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RPD || Reportagem Especial: Uma cicatriz no mercado de trabalho
O impacto da pandemia atinge empregos, expõe as deficiências nas escolas e aprofunda as desigualdades no Brasil. Fim do Auxílio Emergencial e demora das vacinas aumentam as incertezas no país
Por Eumano Silva
Janeiro de 2021 chegou de forma trágica para o Brasil. O número de vítimas da pandemia de covid-19 deu um grande salto, depois das aglomerações de fim de ano, e do surgimento de uma nova cepa do coronavírus, em Manaus. Assim, os índices da catástrofe sanitária voltaram ao patamar dos piores dias de 2020. O colapso em unidades do sistema de saúde, os desacertos do governo federal e a demora na aplicação das vacinas contribuíram para o rebaixamento das perspectivas de uma recuperação consistente da economia do país.
O fim do Auxílio Emergencial no primeiro mês joga mais uma sombra sobre as expectativas para 2021. As restrições decorrentes das medidas contra o avanço do vírus acentuam as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, com especial repercussão nos segmentos com menor grau de instrução ou sem capacitação tecnológica. “Vivemos uma era de desigualdades e com muitas incertezas”, definiu o especialista em políticas sociais Marcelo Neri, economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em entrevista à Política Democrática.
Em consequência do impacto causado pela pandemia, o desemprego atinge e ameaça, sobretudo, os setores tradicionalmente marginalizados pelas atividades remuneradas formais. Esse fenômeno está ligado a aspectos estruturais como raça, gênero, faixa etária, diferenças regionais, acesso à tecnologia e à educação. Incide com maior rigor sobre negros, pardos, mulheres, jovens e nordestinos, observa Neri.
Por causa da Covid-19, as diferenças entre as escolas tornaram mais extensa a distância entre os pobres e os mais favorecidos. O acesso à tecnologia para aulas on-line, e o número de horas dedicadas ao aprendizado tiveram considerável variação, por exemplo, entre as escolas públicas e privadas. O professor da FGV aponta a interrupção de um período de 40 anos de redução dessa lacuna social. “Antes da pandemia, o Brasil estava rompendo o atraso. Isso se quebra e surge uma cicatriz no mercado de trabalho”, afirmou o economista.
Dados atualizados
Essas faixas mais vulneráveis da população atravessaram o primeiro ano da pandemia com a proteção do Auxílio Emergencial. Mais de 60 milhões de pessoas receberam a ajuda aprovada pelo Congresso Nacional para amparar as famílias e a economia do país.
Dados oficiais atualizados, em 2021, revelam a dimensão da calamidade no mercado de trabalho. Antes das restrições decorrentes da pandemia, no trimestre encerrado em março do ano passado, o índice de desemprego medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estava em 12,2%. Entre setembro e novembro de 2020, a taxa chegou a 14,1%, pouco abaixo dos 14,3% divulgados no mês anterior. Foi a segunda queda, depois do pico de 14,6% registrado em julho.
Os números fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE, divulgada no dia 28 de janeiro. O indicador manteve o número de brasileiros à procura de trabalho, acima do patamar de 14 milhões. Chega-se a um contingente de 32,2 milhões de pessoas subutilizadas no país quando se leva em conta os subocupados, os que desistiram de procurar trabalho e as pessoas que por alguma razão estão impedidas de exercer atividades laborais.
Também no dia 28 de janeiro, o Ministério da Economia informou que em 2020 o Brasil abriu 142.690 novas vagas com carteira assinada, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED). Apesar do aumento de postos criados ao longo do ano, a tendência se inverteu em dezembro, com déficit de 67.906 na relação entre contratações e demissões.
O resultado anual positivo se deve, principalmente, ao socorro do governo. Como o Auxílio Emergencial acabou em janeiro, a pressão por empregos tende a aumentar ao longo do semestre. Simultaneamente, o Congresso Nacional discute formas de compensar o fim da ajuda oficial.
A implementação de novas medidas depende, entretanto, da negociação dos interesses do governo e dos parlamentares em um ambiente de reacomodação dos grupos internos, deslocados com os movimentos provocados pela sucessão nas Mesas Diretoras da Câmara e do Senado.
Desde meados de 2020, especialistas alertam para a deterioração do mercado de trabalho – formal e informal – em decorrência da Covid-19. Um estudo publicado em setembro de 2020, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), apresentou os primeiros efeitos da doença nos empregos. Assinado pelos pesquisadores Sandro Sacchet de Carvalho e Mauro Oddo Nogueira, o artigo “O trabalho precário e a pandemia: os grupos de risco na economia do trabalho” usou números coletados até julho de 2020. O estudo identificou perda na “segurança laboral” tanto no setor informal quanto no formal.
Renda interrompida
Ex-funcionária de um hotel em Brasília, Sandra Maria Rodrigues da Silva, 47 anos, enquadra-se no perfil dos que deixaram a formalidade. Trabalhava em um hotel, com carteira assinada, e tinha salário de R$ 1.400,00. Demitida no início da pandemia, teve a vida familiar abalada pela interrupção da renda. Com seis filhos para sustentar, passou por dificuldades e chegou a faltar comida em casa.
Sandra recebeu seguro-desemprego e não obteve o Auxílio Emergencial. Para suprir as necessidades, passou a fazer e vender bolos e marmitas. Também trabalha com faxina. “Não trabalho todos os dias, mas dá para manter as coisas”, afirmou a trabalhadora à reportagem. Nos últimos meses distribuiu currículo, no entanto, não teve retorno. Afrodescendente, Sandra não sente discriminação por causa da sua cor. Mas nota mais dificuldade em encontrar um novo emprego por causa da idade.
A reportagem procurou Oddo Nogueira, um dos autores do trabalho do Ipea, para analisar os dados atualizados do CAGED e da PNAD em comparação com as percepções registradas no artigo do ano passado. “O cenário está melhor por causa do Auxílio Emergencial, que segurou a demanda. As pessoas continuaram comprando, comendo, teve uma sobrevida, especialmente, das pequenas empresas”, avaliou o técnico do Ipea.
A concessão do benefício pelo governo permitiu a abertura de lojas em espaços fechados no início da pandemia e, com isso, reduziu a procura por vagas. “Se o auxílio não for prorrogado, vai ser outra pancada, fecha tudo de novo”, explicou Oddo Nogueira.
Mesmo com todo o impacto positivo, o alívio proporcionado pela verba federal foi insuficiente para derrubar a alta taxa de desemprego, mantida acima de 14%. Oddo Nogueira ressalta, ainda, que esse indicador não inclui cerca de 4 milhões de pessoas afetadas por um fenômeno chamado, pelos economistas, de “desalento imediato” – quando o trabalhador perde o emprego e não toma a iniciativa de procurar outro.
Industrialização e qualificação, males antigos do mercado de trabalho brasileiro
Ao mesmo tempo que sente o peso da pandemia, o mercado de trabalho, no Brasil, sofre de males antigos, como a falta de qualificação das empresas e dos empregados. Isso se verifica fortemente em função da desindustrialização do país, observa o Sociólogo Glauco Arbix, Coordenador do Observatório da Inovação da Universidade de São Paulo (USP). Nestas circunstâncias, prevê, haverá uma queda brutal da participação na renda dos trabalhadores do meio e da base da pirâmide.
“Vamos ter um Brasil com desigualdade, no mercado de trabalho, cada vez maior. Isso é um problema da estrutura da economia que é difícil resolver”, afirmou Arbix em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, no dia 17 de janeiro. “Pode-se tentar resolver com sistema de educação e qualificação e, com isso, oferecer oportunidades, mas não há garantias de que esse pessoal vai encontrar uma posição melhor”, acrescentou.
Na análise do sociólogo, o Brasil passa por um fenômeno chamado pelos economistas de “desindustrialização prematura”, um processo rápido e intenso de mudança no setor. “Europa e EUA demoraram muito tempo para ter a transferência da manufatura para a área de serviços. Aqui, ela ocorre rapidamente, não há condições boas para requalificar empresas e trabalhadores e cria-se uma economia disfuncional. Parte das empresas e dos trabalhadores é qualificada; outra, não”, explicou o professor da USP.
As mudanças provocadas pelo isolamento social prejudicaram algumas áreas de forma mais dramática, caso da educação. Psicopedagoga e Professora de Língua Portuguesa, Jordana de Souza Rodrigues, 36 anos, foi demitida em julho de uma escola particular de ensino fundamental, no Distrito Federal. A queda na receita levou a empresa a reduzir as despesas com o quadro docente.
Com sete anos de empresa, Jordana teve uma carreira estável até a demissão no ano passado. Começou a trabalhar em sala de aula aos 21 anos, qualificou-se, trocou de emprego algumas vezes e, assim, obteve ganhos nos salários e melhores condições para lecionar. Ganhava R$ 3.500,00 na última escola, onde chegou sete anos antes. No início da pandemia, assim como os colegas, teve o salário reduzido. “Eu me dedicava ao máximo, gravava as aulas em casa, com dificuldade. Depois de dois meses voltaram com nosso salário normal e, logo, demitiram todo mundo”, conta a professora.
Jordana recebeu seguro-desemprego, mas o benefício acabou. O marido mantém a casa, enquanto ela aguarda o chamado para uma vaga de secretária escolar, o prazo de validade vai até o final de 2022. Também fez algumas entrevistas em escolas privadas, mas percebe a retração do mercado, ocupado por novos contratados. “Aguardo o dia de amanhã, esperando o que Deus proverá”, conforma-se.
Incógnitas afetam o destino de milhões de brasileiros
Dúvidas quanto ao futuro dos empregos, como ao da professora do Distrito Federal, inquietam habitantes do mundo todo, nestes tempos de pandemia. No Brasil, em particular, o horizonte da economia depende, em grande parte, do desempenho dos governos no enfrentamento do coronavírus.
Nesse sentido, como tratado acima, a pressão sobre os postos de trabalho está diretamente atrelada a alguns fatores ainda indefinidos. São incógnitas que, quando resolvidas, terão influência decisiva no destino de dezenas de milhões de brasileiros.
Uma das condicionantes é o Auxílio Emergencial. Se a ajuda oficial for prorrogada, segura, pelo menos em parte, a demanda por postos de trabalho, como ocorreu no ano passado. No início de fevereiro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou a intenção de retomar o benefício para cerca de 30 milhões de pessoas, metade do número alcançado em 2020. A possiblidade de postergação de regras de flexibilização dos contratos de trabalho também vai influir na capacidade das empresas de preservar o quadro de pessoal.
Por fim, todas as expectativas se voltam para a capacidade do Brasil de assegurar a imunização da população em ritmo mais célere. O país entrou atrasado na corrida por vacinas e, com isso, distanciou-se das nações desenvolvidas – condição que prejudica o reerguimento da economia nacional e, por causar impactos distintos na sociedade, aprofunda as desigualdades internas.
Quadro sem precedentes
Um relatório divulgado em janeiro pela Oxfam, entidade que reúne organizações governamentais de diferentes regiões do planeta, constata que a pandemia provocou aumento da desigualdade em praticamente todos os países do mundo – situação sem precedentes desde o início dos registros, há um século.
O agravamento do quadro se manifesta na rápida recuperação das fortunas perdidas por milionários no início da propagação da Covid-19, ao passo que entre os mais pobres o retorno à condição anterior pode levar mais de uma década. “A crise expôs nossa fragilidade coletiva e a incapacidade de nossa economia profundamente desigual trabalhar para todos. No entanto, também nos mostrou a importância vital da ação governamental para proteger nossa saúde e meios de subsistência”, afirma o documento da Oxfam.
No Brasil, como sabemos, estes sintomas são antigos e persistem na terceira década do século. A pandemia apenas tornou a injustiça mais evidente.
RPD || Entrevista Especial - Arminio Fraga: ‘O Brasil está dando um mergulho no passado e sem liderança’
Por Raul Jungmann e Caetano Araújo
Defensor do auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999-2003) durante o segundo mandato do Governo FHC é o entrevistado especial desta 28ª edição da Revista Política Democrática Online. Para 2021, o sócio fundador da Gávea Investimentos e um dos mais notórios economistas liberais do país avalia que um novo auxílio seja necessário para ajudar a sustentar a economia. "Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado", acredita.
Armínio Fraga também faz um alerta sobre a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor. “É um perigo monumental”, completa. Para ele, o governo Bolsonaro não está discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. "Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. Espelha enorme incerteza", acredita. Associado fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), Fraga também considera a derrota de Trump como muito importante para o Brasil e o mundo. "Se o Biden for na direção de Clinton, de Obama, será um espetáculo", avalia. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista à RPD Online.
Revista Política Democrática Online (RPD): Alguns analistas avaliam que, a partir de suas declarações e artigos mais recentes, você poderia considerado como uma ponte autorizada entre os setores liberais e a esquerda democrática. O que pensa a respeito?
Armínio Fraga (AF): É mais uma torcida do que uma análise. Eu vejo a necessidade de esquecer um pouco os rótulos e pensar nas propostas concretas. Estou convencido – e não digo que seja um teorema – da ideia de que no Brasil, como em muitos outros países, alguns grandes temas têm que andar juntos, eles se reforçam. Na economia são três. Macroeconomia saudável, para organizar um pouco a casa e impedir que haja uma crise a cada cinco, 10 anos. No plano do crescimento, importa cuidar da produtividade para o país crescer. Há décadas que crescemos muito pouco. Houve momentos de luz, mas sempre mais do que compensados por trevas, colapsos, uma desgraça.
Outro ponto não menos importante refere-se ao tema da desigualdade, que, embora não seja monopólio da esquerda, é sua essência. É fundamental olhar para a desigualdade de uma maneira ampla, completa. A pobreza é inaceitável, mas nós temos que ir muito além do combate à pobreza extrema. Temos que criar condições para que as pessoas tenham capacidade de se empregar, ter sua renda, seu espaço, portanto, de oportunidade e mobilidade, e por aí vai. Essa agenda, a meu ver, é de fato uma combinação liberal, social, que não difere muito da agenda do Fernando Henrique Cardoso, tampouco da do Lula em seu primeiro mandato. Naquele momento, parecia que o Brasil político fosse oscilar dentro de um espaço pequeno, um pêndulo que não se tornaria uma bola de demolição, como acho que acabou acontecendo.
Eu me vejo nessa posição. Não sou político, não tenho ambições eleitorais, mas tenho, sim, participado do debate público. Como me dão espaço, procuro aproveitar. E essa ponte, a meu ver, precisa ocorrer mais para o centro, algo mais equilibrado, e não essa loucura que temos hoje, de costumes e ameaças autoritárias, de comportamento truculento, nem tampouco de uma esquerda velha, sonho compreensível, mas que avalio nunca ter dado certo. Menos ainda uma esquerda, entre aspas, que produziu o bolsa-empresário de sete pontos do PIB, quando o Bolsa Família consome meio ponto do PIB. Isso não é esquerda, nem sei muito bem o que era. Embarcou-se numa canoa furada, abraçaram ideias equivocadas e, infelizmente, também a corrupção e tudo mais. Então, se é esse espaço de ponte que querem me atribuir, fico muito feliz, é onde eu gostaria de estar mesmo.
RPD: Você não estaria apostando muito na convicção das pessoas, na capacidade de elas reagirem da maneira descrita? Não faltaria um orquestrador, uma liderança que lhes abrisse o caminho e as conduzisse na aproximação entre o liberalismo e a esquerda?
AF: Não vejo o que eu faço como sendo uma tentativa política completa, sou apenas uma pessoa que disputa um espaço de opinião. Trata-se de uma tese a ser construída, o que será, em muitos aspectos, difícil. O lado liberal não é muito intuitivo, isso já vem desde Adam Smith. São receitas que, às vezes, levam as pessoas a se sentirem desprotegidas. Penso, assim, que caberia uma campanha de informação, mas isso me faria sair um pouco do meu quadrado.
Há muito tempo venho tentando entender a narrativa da história, por assim dizer. Tentei quando estive no governo. Depois, prossegui conversando com muita gente, inclusive com o próprio presidente Fernando Henrique. Mas como se faz, por exemplo, para lograr vencer o populismo? Muito difícil. Com meu chapéu de economista, diria que é quase impossível. Um dia, ele pode quebrar, mas, até lá, é imbatível, prometendo mundos e fundos, ninguém fazendo contas, ninguém entendendo coisa alguma e, num belo dia, quebramos de novo. Esse é um desafio político de primeira ordem.
Muito francamente, penso que acabaremos reinventando a socialdemocracia. Adaptada às coisas ao século 21. Ótimo: meio ambiente e tecnologia. Eu, por exemplo, sou bem verde. Mas acho que precisamos mais de ideias do que liderança. O Brasil tem de repensar o espaço partidário. Os partidos e suas siglas de hoje não valem nada. Escrevi recentemente na Folha artigo em que mencionei esse ponto. Precisamos evoluir nessa área. Entendo que o número de partidos tende a cair com as cláusulas de barreira e a proibição das coligações, mas, além de uma redução no número de partidos, acho que falta clareza programática, ideológica. Não é suficiente fazer, por exemplo, como tenta fazer o partido Novo que declarou “nós queremos honestidade e eficiência”. Todo partido deveria defender honestidade e eficiência. Falta ir muito mais longe. É necessário mais do que uma pessoa, embora isso sempre ajude. No mundo de redes e de comunicação direta com o eleitorado, o peso da candidata ou do candidato numa eleição presidencial é altamente relevante. Mas, se isso vier sem uma estrutura de valores, de propostas, inclusive no plano partidário, ainda que seja alguma coligação, desde que construída em cima de ideias, temo que o Brasil seguirá patinando.
RPD: Para a retomada do crescimento, o auxílio emergencial poderá ajudar? Qual é o dever de casa que o Guedes deve seguir?
AF: Guedes se define como um liberal. Ao tomar posse, disse que era um liberal político também, um defensor da democracia. Nada disso se revelou evidente. Há que se distinguir crescimento, que, para mim é algo mais sustentado, de recuperação, esta, mais cíclica, de curto prazo, basicamente o que ocorre na esteira de uma recessão, do que já tivemos dois exemplos gigantes nos últimos sete anos. Na primeira, a recuperação foi tímida, pífia, é um momento ainda muito complicado, mesmo que Temer tenha apresentado boa agenda de reformas. Mas, depois, tudo se complicou, como se sabe, e aí veio o que veio.
Para fazer o país crescer, é outra estória. Temos de incluir na política econômica a educação, a saúde. Depende também de confiança, estando tudo interligado. Uma empresa, quando explora a possibilidade de investir, tem que trabalhar com um horizonte de tempo que vá além da recessão.
Defendi o auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico; antes, uma calamidade colossal, agravada pela não resposta pronta do governo federal. Cabia, pois, um auxílio. Depois ocorreu, e forte, só que veio mal calibrado, talvez por razões meio populistas, talvez por uma expectativa de que o negócio não fosse tão sério ou duradouro assim. Não dá, portanto, para repetir o esforço do ano passado. Algum auxílio tem, porém, que acontecer, para ajudar a sustentar a economia. Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado.
Não acredito que se estejam discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. É um nível que espelha enorme incerteza, grande falta de confiança. Em entrevista live recente, Larry Summers, indicou que, se tivesse de escolher um único indicador para entender o que está acontecendo num país, olharia para o que os investidores locais estão fazendo com o dinheiro deles. No nosso caso, a coisa complica.
Estamos tendo essa conversa logo após as votações do Congresso, e nada sugere uma situação que nos vá encher os olhos, com o Brasil embarcando num outro modelo. Ao contrário: acho que a gente está dando um mergulho no passado e sem liderança.
RPD: O enfrentamento da crise sanitária justificaria o abandono de toda preocupação relativa ao equilíbrio das contas públicas?
AF: Um governo pode se endividar, um governo que não seja um estado falido, mas isso obedece a várias restrições. Mas a restrição mais básica é ter alguém disposto a emprestar esse dinheiro para o governo. Começando por baixo, a ideia de que emitir moeda, emitir dívida na sua própria moeda, é uma garantia de que não há limite para seguir se endividando é um nonsense completo. Imagine se as pessoas seguirão comprando papel do governo, se entupindo de papel do governo, de um governo que não mostra um rumo, que repetir nossa própria história, a história de nossos vizinhos, de vários países, da própria Alemanha no passado? Acho surpreendente que alguém acredite nisso. Escrevi isso num dos meus artigos na Folha que essa ideia de que um governo, que pode emitir sua própria moeda, siga emitindo dívida sem limite é para mim na verdade uma ameaça. Não é à toa que o dólar está tão alto aqui.
Vamos aos fatos. A política fiscal no Brasil, desde a Dilma (2014), virou uma das políticas fiscais mais gastadoras do mundo. Essa política, que foi um total colapso fiscal, alguém pode defendê-la? Eu não sei como as pessoas falam em austeridade, num país que está com déficit primário e acumulando muita dívida desde 2014. Alguns alegam que valeria a pena se endividar para investir.
Os programas de investimento do governo são difíceis de administrar. Defendo mais investimento público, há muito tempo. Defendo mais eficiência do estado, mas isso não resolve, inclusive porque o investimento público é lento, e nós estamos precisando de uma resposta, do ponto de vista conjuntural, imediata.
Acho que é preciso separar. Reconheço alguns passos, mas a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor, é um perigo monumental. O investimento público cair de 5% do PIB para menos do que 1% é um problema. Mas isso é porque, do outro lado, vários outros gastos aumentaram muito e ocuparam o espaço. Vejamos. A folha de pagamento do governo como um todo cresceu imensamente, a previdência brasileira é extravagante dada nossa relativamente jovem estrutura etária, que vem mudando rapidamente, e, sobretudo a partir da gestão Dilma, o Brasil gastou uma fortuna em subsídios. Segundo relatórios muito bem feitos pelo tesouro nacional, a tal da bolsa empresário, se quiser, os gastos tributários, chegaram a 7% do PIB, inclusive os subsídios do BNDES. O Bolsa Família, só para comparar, é 0,5%.
É evidente que o Brasil precisa reorganizar seus gastos, redirecioná-los na direção de mais produtividade e menos desigualdade, esse é o jogo. De onde vem o dinheiro? Dos gastos e subsídios que mencionei há pouco. Ao contrário dos países avançados, no Brasil, com juros de longo prazos ainda altos, e pouco crescimento e credibilidade, a opção de financiar com mais dívida seria muito arriscada.
RPD: A crise do estado de bem-estar social, na década de 1970, foi seguida, a partir de 2008, pela crise do modelo de auto regulação dos mercados mundiais. Está aberto o caminho para estratégias intermediárias de desenvolvimento?
AF: A pergunta remete a um mundo que desembarcou do “fim da história” do Fukuyama, onde se supunha a vitória de um modelo liberal-democrático. Mas nada disso aconteceu. O estado-nação está mais forte do que nunca. Estou falando de China, Índia, Turquia, os Estados Unidos sob Trump e de outros casos menores, mas não irrelevantes, como Filipinas e o Leste Europeu, para não mencionar um número de combinações entre modelos econômicos e políticos.
Não bastasse a disseminação de um viés autoritário em muitos países, preocupa ainda mais o modelo econômico chinês. Eles abraçaram o mercado, mas com um controle quase que absoluto do partido, com a presença obrigatória de um membro do partido em todos os conselhos das principais empresas. Quanto ao tratamento da informação, o sentido de privacidade sob o comando do Xi Jinping meio que deu um cavalo de pau. No que parecia ser uma suave caminhada para algum grau de abertura, a partir das bases, ele pisou no freio. Pisou no freio também na internacionalização da moeda chinesa. Várias dessas ideias foram deixadas de lado, ante a introdução do controle de câmbio e de outras medidas duras. É um modelo que assusta, como o foi, no passado, o modelo soviético. Mas o chinês, por estar mais adaptado às realidades do mercado, representa talvez desafio maior para a construção de um mundo livre, aberto e pacífico, bom de se viver.
Representa, no fundo, um desafio para a socialdemocracia, para o liberalismo também, e, embora não me sinta qualificado para dar grandes respostas, arrisco supor um repensar do modelo social-democrático, vale dizer, da ideia de um liberalismo progressista e da própria socialdemocracia, conceitos que considero muito parecidos e que estão em crise. Bastaria mencionar o descontentamento das classes médias, em especial nos países desenvolvidos, diante da concorrência global, de um lado, e dos avanços da tecnologia, de outro. É um quadro que requer respostas urgentes, entre as quais se destaca um desafio existencial, que é a questão da mudança climática. Espero que chegada do Biden force maior coordenação no mundo ocidental e que o chamado soft power, não só americano, mas também europeu, cada um do seu jeito, volte a prevalecer.
Quero dizer que a chance de o mundo se desenvolver de uma forma tranquila depende muito do êxito do modelo ocidental. Mas não só. As pessoas que vivem sob regimes autoritários têm que saber que existe um modelo melhor, na linha do que os americanos oferecem, por ser um lugar aberto.
Para o Brasil e o mundo, vejo como muito importante a derrota do Trump. Em que medida essa adaptação política vai acontecer, não saberia dizer. Imagino para o Brasil uma visão que seja solidária e capaz, ao mesmo tempo, de gerar crescimento. Incluiria também o uso de tecnologia para queimar etapas, desde que seja complementar às pessoas e não substitutiva, distinção nada trivial. Recomendaria também – e com ênfase especial – a ideia, que, aliás, tem nossa cara, de um Brasil Verde, que caiba no seu espaço, com qualidade de vida para as pessoas, isto é, a qualidade do ar, da água, da alimentação, comentário autorizado para quem, como eu, mora no Rio.
O Brasil tem tudo para num período de uma ou duas décadas transformar-se transformar num espaço verde extraordinário. Olhem a Nova Zelândia, a Costa Rica. Não importa o tamanho, o modelo é que tem de ser bom. Acho que nossa adaptação ter de ser nessa linha.
RPD: O governo Biden pode influir nessa adaptação?
AF: Indiretamente, sim, dando o exemplo. Só remover o exemplo péssimo do Trump já é bom. Se o Biden for na direção de Clinton, Obama, será um espetáculo. Mesmo que seja inevitável que os Estados Unidos, junto com os europeus, nos apertem um pouco. Podem até estender a pressão para outros temas, como Amazônia, direitos humanos, respeito à imprensa, respeito à própria democracia. Não dá para viver sem isso. Acho até bom para nós também. Talvez uma pressão externa não chegue a modificar muito o comportamento de nossas lideranças, mas a pressão do mercado pode: a pressão econômica eventualmente vai morder.
RPD: Executivo da BlackRock e Jorge Caldeira, em seu livro, Paraíso sustentável, defendem que a questão ambiental, a questão climática, tem influência direta nas finanças, na produtividade, nos lucros das empresas. Qual sua visão a respeito?
AF: Considero procedente essa visão. A BlackRock está certa em defender essas causas e trazê-las para o dia a dia das empresas, das pessoas, acho super saudável. Mas nada disso substitui o governo. Acredito em autorregulação, mas ela só funciona, se acima da autorregulação, tiver a regulação do Estado. E, claro, estou pressupondo um Estado de boa qualidade, sem a qual país algum se desenvolve. Essa é a estrutura básica. Vejo como muito positiva as opiniões acima indicadas. Esse movimento, que se identifica como ESG, a meu ver, é saudável, porque toca num nervo sensível das pessoas, uma alma solidária. E essa é uma crítica, inclusive uma autocrítica, que muitos economistas mundo afora vêm fazendo e que, a meu ver, faz todo sentido. Entendo que esse assunto vai longe. Não até onde precisa chegar, no entanto, sem uma participação concreta do Estado. As boas intenções do setor privado têm de ser complementadas por um Estado que também cumpra com o seu papel.
Venho refletindo muito sobre o tema ESG, em geral. O G, de governança, no Brasil tem avançado bastante. O que aconteceu com a Petrobras foi um enorme acidente de percurso, mas foi apenas isso, porque, no mundo privado, as empresas vêm evoluindo muito bem nessa direção, já não é de hoje. Foi um movimento que nasceu dentro do setor privado, na bolsa de valores em particular, no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. É, sem dúvida, uma revolução, o que aconteceu aqui no Brasil, está dando muito certo.
O S de social é carente no Brasil, a despeito de governos socialdemocratas e do próprio PT. Ainda há muito a faze. Mas também penso que há alguma consciência, não no momento, mas há. E o A de ambiental é o que estamos discutindo. É indispensável, essencial, é uma questão de sobrevivência do planeta, que se faça a transição. Ela está acontecendo de forma lenta e perigosa. O governo Trump deu, na verdade, duro golpe nesse projeto, ao se afastar do acordo de Paris. Mas agora, com o Biden, pode voltar aos trilhos. Vejo, de novo, o Brasil numa posição muito boa para ocupar esse espaço e de uma forma que projete para o mundo a consciência de que essa é uma questão planetária, e boa para nós também.
*Arminio Fraga
Sócio fundador da Gávea Investimentos e presidente do conselho do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. Membro do Group of Thirty e do Council on Foreign Relations. Foi presidente do Banco Central (1999-2003), presidente do conselho da B3, diretor do Soros Fund Management e trustee da Princeton University (EUA), onde obteve seu Ph.D.. Foi professor da PUC-Rio, da EPGE-FGV, da SIPA-Columbia (Nova York) e da Wharton School (Pensilvânia).
*Raul Jungmann
Ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
*Caetano Araújo
Consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
RPD || Editorial: Congresso Nacional sob nova direção
O calendário político de fevereiro começou com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e a vitória folgada, em ambos os casos, dos candidatos mais próximos ao Executivo. Difícil subestimar as consequências dessas trocas de comando. Afinal, ao longo dos dois primeiros anos do atual governo, Rodrigo Maia desempenhou papel relevante na contenção das iniciativas governistas de confronto com o ordenamento democrático vigente. Seu sucessor, ao que tudo indica, terá como prioridade, na direção oposta, acelerar a tramitação das pautas consideradas relevantes pelo governo.
Diversas lições podem ser extraídas desses acontecimentos. Em primeiro lugar, mais uma volta foi dada no parafuso que mantém juntos o governo e o grupo parlamentar conhecido como Centrão. É de se prever que diferenças remanescentes serão aparadas e nomes do primeiro escalão substituídos, sempre no sentido de aumentar a participação dos políticos pragmáticos que se reuniram no apoio à eleição da nova Mesa da Câmara.
Em segundo lugar, o decorrer do processo escancarou as fragilidades das oposições, em particular a dificuldade de cooperação em torno de um objetivo comum. Num primeiro momento, pareceu que o candidato da continuidade havia conseguido sucesso na construção de uma improvável frente em seu apoio, com partidos da esquerda, do centro e da direita.
Especulava-se, então, se as decisões coletivas tomadas por esses partidos viriam a prevalecer sobre o trabalho personalizado de convencimento e barganha desenvolvido pelo candidato do governo. O resultado da apuração, contudo, excedeu às previsões mais pessimistas da oposição. Não só houve defecções em grande número, mas siglas importantes migraram, na última hora, da posição de apoio ao candidato Baleia Rossi para uma neutralidade aberta e militante.
Ficou claro que, nas fileiras da oposição, prosperam, ao mesmo tempo, problemas de prioridade, uma vez que muitos decidiram seus votos em função da perspectiva de ganhos menores, e outros, mais profundos, de identidade, dado que, para vários eleitores, não houve razões claras e convincentes para negar o voto ao candidato governista.
A recomposição possível, o esclarecimento em torno das diferenças entre o relevante e o acessório, entre governo e oposição, será um processo complexo e demorado. Ao que tudo indica, o terreno da batalha será o debate e a votação em torno de cada um dos projetos prioritários do governo.
RPD || Paulo Fábio Dantas Neto: Crônica de um revés parcial - Duas arenas e a política de resistência democrática
Vitória com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente, não é garantia de que Jair Bolsonaro vai ter sucesso na disputa eleitoral em 2022
Na análise das eleições às presidências e mesas diretoras do Congresso não se deve subestimar, ou exagerar, suas implicações sobre a política brasileira. Em especial na Câmara, houve vitória importante do governo federal, mas esteve longe de ser decisiva. É preciso cautela antes de tratá-la como prenúncio do que ocorrerá com o Executivo, a partir de 2022, ou antes. A dinâmica do Congresso é uma, a da disputa presidencial, outra. Na primeira arena, decidem deputados; na segunda, o povo, e inexiste coerência entre suas lógicas. Bolsonaro (sem partido) pode manter sua base na Câmara e perder a eleição apesar disso. Pode perder a base e ganhar a eleição apesar disso, ou justamente por isso.
Na Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) foi o foco de uma disputa politizada pela candidatura da frente partidária que liderou. A frente evoluiu da defesa da independência do Legislativo à oposição ao governo, entrelaçando lógicas das duas arenas. O adversário largara na frente e, pela lógica da arena interna, fez-se elo entre o governo e deputados, individualmente. A campanha de Baleia Rossi (MDB-SP), com discurso democrático, para fora da Câmara, vendo-se em desvantagem, jogou pedras nos votantes. Denunciar fisiologismo esmaeceu a valorização, pelo próprio Baleia, de serviços prestados pela Câmara ao país, sob a gestão de Maia. No contexto de pandemia, a “política dos políticos” tem dado mais do que recebe. Foi seu adversário quem disse isso sem ressalvas, com sotaque corporativo. Todavia, não foi o tom da campanha que derrotou a frente. Maia expressava um centro político contestado, com êxito, pela base governista, usando, em escala inabitual, recursos políticos habituais.
Num quadro de polarização entre governo e oposição, um centro independente, sob forte pressão, tende a ser sufocado se não adernar para um dos lados. A opção de olhar à direita e tentar dividi-la desvaneceu quando a base governista se organizou. Maia fez o que podia, isto é, olhou à esquerda e acenou à sociedade civil. Não bastou. Pode-se arguir que, ciente da inviabilidade eleitoral desse caminho, poderia assimilar a derrota e tentar confiná-la à Câmara, para manter a frente partidária de pé. As eleições presidenciais estão logo ali, caberia cuidar para que a derrota não contaminasse a outra arena.
O resultado da eleição no Senado dispensa resenha. O desfecho considerou a especificidade da arena parlamentar, mantendo teso o arco da promessa de frente democrática. A articulação incluiu partidos que formaram com Baleia na Câmara, ajudou a dissolver a polarização e mitigou a vitória governista. Pela agenda e perfil de Rodrigo Pacheco, o Senado pode ser âncora da resistência democrática, conter crises e construir governabilidade, papéis análogos aos que a Câmara vinha tendo e, por ora, não terá.
A postura de Arthur Lira assusta pelo tipo de populismo de plenário que pode levar a Câmara, sem freios, a votar com violência plebiscitaria. Uma casa como aquela, se não tiver um comando centralizado, é fonte de instabilidade e de pautas polarizadoras da sociedade. Lira prometeu previsibilidade só a seus pares. Se cumprir, a sociedade pode se deparar com um Nero, e Bolsonaro, talvez, com seu Eduardo Cunha.
A Câmara pode colidir com o STF e com o Senado, em autofagia institucional. E, encoberta pelo biombo ruidoso das pautas de costumes, prospera, com a vitória de Lira, uma discreta e concreta estratégia de solapa da Constituição. Ricardo Barros, líder do governo, parece ser o político selecionado para a missão da reforma constitucional que, por atacado ou a varejo, atenda ao continuísmo por três vias, não excludentes entre si: derrubar freios institucionais para que o Executivo se aproprie de joias eleitorais como vacina e auxílios emergenciais a pobres e distribua benesses a setores econômicos; alterar regras eleitorais para facilitar a reeleição de Bolsonaro, hoje dificultada pela regra dos dois turnos; e a “via russa”, da governabilidade semiautoritária à investidura do Gal. Mourão, tecida pelo centrão e militares do palácio, em caso da popularidade do presidente desabar.
Com ameaças de tal monta, que papel pode ter um centro político? Fazer intransigente oposição a desmandos e crimes. Valem manifestos, artigos, panelaços, processos judiciais e resistência parlamentar em defesa da Carta, com articulação entre oposição política e sociedade civil. De outro lado, diálogo constante com elos mais tênues da cadeia governista para bloquear a via russa, no que terão papel o Presidente do Congresso e a ambivalência estratégica de seu partido, o DEM. Assim, a derrota na Câmara será parcial.
Frente ampla ainda pode haver na arena congressual, mas é irrealismo vê-la na eleitoral. Se houver frentes no primeiro turno, tendem a ser duas. Mas há condição de derrotar Bolsonaro, fugindo da Rússia e caminhando, até 2022, colado à via agregadora que livrou o mundo de Trump. Uma sociedade civil que o rejeita, organizações e instituições que podem contestar cada passo extremista e, entre opções ao centro, é possível achar um candidato que fale de vacina, emprego e renda, democracia e pacificação política. Na esquerda, há gente capaz de fazê-la agir no segundo turno como Sanders nas eleições americanas. Desde que, no centro, haja análoga disposição, se a esquerda chegar lá.
RPD || Nelson Tavares: Múltiplas razões
Depois de derrocada no Brasil, Ford aposta seu futuro nos carros elétricos. Companhia, que fabricava veículos no país desde 1919, vinha fazendo cortes de pessoal nos últimos anos e sofrendo queda de vendas superior à do mercado
Qual a montadora de veículos de maior valor internacional?
Décadas atrás, a indústria automobilística era acompanhada, em proporções razoáveis, por parte da população. As pessoas seguiam o lançamento do modelo (o “design” do carro), a potência do motor, o volume de venda nos diversos mercados. Essa atitude se traduzia na admiração que alguns cultivavam por montadora A ou uma de suas irmãs.
Sim, todas eram consideradas “irmãs”. Tal como na indústria petrolífera, em que oito empresas forneciam o petróleo do mundo e se articulavam como um cartel, oito montadoras eram responsáveis pela produção da quase totalidade dos carros montados no mundo. A articulação que havia entre elas era menor do que a existente na área do petróleo. Concorriam no “design”, na potência dos motores e no padrão de qualidade imprimido, mas atuavam conjuntamente procurando sempre trazer “benesses” para o setor.
As indústrias petrolíferas e montadoras de veículos eram consideradas um “poder” à parte, capazes de interferir em governos de diversos países e mesmo desestabilizá-los. Nas bolsas de valores, mundo afora, estavam bem sempre bem representadas entre as maiores. No caso das montadoras, tudo com uma certa admiração de parte da população.
Respondo agora à pergunta acima feita. A maior montadora do mundo, em valor na bolsa de valores americana, é a TESLA. Foi fundada em 2003 e, em 2020, ultrapassou o valor de mercado da TOYOTA. Suas ações valem US$ 208 bi. Fabricou nesse ano pouco mais de 367 mil veículos e seus demais componentes, ao passo que a TOYOTA fabricou cerca de 10 milhões. O mercado está acompanhando a TESLA e verifica que se trata de uma empresa inovadora com lugar garantido no futuro.
A indústria automobilística está perdendo seu valor e espaço nas bolsas internacionais. Desde 1990, ocorrem fusões e aquisições entre elas, a mais recente Fiat-Peugeot. Algumas delas percorrem esse caminho da desvalorização de maneira mais rápida. A Ford internacional é uma dessas. Seus carros não conseguem atender todas as faixas de mercado. Nos EUA, seu carro mais vendido é a “EXPLORER” e suas variações, mas carros de passeio, construídos para a classe média/média e média/baixa, a FORD não consegue produzir com margens de lucro razoáveis.
As grandes montadoras têm buscado inovações no mundo inteiro, para tornar seus produtos mais atraentes. Investem alto em pesquisa de digitalização de seus veículos. Procuram se unir a empresas que complementem suas linhas de produto e de inovações. Mas têm um grande desafio pela frente: mudar sua base energética e adequar a emissão de carbono aos padrões que serão/estão sendo exigidos, à luz da proibição do uso de combustíveis fósseis nas grandes cidades, de acordo com o Tratado assinado em Paris sobre a redução da emissão de gases de efeito estufa. Algumas cidades já mencionam a possibilidade de proibir os carros que utilizam combustíveis fósseis, já em 2030.
A situação é agravada quando falamos do mercado interno brasileiro. E, mais uma vez, o exemplo é a Ford. Não foi a primeira vez que a empresa tentou sair do país. Na década de 80, entregou o design de seus veículos à Volkswagen, a quem se juntou formando a “Autolatina”.
Na década de 90, já separada da “coirmã”, sofreu dois outros golpes decisivos. No início da década, o governo federal diminuiu IPI dos motores até 1000 cilindradas, exigindo o devido repasse aos preços. Estendeu o mercado consumidor em uma nova faixa, que antes não tinha condição de comprar carro. A Fiat saiu na frente, com o carro Mille. E ocupou o devido espaço no mercado. As demais montadoras tiveram de criar produtos e adaptar suas linhas a essa nova realidade, em que o carro mais vendido estaria voltado para as classes média/média e média/baixa, com margens inferiores aos que existiam. Tanto a Ford como a Volkswagen obtiveram sucesso apenas relativo neste mercado.
A outra medida foi abrir o mercado para produtos importados, estimulando a concorrência. A alíquota de importação de veículos caiu paulatinamente de 80% para 35%, em quatro anos. A abertura do mercado foi decisiva para estimular novos investimentos. A realidade é que nesse setor vigorava certo acordo entre trabalhadores e empresários, que viam nas alíquotas maiores de importação a salvaguarda de seus empregos, ao passo que os empresários não faziam qualquer esforço de modernização de suas linhas de montagem e de seus produtos.
Na segunda metade da década de 90, novamente, o governo sinaliza para as montadoras com incentivos para fábricas novas, que deveriam ser montadas em locais diferentes das anteriores. Sem entrar em consideração sobre a política de descentralização regional promovida, a FORD montou nova unidade em Camaçari/BA, para montar um novo carro, com design brasileiro, o EcoSport. E mais uma vez obteve sucesso relativo, incapaz de remunerar de maneira satisfatória o investimento feito em seu lançamento.
Enfim, atualmente a FORD tem cerca de 7% do mercado, muito pouco para uma empresa que sempre se situou em torno do patamar de 20%. Diante das mudanças no mercado internacional e, após uma “década perdida”, na economia brasileira, e das perspectivas de crescimento modesto, tanto do mercado automobilístico interno, como das exportações, a empresa decidiu retirar-se do país. E tudo indica que irá fazê-lo em ritmo acelerado.
RPD || Mauro Oddo Nogueira: O Brasil tem jeito - Basta olhar para o BRASIL
Para falar sobre a economia brasileira, com bases reais, é preciso tratar da realidade dos autônomos e empregados informais invisíveis, que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis – e também, dos autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs), avalia Mauro Oddo
Por mais idas e vindas que se apresentem, a vacina não tarda. Então, é hora de refletir sobre como reconstruir o tecido produtivo do Brasil, após uma crise estrutural que se arrastava há 4 anos e à qual se somou o cataclismo da Covid-19. A resposta pressupõe uma reflexão sobre, afinal, de qual Brasil estamos falando? Pensamos somente no Brasil da Avenida Paulista ou incluímos o BRASIL no qual a renda média do trabalhador é de R$ 2.400,00 por mês (com uma mediana bem abaixo disso)?
Vamos, pois, falar um pouco do BRASIL. Ele é composto, basicamente, por dois segmentos de trabalhadores. O primeiro, autônomos e empregados informais, representando cerca da metade dos trabalhadores do país. São os invisíveis que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis. O segundo, os autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs): cerca da metade dos trabalhadores formais. Ou seja, ¾ dos trabalhadores é o contingente que dá forma à desigualdade no Brasil. Portanto, falar de economia brasileira sem falar deste BRASIL é falar de qualquer outra coisa, menos da economia brasileira.
Mas o fato é que só episodicamente essa realidade não foi marginal em nossos projetos de desenvolvimento. Desde a temática econômica da mídia às políticas públicas e às Universidades, com raríssimas exceções, esse mundo passa longe. Longe dos currículos dos cursos de Economia, Administração, Engenharia e Direito, aqueles que conformam o ethos das nossas “elites dirigentes”; das discussões na mídia; e, quando muito, é periférico nas ações governamentais. Não pensamos no BRASIL, pelo fato de o desconhecemos. O Brasil dos debates e das políticas econômicas é e sempre foi o Brasil da Avenida Paulista. O resto é “questão social” …
E o que nos diz o olhar em direção ao BRASIL? Diz, incialmente, que a lenda de “primeiro crescer o bolo para depois dividi-lo” – bordão da ditadura que continuou subjacente à boa parte das políticas econômicas que se seguiram – é uma falácia. Seja porque esse momento “da divisão” nunca chega, talvez seja porque a realidade mostra que a lógica deve ser exatamente a inversa. É pela criação de demanda que a economia se desenvolve. E criação de demanda em nosso país se traduz essencialmente em elevação da renda da população do BRASIL. Temos duas provas recentes disso. A política do salário mínimo conduzida por Lula é uma. A outra é a evidência de que só não ocorreu um colapso econômico por conta da pandemia, graças ao Auxílio Emergencial.
Mas aí caímos em uma outra questão: como elevar a renda dessa população? Não entrarei na questão das transferências e dos programas de renda mínima, tema merecedor de tratamento muito mais atencioso nos debates. Vou me ater à vertente produtiva e o que considero seu conceito chave: produtividade do trabalho. Como dito acima, o BRASIL produz, basicamente, na informalidade e nas MPEs. Apresentarei apenas uma comparação: aqui, a produtividade de um trabalhador de uma pequena empresa formal é 27% daquele de uma grande; e de uma micro, é de 10%.
Na Alemanha, essas relações são de 70% e 68%, respectivamente (dados da CEPAL de 2012). Imagine nas atividades informais! Por favor, não digam que esse trabalhador é, como indivíduo, muito menos produtivo que o alemão. Não! Se colocarmos um desses trabalhadores em um posto de trabalho de uma grande empresa nacional ou de uma microempresa alemã, sua produtividade rapidamente se igualará àquela normal dessa empresa. O problema está no conteúdo técnico do posto de trabalho. Em outras palavras, tecnologias de processo e de gestão.
Fica evidente que não há como aumentar a renda do trabalho sem aumento de produtividade. E não há como aumentar sistemicamente a produtividade sem demanda, isto é, sem renda. Assim, somente um círculo virtuoso de produtividade e renda pode nos levar a superar o atraso econômico e a desigualdade social. E não há outro caminho para tanto senão um investimento maciço por parte do Estado no conteúdo técnico dos postos de trabalho via modernização de processos organizacionais e produtivos das MPEs. Isso pressupõe profunda revisão (ou reinvenção) da arquitetura e dos montantes dos mecanismos de crédito, de apoio em qualificação gerencial e de regulação ora oferecidos para o BRASIL. O que, por sua vez, pressupõe tirar o binóculo da Avenida Paulista e colocar o BRASIL no “centro do prato” das políticas econômicas, deixando de destinar para ele apenas “as migalhas que caem da borda”, via programas sociais de “geração de emprego e renda”.
*Mauro Oddo Nogueira é doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. Autor de Um Pirilampo no Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil.
RPD || Lilia Lustosa: É tudo pra ontem, tá ligado?
Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma aula de história da cultura brasileira que é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos, avalia Lilia Lustosa
O palco é o Theatro Municipal de São Paulo. O ano, 2019. Na programação, nada de óperas, orquestras sinfônicas ou coros líricos … A estrela hoje é o rapper Emicida em seu show de lançamento do disco AmarElo, premiado com o Grammy Latino de melhor disco de rock ou música alternativa em língua portuguesa. Show que virou filme pelas mãos do estreante Fred Ouro Preto e foi lançado recentemente em outro palco de elite: a Netflix.
Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma verdadeira aula de história da cultura brasileira que, como bem deveríamos saber (e não sabemos), é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos. História de um povo (nosso povo!) que foi apagada de nossos livros didáticos. História de personagens invisibilizados por tantos líderes brancos que ocuparam nossos tronos.
Impossível não nos sentirmos envergonhados de nossas ignorância, impotência e aquiescência diante do que vemos. Sentimentos que se misturam também ao da indignação: como não nos ensinaram tudo isso na escola? Por que não fomos incentivados a ler Lélia Gonzalez? Por que não aprendemos sobre Tebas – escravo que virou arquiteto e que tanto fez pela cidade de São Paulo? Por que não tivemos capítulos em nossos livros dedicados ao Movimento Negro Unificado (MNU) e à sua marcha de 1978? Por que não aprendemos sobre a força dessa gente de pele escura que, em plena ditadura, ousou subir as escadarias desse mesmo Theatro Municipal e fazer dali a tribuna de seu protesto?
AmarElo joga tudo na nossa cara! Mais que isso, esse filme-show-aula-de-história abre as portas do teatro mais importante de São Paulo para o brasileiro comum, para a gente pobre, de classe média baixa, vestida de jeans e camiseta. Gente de cabelo enrolado, liso ou afro, de pele escura, parda, branca, amarela. Uma amostra verdadeira de nosso povo que pode se ver ali enfim representado. Gente que nunca ousou pisar naquele palco, nem ocupar aquele espaço!
O filme ensina, toca, embala, enche nossa alma. Apresenta-nos músicas novas e antigas repaginadas, como a que dá nome ao disco (e ao filme), que tem como sample-base a Sujeito de Sorte (1976), de Belchior, e seu refrão mais que apropriado: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro!” AmarElo mostra-nos ainda variações do rap, gênero de protesto já consolidado no Brasil, mas que segue em eterna (r)evolução. Um rap menos masculizado, híbrido, fluido, que amplia sua área de atuação, fugindo dos padrões de uma arte feita por “machos”, ao incluir as artistas Majur e Pabllo Vittar em seu número principal. O resultado é de arrepiar! A música cola na cabeça, liberta a alma e instiga a criar coragem para fazer a diferença. Emicida impressiona por sua lucidez, seu pensamento filosófico e grandeza de sua arte.
Sem jamais cair no piegas, o filme, conduzido pela voz firme do rapper paulistano, navega por várias cores e texturas, formando uma espécie de colagem com imagens granuladas em preto e branco justapostas a imagens coloridas em alta definição, entremeadas por belas lustrações que se animam e dão cor e leveza à história ali apresentada. Emicida vai mostrando de forma não linear o caminho que o levou até ali, desde sua infância na periferia, passando pela confecção do disco, pelos encontros com personalidades artísticas, até a explosão do show no Municipal. Um caminho alimentado pelo resgate da verdadeira História do Brasil. Dá vontade de continuar assistindo, de descobrir um pouco mais, de puxar aquele novelo e desenrolá-lo por completo.
Só não entendi a menção ao filme Orfeu do Carnaval (1959), do francês Marcel Camus, que, apesar de ter levado a música brasileira mundo afora, mostra uma realidade caricata do Brasil e de suas favelas, pintando nossos negros como os “bons selvagens” de uma terra exótica e feliz. Melhor seria ter citado algum filme de Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um longa em nosso país. Ou obras como Ganza Zumba (1964), de Cacá Diegues, e Barravento(1962), de Glauber Rocha, que inovaram ao dar protagonismo a personagens negros até então relegados à subalternidade.
De toda maneira, o AmarElo de Emicida é um filme urgente para estes tempos tão sombrios, já que traz à tona e põe em xeque temas da ordem do dia: gentrificação, apagamento histórico, masculinidade, racismo estrutural, genocídio negro… Seus densos 89 minutos de duração nos obrigam a olhar para trás e entender que é preciso reescrever nossa história, reparando injustiças e erros cometidos. E é pra ontem!
*Lilia Lustosa é crítica de cinema. Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).
RPD || Ivan Accioly: O Rio e os cariocas do carnaval da Espanhola ao não carnaval da Covid-19
2021 entra para a história deste século como o inédito ano sem carnaval, à semelhança do que ocorreu na pandemia da gripe espanhola (1918-1920), que infectou um quarto da população mundial na época. Na preservação da vida, foliões de todo o país apostam no futuro da festa em 2022
“Este ano não vai ser igual àquele que passou” e, espero, diferente de qualquer outro que venha no futuro. A vontade imensa de botar o bloco na rua, de fantasiar, de purpurinar e sair por aí ao som de baterias, saxofones, pandeiros, tamborins e similares está represada. A máscara no rosto é apenas uma proteção contra o indesejado vírus Covid-19.
2021 entra para a história como o inédito ano sem carnaval. O ano em que os blocos não tomaram as ruas do Rio de Janeiro, Olinda, Ouro Preto, BH, o país inteiro. As escolas de samba não estão nos sambódromos espalhados pelo Brasil à semelhança do palco original imaginado por Darcy Ribeiro na Marquês de Sapucaí. Portela, Mangueira, Salgueiro, São Clemente, Beija Flor, Vila Isabel. Enfim, todas as escolas estão à espera da hora certa para botar o enredo na avenida.
A folia neste ano de pandemia está improvisada. A aglomeração, a proximidade, a quadra cheia, todo mundo suado, o som potente da bateria que preenche e arrepia, cada poro da pele quando começa a tocar, está mediado pelas telinhas dos computadores. O pouco carnaval vem online. Frustrante, xoxo, mas é o que temos por enquanto.
A população está ainda perplexa com a situação. Os foliões de raiz, ligados às escolas de samba, já sentem a abstinência desde o meio do ano passado, quando as quadras permaneceram fechadas. O pessoal dos blocos de rua igualmente na carência, seus ensaios e escolhas de samba que mobilizam desde a primeira semana de janeiro não ocorreram.
Esses foliões de carteirinha – de forma sábia – apostaram no futuro da festa. Aceitaram o recolhimento momentâneo de olho na preservação da vida e na perspectiva de recuperarem a folia deixada de lado mais à frente. Afinal, todo mundo tem estrada e acúmulo de festa que permite essa pequena pausa.
O carnaval está no DNA da população desde quando o entrudo dava as cartas no século XVI. É uma festa que hoje mobiliza e tira grande parte da população de sua realidade durante alguns dias. É um momento de alegria despreocupada, extravasamento, cantoria brincadeira, ansiosamente esperado. As marchinhas, os sambas, os frevos, os maracatus, os afoxés embalam a folia e são parte do que há de mais original na identidade brasileira.
Mas não é a primeira vez que uma pandemia afeta diretamente nossa festa maior. Há pouco mais de cem anos, em 1918, a gripe espanhola dizimou parte da população mundial e virou destaque na folia do ano seguinte. O vírus matou entre 20 e 30 milhões de pessoas na Europa e um número não conhecido no resto do mundo. No Rio, foram 15 mil mortos e 600 mil doentes, numa população de apenas 910.710 mil pessoas.
A grande forra veio na festa de 1919, quando a população tomou as ruas e fez o que foi considerado o maior carnaval de todos os tempos. Segundo narrou em A menina sem estrela o escritor e jornalista Nelson Rodrigues, que tinha seis anos na época, e foi marcado pela tragédia e pela festa que se seguiu, o povo se soltou:
Desde as primeiras horas de sábado houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade… Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos, cantavam uma modinha tremenda: ‘Na minha casa não racha lenha/ Na minha racha, na minha racha / Na minha casa não há falta de água / Na minha abunda’. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias.”
Agora é a nossa vez. Como será 2022? Como faremos a festa? Como curaremos as feridas das centenas de milhares de mortos? Na espanhola, o chá da morte virou música e alegoria. Lá eles também tiveram os negacionistas e aqueles que receitaram a cloroquina da época, que foi o quinino, limão e caldo de galinha. As coitadas das penosas sumiram do mercado.
Vale lembrar que carnaval é resistência e, para desespero das parcelas dos que não sabem lidar com esse aspecto da cultura, a expressa com alegria. Uma alegria e descontração, encaradas pelos os mal-informados como um “descompromisso”. Não entendem nada, o carnaval é crítica. É dedo na ferida dos governantes. É a exposição daquilo que muitos querem esconder. É a festa da carne. São os corpos desnudos que mostram suas presenças e que, no carnaval, são os estandartes principais. Corpos como aqueles ceifados na pandemia e que viraram, para muitos, apenas números para estatísticas,
São esses corpos brincantes que agora estão se preservando e estarão nas ruas em 2022. Que vão mostrar, como disse a Mangueira, “a história que a história não conta. O avesso do mesmo lugar. Pois, com certeza, “na luta é que a gente se encontra”. Até 22 para fazermos o inesquecível melhor carnaval do século. Até agora, claro!
*Ivan Accioly é jornalista, diretor do Bloco Imprensa Que Eu Gamo, e mestrando em Comunicação pela UFRJ. Tem mais de 50 carnavais e entende que a festa acontece na rua, onde cumpre um intenso roteiro blocos e escolas de samba anualmente.
RPD || Henrique Brandão: Exclusão e preconceito unem Samba e Rap
Forte na construção do mito, documentário do show que o rapper fez, em novembro de 2019, no Theatro Municipal de São Paulo, reivindica para si os lugares da história cultural do país
O documentário “Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem” tem recebido rasgados elogios na imprensa e nas redes sociais, desde que estreou na Netflix, em 8 de dezembro. O filme é o registro do show de lançamento do álbum homônimo do rapper paulista. Assisti-lo vale o ingresso, ou, mais apropriado para os tempos pandêmicos atuais, o clique no canal de streaming.
O local da apresentação é o palco do tradicional Theatro Municipal de São Paulo. Noite histórica. Teatro lotado, não pela costumeira plateia de melômanos de música clássica, mas por pessoas que sabiam na ponta da língua as rimas carregadas de contundência do rapper paulista. O público estava à vontade.
O que poderia vir a ser apenas o registro de um momento de ocupação de um espaço elitista por natureza, nas mãos de Emicida, do roteirista Toni C. e do diretor Fred Ouro Preto, transformou-se em um filme-manifesto muito original. Ao mesmo tempo em que carrega a visão particular de um artista oriundo da periferia de São Paulo, o documentário vai além e procura traçar um panorama da música brasileira de matriz africana e suas ligações com o rap.
Sem pretensões sociológicas, mas com críticas incisivas ao caráter excludente da formação social brasileira, Emicida é o condutor da história. No palco, divide músicas com convidados. O making off revela artistas que participaram da gravação do disco: (Zeca Pagodinho, Marcos Valle, Fabiana Cozza e Fernanda Montenegro). Em off, sua voz costura imagens atuais com cenas do passado, narrando a história do Brasil à sua maneira. Não a história triunfalista, mas o outro lado da moeda, em que a cara impressa é a dos pobres e negros que viveram – vivem – no país que foi o último das Américas a abolir a escravidão.
Emicida comenta: “de alguma forma meus sonhos e minhas lutas começaram muito tempo antes da minha chegada”. É a deixa para o início do passeio pela trajetória musical do país, estabelecendo conexão com o samba, outro gênero que enfrentou preconceitos e dificuldades para ser reconhecido.
Do início do século XX, quando o samba surgiu no Rio de Janeiro, até os dias atuais, muito aconteceu no panorama musical, mas pouca coisa mudou no que diz respeito à criminalização do pobre. “Os artistas de morro foram perseguidos por todos os meios. O Estado Brasileiro [criou] um instrumento jurídico conhecido como Lei da Vadiagem que, ao longo dos anos, aprisionou sambistas. O bizarro é que essa lei segue em vigor até hoje”, diz Emicida. Para comprovar a tese, imagens mostram a polícia reprimindo a gravação de um clipe do artista em uma comunidade da Zona Norte paulistana. É o presente repetindo o passado.
“O samba é o Brasil que deu certo”, exalta o rapper. “Não tem vitória possível para este país distante do samba”, enfatiza. Na tela, vão desfilando personagens que tiveram papel decisivo no gênero: Pixinguinha, Donga e os “Oito Batutas”, Ismael Silva, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Lecy Brandão, Riachão, Nelson Cavaquinho, entre outros.
Para Emicida, o rap e o samba são da mesma cepa. Jovelina, Jackson do Pandeiro, Jair Rodrigues e Wilson Batista “já eram hip-hop antes de nós existirmos”, defende. “Este fruto, ora azedo, ora adocicado que conhecemos como rap, hoje vem de uma grande árvore, e, se você for buscar as suas raízes, vai encontrar o samba.”
Não à toa, Emicida aproxima o rap ao samba. Traz para junto de si Wilson das Neves, ídolo confesso, descoberto em suas garimpagens discográficas pelos sebos, que vira seu parceiro em uma faixa do disco. O lendário baterista, com seu swing peculiar, elegante por natureza, faleceu antes da apresentação no Municipal paulista, para tristeza do rapper.
Em uma conversa com Marcos Vale, Emicida revela sua ambição: fundar um novo ritmo, uma nova linguagem artística: “com o AmarElo, eu tenho chamado de neosamba”.
Pelo sucesso que o disco vem fazendo, (conquistou o Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa”) e com esse poderoso inventário audiovisual, o rapper, com sua postura ao mesmo tempo altiva e serena, é hoje uma figura relevante da música brasileira.
Como mostra com cristalina evidência no documentário, Emicida sabe que, para mudar as coisas que se perpetuam há anos, é necessário juntar forças. “A única coisa que nós temos é uns aos outros”. Este é um mantra que perpassa o filme.
O rap está assentado no sampler, no uso da contribuição de “amostras” de outros artistas. Emicida resgatou versos de Belchior e criou a trilha sonora da pandemia: “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.
Que assim seja.
*Henrique Brandão é jornalista e escritor
RPD || Dora Kaufman: A complexidade da decisão da Ford de deixar o Brasil
A pandemia da Covid-19 acentuou a mudança comportamental com impactos no futuro da mobilidade e preocupação com a sustentabilidade. Contexto influiu na crise da Ford e decisão de fechar suas fábricas no Brasil
A 51ª Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial, pela primeira vez realizada virtualmente por conta da pandemia da Covid-19 (janeiro, 2021), teve como tema central “The Great Reset”, compromisso de reconstrução das bases do sistema socioeconômico visando um futuro “mais justo, sustentável e resiliente”.
O Relatório de Riscos Globais de 2021 do Fórum, um dos mais importantes desde sua concepção em 2006, identificou como um dos principais riscos à degradação ambiental (condições climáticas adversas e perda de biodiversidade); a meta é descarbonizar a economia até 2030.[1]
Não por coincidência, o retorno dos EUA ao “Acordo de Paris” foi um dos primeiros atos assinados pelo Presidente Joe Biden. A agenda da sustentabilidade impacta todas as indústrias, particularmente a indústria automotiva. Guiadas pela “economia verde”, as montadoras estão investindo pesado na ampliação de suas linhas de veículos elétricos (EVs - Electric Vehicles).
É interessante observar que a liderança desse segmento pertence à Tesla, empresa de tecnologia e não uma das tradicionais montadoras, detendo 50% do valor de mercado, seguida pela Toyota e Volkswagen. A Ford, atualmente está classificada na posição 15, com planos de eletrificação começando por modelos “populares", como o Mustang Mach-E SUV.[2]
Além dos carros elétricos, com a migração da queima de combustível fóssil para corrente elétrica, eliminando os impactos climáticos negativos. Outros três fatores são responsáveis pela transformação da indústria automotiva: o conceito de acesso substituindo a propriedade, o veículo autônomo e a mudança comportamental. Em 2000, o economista americano Jeremy Rifkin publicou o livro A Era do Acesso e defendeu que a noção de propriedade tende a ser substituída pelo acesso, e a relação entre vendedores e compradores para a de fornecedores e usuários.
Nesse ambiente econômico, as empresas, no limite, entregarão gratuitamente seus produtos apostando no relacionamento com seus clientes, baseado na prestação de serviços. A garantia de acesso ao bem, quando e como preferir, torna-se mais importante do que a propriedade desse bem. Experiências como Uber sinalizam nessa direção estimulando, inclusive, serviços de aluguel de veículos por parte de montadoras.
A comercialização de carros autônomos enfrenta desafios ainda não equacionados - conexão com a infraestrutura das cidades e arcabouço regulatório incluindo a responsabilidade por eventuais danos -, mas as expectativas são promissoras. O relatório [3], conduzido pela KPMG com 751 executivos norte-americanos, inclusive da área de transportes, apontou que 82% dos entrevistados acreditam que os veículos autônomos serão uma realidade nos próximos 10 anos, com 35% prevendo que o fato ocorrerá nos próximos cinco anos.
A pandemia da Covid-19 acentuou a mudança comportamental com impactos no futuro da mobilidade, como aponta estudo da consultoria McKinsey[4], ampliando os canais digitais e as preocupações com a sustentabilidade, favorecendo a mobilidade compartilhada, e a micromobilidade com veículos leves tais como as bicicletas (expectativa de aumento de 5% no uso), as scooters e os ciclomotores. Esse é o contexto para compreender a crise da Ford com a subsequente decisão de fechar suas fábricas no Brasil, ela que foi a primeira montadora a se instalar no país no longínquo ano de 1919. A Ford não conseguiu se posicionar bem neste novo cenário, está atrasada com as soluções inovadoras (carro elétrico, carro autônomo) e, pior, não teve sucesso em concretizar coligações ou fusões com outras montadoras seguindo o movimento global, como bem ilustra a recém constituída Stellantis, fusão entre Fiat Chrysler e Peugeot Citroën.
Adicionalmente, as condições desfavoráveis do Brasil configuram externalidades negativas. O coordenador do Observatório de Inovação da USP, Glauco Arbix, alerta para redução mais acelerada da participação da indústria brasileira no PIB, comparativamente ao resto do mundo, caracterizada por “desindustrialização prematura”, gerando uma economia disfuncional, elevando ainda mais o “custo Brasil”. Esse movimento, segundo Arbix, atinge fortemente o setor automotivo, dentre outros fatores pelo declínio da indústria com base no petróleo.
No caso da Ford, o atrativo do tamanho do mercado consumidor brasileiro não compensou as condições de produção mais favoráveis da Argentina. Em dezembro último, a montadora alemã Mercedes-Benz anunciou o fechamento de sua fábrica em Iracemápolis, no interior paulista, onde produzia os modelos Classe C sedã e o utilitário esportivo GLA. Resta-nos torcer para não virar tendência entre as montadoras.
*Dora Kaufman é doutora em Mídias Digitais pela USP, pós-doutora pela COPPE-UFRJ e pesquisadora dos impactos sociais de Inteligência Artificial em seu pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TID D|PUC-SP), sob supervisão de Lucia Santaella, e participa do grupo de IA do Instituto de Estudos Avançados e do Centro de Pesquisa Atopos, ambos da USP.
[1] (http://reports.weforum.org/global-risks-report-2021/).
[2] (https://www.visualcapitalist.com/worlds-top-car-manufacturer-by-market-cap/).
[3] "Vivendo em um mundo de IA" (Living in an AI world,https://advisory.kpmg.us/content/dam/advisory/en/pdfs/2020/transportation-living-in-an-ai-world.pdf.)
RPD || Dawisson Belém Lopes: A política externa brasileira num labirinto borgiano
Pária mundial “por opção”, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo, o governo Bolsonaro é responsável por um dos piores momentos da política externa brasileira, deixando de perseguir interesses concretos do país
Não faz muito tempo, o Brasil jactava-se de seu universalismo. Era o país que não conhecia inimigos. Alcançava praticamente todo recanto do planeta com sua rede diplomática. Chefiava organismos prestigiosos, como a OMC e a FAO, e cedia seus nacionais para tribunais e cortes internacionais. Orgulhava-se de sua chancelaria. Tinha no Ministro das Relações Exteriores um signo da melhor tradição intelectual. Liderava agendas centrais, como a do meio ambiente, e era consultado em assuntos de direitos humanos, governança da internet, paz e segurança. Nossa República Federativa fazia boa figura no teatro global.
Esse tempo de bem-aventurança, contudo, ficou para trás. O Brasil, hoje, é “pária por opção” – invocando aqui palavras do chanceler Ernesto Araújo. Num contexto de desafios, em que despontam a rivalidade sino-americana e o arrasamento pandêmico, o governo federal vê diminuir a margem para manobrar. Opções estratégicas sobre a mesa vão minguando, à medida que nos indispomos com potências e abdicamos de pretensões de liderança no entorno geográfico, deixando de perseguir interesses concretos do país.
Responsável por mais de 30% do comércio externo brasileiro, a China é quem ajuda a manter as contas no azul. A despeito disso, Jair Bolsonaro e asseclas hostilizam Pequim sem cessar, desde a campanha eleitoral, em 2018, até o presente. Xi Jinping já emite, por meio de seus representantes empresariais e diplomáticos, ameaças de represália. Segundo lugar entre parceiros comerciais, além de maiores investidores no Brasil durante a década de 2010, os Estados Unidos também são fundamentais no grande esquema das coisas. Porém, como o incumbente do Planalto amarrou os destinos da nossa nação a Donald Trump, não se deve esperar atitude benevolente de Joe Biden no porvir.
Entre europeus, nada muito distinto. Terceira parceira comercial, a Holanda rejeitou, pela via parlamentar, o acordo UE-Mercosul, sob argumento de defesa da Amazônia. A Espanha, quinta no ranking do comércio externo, é governada pela esquerda, o que dificulta interlocução mais profícua. A Alemanha vive às turras com o maior país da América do Sul; além do desgaste da imagem, negócios permanecerão parados enquanto as práticas ambientais não forem revistas. A França, outra investidora no Brasil, faz objeção vocal à política ambiental e, como os chineses, planeja deixar de comprar os grãos que movem o agronegócio pátrio.
Na América Latina, a configuração não é menos dramática. Por quase um ano, os chefes de Estado de Brasil e Argentina (esta, a nossa quarta maior parceira comercial) não trocaram uma palavra sequer. O silêncio foi rompido recentemente, por iniciativa de Buenos Aires, mas os canais seguem obstruídos. Já o oitavo lugar no ranking de parceiros comerciais, o México, também é liderado pela esquerda, o que inviabiliza o diálogo – segundo a lógica sectária bolsonarista. México e Argentina coordenam entre si as iniciativas regionais, na ausência do Brasil. Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano, resume o imbróglio: “o Brasil ficará isolado em seu autoritarismo.”
Uma nota sobre a pandemia. O enfrentamento brasileiro ao novo coronavírus foi considerado, numa amostra de 98 países, o pior de todos, segundo think tank australiano. Parte dessa desastrosa condução deveu-se à incompetência nas mediações com o restante do mundo. Com uma indústria farmacêutica que importa 90% de seus insumos e diante da opção por não investir na fabricação de imunizante nacional para controlar o espalhamento da covid-19, o Brasil tornou-se refém de suprimento externo. Em tempos de escassez, porém, cada estado favorece primeiramente a população local. De exemplo em políticas públicas para vacinação em massa, passamos a figurar entre os que, pela incapacidade de lidar com a doença, sabotam o esforço de contenção do vírus.
Diante de fracassos retumbantes na política externa, como reagem o presidente da República e seu chanceler? Em gestos que exemplificam um descolamento de fatos e estatísticas, Bolsonaro e Araújo reúnem a fina flor da direita populista – de Andorra à Ucrânia, passando por Hungria e Índia – para clamar por “liberdade” e “família”, ao mesmo tempo em que flertam com monarquias teocráticas do Oriente Médio. Talvez seja o que lhes tenha restado no tabuleiro geopolítico. Como num conto de Borges, fica para o observador a incômoda sensação de que, quanto mais avançamos por estas sendas, mais se bifurcam os caminhos do labirinto.
*Dawisson Belém Lopes é Professor Associado de Política Internacional e Comparada na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e, desde março de 2018, Diretor-adjunto de Relações Internacionais da UFMG.
RPD || André Amado: Os grandes escritores e o término de suas obras
André Amado analisa, como os grandes autores garantem, por meio da técnica literária, o interesse do leitor até o fim das tramas de suas histórias
Se dependesse de consenso, obra alguma dos grandes escritores terminaria. Vejam só.
Com a autoridade de ter sido o autor de A Room With A View (1908) e Howards End (1910) e reconhecido como o decano dos críticos literários, E. M. Foster estimava que as histórias devessem ter começo, meio e fim. Ilustrava com As Mil e Uma Noites, em que a narrativa seguia a cronologia de o jantar vir depois do almoço; a terça, depois da segunda; e a decadência, depois da morte.
Henry James (1843-1916) chamava o último capítulo de um livro de wind-up (arredondamento), quando se distribuíam prêmios, pensões, maridos, esposas, filhos, milhões, parágrafos acrescentados e comentários alegres. Já Italo Calvino (1923-85) dribla a ironia de James e distingue tipos diferentes de término das narrativas: quando o herói supera as adversidades, morre ou amadurece; e, no caso dos romances policiais, quando se descobre o culpado. De maneira geral, para Calvino, o final de um romance deveria ocorrer sempre que contribuísse para evitar a repetição, na mesma linha do que dissera Jane Austen (1775-1817): o romancista não tem como ocultar o momento em que a história acaba.
Outros escritores seriam até mais contundentes. Atribui-se a Flaubert (1821-80), por exemplo, a sentença de que é burrice querer concluir uma história. Para Ricardo Piglia (1941-2017), sem finitude não há verdade, declaração quase idêntica à de Stephen Koch (1968-): se não houver final, não há história. Carlos Mastronardi (1901-76) arrematou: Não temos uma linguagem para os finais; talvez uma linguagem para os finais exija a total abolição das linguagens.
Alberto Manguel (1948-) acrescenta um complicador. Resgata a Divina Comédia para revelar o truque de Dante – o propósito da peregrinação é contar as aventuras. Vale dizer, a narrativa da viagem consiste em situar no final o começo. É o que também pensa Allan Poe. Em “Assassinatos na Rua Morgue” (1841), o desfecho da história determina a ordem e a causalidade dos eventos narrados no começo. Trata-se da técnica do closure (fechamento), pela qual o escritor se fixa no desfecho e constrói a narrativa de trás para frente, buscando, assim, assegurar-se do controle completo do desenvolvimento da trama e da santidade do mistério, que só poderá ser revelado no último momento, tornando-se quase um personagem invisível da trama.
Tudo bem. Enfim, o consenso parece formar-se: a retenção do segredo da história garante o interesse do leitor. Melhor técnica para o fechamento da obra, impossível. Só que Patricia Merivale e Susan Sweeny (1999) exploraram outras opções que batizaram de história metafísica de detetives, segundo a qual o objetivo da investigação não seria mais encontrar uma resposta clara para o enigma perfeito dado a priori, mas decifrar o sentido do próprio texto. Em “La Muerte y La Brújula”, Jorge Luiz Borges reforçaria a transgressão: desafia a estrutura da narrativa fechada, ao não resolver os mistérios e a suscitar outros mistérios igualmente impenetráveis.
Garcia-Roza (1936-2020) admirava Allan Poe e Borges e, por isso, convidou ambos para enriquecer sua visão da literatura. De um lado, recusou que o autor pudesse sozinho desfazer as intrigas e decodificar a trama das histórias. Para ele, existiriam tantos autores de uma obra quanto leitores. Daí não ser mais possível uma única interpretação. Ao leitor, a tarefa, portanto, de produzir sua própria interpretação. De outro, Garcia-Roza citava Poe (A essência de todo crime permanece oculta, “O homem da Multidão”, 1940) para ressaltar o conceito de inescrutabilidade, significante que não permitia simplificação. Em uma palavra, mistérios podem ser explicados, mas a interpretação de um enigma requer nova interpretação e, assim, sucessivamente, sem fim. Não há, pois, solução para o enigma. Nunca.
Como todo escritor de gênio, Ian McEwan não chega a celebrar o consenso sobre o término de uma obra, mas, de alguma maneira, nos explica porque a alternativa é até mais convincente. Em Atonement (2001), Briony demora a vida toda para entender que não tem como chegar a final algum para a história que está contando, o que, por sua vez, acaba afetando a própria forma final da obra que o leitor tem em mãos, na qual ele tampouco encontra um fim satisfatório, bem fechado, como aqueles das histórias fabulosas em que a Briony acreditava tão piamente, quando criança (Tatiana Souza, tese de doutorado apresentada à Universidade Estadual da Paraíba).
Podem-se encerrar as provocações reunidas neste artigo com a reflexão de Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual um livro sobre a literatura contemporânea não pode ter conclusão, porque o contemporâneo é o inacabado, o inconcluso. Pode-se, ainda, recorrer ao bruxo do Cosme Velho e reviver o final inesquecível de Memórias Póstumas: Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line