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RPD ||Luiz Santini e José Gomes Temporão: A falsa guerra contra o vírus da Covid

O negacionismo científico, o reducionismo preconceituoso e ideológico nas relações diplomáticas internacionais e a obsessão eleitoral do presidente Bolsonaro politizaram por completo o processo de combate ao vírus e produção de vacinas no Brasil

Estamos em meados de janeiro de 2021, e o número de vítimas da Covid-19 já ultrapassou a marca dos 210 mil óbitos. Para falar com propriedade sobre a pandemia do coronavírus no Brasil, é preciso datar, pois, a cada dia, surgem novidades, muitas delas ruins.

Mas, felizmente, já temos duas vacinas aprovadas pela Anvisa para uso na população: a da Oxford/Astrazeneca e a CoronaVac. Ambas serão produzidas no Brasil por duas instituições científicas centenárias e respeitadas internacionalmente: a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan.

Nesse contexto, quais são os principais desafios que se apresentam?

O primeiro é dispor da matéria-prima na quantidade necessária para a produção de vacinas e o atendimento das necessidades da população, isso facilitará a redução de casos graves, a internação hospitalar, a mortalidade e, se possível, a transmissibilidade do vírus.

Aqui agigantam-se os riscos. O negacionismo científico, o reducionismo preconceituoso e ideológico nas relações diplomáticas internacionais e a obsessão eleitoral do Presidente Bolsonaro politizaram de tal modo o processo, que travaram as iniciativas de negociação, o que dificulta a aquisição dos insumos necessários à produção das vacinas.

A competição internacional por esses insumos farmacêuticos, em um mercado global em que são pouquíssimos os fornecedores, contribui ainda mais para aumentar a desigualdade no acesso a essa matéria-prima, relegando os países do hemisfério sul ao final da fila na distribuição dos recursos globais, como está sendo verificado. O mito da cooperação internacional está sendo desmistificado. Ocorre, na prática, uma competição desenfreada, com imenso volume de recursos públicos e privados aplicados no desenvolvimento dessas tecnologias pela indústria farmacêutica, seguindo o mesmo padrão desigual de comercialização, acesso e estabelecimento de preços, de outros medicamentos.

Apesar de o Brasil dispor de capacidade produtiva importante nessas duas instituições, ainda não dispomos de autossuficiência tecnológica que nos permita prescindir de buscar esses princípios ativos fora do Brasil. Temos duas vacinas testadas no país e aprovadas pela Anvisa, para uso emergencial, mas não dispomos ainda do número necessário de doses para poder desencadear campanha de vacinação em termos nacionais. Além disso, o plano nacional apresentado pelo Ministério da Saúde não detalha de modo suficiente os critérios para estabelecer a definição dos grupos prioritários a serem vacinados ao longo do tempo. Não se sabe até que ponto houve participação ativa das sociedades médicas e de especialistas em sua formulação, o que, ao longo das últimas décadas, sempre foi uma das marcas do PNI. Outro aspecto, já levantado pelo sanitarista Gonzalo Vecina, é que nosso plano foi copiado de países europeus e dos EUA, não levando em conta as características de desigualdade presentes em nossa sociedade, o que exigiria uma revisão dos grupos prioritários a serem vacinados.

Por outro lado, o Programa Nacional de Imunização (PNI) é mundialmente reconhecido como um dos melhores do mundo, e o SUS tem larga experiência em campanhas de vacinação em massa. Em 2010, por exemplo, em 3 meses, foram vacinadas 80 milhões de pessoas contra o H1N1. No entanto, neste momento, além da fragilidade técnica e gerencial da atual equipe instalada no Ministério da Saúde, o que coloca dúvidas sobre sua capacidade de coordenar e implementar uma campanha de vacinação, o próprio Ministério da Saúde se transformou na principal agência de disseminação de informações falsas e anticientíficas, defendendo tratamentos sem indicação médica, não reconhecidos, portanto, pela comunidade científica.

Assim, se o primeiro desafio era dispor da vacina, o segundo, é conseguir grande mobilização da sociedade para aderir a esse esforço nacional em defesa da vida. O que parece estar também em risco.

O SUS tem se mostrado resiliente, apesar da desastrosa estratégia conduzida pelo governo federal, mas é impossível escapar de desastres humanitários como o que está ocorrendo em Manaus, e que, infelizmente, pode se repetir em outros lugares, quando um processo de tamanha complexidade é conduzido de forma tão arrogante, primária, preconceituosa e incompetente.

Além de todas essas dificuldades conjunturais, há um grande equívoco do ponto de vista conceitual que impacta a estratégia de controle da doença a médio e longo prazos. Trata-se da evolução da história natural da doença no indivíduo e a evolução das epidemias na comunidade e na população. A retórica da guerra contra a Covid-19 talvez seja a mais danosa contribuição, ainda que involuntária, dada pelo discurso corrente, às atitudes negacionistas ou de desprezo pelos efeitos da pandemia para a saúde pública, para a sociedade e para as pessoas.

A metáfora da guerra, embora frequentemente utilizada pela medicina, oferece uma explicação simplista, de fácil compreensão, mas equivocada, pois não dá conta da complexidade envolvida no curso do processo saúde-doença.

Por definição, uma guerra busca a derrota do inimigo e, para tal, irá mobilizar grande quantidade de recursos que, em geral, levará a uma brutal desorganização econômica e social. E, pior do que tudo, pressupõe certo grau de efeitos colaterais aceitáveis em perda de vidas humanas.

A mutação é uma atividade constante do vírus na natureza. E o que leva esse vírus a alcançar toda a humanidade, sem proteção imunológica que barre sua disseminação, são mudanças não só em sua biologia, mas também nas condições ambientais propícias, o modo de vida das populações humanas e as condições econômicas e sociais. Ou seja, determinantes socioeconômicos e ambientais de saúde importam tanto quanto a biologia do vírus na disseminação de uma pandemia.

É claro que uma vez desencadeada uma pandemia, a sociedade deverá ser capaz de responder com a produção de vacinas, medicamentos, organização, infraestrutura e tudo o que estiver ao seu alcance para se desenvolver no plano de novos conhecimentos e tecnologias.

Mas também os governos e a sociedade devem responder com medidas abrangentes de contenção da disseminação da doença. No Brasil, a resistência a essas medidas de contenção, como o distanciamento social e a proteção pelo uso de máscaras, por exemplo, apoia-se na ideia do dano colateral aceitável, baseado numa interpretação equivocada na imunidade de rebanho.

Apesar da inédita alocação de recursos para a produção de vacinas que controlem a doença, continuaremos a contabilizar muitos casos, mortes e consequências ainda desconhecidas, se a epidemia não for controlada. E nada disso evita o risco de uma próxima pandemia, que será fruto desse mesmo desequilíbrio, se nada for feito.
A pandemia, por isso mesmo, é uma oportunidade de se perceber a desigualdade, inclusive no alcance das medidas propostas para prevenir, proteger e tratar das pessoas. As medidas de contenção, por exemplo, como a recomendação de permanência em casa, garantia de hábitos de higiene e o uso universal de máscaras, são incompatíveis com a situação de moradia e saneamento de uma imensa parte da população do Brasil, e de várias partes do mundo.

A pandemia desnudou de forma trágica as contradições do capitalismo contemporâneo, e as fragilidades dos sistemas de saúde em todo o mundo. A desigualdade na distribuição das vacinas, medicamentos e insumos tende a continuar. Já é hora de compreendermos que, sem um novo modelo de desenvolvimento centrado no fortalecimento da democracia, na busca da equidade e no fortalecimento dos sistemas de proteção social, não teremos futuro.

*Luiz Antonio Santini é médico, professor da UFF de Cirurgia e de Saúde Pública, ex-diretor do INCA e pesquisador associado da Fiocruz.

*José Gomes Temporão é médico sanitarista, membro da Academia Nacional de Medicina, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz.


RPD || Editorial: A batalha que se avizinha

Após alguns meses de incerteza, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a regra fundamental para nortear a disputa pela presidência das duas Casas do Congresso Nacional: os atuais ocupantes estão impedidos de disputar mais uma vez a eleição. Essa decisão abriu o caminho para a apresentação dos candidatos e sua movimentação em busca do apoio de partidos e parlamentares. 

No Senado Federal, as candidaturas ainda se encontram em processo de acomodação, restando pendente, até o momento, a definição do candidato da bancada do MDB. Na Câmara dos Deputados, contudo, a presteza do governo em anunciar seu candidato precipitou os movimentos da oposição. Está claro e reconhecido que essa disputa é tida como fundamental pelos estrategistas do governo, para o bom andamento de seu projeto político. Consequentemente, intensificou-se nos meios oposicionistas e na opinião pública a percepção de sua relevância simétrica para os objetivos maiores dos opositores: sustar, interromper, talvez até mesmo iniciar a reversão dos avanços do governo nas pautas que lhe são caras. 

Os objetivos do governo são bem conhecidos e repetidos dia a dia por seus expoentes. Na segurança pública, ampliar a autonomia para a ação das polícias, até chegar à garantia prévia de impunidade nos casos de vítimas fatais decorrentes dessa ação. No meio ambiente, o desmantelamento do corpo de leis de proteção ambiental, ou seja, a passagem da boiada. O avanço da onda conservadora nos costumes, para reverter os avanços recentes dos movimentos em prol dos direitos das mulheres e dos homossexuais. A negação do racismo, com seu corolário de perpetuação das práticas racistas que prosperam no país, em particular o genocídio da juventude negra.  

Contra o sucesso dessa agenda, a oposição deve trabalhar pela unidade em torno da candidatura da continuidade para a presidência da Câmara. A mesma frente que se formou, no esforço conjunto de legisladores e governadores, em momentos cruciais do passado recente, em torno do FUNDEB, do auxílio emergencial, de todas as medidas de combate à pandemia, da autonomia do Poder Legislativo, da defesa do Poder Judiciário, deve tornar a operar hoje, na véspera do momento em que o comando das duas Casas do Congresso será decidido. 

Hoje como ontem, uma frente com essa amplitude tem por objetivos a defesa da vida e da democracia. Trata-se de preservar, de um lado, a vida dos brasileiros das consequências devastadoras da doença e da crise econômica a ela vinculada; de outro, sua liberdade, em risco permanente por força das ameaças sucessivas ao estado de direito democrático vocalizadas pelos representantes do governo. 


RPD || Especial: Bolsonaro quer destruir política nacional de saúde mental para favorecer evangélicos

Em São Paulo, João Doria e Bruno Covas seguem na mesma linha do governo federal, mostra a reportagem especial da Revista Política Democrática Online de janeiro

Cleomar Almeida

Uma multidão de dependentes químicos ocupa parte da Alameda Dino Bueno, no Centro de São Paulo, na região conhecida pelo intenso consumo e tráfico de crack. Alguns improvisam tendas para se protegerem de sol e chuva e não interromperem a fumaça que exala do cachimbo, mesmo com a cracolândia cercada por tropas da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana e um número ínfimo de profissionais de saúde e assistência social.

A cena, que já é comum para quem vive na região, pode se espalhar para outras capitais diante do risco de retrocesso no socorro a dependentes químicos no país. O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) planeja desmontar a Política Nacional de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS), que ainda garante o mínimo desse tipo de atendimento a dependentes químicos e outras pessoas em diferentes situações de vulnerabilidade social, agravada pela pandemia do coronavírus.

Sem se identificar, a equipe de reportagem da revista Política Democrática Online transitou pela cracolândia de São Paulo e constatou a ausência do Estado para garantir atendimento adequado e resposta efetiva ao problema. Por um lado, essa omissão faz aumentar a reclamação de moradores contrários à aglomeração de dependentes químicos na região, que, por outro lado, ficam ainda mais suscetíveis ao tráfico e imersos na onda de desassistência à saúde.

A última pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre a cracolândia mostrou que 50,3% dos frequentadores da região tinham algum nível de quadro psicótico, 48,4% já haviam praticado automutilação e 38,2%, tentado suicídio. Além disso, 63% da população local já havia contraído sífilis, a doença que mais se manifesta entre essas pessoas.

Compilados no Levantamento de Cenas de Uso de Capitais (Lecuca), os dados da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp foram extraídos de entrevistas com 240 pessoas que afirmaram consumir crack na cracolândia. Divulgada no ano passado, a pesquisa sobre a região é a mais recente realizada por uma universidade e exemplifica a necessidade de fortalecimento do atendimento em saúde mental do SUS.

Em São Paulo, apesar de se apresentarem como oposição ao bolsonarismo, o governador João Dória e o prefeito Bruno Covas, ambos do PSDB, estão totalmente alinhados com Bolsonaro no plano de desmonte da política de saúde pública mental. Defensores da internação, eles agem para favorecer comunidades terapêuticas, alvo de denúncias em todo o país e mantidas em sua maioria por igrejas, como forma de devolver favores dos evangélicos em apoio às suas eleições.

Na capital paulista, desde 2017, quando Dória assumiu a prefeitura, intensificou-se um processo de enfraquecimento do atendimento a dependentes químicos. Ele substituiu o programa Braços Abertos, da administração de Fernando Haddad (PT), que oferecia trabalho, moradia e outras formas de acolhimento como estímulo para que cada dependente químico pudesse reduzir o uso de drogas. No lugar, instituiu o Redenção, focado na internação e ligado a clínicas religiosas, além de instalar laboratórios de militarização na região, para aumentar as operações policiais. Covas mantém essa linha.

“O que se vê é o esvaziamento de qualquer política na cracolândia. A principal política atual da gestão Dória e Covas é bater nas pessoas que estão ali”, afirma Daniel Mello, ativista da Craco Resiste, movimento que existe desde o final de 2016, logo após Dória ser eleito para a prefeitura com a promessa de que iria acabar com a cracolândia. “As pessoas usam drogas para suprir outras necessidades. Quando tinha oferta de abrigo e emprego, a grande maioria mantinha o uso, mas sob controle”, diz.

No mês passado, o Ministério da Saúde apresentou a proposta de revogar cerca de 100 portarias editadas entre 1991 e 2014. Exposta em reunião com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e as Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), a medida pode atingir estratégias de cuidado das pessoas com problema psíquico baseadas nos direitos humanos e conquistadas com a reforma psiquiátrica, instituída pela Lei Federal 10.2016 de 2001. O cuidado em rede pode ser desmontado para favorecer a internação em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.

Na prática, a proposta tem o objetivo de rever a atual política de saúde mental, desarticulando a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que é baseada na humanização do tratamento e formada por estratégias e equipamentos. Entre eles estão os centros de atenção psicossocial (Caps) nos tipos I, II, álcool e outras drogas, álcool e outras drogas 24h (III) e infantil; leitos de atenção Integral em saúde mental em hospital geral; unidade de acolhimento transitório; serviço residencial terapêutico; consultório na rua e iniciativas de geração de renda.

O plano do governo federal é cortar mais verba do SUS, que em 2019 teve perda de R$20 bilhões, pois pretende revogar portarias que instituem procedimentos ambulatoriais e a revisão do financiamento dos Caps. Os centros de atenção psicossocial fortalecem vínculos dos usuários da saúde mental nos seus territórios, como alternativa à internação em hospitais psiquiátricos, os chamados manicômios.

No entanto, a proposta do Ministério da Saúde quer criar ambulatórios gerais de psiquiatria e unidades especializadas em emergências psiquiátricas. Pela atual Política de Saúde Mental do SUS, somente pessoas em situações mais graves são encaminhadas para internação, que deve ocorrer em hospitais gerais.

O risco de desmonte dessa política do SUS fez mais de 100 entidades e movimentos sociais de todo o Brasil criarem, no mês passado, a Frente Ampla em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. “Tal mudança projeta mais dor em um contexto já trágico de pandemia por covid19: por que querem causar mais sofrimento mental às pessoas? Como fechar serviços de saúde em plena pandemia?”, questiona um trecho do manifesto.

Na avaliação das pesquisadoras Elizabeth Sousa Hernandes, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (Neppos), e Waleska Batista Fernandes, tutora da residência multiprofissional em saúde mental do adulto da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (Fepecs), o risco é iminente. Segundo elas, “o Brasil não pode permitir um retrocesso em termos de política de saúde mental”.

“É fundamental que a comunidade acadêmica, os movimentos sociais e todo indivíduo ou instituição que se importe com direitos humanos levantem a voz para mudar o rumo dessa história. Com isso, ganhará quem deve ganhar: a sociedade, que é afetada pelo sofrimento mental de qualquer dos seus indivíduos e por todas as situações de destituição de direitos”, escrevem elas, em análise sobre o risco de desmonte.

Paulo Fluxos lamenta abandono de pessoas vulneráveis por parte das autoridades. Foto: Ailton de Freitas

Artista visual, ativista de movimentos sociais e morador da região da cracolândia, Paulo Fluxos disse que a situação dos dependentes químicos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade no local piorou ainda mais durante a crise sanitária global provocada pelo coronavírus. “Já passei aqui oito meses, escutando, acompanhando como essa população de rua enfrentou a pandemia. Completamente abandonada”, diz ele. “Única coisa que a Prefeitura e o Estado de São Paulo ofereceram foi a polícia”, acrescenta.

A Defensoria Pública da União (DPU) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) já solicitaram ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, uma série de informações sobre as medidas adotadas pela pasta, com o objetivo de alterar políticas públicas destinadas ao tratamento em saúde mental e de dependentes químicos no país. Ele ainda não respondeu.

Procurados pela reportagem, o Ministério da Saúde, o governo de São Paulo e a prefeitura da cidade não se pronunciaram. A Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas também não retornou ao pedido de resposta.


Governo desconsidera alertas sobre violação de direitos em comunidades terapêuticas

Para favorecer comunidades terapêuticas, o governo brasileiro tem agido na contramão de alertas feitos por instituições nacionais, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o Ministério Público Federal (MPF). Relatório de fiscalização chama atenção da sociedade para o risco de o país reviver o “holocausto brasileiro”.

Uma série de violação de direitos humanos em comunidades terapêuticas no país foi constatada em fiscalização dessas instituições e registradas no mais recente Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, divulgado em 2018. Entre os principais problemas identificados estão privação de liberdade, castigos, punições, indícios de tortura, trabalhos forçados e sem remuneração – conhecidos como laborterapia –, e violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual.

Mesmo com os diversos alertas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou, em julho de 2019, a lei das comunidades terapêuticas, retirando recursos da saúde para colocá-los na assistência social, área em que elas estão classificadas. No entanto, prometem tratamento e, muitas vezes, “cura” para dependentes químicos, sem receber qualquer fiscalização da vigilância em saúde.

Palhaço da cracolândia, médico Flávio Falcone: ‘Redução de danos não tem fórmula’. Foto: Arquivo pessoal

O médico psiquiatra e artista Flávio Falcone, conhecido como o palhaço da cracolândia, critica a política proibicionista e punitivista em relação ao consumo de drogas, que, segundo ele, reforça a estratégia manicomial contra dependentes químicos. “As comunidades terapêuticas são os novos manicômios”, afirma.

Falcone, que já atuou em programas de atendimento e acolhimento a dependentes químicos em São Paulo, ressalta que, por lei, as comunidades terapêuticas são de assistência, mas, na prática, fazem tratamento. “É comum uma pessoa ter passado por 20 ou 25 internações em comunidades, mas continuam na cracolândia”, afirma.

Na avaliação do psiquiatra, o modelo de internação não tem êxito porque reforça o foco proibicionista e punitivista. “A oferta de tratamento é sempre na visão de abstinência e quem não a consegue é punido pela segurança pública, com repressão policial e violação de direitos humanos. Vejo isso acontecer cotidianamente na região”, lamenta.

De acordo com Falcone, a estratégia proibicionista e punitivista e o foco na abstinência também se sustentam na perversão do conceito de redução de danos, dizendo que é caminho para a abstinência, sendo que é um dos recursos disponíveis para tratamento das pessoas.

“A redução de danos é um conceito, não tem uma fórmula nem protocolo que vai dar certo para todas as pessoas. Precisa de projeto terapêutico singular entendendo que cada pessoa tem um processo”, explica o psiquiatra, ressaltando que esse conceito é uma das bases do tratamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que está em risco.


Jovem acende cachimbo de crack nos arredores da Praça Júlio Prestes, em São Paulo. Foto: Ailton de Freitas

Michel Temer iniciou processo de desmonte contrário à luta antimanicomial

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ameaça emplacar um desmonte da Política Nacional de Saúde Mental, em um esforço para cortar mais verbas da saúde e que começou antes de seu mandato, no governo Michel Temer (MDB). Pesquisadores analisaram os efeitos das primeiras mudanças que pretendiam vencer a luta antimanicomial no Brasil.

No trabalho intitulado Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019, os pesquisadores Nelson Cruz, Renata Gonçalves e Pedro Delgado constataram que o governo Temer iniciou o processo de desmonte.

Eles analisaram 14 documentos – portarias, resoluções, nota técnica e decreto – publicados entre outubro de 2016 e abril de 2019, que, afirmam, indicam “os primeiros efeitos das mudanças na rede de atenção psicossocial, como o incentivo à internação psiquiátrica e ao financiamento de comunidades terapêuticas”. Essas ações, ressaltam, são fundamentadas em abordagem proibicionista de questões sobre o uso de álcool e outras drogas e, ainda, confirmam “tendência de estagnação do ritmo de implantação de serviços de base comunitária”.

De 2003 a 2016, houve a implementação da Política Nacional de Saúde Mental, que rendeu ao país o reconhecimento da comunidade internacional. Nesse período, houve destinação de recursos para serviços de natureza extra-hospitalar, fechamento e descredenciamento significativo de leitos e hospitais psiquiátricos e publicação de portarias que visaram à expansão dos serviços e ações.

Na última década, também houve significativos avanços na construção da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), além da reestruturação da assistência psiquiátrica e atenção ao usuário de álcool e outras drogas.

Especialistas internacionais chegaram a reconhecer resultados práticos da política de saúde mental. Ela ficou conhecida, principalmente, por extinguir “depósitos de loucos e indesejáveis” e propor a inclusão das pessoas com doença mental na comunidade. Elas recebiam os cuidados adequados nos três níveis de atenção do SUS (básica, média e alta complexidade), por meio de equipes interdisciplinares que retiravam o foco da doença e do médico, priorizando a pessoa com doença mental e seu tratamento, sem a obrigatoriedade de exclusão da comunidade.


RPD || Entrevista Especial - Marcos Nobre: 'Se Bolsonaro se reeleger, acabou a democracia no país'

Jair Bolsonaro “tenta destruir as instituições por dentro”, avalia o cientista social Marcos Nobre. Para ele, é preciso que as forças democráticas de direita, de centro e de esquerda se unam em torno da queda do presidente

Por Caetano Araujo e Vinícius Müller

O projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o Brasil é de longo prazo e se a oposição insistir na estratégia de fidelizar parcelas separadas do eleitorado, sem pensar numa grande coalizão de forças, será impossível derrotar o atual presidente em 2022, avalia o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Marcos Nobre, entrevistado especial desta 27a edição da Revista Política Democrática Online (RPD).

Para Marcos Nobre, Bolsonaro governa para um terço do eleitorado, no qual se apoia para não sofrer impeachment e chegar ao segundo turno das próximas eleições. E faz um alerta: "Nós temos que conversar com esse eleitorado e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário votar em uma candidatura do campo democrático", acredita.

Marcos Nobre, entre outros, publicou, pela Companhia das Letras, Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma (2013) e, pela Todavia, Como nasce o novo. Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel (2018) e Ponto-final. A guerra de Bolsonaro contra a democracia (2020). A seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD) - Como interpretar a mudança de comportamento do governo após a reação do Supremo Tribunal Federal às ameaças de manifestantes governistas radicais?  

Marcos Nobre (MN): Acho importante ressaltar, em primeiro lugar, que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário, vale dizer, o confronto dele com as instituições, continua em curso. O que aconteceu foi que uma parte do sistema político decidiu apoiar um projeto de extrema direita. O que se chama de Centrão são muitos, como ficou claro nas eleições municipais e, agora, no processo conducente à eleição das mesas da Câmara e do Senado. Ainda não conhecemos o resultado dessa disputa, mas sabemos que o sistema político se dividiu em três: um bloco de apoio ao governo, ou seja, um bloco que decidiu apoiar um presidente de extrema direita; um outro bloco que está à direita, que chamaria de direita tradicional, que também se organizou de maneira independente do governo Bolsonaro; e existe a esquerda. Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista, com um projeto autoritário. Aí diz-se: "Não, mas as instituições estão segurando". Peço para se fazer uma única comparação, entre o Brasil de 2020 ou de 2021 com a Hungria de 2012 e 2013. Ou seja, naquele momento de primeiro mandato de Orbán, quantas pessoas achavam que a democracia estivesse de fato em risco na Hungria? Temos de ter clareza quanto à gravidade do momento.  

RPD - Na conjuntura presente, quais são as tarefas imediatas das forças democráticas de oposição?   

MN: Quando se tem uma situação como a nossa, o que se pode fazer é uma frente ampla em defesa da democracia, não existe outra saída. A não ser que se continue a subestimar, tanto o projeto autoritário do Bolsonaro, como a capacidade dele de se reeleger em 2022. Se todo mundo achar que as instituições estão funcionando, que a democracia não está em risco e que se o Bolsonaro se reeleger o Brasil vai continuar democrático, aí realmente não precisa fazer nada. O que tem que ser feito é um acordo para isolar Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas. Não vai poder mais acontecer o que aconteceu no Brasil desde a eleição de 2014, ou seja, não se pode dizer que a eleição foi fraudulenta, não se pode dar golpe, não se pode dar rasteira no adversário e tentar jogar o adversário para fora do campo político, de fora do sistema político. Isso tem reflexo eleitoral? Tem. Por quê? Terá de ser um acordo de reconstrução institucional, um pacto de convivência democrática entre as forças políticas. Qualquer que seja a candidatura que passar para o segundo, terá de contar com o apoio da integralidade do campo democrático, não importando se é da esquerda ou da direita.  

"Se ele (Bolsonaro) se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições e o segundo mandato é de implantação do autoritarismo"

É um projeto difícil, mas a alternativa é perder a democracia. Basta olhar para a eleição americana. O Trump tentou – e continuou tentando – dar golpe, ao insistir em manipular os resultados do pleito. Agora, vamos transferir isso para o Brasil. O Bolsonaro vai querer sair do poder tranquilamente? Ele sabe que o risco dele, da família e dele próprio irem para a cadeia é muito alto. Então ele não tem nada a perder. Se ele se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições, e o segundo será de implantação do autoritarismo, como o fez Viktor Orban, na Hungria. Esse é que é o script autoritário do populismo da década de 2010.   

 
RPD: Quais os principais obstáculos à cooperação entre as diversas forças e oposição e como superá-los?
MN: Primeira coisa: o exemplo dos Estados Unidos não nos serve. Ou seja, nós não teremos uma candidatura única do campo democrático em 2022. Então não nos serve esse exemplo.  

Mas há elementos que permitem pensar uma saída. Um sinal disso é o que se está insinuando na organização de forças para a escolha do novo presidente da Câmara dos Deputados. Uma direita tradicional se descolou da extrema direita e propôs à esquerda um acordo em torno da presidência, isso é muito importante. Não é pouco importante. Então talvez se possa pensar no seguinte. A pergunta central tem de ser formulada com clareza e a resposta dada com consciência: É grave risco para a democracia a reeleição de Bolsonaro? È preciso com que o campo democrático repactue entre si a democracia brasileira? Vejam bem; não é uma discussão a ser enfrentado no nível dos partidos, do sistema político, mas conduzida desde baixo. Caso contrário, a pretendida repactuação ocorrerá simplesmente no topo do sistema político, nas cúpulas.   

Na democracia, só existem adversários, mas Bolsonaro é um inimigo, porque ele é um inimigo da democracia. Então como fazer para que essas forças aceitem se sentar para negociar? Primeira coisa, muita política, precisam conversar. Diante da atual correlação de forças, a julgar pelos resultados recentes das eleições municipais, o projeto de esquerda – se é que a esquerda tem um projeto – consegue se impor? Não é provável, a correlação de forças lhe foi claramente desfavorável, tendo alcançado algo como 25% dos votos.   

Mas lembremos que um projeto de esquerda precisa da democracia, é um oxigênio sem o qual não dá para construir seu projeto político. A conversa à que me referi como caminho obrigatório para a repactuação tanto almejada terá, portanto, de consolidar a visão de que a democracia é também objetivo maior para a direita tradicional. Somente assim será possível construir algo como uma frente ampla comprometendo os campos da direita democrática e da esquerda democrática.  

A direita democrática não pode atrapalhar a reconstrução da esquerda, assim como a esquerda não pode atrapalhar a reconstrução da direita, dessa direita democrática, não da extrema direita, que evidentemente, está fora da mesa de negociação. Esse é que é o ponto: não só fazer política, mas também discutir política, porque isso é que desapareceu. Não se pode mais ficar nesse joguinho de lacrar em rede, "Você me deu um golpe, não converso com você", "Você votou no Bolsonaro, não converso com você", pois isso é o levará exatamente à reeleição do Bolsonaro. É importante empurrar os partidos na direção de discutir política como gente grande, sem o quê não há saída.  

"A primeira coisa que eu acho importante é que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário dele continua em curso, o confronto dele com as instituições continua em curso"

Volto a mencionar o que estamos presenciando na disputa em torno do novo presidente da Câmara, para mim sinais alentadores de que, de alguma forma, já se vem insinuado uma frente ampla democrática no Congresso. Se não, como explicar a convergência de esforços que viabilizou a aprovação do FUNDEB e do auxílio emergencial? Isso é a frente democrática na prática. Para mim, pouco importa se a direita tradicional resolve fazer suas declarações de amor à democracia, por pragmatismo, ao não ter conseguido dirigir e ocupar o governo Bolsonaro, como achava que pudesse. Isso para mim pouco importa. O que importa é que demonstrou que está realmente preocupada com o que pode acontecer com uma reeleição do Bolsonaro, isso para mim está claro, e abandonou o barco do governismo.   

"Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista e que tem um projeto autoritário"

A esquerda, por outro lado, considera necessário o impeachment, na avaliação de que não é possível deixar Bolsonaro chegar até 22, no exercício do mandato, porque concorreria com mais poder. Se a direita democrática vai topar um impeachment ou não, vai depender da esquerda convencer a sociedade. Esta, sim, é uma tarefa da esquerda - convencer a sociedade da necessidade do impeachment. Por quê? Porque as condições para o impeachment são muito exigentes. Será preciso subtrair apoio social do Bolsonaro, muito. E sabemos que a aprovação do governo Bolsonaro é altíssima, 37%, algo enorme, sobretudo depois de tudo o que aconteceu. Se formos capazes de convencer a sociedade dessa necessidade, se conseguirmos retirar apoio ao governo Bolsonaro, se conseguirmos fazer pressão sobre o Congresso, se conseguirmos convencer a direita democrática das vantagens do impeachment, teremos feito a coisa mais importante para a democracia brasileira, a mais importante de todas.   

RPD: Estas dificuldades em mantermos um ambiente democrático não revelam, na verdade, um problema estrutural da sociedade brasileira? A ascensão de Bolsonaro não é fruto de uma combinação entre uma conjuntura -  que vem sendo alimentada desde os anos 90 e que foi potencializada a partir de 2013 - , e traços estruturais e mais enraizados da sociedade brasileira?  

MN: Para mim, o marco temporal é 2013, porque, em 2013, ficou claro que a democracia brasileira, tal como estava funcionando até ali, não estava mais funcionando para a população brasileira. Qual foi a resposta do sistema político a junho de 2013? Blindar-se. A resposta do sistema político foi lamentável, porque foi uma resposta de se blindar, de se fechar em si mesmo, colocando-se em um modo de autodefesa, de sobrevivência, e, com isso, permitindo que essa energia social, já dispersa, solta na rua, não fosse canalizada para o sistema político. E, não sendo canalizada para o sistema político, para onde foi, então? Foi, de um lado, para a Marielle Franco, para um monte de mandatos coletivos, para novas intervenções. Mas foi também, de outro lado, para a Lava Jato, para maneiras de vampirizar essa energia social difusa que vendiam a ilusão de que poderiam fazer a reforma que o sistema político se recusou a fazer. Foi uma vertente que favoreceu também Bolsonaro, que aproveitou para proclamar: ‘Esse sistema nunca vai se autorreformar, então você tem que votar em alguém que é contra o sistema, e o único que é contra o sistema sou eu’. Esse populismo antiestablishment é característico da extrema direita dos anos 2010.  

"O que tem que ser feito é um acordo sobre isolar o Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas"

RPD: Por que Bolsonaro, com seus ataques à democracia e às instituições e mesmo com uma conjuntura desfavorável - pandemia e crise econômica - mantém sua popularidade?  

MN: Vamos fazer uma diferenciação no caso do Bolsonaro. É difícil estimar qual que é o núcleo duro de apoio ao Bolsonaro, é difícil. Mas é alguma coisa entre 12 e 15% do eleitorado. Estamos falando de uma coisa enorme, cerca de 20 milhões de votantes no núcleo duro do Bolsonaro. Agora, para chegar a 37%, faltam ainda 22%. Esses 22% não pertencem a esse núcleo autoritário do Bolsonaro, embora também comprem a história do antissistema. O Bolsonaro continua sendo, como presidente, contra o sistema, ele continua se colocando como outsider, e nós continuamos tratando o Bolsonaro como se ele fosse de fato um outsider. E isso é extraordinário, é a hegemonia total, a vitória total do Bolsonaro no campo cultural, se a gente quiser usar a expressão antiga. É isso, ele destrói as instituições porque as instituições devem ser destruídas porque elas são injustas. E ele tem apoio por isso.   

Então o que a gente, como democratas, temos que fazer? Temos que conversar com esse eleitorado, esses 22%, que apoiam o Bolsonaro, mas que não pertencem ao núcleo duro, e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário, em 2022, votar em uma candidatura do campo democrático. Essa é a nossa tarefa política. Porque se a gente considerar que 37% são autoritários, então esquece, não tem mais saída. A tática do Bolsonaro sempre foi de governar para um terço, que é esse um terço do eleitorado que é claramente antissistema. Que vota em quem for antiestablishment, e como eles não têm alternativa, eles ficam com o Bolsonaro, porque não apareceu nenhuma alternativa. Então o Bolsonaro decidiu: "Eu vou governar para esse um terço, eu não vou governar para a maioria". Isso é uma tática, e por que é um terço? Porque com um terço você continua não dando maioria e, portanto, você convence todo mundo de que você é antissistema mesmo, porque você não consegue ter o apoio da maioria, então você só pode ser antissistema, certo? Segundo, você consegue com isso uma vaga no segundo turno em 2022 com um terço, e você tem um seguro anti-impeachment. Você tem as três coisas. Isso é muito relevante para entender como o Bolsonaro funciona. Sem entender bem como o Bolsonaro funciona, o campo democrático não vai saber onde tem que bater, porque precisa ter tática, precisa ter estratégia muito clara, porque se não nós vamos perder. E vamos perder feio.    


RPD || Sérgio C. Buarque: Quando a tormenta passar

Manutenção do Teto dos Gastos e equilíbrio fiscal em 2021 serão fundamentais para o país em 2021. Vacinação da população é condição fundamental para a reanimação da economia, avalia Sérgio C. Buarque

A tempestade sanitária e econômica que sacudiu o mundo e o Brasil em 2020 ainda não passou. Nos últimos dias do ano, coincidindo com nova onda da Covid-19, vários países, incluindo alguns da América Latina, começaram a vacinação em massa da população, o que deverá superar o principal determinante da forte retração da economia mundial. Depois de uma queda de 4,4% do PIB mundial no ano que se encerra (estimativa do FMI), tudo indica que, em 2021, haverá recuperação moderada da economia mundial e do comércio global (o FMI projeta crescimento de 5,2%, arrastado pela China). Se confirmado o êxito das vacinas, a tormenta da pandemia deixará de travar a economia mundial ainda no primeiro semestre. E o mundo tem mais uma razão para respirar aliviado em 2021: a estupidez sairá da Casa Branca com a posse do democrata Joe Biden que promete retomar a cooperação internacional e liderar iniciativas de redução da emissão de gases de efeito estufa.

Com um cenário internacional favorável, o Brasil está muito atrasado na vacinação da população, condicionante fundamental da reanimação da economia. No meio de uma possível outra onda de propagação do vírus, impondo novas medidas de isolamento social, os brasileiros observam perplexos a disputa política contaminada pela ideologia obscurantista do presidente da República, deixando o Brasil despreparado para uma rápida e abrangente campanha de vacinação. No primeiro semestre de 2021, a vacina contra o Covid-19 deve alcançar apenas parcela reduzida da população, profissionais de saúde, idosos e pessoal de alguns serviços públicos essenciais. O vírus vai continuar circulando e matando brasileiros forçando algum isolamento social, enquanto a vacinação não avançar em larga escala.

A persistência da crise sanitária no primeiro semestre deve demandar ainda ações emergenciais na economia e na proteção da população vulnerável. Mas o pesado fardo econômico e fiscal herdado de 2020 (desmantelo das finanças públicas e alto endividamento) não deixa folga para ampliação de gastos. O ano começa com uma dívida pública perto de 100% do PIB, concentrada em títulos de curto prazo (43% com vencimento em 12 meses e 65,5% em até três anos) elevando os juros da rolagem para cerca de 7% ao ano (3,5 vezes a Selic). Por enquanto, o endividamento tem sido compensado pela da taxa básica de juros reais (Selic) negativa, à qual está indexada cerca de 36% dos títulos da dívida.

A se confirmar a lentidão no processo de vacinação, o desempenho da economia brasileira em 2021 dependerá da forma como o governo lidar com as restrições fiscais e sua capacidade de aprovação da PEC Emergencial e da Reforma Administrativa, que ajudariam a conter a inércia de crescimento das despesas primárias. A eventual suspensão do auxílio emergencial em 2021 funciona como trava na retomada do crescimento econômico depois de uma profunda recessão e acentua a crise social, especialmente no primeiro semestre convivendo ainda com a pandemia. Mas sua manutenção (ou a criação da Renda Cidadã) ameaça estourar o Teto de Gastos, provocando novo salto no endividamento público e o desequilíbrio completo das contas públicas, acendendo o alerta de alto risco de insolvência.

A orientação de Bolsonaro nesta encruzilhada política continua incerta. A intuição populista do presidente não aceita a queda de sua aprovação com o fim do “dinheiro na veia da população” (segundo sua expressão), o que é reforçado pela pressão do Centrão, sua base política no Congresso, sempre ávido pela abertura da torneira do Tesouro Nacional. A expansão dos gastos poderia estimular o crescimento no primeiro semestre (apesar da pandemia) ao custo de forte desajuste macroeconômico que comprometeria a expansão no segundo semestre, quando se aceleraria a vacinação. Em todo caso, a proposta orçamentária para 2021, que estima déficit primário de R$ 247 bilhões, não contempla o auxílio emergencial nem o lançamento do programa Renda Cidadã.

Para escapar da escolha entre um perigoso expansionismo e um ajuste fiscal contracionista, será necessário aprovar as reformas, que embora não gerem resultados imediatos, sinalizam para a manutenção do Teto dos Gastos e uma trajetória de equilíbrio fiscal. A recuperação da economia mundial em 2021 cria oportunidades para o Brasil. Mas dificilmente o país alcançará o ritmo das nações emergentes por conta do atraso na vacinação e da profundidade da crise fiscal, combinação perversa que modera o potencial de crescimento da economia, mesmo saindo de uma profunda recessão.

*Economista, com mestrado em sociologia, professor aposentado da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local.


RPD || Paulo Baía: O Brasil não conhece o Brasil

Brasil vive à beira do precipício como quem tenta fazer uma travessia em cima de uma corda bamba, à espera de um milagre, independente de uma política governamental, critica Paulo Baía

Não, o Brasil não quebrou. Milhões de pessoas todos os dias acordam sem nada para comer. Sem um tostão no bolso, vão para as ruas de nossas cidades com o intuito de "se virar". A novidade dos últimos tempos é a ideia de que cada cidadão deve vir-a-ser um empreendedor com garantia de sucesso e estabilidade num padrão de sucesso dentro da lógica do mercado. O qual existe e funciona para o 1% da população brasileira que permanece no mesmo patamar em qualquer crise. Então, na atualidade, existem espalhados por todos os cantos do país os "empreendedores" de si mesmo. O que existe na realidade são biscateiros, camelôs, vendedores de doces em semáforos, procurando ganhar algo para o sustento e que lhes traga alguma condição de subsistência. Outros, mais aquinhoados na discrepância de nossa profunda desigualdade de renda e social, são trabalhadores aviltados pelas plataformas digitais com seus empregos ainda mais precarizados, dentro de uma lógica de deformidades trabalhistas aprovadas e que se tornaram recorrentes nos últimos quatro anos.

O Brasil está à beira do precipício como quem tenta fazer uma travessia em cima de uma corda bamba, em que cada um que se vire por si próprio, independente de uma política governamental. Vivemos ao Deus dará, sem imaginar acreditar em falsos profetas à espera de um milagre, a não ser os que acreditam no mito, que não saberemos até quando durará após o fim do auxílio emergencial. Afinal, para o Presidente da República, a pandemia sequer existiu, foi fabricada por mentes doentias que tinham a missão única de conspirar para derrubá-lo e impedir que seu governo fosse bem-sucedido.

As redes de proteção social do Estado brasileiro foram detonadas por um Parlamento que roda, roda, e a cada eleição permanece preso a seus próprios negócios e interesses. E, no caso atual, em conluio com um Poder Executivo subserviente ao 1% mais rico da população, que não pode perder em nenhuma situação, nem mesmo diante de uma peste mundial.

Não somos um país quebrado. Temos uma produtividade espantosa da maioria dos 220 milhões de habitantes. Levantem suas cabeças e prestem atenção às ruas, principalmente olhem para as nossas periferias. A produção de redes de proteção, de assistência, de criatividade, tem feito com que a roda gire e os faça existir numa afirmação permanente da vida. De forma independente dos 'nãos' em excesso, vindos tanto do poder legislativo como do executivo, com suas políticas que atuam para retirar e criar barreiras em que a população nunca sai do mesmo lugar em que deve permanecer – à margem. Contudo, debaixo da terra existe vida pulsando e criando novas possibilidades existenciais, que marcam novas formas de existir, para além de uma ideia de resistência. Pois a atuação dos líderes comunitários, das redes de artistas e de pensadores dentro das comunidades busca soluções concretas, com o desejo de reafirmar a vida e não lutar contra uma correnteza que deseja única e exclusivamente afogá-los.

Enquanto o 1% da população brasileira permanece sem dividir o eterno bolo, que só cresce em suas barrigas narcísicas, as favelas criaram grupos de apoio em que, através de uma rede de solidariedade, conseguem se reinventar e criar condições para atravessar as dificuldades. Existem diversas ações em andamento, mas gostaria de ressaltar a ação humanitária Mães da Favela. De acordo com pesquisa realizada pelo Data Favela e pelo Instituto Locomotiva, existem 5,2 no país milhões de mães faveladas. Deste número, em torno de 72% delas afirmam que, com a ausência de renda decorrente do isolamento, terão problemas na alimentação e, obviamente, não possuem poupança. E oito a cada 10 dizem que a renda já caiu, e as despesas aumentaram, com os filhos em casa sem ir às escolas. Com isso, criaram o vale-mãe - em que elas recebem 120 reais com pagamentos sendo feitos pelo celular através de uma empresa. Atualmente, a ação tem uma página na rede que se chama “mães da favela on”, denominada Fundo Solidário Covid-19 para as Mães da Favela, que já arrecadou R$ 169.120.680,00. Existem 65 mil pessoas mobilizadas para a entrega das cestas com 5 mil favelas atendidas, sendo cerca de 1.379.794 famílias atendidas e 5.519.056 pessoas impactadas, perfazendo uma média de 4 pessoas por família, num total de 18.227,552 toneladas de alimentos, média de 13,5 kg por cesta. De fato, a música está certa – O Brasil não conhece o Brasil.

*Sociólogo e cientista político.


RPD || Martin Cezar Feijó: PANDEMIA, EMPATIA, CIDADANIA

Martin Cézar Feijó nos lembra do significado destas três palavras e de sua importância para o grave momento em que estamos vivendo por conta da pandemia do novo coronavírus

Quando Freud citou o poeta Heine sobre uma verdadeira definição de felicidade, ele lembrou a vista de um vale verdejante, uma árvore frondosa, e uma tranquilidade sem fim.

O isolamento não seria, portanto, o problema. A solidão tampouco. Mas a tranquilidade de se ter a mão todo o necessário para a sobrevivência diária seria indispensável.

PANDEMIA

Penso neste trecho em um texto clássico para refletir sobre esta pandemia do Covid-19. Pandemia que parece não ter fim, embora já tenha ultrapassado no Brasil mais de 200 mil mortos neste início do ano de 2021.

O que estamos passando não tem precedente, nem na Gripe espanhola, que de espanhola não tinha nada, como se sabe. A angústia do conhecimento científico que exige que, para alcançarmos uma imunidade e não sermos alcançados pelo vírus, temos que preservar o isolamento social, o uso de máscaras e aplicação de álcool em gel nas mãos.

Mesmo com a descoberta de várias vacinas, é preciso ter paciência com a demora de sua aplicação em escala global. Isso leva tempo, principalmente, de uma capacidade logística para se atingir o maior número de pessoas.

E para quê?

Não só para se proteger a própria pessoa de ser contaminada, mas também proteger os outros da disseminação do vírus.

Quanto maior a proteção, menor a capacidade de o vírus se propagar, inviabilizando até sua sobrevivência. E isto se chama “imunidade de rebanho”, quando são tantas as pessoas protegidas que o vírus não tem mais a guarida dos corpos humanos para sua propagação.

E esta é a única forma dele desaparecer e a humanidade se livrar de um problema que a afetou durante todo o ano de 2020.

EMPATIA

Só que tem gente que confunde imunidade de rebanho com rebanho que se julga imune.

E aí entramos na capacidade humana de se reconhecer no outro, de se colocar no lugar do outro, e entender que todos os protocolos sugeridos implicam que não só me protejo no plano individual, mas também me preocupo com a proteção dos outros.

E, neste quesito, o Brasil está revelando uma face obscura que, se não surpreende totalmente, ainda assusta pela falta de compromisso, em alguns casos de caráter, com os outros.

A relação entre os interesses pessoais e os interesses coletivos.

CIDADANIA

Compreender que a pandemia é um problema sanitário tanto como um problema sociológico. Uma nação se revela na forma como um povo lida com ela. E, apesar do caráter heroico dos profissionais de saúde, muitas pessoas parecem não se dar conta de como uma atitude individual se reflete no coletivo.

Tudo piora se o chefe da nação se especializa em dar exemplos que revelam ignorância e fanatismo, promovendo aglomerações, seja nadando em praias lotadas ou frequentando lotéricas cheias, contribuindo para a propagação do vírus e, ao mesmo tempo, defendendo que as pessoas desconfiem das vacinas.

Aí chegamos aos inimigos do povo! Aqueles sujeitos que exercem alguma liderança, buscando não os melhores exemplos – fundamentados na empatia –, mas defendendo ideias polêmicas, de resto predominantemente criminosas.

O maior exemplo disso foi o incitamento à insurreição contra a democracia, de parte do chefe da nação mais poderosa do mundo, ao instigar hordas milicianas armadas, lembrando grupos de assalto nazistas, a invadir a sede na qual se reúnem os representes do povo que deveriam deliberar sobre o reconhecimento da vitória eleitoral do opositor que tanto desagradou o presidente autoritário.

O dia 6 de janeiro de 2020 - dia de Reis, epifania para os católicos – entrará para a história como dia em que invasores fanáticos tentaram impedir uma ação parlamentar democrática em nome de uma ideia falsa da existência de fraude numa eleição reconhecida e inteiramente normal.

Um ato, portanto, autoritário, violento, de agressão ao reconhecimento de um processo eleitoral legítimo. 2021 começa, assim, sob dupla sensação: de um lado, o início das aplicações de vacinas que vão finalmente pôr fim à pandemia; e, de outro, a negação da democracia, o contrário da cidadania. Fica claro quem são os inimigos da verdade. São os mesmos inimigos da democracia, da cidadania e da empatia com os diferentes.

Voltando à citação de Freud a partir do poeta Heine, onde descreve a verdadeira definição de felicidade: estar no alto de uma montanha com uma vista deslumbrante em frente a uma árvore frondosa; e nela enforcados todos os inimigos do povo, da democracia e da verdade.

Claro que me utilizei de uma licença poética, até porque isto é apenas uma metáfora, claro!


RPD || Lilia Lustosa: O filme é… Babenco

Dirigido por Bárbara Paz, "Babenco" é carta de amor visual ao artista que levou o cinema brasileiro ao mundo. É o primeiro documentário escolhido pela Academia Brasileira para tentar uma vaga no Oscar

A Academia Brasileira de Cinema surpreendeu ao indicar pela primeira vez, neste ano, um documentário – ou ensaio poético – para representar o Brasil na corrida por uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Babenco - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou (2019), de Bárbara Paz, que levou o prêmio de Melhor Documentário em Veneza em 2019, foi o filme escolhido. Uma grande conquista para o gênero documentário, que vem ganhando cada vez mais fãs pelo mundo, graças sobretudo às plataformas de streaming, seu novo grande palco. E grande conquista também para as mulheres diretoras de cinema, que finalmente começam a ter seus trabalhos reconhecidos.

Com foco posto nos últimos anos da vida de Héctor Babenco, não se pode dizer, porém, que o documentário seja “inspirado” na vida do cineasta. Tampouco “baseado” em sua vida… a diretora mesmo não aprovaria tal fala! Porque o filme de Bárbara Paz é Babenco! Um homem de espírito anarquista, cuja vida-filme acabou sendo eternizada pelos olhos e lentes de sua companheira de forma original, sensível e linda. Filme-testamento, filme-poesia, filme-passagem. Passagem para outra vida, para um além-filme desconhecido. Passagem também de bastão, de Héctor para Bárbara, do marido para a amada, do mestre para a discípula que, deixando-se guiar pelo mestre-filmado, aprendeu com ele a manipular a câmera e as lentes até encontrar o melhor foco, o melhor ângulo, o melhor enquadramento. E essa proximidade – e cumplicidade – entre ser-filmado e ser-filmante acabou por gerar uma obra intimista, sensível e, ao mesmo tempo, universal, já que trata de temas que tocam a todos os seres humanos, em qualquer parte do planeta: vida, morte, amor, paixões, medos, angústias, escolhas, tristezas, alegrias…

Bárbara foi grande na composição de cada cena, na escolha de cada som (que, aliás, tem papel protagonístico), na captura de cada confissão de Babenco, na seleção de cada fala extraída da vasta filmografia do marido. Pixote, O Beijo da Mulher-Aranha, Carandiru, Meu Amigo Hindu e tantos outros levam-nos a percorrer a vida-filme do cineasta, deixando-nos com um gostinho de quero-mais, com vontade de rever – ou de ver pela primeira vez – cada um daqueles filmes. Vontade de conhecer mais de perto quem foi esse bravo guerreiro argentino-brasileiro que nunca fugiu à luta, passando boa parte de sua existência convivendo com um câncer, sem nunca se entregar à dor, sem nunca se deixar vencer pelo monstro, sem nunca parar de filmar. Até porque era justamente isso que o mantinha vivo.

Composto por vários closes e cenas fora de foco, registrados com uma câmera quase endoscópica, o Babenco de Bárbara penetra na alma de Héctor, permitindo-nos enxergar seus medos, dúvidas, sonhos, inspirações, lembranças de sua Mar del Plata natal, de seus tempos de presídio na Espanha e até mesmo de sua origem judaica, aspecto não tão conhecido nem discutido de sua vida. O preto e branco dão um tom poético à história contada, ao mesmo tempo que padronizam a textura das imagens usadas, suavizando as transições entre cenas de diferentes naturezas, transformando-as assim em uma coisa única, sem limites entre ficção e realidade. Tudo ali é Babenco! Tudo é a vida do cineasta! Essa escolha reforça ainda os laços que amarram a história do diretor à história mesmo do cinema, arte mágica em que, ao apagar as luzes, apagam-se também as fronteiras entre o real e o inventado. Arte-viagem capaz de transportar-nos a universos distantes. Arte-máquina-do-tempo, capaz de levar-nos ao passado e ao futuro, ou até mesmo, como no caso de Babenco, de eternizar a vida.

Se o Brasil tem chances com Babenco? Difícil responder sem ter assistido aos concorrentes, que parecem bem fortes neste ano. Talvez o filme tivesse mais chances na categoria Documentário… Mas, em um ano em que “acreditar é preciso”, não mata sonhar com essa possibilidade! Babenco - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou tem a seu favor o fato de tratar de temas universais e de ter ainda como protagonista um membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos. Um diretor respeitado e apreciado pelos seus pares, já tendo trabalhado com figuras de peso como Meryl Streep, Jack Nicholson, Wiliam Hurt, Willem Dafoe, tendo ele mesmo concorrido ao Oscar de melhor diretor por seu O Beijo da Mulher-Aranha. Além disso, o filme é uma linda homenagem ao próprio cinema e a todos aqueles que amam a sétima arte e fazem dela sua própria vida. Babenco é o filme!

*Lilia Lustosa é crítica de cinema


RPD || João Cezar de Castro Rocha: Verdade factual como programa de ação política

Habilidade de Trump e de Bolsonaro, tanto em pautar o debate público, como em desviar a atenção de temas que lhes são desfavoráveis, tem relação direta com milagre da multiplicação de fatos alternativos, avalia Castro Rocha

A ridícula tentativa golpista de Donald Trump fornece confirmação inesperada da noção de verdade factual, tal como proposta por Hannah Arendt. Se passarmos da caricatura à caracterização do evento, aprenderemos lição fundamental para lidar com o bolsonarismo, sobretudo num ano que promete ser muito difícil.

Voltemos um pouco no tempo: no dia 22 de janeiro de 2017, logo após a posse de Donald Trump, o porta-voz do presidente, Sean Spicer, afirmou que o número de pessoas que se deslocou a Washington para a cerimônia era muito maior do que a multidão presente na investidura de Barack Obama. Imediatamente, e com grande facilidade, comprovou-se o oposto: a comparação das fotografias áreas das duas ocasiões chega a ser humilhante para Trump. Numa entrevista, a conselheira do presidente, Kellyanne Conway, ao ser questionada sobre a falsidade da informação, superou o constrangimento com um lance de gênio, propondo uma noção-síntese de governos como os de Donald Trump e Jair Messias Bolsonaro: “The Press Secretary gave alternative facts”.

Fatos alternativos! Conceito que recusa a distinção apolínea entre rumor e fato, com base no tempo vertiginoso do universo digital, que dificulta a checagem imediata dos dados, e cuja ação direta inaugura a pólis pós-política por meio das redes sociais. A potência dos fatos alternativos na criação infatigável de narrativas foi comprovada à exaustão pela capacidade de manter as massas digitais mobilizadas em permanente excitação. Se fosse necessária prova definitiva, bastaria observar a reação dos apoiadores de Trump e sua disposição em acreditar nas teorias conspiratórias as mais absurdas. A habilidade de Trump e de Bolsonaro, tanto em pautar o debate público, como em desviar a atenção de temas que lhes são desfavoráveis, relaciona-se intrinsecamente ao milagre de multiplicação de fatos alternativos.

Em entrevista recente, dada ao deputado federal Eduardo Bolsonaro, o presidente Bolsonaro, ostentando o livro do abjeto torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, A verdade sufocada, traduzia em português hesitante o achado de Kellyanne Conway:

        Então, tem os fatos aqui. Recortes de jornais, né? Que... (sic) noticiava o fato em            si. Então, não tem como fugir disso aqui... E como nós nos livramos do comunismo       naquele momento. Não tem que se envergonhar disso. É uma história, com H, não         é historinha contada pela esquerda. Então… isso daqui [Bolsonaro folheia o     volume de A verdade sufocada] devia ser uma leitura obrigatória, né? de pessoas             que queiram saber da verdade… o que foi aquele período de pré-1964 e um        pouquinho depois do 1964, também. Então, A verdade sufocada é um livro com        fatos, né? que aconteceram na história recente do Brasil. 

Os fatos alternativos do coronel Ustra são bem conhecidos: nunca houve tortura durante a ditadura militar. A ascensão da extrema-direita no Brasil é incompreensível sem essa torção perversa de dados objetivos em narrativas conspiratórias, cujo eixo não se altera: dada a iminência do “perigo vermelho”, toda e qualquer violência se justifica. E nem mencionei a força dos fatos alternativos em correntes de whatsapp em campanhas eleitorais: mamadeira erótica, ideologia de gênero, marxismo cultural e tantos delírios similares produzem com celeridade desestabilizadora ondas-tsunami.

Como governar, porém, no reino encantado e narcísico dos fatos alternativos? Como negar a gravidade de uma crise mundial de saúde e, ainda assim, esperar que o eleitorado não seja capaz de distinguir rumor de fato diante de um caso dessa seriedade? Não há disputa de narrativas que se sobreponha ao valor da Vida; o encontro com a finitude esclarece brutalmente que a Morte não pode ser reduzida a “memes”, por mais compartilhados que sejam. Como perder uma eleição e, ainda assim, esperar que juízes sérios aceitem reverter o resultado legal através de ações sem evidências consistentes, sem provas claras de uma fraude sistêmica que se alega ter ocorrido?

Devo ser mais claro: bem urdidos e alinhavados com astúcia numa narrativa coesa, fatos alternativos são poderosas armas políticas: bombas atômicas na infodemia contemporânea. Contudo, num tribunal independente, avaliados por juízes autônomos, fatos alternativos não são nada: flatus vocis. A verdade factual se impõe.

Eis aí um programa de ação: olvidemos as declarações diversionistas do presidente e nos concentremos no esclarecimento objetivo do fracasso de seu governo.

*Professor Titular de Literatura Comparada da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ensaísta


RPD || Guilherme Casarões: Ser ou não ser um pária mundial?

Isolamento do Brasil sob o governo Bolsonaro não tem precedentes em nossa história. Congresso Nacional e oposição devem se unir para adensar interação com governos e parlamentos estrangeiros, avalia Casarões

O Brasil está por um triz de se transformar em pária internacional. A crise econômica se arrasta há uma década, agravada pela conjuntura mundial. Desmatamento descontrolado e incêndios ilegais colocam o país nas manchetes de todo o planeta. Violência policial, violação de direitos indígenas e assassinatos políticos causam revolta nacional e arranham a já frágil imagem de nossa democracia. Nos altos círculos da diplomacia ocidental, discute-se seriamente a hipótese de isolar política e economicamente o governo brasileiro, cujo presidente, cercado de militares, é visto como prejudicial às boas relações do Brasil com o mundo.

O ano é 1989, mas poderia ser uma boa descrição do que vivemos hoje. Na superfície, a semelhança entre os dois momentos neste intervalo de três décadas é expressiva. Mas há uma diferença fundamental: ao contrário de José Sarney, enfraquecido, prestes a sair da presidência e com pouco controle sobre o que restou da imagem internacional do Brasil, Jair Bolsonaro quer marginalizar o Brasil como parte de seu projeto pessoal de poder.

Nos últimos dois anos, Bolsonaro construiu relações personalistas (e fugazes) com lideranças de extrema direita, hostilizou sócios de longa data, como Argentina, China e França, e abandonou virtualmente todos os tabuleiros multilaterais nos quais o Brasil se firmara como liderança. Tudo isso com a chocante complacência de seu ministro de Relações Exteriores, que ficará para a história como o diplomata que, pela inédita subserviência e obtusidade ideológica, desmoralizou a diplomacia nacional.

Não surpreende, portanto, que as perspectivas da política externa para 2021 não sejam exatamente alvissareiras. Se depender somente do governo atual, a tendência é agravar o isolamento brasileiro sem qualquer precedente em nossa história bicentenária. O país que se orgulhava da ação internacional pragmática e universalista, sem descurar os princípios pacifistas e multilaterais que marcaram a era republicana, fechou o trágico ano de 2020 causando temor, apreensão e até certo deboche ao redor do mundo.

Ainda que não seja tarefa fácil, creio que o Brasil possa virar o jogo. Antes de tudo, é necessário romper o “bunker” ideológico-olavista que se enraizou no governo. Se Bolsonaro tiver juízo – o mesmo que o levou a reconhecer, embora muito tardiamente, a vitória de Joe Biden – ele precisa substituir, com urgência, os dois maiores porta-vozes da péssima reputação brasileira no exterior, Ernesto Araújo e Ricardo Salles. Afeitos a teorias conspiratórias e inimigos dos consensos científicos e da boa diplomacia, ambos se transformaram em vozes radicalizadas que, ao açularem a militância bolsonarista mais aguerrida, são vistas como reais ameaças à cooperação multilateral.

A demissão de Araújo e Salles é simbólica, mas paliativa. O maior entrave à melhoria da imagem do país é o próprio presidente. Mesmo adotando tom mais moderado, Bolsonaro dificilmente abandonará pautas que lhe são caras politicamente, como a negação da vacina, o Foro de São Paulo ou o nióbio amazônico. Por isso mesmo, uma guinada na política externa dependerá de pressão constante sobre o governo por parte de pelo menos dois atores: o parlamento e os entes subnacionais. Nenhum deles conseguirá agir sozinho, mas poderão, juntos, criar uma espécie de diplomacia paralela que permita que o Brasil sobreviva ao governo de turno.

Outrora reativo em temas internacionais, o Congresso Nacional precisa criar e adensar canais de interação com governos e parlamentos estrangeiros. Forças de oposição devem trabalhar para reocupar espaços nas Comissões de Relações Exteriores das casas e construir, sempre que possível, uma agenda positiva em campos abandonados pelo bolsonarismo, como cooperação técnica, integração regional, direitos humanos e meio ambiente.

Durante a pandemia (e graças a ela), governadores e prefeitos conquistaram certa independência para desenvolver laços de cooperação científica, ajuda sanitária e aquisição de insumos. Diante do cenário de acirrada disputa política, cujo objetivo último é viabilizar nomes de oposição ao presidente em 2022, é possível que alguns desses atores movimentem-se no sentido de ampliar ainda mais os espaços de atuação subnacional em política externa, com importantes implicações para o futuro das relações internacionais do país.

Nada disso se concretizará sem o apoio de setores da sociedade brasileira. Industriais, ruralistas, cientistas, acadêmicos, ativistas, entre outros, reconhecendo a emergente correlação de forças na inserção internacional do Brasil, deverão trabalhar lado a lado com parlamentares e outros agentes políticos para resgatar nossa reputação no exterior. A despeito dos esforços do atual governo para fazer do Brasil um pária, o isolamento e o ostracismo certamente não expressam a vontade de maioria da população.

*Cientista político e professor da FGV EAESP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Michigan (2019-2020).


RPD || Elimar Nascimento: O enigma Bolsonaro

Verdadeiro estelionato eleitoral, com as bandeiras da campanha que o elegeu presidente em 2018 se desfazendo, Bolsonaro mantém-se forte, ocupando o primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para 2022

Se um leitor atento percorrer os principais jornais do País ao longo de 2020, editoriais, inclusive, e seus articulistas, particularmente, encontrará os mais distintos epítetos atribuídos ao Presidente Bolsonaro. Todos negativos. Colhi alguns como exemplo: irresponsável, incompetente, psicopata, errático, acéfalo, imbecil, negacionista e insano. Para não citar o mais comum: antidemocrata. A conclusão de nosso leitor não poderia ser outra: este é um governo a caminho de um fim precoce. As cláusulas indispensáveis, porém, para se alcançar este desfecho estão longe de serem preenchidas: o presidente não perdeu o apoio da opinião pública, tem a seu favor uma rede de comunicação invejável (redes sociais e veículos tradicionais), goza de prestígio entre o empresariado e caminha para obter, senão a maioria, uma força expressiva no Congresso. E ainda conta, em princípio, com o prestígio das Forças Armadas, amplamente representadas em seu governo.

Desde o início de 2020 os principais analistas políticos deste País dizem que o governo Bolsonaro está no fim. E os motivos parecem consistentes: o governo tem desprezado o enfrentamento da pandemia; tem-se omitido nos cuidados com o meio ambiente, e particularmente a Amazônia, recebendo críticas de grandes empresários nacionais e governos estrangeiros; tem uma politica externa desastrosa, sendo objeto de “gozação”, desprezo e escárnio de governos e mídia internacional; tem filhos acusados de prevaricação e o próprio presidente é objeto de investigação por tentativa de uso de entidades públicas em favor de interesses pessoais e familiares; tem estimulado ações contra as instituições democráticas; e detém a capacidade de ter os piores ministros da educação da história deste País.

Um verdadeiro estelionato eleitoral, um dos motivos pelo qual a presidente Dilma sofreu o impeachment, está em curso. As quatro grandes bandeiras de sua campanha eleitoral estão-se desfazendo: o combate à corrupção foi interrompido, com seu ícone despedido e a Operação Lava Jato sendo desfeita; a defesa da nova politica está-se desmanchado a olhos vistos na aliança com o Centrão; a pandemia mandou para o espaço a política econômica liberal, e a batalha pela recuperação dos velhos costumes e valores não avança. Mas Bolsonaro mantém-se forte. Em todas as pesquisas de intenção de voto para eleições presidenciais, ele ocupa o primeiro lugar. Seu governo tem, somados as avaliações de ótimo/bom e regular, 59% de aceitação.

O enigma é ainda mais evidente quando se examinam as recentes eleições municipais. Bolsonaro foi fragorosamente derrotado, inclusive nas últimas eleições realizadas em Macapá, quando seu candidato, contando com o apoio do prefeito e governador locais, sendo irmão do presidente do Senado, perdeu. Venceu apenas nos confrontos diretos com o PT, principalmente no embate mais relevante, em Vitória do Espirito Santo.

Todas as análises sobre esse fenômeno politico pecam pela excessiva simplificação: base ideológica forte, carisma (sic), sentimento antipetista, vocaliza uma opinião majoritária no País (conservadorismo), navega na onda mundial da ascensão da extrema direita.

Para vencer, no entanto, o candidato preferido nas intenções de voto de todos os institutos de pesquisa, será necessário desvendar este enigma: por que, com tantos desmantelos, o Presidente goza de tamanho prestígio? Sobretudo, que a recente tradição brasileira é a de que todos os presidentes são reeleitos. Para vencê-lo, é preciso mais do que um bom candidato, é indispensável desfazer sua imagem junto a opinião pública. Por enquanto, todas as tentativas da oposição e seus críticos foram infrutíferas. Inversamente, parece alimentá-la.

Esse é o maior desafio em 2021 para as forças democráticas: desvendar o enigma do “mito”.

*Sociólogo político e socioambiental. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília e do Programa de Pós-Graduação Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.