, não a contestação das sentenças. A alternativa, obviamente indesejável, é a velha ilusão autoritária: a maioria, representada no chefe de Poder Executivo, não deve encontrar limites à imposição de sua vontade.
Decisões da Justiça não devem, portanto, ser obstáculo ao processo de convergência política das forças empenhadas na defesa da democracia. De outro lado, urge avançar no debate em torno da reforma necessária para combater a morosidade e maximizar a transparência e impessoalidade do Judiciário.
RPD || Rogério Baptistini Mendes: Política e cidadania em defesa da civilidade e da democracia
Governo Bolsonaro, como nenhum outro desde a redemocratização, atua despudoramente em função de seu grupo e entrega o destino dos demais membros da sociedade política à própria sorte, avalia Rogério Baptistini Mendes
O substantivo feminino civilidade diz respeito, entre outras coisas, às formalidades que os cidadãos adotam entre si para demonstrar respeito mútuo. Seu oposto, a incivilidade, remete à barbárie, à selvageria. Na obra O processo civilizador (1939), Norbert Elias aponta que civilização costuma designar a consciência do Ocidente em relação a seu tempo, de forma que outros tempos e outros povos, com outros costumes e práticas, seriam não civilizados. A confusão entre cultura e civilização, consolidada na modernidade, chega a seu ápice com a cultura de massas e parece emprestar sentido aos temores manifestados por Alexis Tocqueville quanto aos riscos do despotismo e do insolidarismo de uma massa de homens semelhantes em busca de pequenos prazeres, mas estrangeiros ao destino dos demais.
A polarização civilização e barbárie demarca grupos e sociedades humanas. Para além do caráter evolucionista da classificação, herdado do século XIX europeu, seu sentido está atrelado aos movimentos históricos e sociais emancipadores do homem, sendo o Iluminismo sua síntese. A construção de uma noção inclusiva e abrangente de humanidade, que daí deriva, não está dissociada das ideias dos antigos, mas as alarga. O cultivo do espírito pela filosofia encontra o método, as técnicas e a disseminação dos saberes contra a ignorância. A razão esclarecida abre seu caminho em meio às trevas e aponta para o reconhecimento mútuo dos seres humanos como portadores do mesmo destino e condição. É o que torna possível a convivência e, repugnante, o assassinato.
Do latim civis, civilização faz referência à cidade - para os gregos, lugar da vida política em oposição ao lugar da vida econômica. A distinção entre pólis (cidade) e oikos (núcleo econômico familiar) não deixa de iluminar a sensação de barbárie que acomete quem vive no Brasil. O governo federal, como nenhum outro desde a redemocratização, atua despudoramente em função de seu grupo e entrega o destino dos demais membros da sociedade política à própria sorte. Os exemplos abundam numa escala que vai do ridículo ao grotesco. E o que parece nonsense é, na verdade, visão de mundo derivada de um estado de coisas no qual negacionismo científico, violência contra adversários políticos, devastação humana e ambiental são interdependentes e complementares.
O processo que conduziu ao alargamento de perspectivas em direção ao Estado Democrático e sua dimensão civilizatória, contraditoriamente, amesquinhou as expectativas do brasileiro médio. Educado para o consumo, hoje ele confunde forma e conteúdo, substitui o longo pelo curto prazo, exagera a dimensão utilitária da vida e reduz a cultura ao entretenimento. Sua conduta é a contraparte do que lhe é cobrado em termos de repressão e desejos insatisfeitos. Numa sociedade na qual populistas de esquerda e de direita prometem e não tem como entregar, o senso de justiça termina subvertido, e a noção de público e de comum se esvanece diante das patologias do ódio e do ressentimento. Do “diferente de tudo que está aí” para o bolsonarismo, o caminho foi trilhado continuamente.
A subversão da pólis pela lógica binária que apostou na pedagogia do conflito, do “nós contra eles”, se fez acompanhar por patologias de um mercado que nunca integrou e se apresenta como lugar de resistência desregrada, incivilizada. Neste contexto, a cidade, lugar da política, é hostil, e os espaços são privatizados. Sob o manto de defesa da ordem, da propriedade e dos direitos do “cidadão de bem”, o bolsonarismo é a versão contemporânea do oikos. Na narrativa, o ambiente familiar, no qual cada um é o senhor, uma autoridade máxima, concorre com o público e o esvazia de sentido, transformando o país num verdadeiro acampamento de estranhos unificado em torno do messias com o qual se identificam.
A história não é uma marcha ascensional e unilinear, estando repleta de dificuldades e incoerências. Mas com ela se aprende. A partir dos ensinamentos do passado, da experiência e da apreciação racional, o homem civilizado e verdadeiramente livre se manifesta, constrói o presente e projeta o futuro. Na civis, no espaço público e em relação aos demais, é que a liberdade esclarecida e verdadeiramente emancipadora é exercida. Neste campo, que é o da cidadania, a democracia se fortalece e os mitos se espedaçam.
*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Política e Governo das Unesp/FCL-CAr.
RPD || Sergio Denicoli: Os robôs que nós amamos e que também nos amam
Na guerra narrativa das redes sociais, robôs militantes são os novos cabos eleitorais numa disputa de argumentos que passa pela repetição do meme. A narrativa que viraliza se sobrepõe às demais e, quanto mais disruptiva for, mais ela impressiona e ganha adeptos
Narrativa é a palavra do momento. Esqueçam memória, ciência, temporalidade. Esqueçam os fatos. Isso tudo foi eliminado pelo mais básico sofismo, que nunca esteve tão na moda. Faríamos inveja a toda a Grécia Antiga, sobretudo a Platão, que dizia que os sofistas não se preocupavam em estar certos, mas apenas em fazer com que todos estivessem de acordo com eles. Nos invejaria também Aristóteles, que definiu os sofismas como argumentos que parecem verdadeiros, mas não são.
Portanto, o que vemos nas redes sociais não é novidade alguma. É algo que há mais de dois mil anos já se sabia. A grande diferença é que hoje as tecnologias nos deram ferramentas de comunicação de grande alcance, que nunca estiveram tão acessíveis aos cidadãos comuns.
As figuras do editor, do professor, do curador, hoje não têm mais tanta importância. Qualquer um desfruta de credibilidade plena dentro de sua bolha de influência, mesmo que ela seja baseada em argumentos que não correspondam aos fatos.
É por isso que, ao analisarmos o que acontece na internet, temos que pensar sempre em guerra narrativa. E a disputa de argumentos passa pela magia da mimética, ou seja, da repetição, do meme. A narrativa que viraliza se sobrepõe às demais e, quanto mais disruptiva for, mais ela impressiona e ganha adeptos.
O problema é que a disrupção, quando chega à política, rompe com simbolismos que garantem a estabilidade baseada na diplomacia. Rompe, então, com a própria política, ao abrir mão dos seus rituais de negociação e sua representatividade democrática, para absorver o senso comum baseado em sofismas.
Em meio a essa guerra de pós-verdades narradas, entram em cena os robôs militantes. São eles os novos cabos eleitorais. E nós, eleitores, amamos os robôs, porque eles defendem nossos desejos, mas que os fatos insistem em atrapalhar. Há uma pandemia? Basta os robôs dizerem que não é verdade a gravidade da situação e está decretado o fim da quarentena. A Amazônia está em chamas? Chamem os robôs e os orientem a dizer que isso é uma mentira baseada em um complô internacional para nos roubar a floresta. Cientistas têm provas? Os robôs não acreditam nelas, porque tudo pode ser contestado com os mais básicos e convincentes argumentos.
E assim seguimos, nessa história de amor, com final certamente infeliz. Enquanto estivermos encantados pelos robôs, estaremos cegos de paixão. E, como Aristóteles mesmo nos disse, “a lei é a razão livre da paixão”. Ou seja, ainda estamos muito longe de voltarmos a avistar a firme terra do racional. Mas, quando a paixão acabar, sobrarão os corações despedaçados, ávidos pela verdade, que irá florescer em meio à terra arrasada, onde um dia os sofistas imperaram.
*Sérgio Denicoli é pós-Doutor em Comunicação e diretor da AP Exata – Inteligência Digital
RPD || Paulo Baía: A instabilidade e a imprevisibilidade como norma política
Enquanto a oposição busca nacionalizar os debates durante as eleições municipais, Bolsonaro busca garantir suas alianças ao distanciar-se o máximo possível do pleito no primeiro turno, para evitar conflitos com os partidos do Centrão
A situação política e econômica do país é de desânimo neste mês de setembro. Estamos mergulhados num mar de dúvidas e incertezas sem imaginar como será o fim da grave crise provocada pela Covid-19. A economia paralisou. E com isso temos hoje situação mais difícil do que há um ano, com milhões de pessoas desempregadas. Segundo o IBGE, no segundo trimestre houve retração de 9,7% do PIB e a economia mantém-se em recessão, que nos acompanha desde o segundo governo Dilma Rousseff. O Brasil não consegue sair da crise e o debate não muda, entre uma política de ajuste fiscal austera e a ideia de investir em infraestrutura, gastando para sair da crise. O confinamento só aumenta o desgaste e o estresse social, com a ideia de ter que viver sob um conceito de "novo normal" que não demarca exatamente a realidade em questão. Como se os brasileiros estivessem presos às suas máscaras e ao álcool gel sem saber ao certo quando tudo irá passar definitivamente, acentuando a angústia e doenças mentais, como depressão e fobias.
As eleições municipais tiveram que ser adiadas para o dia 15 de novembro e, no entanto, nos aproximamos do pleito sob o signo da tristeza, sem esperança de mudanças. A sociedade, impactada pela crise sanitária da Covid-19, divide-se em responsabilizar a própria população e o presidente Jair Bolsonaro pela ampla tragédia social e econômica, na qual já morreram quase 130.000 brasileiros. E sabemos que há uma subnotificação dos casos pela ausência de testes e com um ministro da Saúde improvisado. O Ibope, em pesquisa via internet divulgada no dia 6/9, cartografa essas tendências, com uma margem de erro de 2%: 38% responsabilizando a população e 33%, o presidente da República. Para 71% dos entrevistados, os estragos da pandemia do coronavírus foram muito maiores do que o esperado.
Aliado a estas questões, temos o Governo Federal vivendo gangorra interna, com Paulo Guedes apoiado por Rodrigo Maia, de um lado, e Henrique Marinho, por militares e prefeitos, de outro. Isto é, são dois projetos político-econômicos, para tentar retomar as medidas reformistas e o crescimento econômico atraindo investimentos. As oposições partidárias a Jair Bolsonaro acabam por se aproximar, pragmaticamente, das propostas de Henrique Marinho através do aumento de investimentos. Temos a instabilidade como regra política no cenário federal, no momento, no mesmo diapasão da instabilidade sanitária, ainda não contida no país.
O Brasil vive de dois em dois anos em torno das eleições e este ano teremos as municipais, que possuem grande relevância por mostrarem a situação e o humor dos eleitores em suas respectivas cidades. Dessa forma, o PR pretende manter-se distante das disputas em função das alianças feitas com o Blocão no Congresso desde o inquérito das Fake News, quando houve "contenção" provisória dos arroubos autoritários de Jair Bolsonaro. Por isso, ele precisa garantir suas alianças e a ideia é distanciar-se o máximo possível do pleito no primeiro turno, para evitar conflitos com partidos como o DEM e o MDB, por exemplo. Os candidatos às prefeituras não desejam nacionalizar o debate; ao contrário, preferem manter-se presos às questões de interesse do eleitor em suas cidades, debatendo as mazelas locais. O equilíbrio de Jair Bolsonaro no Congresso também depende de atender às demandas dos deputados em seus colégios eleitorais. Para tanto, a máquina bolsonarista já atua para satisfazer os desejos dos aliados, além da importância dos fundos partidários nesta disputa eleitoral; dessa forma, não há como negar apoios. A oposição busca nacionalizar o debate, mas não é desejo da maioria dos candidatos a prefeito pelo não interesse do eleitor – veja Márcio França em São Paulo.
Tempos de eleição sempre foram momentos de alegria e celebração da democracia com desejo por mudanças trazendo esperanças. Uma ideia de renovação que anda ausente das perspectivas dos eleitores pelo não atendimento de suas demandas, causando frustrações, e pelos inúmeros casos de corrupção. A sensação é de que nadamos, revolvemos o fundo do mar, expondo a fratura do sistema político e até agora nada foi modificado além do atendimento emergencial e imediatista das necessidades do cidadão. Daí o desânimo e a tristeza, além das perdas de diversos brasileiros pela doença. Não há muito que celebrar! Mas a democracia espera que continuemos a festejá-la apesar das dificuldades.
*Paulo Baía é sociólogo e cientista político
RPD || Nelson Tavares Filho: Perspectivas da economia brasileira
Provável vitória dos democratas nas eleições norte-americanas, ausência de uma política ambiental e investimentos baseados em aumento da dívida pelo governo Bolsonaro são fatores que podem influenciar a economia do país, levando a uma alta da inflação e dos juros
A PwC, companhia de assessoramento contábil e financeiro, com filiais em inúmeros países, atualiza, todos os anos, cenário da economia mundial para o ano 2050.
Seu último estudo estima que a economia brasileira será a sexta do mundo naquele ano, com um PIB, a preços correntes, de US$ 6,5 trilhões. O PIB per capita seria cerca de US$ 28 mil.
As estimativas realizadas por institutos e órgãos de pesquisa indicam que, em 2020, o PIB do país deve apresentar queda de 5%, em termos reais.
O traçado de um cenário de curto prazo, para os anos 2021/2, envolveria avaliação qualitativa de variáveis, consideradas determinantes, do comportamento da economia nesse período.
A primeira delas diz respeito não à ciência econômica, mas à questão da tecnologia na área de saúde. A presente pandemia tem apresentado interferência direta no desempenho econômico. Aguarda-se a existência de uma vacina para o segundo trimestre de 2021, quando se retornaria a uma certa “normalidade”. Não se prevê uma “segunda onda”, de acordo com diversos cientistas.
Estimar o desempenho futuro da dívida pública é da maior importância. A esse respeito, economistas debatem a possibilidade de haver emissão monetária para, de maneira responsável, fazer investimentos. Difícil é encontrar na história do Brasil quem tenha tido esse comportamento perante os gastos públicos. Esse governo atual não difere da maioria dos anteriores. Pesa mais o fato de que, no período de pouco mais de dois anos, teremos duas importantes eleições. As eleições municipais, em 90 dias, ressaltam que, para melhor desempenho, é necessário investir em obras no município.
Portanto, embora considere de fundamental importância a Lei do “Teto dos Gastos”, reputo ser baixa a probabilidade de que seja respeitada. Isso poderá aumentar o investimento em 2021. Nada significativo, para quem já investiu, em décadas anteriores, 13% e hoje investe 1,35%. Será um aumento de investimento baseado em aumento da dívida. O que significa dizer que, no longo prazo, poderá ocorrer pressão altista na inflação e no aumento dos juros, internos e externos.
Haverá influência da (ausência de) política ambiental deste governo no desempenho de curto e médio prazos. Os fundos de investimentos estrangeiros não estão dispostos a financiar governos que não respeitam os acordos ambientais, em especial o Acordo de Paris. Nem a União Europeia irá assinar acordos com estes governos. As repercussões internas são: pouco crescimento em exportações, na geração de empregos daí decorrente e na atração de investimentos desses países.
Por último, mas não menos importante, eventual vitória democrata nas eleições americanas aumentará o isolamento do governo brasileiro. Democratas, em discursos no Congresso americano, já elencaram questões sobre as quais pretendem pressionar o governo brasileiro, com destaque para questões ambientais.
Dadas as limitações acima anotadas, qual é o cenário possível para 2021/2? O governo montou recentemente base congressual para evitar futuros questionamentos legais de seus atos. A base é composta, em sua imensa maioria, por deputados do Centrão, que, desde a promulgação da Constituição, participaram de todos os governos em troca de distribuição de verbas. A ameaça de impeachment e a realização das eleições de 2020 e 2022 justificam supor uma “abertura do cofre”, independente da vontade do atual ministro da Fazenda.
A pandemia exigiu, corretamente, gastos além dos orçamentários, o chamado “orçamento de guerra”. Estes gastos foram usados, inclusive, para manter a renda da parcela mais pobre da população e financiar micro e pequenas empresas. Mas agora chegou a hora de pagar esta conta – a dívida do governo já se aproxima de 100% do PIB.
A economia brasileira vem apresentando taxas medíocres de investimento, 1,35% do PIB. Isto acontece porque os gastos correntes inadiáveis vêm ocupando o espaço no orçamento. Inúmeras estatais estão dependendo do orçamento público para pagar suas folhas salariais, sem contrapartida de ofertar um bom serviço público. Mas fechar uma estatal hoje significa subtrair “poder” de um congressista. A base formada pelo governo Bolsonaro irá dificultar muito o ajuste necessário ao Estado brasileiro.
Apesar de todas as restrições mencionadas, há um detalhe importante que poderá favorecer a apresentação de taxas de crescimento positivas em 2021: o efeito estatístico causado pela diminuição do PIB em 2020. Outra questão que poderá influir no crescimento é o auxílio a ser pago a camadas mais pobres da população: 65% do crescimento é ocasionado pelos gastos familiares e este auxílio aumenta o poder de compra dessa população integralmente, pois não tem condições de poupar.
No início deste artigo, citei o cenário de longo prazo feito por uma multinacional. Pelo valor estimado para nosso PIB (US$ 6,5 trilhões) e o PIB per capita (US$ 28 mil), é fácil deduzir que a empresa aguarda desenvolvimento significativo no longo prazo.
No cenário de curto prazo, com as variáveis mencionadas, o crescimento ocorrerá mais por efeito estatístico e/ou desrespeitando normas e leis que constituem base para um crescimento de longo prazo.
Não são dois cenários excludentes. Mas a prevalecer no curto prazo crescimento nas condições explicitadas, mais difícil será a realização do cenário de longo prazo traçado pela empresa.
*Nelson Tavares Filho é economista, especialista em planejamento estratégico
RPD || Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira: A "experiência chilena" e o tempo da política
Após cinco décadas, o desafio apontado por Alberto Aggio em sua obra “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, ainda nos pertence, marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos, avalia Marcus Vinicius Furtado em seu artigo
Livros e leitores se transformam ao longo do tempo. Longe de ser uma recepção passiva, o ato de ler é capaz de recriar o sentido dos textos a partir das experiências e expectativas vivenciadas no presente, de modo que revisitar um livro pode se tornar a descoberta de significados não acessados durante a primeira leitura. Pensando nessas várias possibilidades que a leitura pode assumir no tempo, esse artigo pretende revisitar, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.
Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile. Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários. Na perspectiva de Aggio, a construção dessa novidade passava pela resolução das ambiguidades entre democracia e revolução, e pela criação de uma nova concepção de tempo político adequada à modernidade política chilena, que se construía, em um processo histórico tenso e conflituoso, ao menos desde a primeira metade do século XX, com a ativação da participação das massas na política e a construção de um consenso democrático.
Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder. Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático.
Na modernidade ocidental, como afirmou Gramsci, o fortalecimento da sociedade civil tornou frívola a perspectiva de um assalto frontal ao aparelho do Estado. Nessa nova configuração política, trata-se de, por meio das relações de força que caracterizam a política, disputar a hegemonia na sociedade. Com isso, o tempo da revolução se torna incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é marcado por urgências, o segundo se alonga indefinidamente e constrói novo significado de ruptura, marcado pela ideia de que as transformações históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no interior de uma moldura democrática. Por isso, Aggio afirma que “sem conseguir traduzir o seu projeto numa grande criação em que o novo nascesse, de fato, da particularidade chilena que havia possibilitado a existência daquela experiência, e sem formular uma nova noção de tempo político na construção do socialismo, o que implicava uma nova noção de ruptura – pactuada e reformadora –, a via chilena apenas conseguiu anunciar-se como uma via democrática”.
Diante disso, precisamos refletir em torno dos significados dessa experiência para a política contemporânea. Não revisitamos a “experiência chilena” para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI. Distante de qualquer perspectiva socialista, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.
Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence. Para o presente, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.
*Marcus Vinicius é doutor em História e membro do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira.
RPD || Marcos Sorrilha Pinheiro: O sistema eleitoral norte-americano e as eleições de 2020
No Brasil, quem tiver mais de 50% dos votos válidos vence a eleição e leva a Presidência. Nos Estados Unidos, vence quem alcançar a maioria absoluta no colégio eleitoral
Para o brasileiro, é difícil entender o sistema eleitoral dos Estados Unidos, porque lá a escolha do presidente não se dá pelo voto direto, mas pelo colégio eleitoral.
A origem data da Constituição de 1787, quando o país ainda não era uma nação, ao reunir treze Estados organizados em uma confederação destituída de um poder central. Foi justamente durante a Assembleia Constituinte que o modelo federativo foi desenhado e, com ele, a maneira pela qual o chefe do Executivo seria escolhido.
A elaboração do sistema de escolha do mandatário atendeu a alguns interesses que estavam em jogo naquele evento, como, por exemplo, a necessidade de se estabelecer um mecanismo de mediação que pudesse deliberar sobre os votos populares, impedindo que a escolha da maioria fosse motivada por paixões momentâneas capitaneadas por líderes demagogos. Vale dizer: o sistema eleitoral da maior democracia do mundo foi elaborado para impor limites à democracia, reduzindo a participação da população na escolha direta de seu presidente.
Outro interesse em pauta dizia respeito à autonomia dos Estados que se congraçariam em uma nação. Temia-se que o voto direto beneficiasse os Estados mais populosos, ao passo que os Estados do Sul contavam com número maior de pessoas escravizadas, ou seja, menos eleitores. Um candidato que representasse os interesses da porção Norte do país ou concentrasse sua campanha nos Estados mais populosos, poderia, assim, sagrar-se vitorioso e pôr em risco a capacidade de representação das demais unidades da Federação.
O colégio eleitoral apresentou-se, portanto, como uma solução capaz de atribuir maior representatividade aos Estados menores, uma vez que a vitória nas eleições já não seria daquele que obtivesse um número maior de votos, mas de quem conseguisse garantir a maioria dos delegados no colégio eleitoral.
O colégio eleitoral, por sua vez, é formado por delegados indicados pelos partidos e escolhidos pelos eleitores no dia da eleição. No modelo atual, ele é composto por 538 delegados, número equivalente ao total de assentos no Congresso americano (100 senadores e 435 deputados), mais 3 delegados advindos do Distrito de Colúmbia. A distribuição dos delegados entre os Estados se dá de acordo com sua densidade demográfica. Daí porque a Califórnia possui o maior número de delegados, 55.
De tal maneira, seguindo o modelo estabelecido, o candidato que vence em um Estado, mesmo que seja por diferença mínima de votos, leva para sua conta todos os delegados que estavam em disputa, tendo ou não votado nele. Isto é: o vencedor leva tudo.
Esse formato permite algumas anomalias. Poe exemplo: um candidato pode ser eleito sem que obtenha um único voto em 39 Estados da Federação, desde que vença, mesmo que pela margem mínima de votos, em pelo menos 11 desses 12 Estados: Califórnia, Nova York, Texas, Flórida, Pensilvânia, Illinois, Ohio, Michigan, Nova Jersey, Carolina do Norte, Geórgia ou Virgínia.
Existem algumas barreiras para impedir o êxito dessa estratégia de privilegiar os Estados populosos, com vistas à construção da maioria no colégio eleitoral. Por conta de peculiaridades em sua cultura política, algumas unidades da Federação se consolidaram como eleitoras históricas de um dos dois grandes partidos nos EUA. São os chamados Safe States. Existem, também, aqueles Estados que não possuem seus votos consolidados e que mudam de lado a cada uma ou duas eleições. São os chamados Swing States. Esta característica pendular faz com que seja justamente nesses locais onde a eleição “realmente acontece”, conhecidos pela alcunha de “Campos de Batalha”.
Nas eleições deste ano, ao menos três dos chamados Swing States aparecem como campos de batalhas: Wisconsin, Flórida e Pensilvânia. A novidade são os Estados que historicamente votam com os republicanos e que, agora, aparecem em disputa: Georgia, Arizona e Carolina do Norte. Desses, o Arizona é aquele em que Joe Biden aparece com melhor chance de vitória.
Neste exato momento, a corrida eleitoral ganha contornos de indecisão. Após três meses de muitos tumultos em torno da figura de Donald Trump – causados pela derrubada do PIB, pelas mortes causadas pela Covid-19 e pelas manifestações antirracistas –, em que uma vitória esmagadora de Biden parecia se desenhar, o atual presidente se recuperou nas pesquisas, aumentando sua vantagem em Estados ameaçados, como o Texas, e aproximando-se de seu opositor em dois campos de batalha: Flórida e Pensilvânia.
De certa maneira, a economia começa a dar sinais de recuperação e isso pode ser bom para Trump. Além disso, o aumento das tensões em torno das manifestações étnicas é uma carta que ele mobiliza com frequência, tentando plantar o medo, vendendo a imagem de Biden como se fora a marionete da ala radical do partido, atrelada àqueles movimentos. Por outro lado, o candidato democrata sai-se bem em temas que são tidos como muito importantes entre os eleitores independentes – a questão climática e a crise do coronavírus – com as quais, estimam, Biden saberá lidar com mais competência.
Hoje, dos temas centrais que norteiam a escolha do próximo presidente, cinco despontam com particular importância: pauta étnica, economia, relações com a China, coronavírus e questão climática. Biden parece ter dois pontos seguros a seu favor, ao passo que Trump luta para consolidar seu posicionamento em ao menos dois deles também. Apenas a China está em aberto. Ambos os candidatos coincidem em que a China é um problema para a América.
Trump tem acrescentado pauta própria e muito sensível ao eleitor de direita do país, a ênfase na lei e na ordem, sua plataforma preferida na tentativa de alertar a população do país contra os efeitos da campanha de Biden, de maior aproximação com as minorias étnicas. Que, para o candidato republicano, são precisamente os agentes principais das ameaças à segurança interna dos Estados Unidos. O dia das eleições dirá de que lado se alinhará o eleitorado do país.
*Marcos Sorrilha é professor Doutor do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca.
RPD || Lilia Lustosa: Cinema argentino e mobilização
Lilia Lustosa destaca a força do cinema que clama por justiça, ao analisar o filme Crimes de Família (2020), do diretor Sebastián Schindel. Para ela, "um verdadeiro chamamento por condições dignas para trabalhadores domésticos e pelo fim da violência de gênero que afeta tantas mulheres na Argentina, no Brasil e no mundo"
Cinema e psicanálise nasceram praticamente juntos. Muito cedo percebeu-se que a nova arte tinha um poder catártico semelhante ao da nova corrente psicológica que surgia naquele final de século 19. Ao sentar-se em uma sala escura, com a atenção totalmente voltada para a tela, o espectador entrava em uma espécie de estado hipnótico, revivendo sensações do passado, seguidas de um certo alívio ao final da sessão. Um sentimento que muitas vezes terminava por converter-se em ação… ou em transformação.
Em Buenos Aires, tive a oportunidade de constatar esse poder do cinema quando fui assistir ao filme Refugiado (2014), de Diego Lerman, em uma villa (como se chamam ali as comunidades), fruto de uma ação promovida pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –, em conjunto com uma ONG local. O objetivo era incentivar mulheres vítimas de violência doméstica a se pronunciarem sobre o mal que vinham sofrendo, quem sabe até criando coragem para denunciar seus agressores.
O filme, que conta a história de uma mulher grávida que foge de casa e do marido, levando consigo o filho de 7 anos, despertou sentimentos profundos na plateia. Uma senhora, acompanhada do filho pequeno, declarou haver-se identificado muito com a protagonista, afirmando que o que viu na tela era exatamente o que vivia em seu dia-a-dia. Uma angústia sem fim que ela não queria mais na sua vida nem na de seu menino, que, ali sentado, parecia alheio a todo o mal que lhe cercava quotidianamente. O que essa mãe mais temia era que a criança crescesse tendo aquele modelo de pai, de relacionamento e de vida.
A verdade é que, apesar de já ter lido mil vezes sobre a força catártica do cinema, sobre sua capacidade de sensibilização ou mesmo de persuasão, características tão exaltadas pelos vanguardistas russos ou mesmo pela Igreja Católica com suas encíclicas Vigilanti Cura e Miranda Prorsus, nada se compara a vivenciar seu efeito na vida real.
Crimes de Família (2020), do diretor argentino Sebastián Schindel, lançado em agosto via streaming (Netflix), tem os quesitos necessários para repetir o feito de Refugiado. Tendo como tema central um crime cometido pela empregada doméstica Gladys em seu local de trabalho, numa interpretação comovente da atriz iniciante Yanina Ávila – ela mesma empregada doméstica na vida real –, o filme mostra ainda outros crimes que envolvem o filho da família de seus patrões, papéis interpretados brilhantemente por Benjamín Amadeo, Cecilia Roth e Miguel Angel Solá. De forma labiríntica, essa história forte, instigante e muito bem narrada, vai sendo pouco a pouco construída. À medida que o filme avança, o novelo vai-se desenrolando e vamos entendendo as razões que levaram Gladys a cometer tal monstruosidade.
O roteiro de Crimes de Família, baseado em fatos reais, acabou despertando o interesse de organizações internacionais como a ONU Mulheres e a OIT - Organização Internacional do Trabalho, que resolveram apoiar sua produção por enxergarem ali uma ferramenta de sensibilização para as questões de violência laboral, de gênero e assédio sexual. Quiçá capaz de impulsionar o governo argentino a ratificar a Convenção 190 da OIT, que trata justamente desses temas.
Como mulher e mãe, senti-me muito tocada por um outro aspecto do filme: a maternidade. Há várias mães nessa história, cada uma tentando acertar em seus papéis de educadoras, provedoras e protetoras. Mas, o que fazer quando nunca se teve o amor como modelo? Ou quando se sofre assédio constantemente? O que fazer diante de um filho criminoso? Até onde é possível preservar o tal instinto materno de proteção?
Como historiadora e crítica de cinema latino-americana, senti-me orgulhosa de ver a força de um cinema que clama por justiça. Um verdadeiro chamamento por condições dignas para trabalhadores domésticos e pelo fim da violência de gênero que afeta tantas mulheres na Argentina, no Brasil e no mundo.
Não é a primeira vez que Sebastián Schindel dirige um filme que retrata desigualdades nas relações sociais e trabalhistas. Aliás, este é um tema que o fascina! Com formação de documentarista, esse diretor-idealista costuma basear-se em fatos reais para compor seus roteiros, usando seu trabalho e sua arte como ferramentas de sensibilização, conscientização e chamamento por mudanças. Em 2014, seu O Patrão, radiografia de um crime, também usado pela OIT como bandeira para tratar do tema da escravidão moderna na Argentina, obteve excelentes resultados, levando este país a tornar-se o primeiro da América do Sul a ratificar o Protocolo 29 de combate ao trabalho forçado. Uma prova de que o cinema, além de entretenimento, pode ser também eficaz ferramenta de mobilização. Que mais e mais diretores e instituições tomem partido dessa faceta da sétima arte!
*Lilia Lustosa é crítica de cinema
RPD || João Cezar de Castro Rocha: A mentalidade bolsonarista
A ascensão da direita, articulada desde meados da década de 1980, primeiramente na caserna e depois no movimento civil, preparou a vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno em 2018, avalia João Cezar Rocha em seu artigo
Almejo, neste artigo, caracterizar brevemente a mentalidade bolsonarista por meio da guerra cultural, isto é, a ponta de lança de um projeto autoritário, com base no resgate insensato da Doutrina de Segurança Nacional, no alinhamento cego à matriz narrativa conspiratória do Orvil e na adesão náufraga ao sistema de crenças Olavo de Carvalho.
De fato, a ascensão da direita é anterior à emergência do bolsonarismo, o que favoreceu sua possibilidade de êxito. Em boa parte dos estudos acerca do fenômeno, o efeito é tomado como causa. O bolsonarismo não possibilitou o triunfo eleitoral da direita, mas, pelo contrário, a ascensão paulatina da direita, articulada desde meados da década de 1980, preparou a vitória do Messias Bolsonaro no segundo turno, em 2018.
Hora, portanto, de analisar esse fenômeno sem preconceitos, destacando a força incomum da presença de um escritor, metamorfoseado em ativista político no reino encantado do universo digital. Refiro-me a Olavo de Carvalho, artífice de uma retórica do ódio que ameaça levar o país a um esgarçamento inédito.
Debruçar-se sobre o fenômeno é fundamental. De imediato, menciono quatro fatores, cuja inter-relação esclarece o caráter orgânico da ascensão da direita nas últimas duas décadas. A redução desse movimento à vocação golpista, atribuída ao impeachment de 2016, tem paralisado a esquerda, que, assim, se revela incapaz de entender a importância de uma juventude de direita, força decisiva na política brasileira dos últimos anos. Pelo menos desde 2002 – muito antes, portanto, de 2013.
A simples enumeração dos elementos ilumina a incompreensão ainda hoje predominante:
1) a ação de Olavo de Carvalho na década de 1990, ampliando o repertório bibliográfico e fortalecendo a musculatura da direita por meio de polêmicas estratégicas contra ícones da esquerda;
2) uma fissura geracional que escapou aos cálculos da esquerda, em geral, e do Partido dos Trabalhadores, em particular. As quatro eleições presidenciais, legitimamente vencidas pelo PT, possibilitaram a associação automática entre establishment, sistema político e campo da esquerda; daí, pela primeira vez na história republicana brasileira, foi possível considerar-se de oposição por ser de direita;
3) o conflito geracional foi agravado pela difusão da tecnologia digital e sua apropriação criativa e irreverente por uma inédita juventude de direita, cuja presença nas redes sociais materializou-se nas multitudinárias manifestações a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff;
4) por fim, a partir de 2013, no princípio timidamente, porém de forma ostensiva já em 2015, a direita começou a disputar as ruas com o campo da esquerda, um desdobramento surpreendente para qualquer analista, pois as ruas pareciam propriedade simbólica dos que estavam à margem do poder, ou seja, antes do triunfo eleitoral do PT, a própria esquerda. Os 14 anos de permanência do PT no Governo Federal alteraram de maneira profunda a ecologia da política brasileira, sem que tal abalo fosse imediatamente perceptível.
Iniciadas em março de 2015 e ampliadas em abril, agosto e dezembro do mesmo ano, as manifestações de rua da direita explodiram em março de 2016, revelando ao país uma organização sólida de grupos conservadores, com destaque para movimentos articulados nas redes sociais, que, com grande desenvoltura, tomaram os céus de assalto, não para defender a revolução, porém, todo o oposto, para derrubar o único partido de esquerda que chegou à Presidência do Brasil.
Em relação aos quatro fatores que terminei de elencar, o último é o mais visível e muitas vezes o único considerado na ascensão da direita. Por isso, ela é reduzida ao ânimo golpista. E esses dois elementos se encontram: a juventude de direita, ativíssima nas redes sociais, formou sua visão de mundo primariamente por meio do sistema de crenças Olavo de Carvalho, apreendido por meio das mesmas redes sociais — e, aqui, a redundância é o sal da terra.
Para dizê-lo de forma direta: desde meados dos anos 1980, como uma reação à distensão implementada pelo general Ernesto Geisel, na década anterior (1974-1979), e sobretudo à redemocratização, conduzida aos trancos e barrancos pelo general João Batista Figueiredo (1979-1985), um movimento subterrâneo de direita foi articulado, inicialmente na caserna e, posteriormente, na sociedade civil.
O Orvil é o modelo narrativo adotado pelo bolsonarismo. Trata-se de documento-chave que oferece o relato de uma permanente “ameaça comunista”, fortalecendo o discurso da atual extrema-direita no Brasil, pois se trata do livro de cabeceira da família Bolsonaro. Ele foi um livro preparado pelo Exército entre 1986 e 1989, cujo objetivo era denunciar a “ameaça comunista”. A ascensão da direita, um movimento de duas décadas, explodiu em 2015 e 2016, porém sua intensidade foi preparada lentamente por meio da criação de uma linguagem própria, saturada de clichês anticomunistas com ressonâncias anacrônicas da Guerra Fria, ademais do recurso a uma moldura narrativa com base nas tentativas de tomada do poder por parte da esquerda brasileira, “naturalmente” em acordo com o movimento comunista internacional, numa vasta trama de proporções apocalípticas. O próprio subtítulo de Orvil, tentativas de tomada do poder, revela o sentido das teorias conspiratórias que presidem a mentalidade bolsonarista, autêntica matriz de suas obsessões. Por fim, não se negligencie o milagre às avessas da proliferação de teorias conspiratórias involuntariamente dadaístas.
Nas páginas finais do Orvil, o inimigo comum das próximas décadas é identificado: “Entende-se que o ‘partido de Lula’ é o principal resultado da luta da classe operária”.[1] Decifre-se a esfinge: sem um alvo determinado, como manter grupos diversos reunidos num mesmo projeto? Nesses casos, a diferença é subsumida na miragem de um adversário tentacular, convertido em inimigo útil, nada inocente, que assegura a coesão do movimento.
A mentalidade bolsonarista pode então completar-se: trata-se de reduzir o outro ao mero papel de adversário, inimigo a ser eliminado. Por isso, muito mais importante do que somente derrotar o Messias Bolsonaro é superar o próprio bolsonarismo.
*João Cezar de Castro Rocha é professor Titular de Literatura Comparada da UERJ e ensaísta.
RPD || Henrique Brandão: A Cinemateca Brasileira corre perigo
Com o maior acervo documental em audiovisual da América Latina, a instituição passa pela maior crise de seu período recente. Nas mãos do governo Bolsonaro, ainda não recebeu nenhum repasse de recursos do Governo Federal em 2020
Desde a eleição do sinistro capitão, a Cultura está sob ataque cerrado. Alguns episódios ligados à pasta poderiam até soar como paródias, não tivessem sidos levados a sério por quem estava no comando do setor. Regina Duarte, ex-namoradinha do Brasil, ficou meses paquerando o cargo que, por fim, assumiu. Mas o casamento durou pouco. Para constrangimento geral, ao apagar das luzes de seu breve reinado, deu entrevista em que minimizou as torturas praticadas na ditadura. Seu antecessor, Roberto Alvim, não ficou atrás: em vídeo, imitou Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, com direito a trilha sonora de Richard Wagner.
Seria cômico se não fosse trágico para o País. Como todo governo com viés autoritário, o atual pega pesado com a Cultura, onde vê inimigos por toda parte. A ordem é cercar, sufocar, exterminar. O comandante em chefe deu o primeiro passo assim que assumiu: rebaixou o ministério a uma secretaria, subordinando ao Turismo toda a área cultural. Não tivesse sido suficiente, deixa morrer, por inanição, setores importantes de atividades vitais, como o audiovisual.
Um dos exemplos mais dramáticos é o da Cinemateca Brasileira: embora esteja instalada na capital paulista, em uma estrutura da Prefeitura de São Paulo, todo o acervo e os recursos para sua manutenção estão sob a responsabilidade do Governo Federal. Segundo a Associação Roquette Pinto, mantenedora do espaço desde 2018, o governo Bolsonaro não repassou verba alguma este ano. A dívida chega a R$ 14 milhões. Os sinais do estrangulamento financeiro já vinham do ano passado: dos R$ 13 milhões previstos no orçamento, o Governo só repassou R$ 7 milhões. Este mês, a Associação Roquete Pinto jogou a toalha: entregou as chaves ao Governo Federal e demitiu os 41 funcionários do corpo técnico. A bola agora está com a Secretaria Especial de Cultura. Sinal de que o que está ruim pode piorar.
Fundada em 1946, a Cinemateca Brasileira é responsável pela preservação do audiovisual brasileiro. Considerado o maior acervo de imagem em movimento da América Latina e uma das maiores instituições do gênero do mundo, abriga cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos, entre roteiros, fotografias, cartazes, recortes de imprensa, e arquivos pessoais, como o de Glauber Rocha (1939-1971). Além do valioso acervo, sua sede, situada no antigo Matadouro Municipal de São Paulo, na Vila Clementino, tem duas modernas salas de exibição e uma área externa para projeção de filmes.
Neste governo, o nome da Cinemateca tem sido citado em vão. O presidente ofereceu um cargo inexistente de chefia como consolo para a saída de Regina Duarte que, por sua vez, achou legal assumir “um museu do cinema”. A Cinemateca tem muitas funções importantes, menos a de museu. Quem assim a enxerga confunde preservar com embalsamar. Pensamento conservador. Há muito que os principais museus do mundo – como o Louvre – têm feito, com sucesso, esforço considerável para sacudir a poeira de seus salões.
Uma das funções mais importantes de uma cinemateca, em todo mundo, é formar plateias. Em suas salas de cinema acontecem workshops, lançamentos de filmes, exibição de clássicos fora de catálogo. Muitas vezes, é a oportunidade para crianças de escolas de comunidades terem seu primeiro contato com um filme em tela grande.
Várias gerações de cineastas e amantes do cinema devem sua formação às cinematecas. Para mim, são inesquecíveis as sessões que frequentei na Cinemateca do MAM/RJ à época do lendário Cosme Alves Neto (1937-1996). No auge do regime militar, Cosme trocava as latas de filmes, a fim de evitar a apreensão de fitas censuradas pela ditadura.
Quem olha a memória como um retrato imóvel na parede não percebe que ela é algo vivo, que abarca passado, presente e futuro, em um movimento único. O filme de ontem do inesquecível Carlitos (1889-1977), a montagem revolucionária de Eisenstein (1898-1948) ou as vidas secas dos retirantes de Nelson Pereira dos Santos (1898-2018) têm uma nova leitura no olhar do jovem de hoje.
O deliberado descaso do Governo Federal com este patrimônio inestimável do povo brasileiro é inaceitável. No local existem materiais que exigem condições especiais de conservação, como os filmes de nitrato, que, se não estiverem em ambiente adequadamente climatizado, podem entrar em autocombustão.
Infelizmente, a Cinemateca corre o sério perigo de arder em chamas. Seu fechamento, além do risco de incêndio, tem consequências amazônicas para a Cultura do país.
*Henrique Brandão é jornalista, escritor e amante de cinema