Rosângela Bittar
Rosângela Bittar: Passaram-se 27 meses
Bolsonaro governará nos próximos 21 meses tal como o fez nos 27 passados
O Centrão não é surpreendente, é implacável. Como demonstra o deputado Arthur Lira, comandante em chefe do grupo, não só por ser presidente da Câmara mas por representar um papel múltiplo e mutante. Ora é um diplomata negociador. De repente dá sinais do seu limite e pode tornar-se um cangaceiro.
Tanto que o presidente Jair Bolsonaro está ciente de que não deve fugir ao resgate negociado. O ignorou, por exemplo, na escolha do ministro da Saúde, desprezando a candidata indicada. E desde então não se esgotam as compensações que é obrigado a fazer. O presidente nunca esteve tão fraco politicamente como neste momento.
Nas cláusulas do contrato de adesão do Centrão ainda restam muitos espaços a serem ocupados. Entre eles, os ministérios da Educação e o do Meio Ambiente. Metas que, enquanto não se cumprirem, são compensadas por um adiantamento da lista de nomeações para cargos menores. Além de dinheiro na veia: as emendas parlamentares do orçamento, ainda não legalizado, mas certamente já distribuído. Parcelas do inesgotável ajuste de contas.
Este é o panorama de hoje. Bolsonaro governará nos próximos 21 meses tal como o fez nos 27 passados. Em conflito com cada um e o universo.
As forças políticas contrárias, porém, estão vivas e se articulam com os protagonistas de sempre. Já abandonaram o plano A, cujo item número um era o impeachment. Empenham-se agora na elaboração do plano B: a construção de um candidato do centro, que não pode ser confundido com o Centrão, de perfil vencedor.
Os políticos creem que Bolsonaro chegará a 22 tão fraco como candidato, desacreditado como gestor, desautorizado como líder, sabendo que seu adversário principal terá todas as chances de derrotá-lo. É verdade que não gostariam de dar o espaço a Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente, porém, parece ser o único que ainda não se convenceu de que não foi ele que ganhou a eleição, mas o PT que a perdeu. O temor do centro é que Lula vença no papel do antibolsonaro, situação que querem evitar. O ideal que procuram, sinceramente, é a constituição de um governo liberal, sim, com educação e compostura política, inserido no mundo.
De onde veio o crescente enfraquecimento que tiraria as chances do presidente? Bolsonaro perdeu substância e energia até no seu staff da Presidência. Saiu fragilizado da refrega, puramente vingativa, com as Forças Armadas. A demissão do ministro das Relações Exteriores foi humilhante, e com ele foram reprovados o filho Eduardo Bolsonaro e o doutrinador Olavo de Carvalho.
O quarto ministro da Saúde, administrador da profunda crise sanitária, não se encontrou em meio às contradições do governo: não há vacinas, prioridade absoluta. O quarto ministro da Educação é um pastor sem força política para evitar o avassalador obscurantismo que impregnou o MEC, dominado pela mediocridade das bases extremistas do bolsonarismo. A educação está destruída. A infraestrutura não tem verbas. O Meio Ambiente e a Cultura, marginalizados.
Passaram-se dois anos e três meses de governo e permanece a sensação de que o filme de terror não tem fim. O enredo é dominado pela violência, agressividade, insegurança, armas, controle político da polícia, perseguições, irracionalidade, crimes de responsabilidade, ódio, devastação. É por esta agenda que o governo se move.
Jair Bolsonaro emite sinais de que continuará administrando tal parque de horrores, no qual seus filhos se deliciam na montanha russa, da cabine de comando do trem fantasma. A cada susto, o timoneiro narra, em discurso staccato, que só ele e seu partner ocasional sabem o porquê das suas manobras radicais. Recorrente mistério para explicação do inexplicável. Enquanto isso, os brasileiros, desamparados, teimam em sobreviver à covid-19.
Rosângela Bittar: omissão fatal
Lira e Pacheco comportam-se como reféns de uma dívida acidental com Jair Bolsonaro
Com a pressão elevada pela carta de exortação dos banqueiros e o apelo direto do empresariado paulista à interferência dos presidentes da Câmara e do Senado, o presidente Jair Bolsonaro pode estar entrando hoje numa nova onda. Participa de encontro com os presidentes dos três Poderes, governadores e ministros para ser aconselhado sobre a gestão da pandemia.
Todos sabem, trata-se de um faz de conta institucional, como se o presidente já não soubesse o que precisa fazer. Vá lá, serve o pretexto. Apostas na mesa sobre o resultado desta iniciativa:
Um. Os financiadores de campanha abrem a Bolsonaro a brecha para abandonar os delírios impostos pelo obscurantismo que move suas atitudes e assumir a coordenação das soluções da crise de saúde pública com base na ciência e eficiência.
Dois. O presidente usa a reunião para promover um movimento circense destinado a distrair a arquibancada e dar a impressão que faz alguma coisa com seu mandato presidencial.
Três. Bolsonaro busca e encontra, no grupo, disposição para socialização do prejuízo e da impopularidade. Como de hábito, ouvirá uma coisa, fará outra e, diante das consequências trágicas, coletivizará as culpas.
O histórico da personalidade do presidente manda jogar as fichas na terceira opção.
Mas só ele tem o comando executivo das soluções. Não é mais possível viver na expectativa dos recuos de Bolsonaro, cujas mutações obedecem apenas às suas conveniências pessoais e eleitorais.
O Supremo Tribunal Federal, única instância que parece estar cuidando do interesse da população aflita, submeteu o convite para o encontro ao seu colegiado. Que o aprovou, desde que não haja conflito de interesse.
Ora, é só o que há. Na reunião do Palácio do Planalto, o presidente do STF poderá recomendar o isolamento social para enfrentar o colapso hospitalar. Ao atravessar a praça, de volta ao seu plenário, estará diante de ação de Jair Bolsonaro contra os que decretaram o isolamento. Como ele fica?
O ceticismo em torno deste Conselho se impõe. Parece haver uma só saída para reinserir o Brasil na rota da humanidade nesta pandemia sem controle: a intervenção objetiva, seja pelo afastamento do presidente da República, seja por algum tipo de sobreposição às suas funções executivas.
A qual instituição, senão ao Poder Legislativo, caberia esta função? Pode o Congresso, no limite, tentar algo parcial, assumindo tarefas e deixando ao presidente o papel de malabarista verbal nos encontros com sua claque, no gradil do Alvorada.
Mas há abertura para ir além disto. Se por ela optasse, o Brasil não precisaria esperar mais dois anos, quem sabe seis, para se salvar.
O Congresso tem uma velha tradição de astúcia em negociações de acordos. Estabelece um contrato de compra e venda do varejo político que, um dia, a depender do objeto determinado, transforma-se em cumplicidade dolosa.
Os presidentes da Câmara e do Senado comportam-se como reféns de uma dívida acidental com Jair Bolsonaro, contraída por ocasião de sua eleição. Sua propalada independência tem sido pura ficção.
No Senado, os pruridos da reciprocidade impedem que Rodrigo Pacheco instale a CPI da pandemia, única medida capaz de conter, até pelo medo, os desmandos do governo. Tem sido excessiva e injustificada a prudência do Poder Legislativo.
Na Câmara, Arthur Lira já teria quitado sua fatura com a prioridade a um assunto fisiológico, a PEC da impunidade parlamentar, e a surdez ao clamor contra a entrega da presidência da CCJ ao governo, para ser exercida por uma parlamentar extremista e investigada. Mas foi além, condenando ao esquecimento 50 pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro.
As abstenções, tanto quanto as ações, não permitem reconhecer que o Congresso esteja cumprindo sua parte na luta contra a pandemia.
Rosângela Bittar: Enquanto isso...
Recobrando a liberdade de ir e vir, o ex-presidente Lula reanima velhos contatos
Discretamente, como convém a quem ainda não ganhou certificado de inocência nem a plena reabilitação política, o ex-presidente Lula vai escrevendo, na prática, seu roteiro de candidato. A manifestação da volta, pensada por ele mesmo, um retrato fiel do velho Lula de sempre, contém indicação ampla sobre o que se deve observar nos passos seguintes. Tanto no que revelou como no que escondeu.
A pandemia foi a preliminar de efeito político imediato. A simples menção às ações necessárias já resultou na troca do ministro da Saúde. Satisfez o eleitorado só pelo contraste entre suas palavras de mero bom senso e a realidade política atual, forjada na irracionalidade.
Recobrando a liberdade de ir e vir, mesmo que em modo virtual, Lula reanima velhos contatos. Chama a atenção de empresários e convoca políticos amigos, como os caciques do MDB. Partido disseminado por todos os Estados, o MDB é uma federação de lideranças neutras ideologicamente, que agrega civis e militares, empresários e sindicatos, capital e interior, uma salada de referências na sociedade.
Ainda neste campo sua agenda registra o Centrão. O bloco dá sustentação fiel ao presidente Jair Bolsonaro. Mas governo e eleição são duas coisas diferentes, o Centrão está aí, para o que der e vier.
O que ainda não estava implícito nem explícito, mas não surpreende, são os movimentos e conversas de Lula no terreno delicado de suas relações com os militares.
A atualização do episódio, já desgastado, da pressão do general Villas Bôas sobre o STF, em 2018, simplifica os efeitos do constrangimento da época. Agora, Lula está tão aberto às conversas com militares que seus partidários consideram natural uma aproximação objetiva, de alto nível.
Citam o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-secretário de Governo nos primeiros meses da administração Jair Bolsonaro, como um dos nomes para compor a chapa, como vice-presidente. União que permitiria ampla composição, como se deu com o falecido industrial José Alencar nos mandatos presidenciais de Lula.
O interesse por Santos Cruz revela dois aspectos das preocupações do candidato Lula. Primeiro, o resgate das boas relações com as Forças Armadas. Segundo, a expectativa de colaboração efetiva do general, expurgado do atual governo por um dos filhos do presidente. Saiu como vítima de fake news, uma prática depois banalizada, e deixou a impressão de ser o mais preparado dos colaboradores militares do governo.
Estes movimentos visam também modular a tentativa de politizar o Exército por parte do candidato à reeleição, seu adversário. O presidente Jair Bolsonaro, embora de origem militar, desviou-se do padrão de atuação e comportamento das Forças Armadas. A ambiguidade com que se refere ao "meu Exército" sugere mais seu lado miliciano do que propriamente militar.
Lado este, por sinal, que está em crescimento e ebulição. Certamente não foram as Forças Armadas que atuaram nos violentos episódios de intimidação moral e ameaça física à cardiologista Ludhmila Hajjar, convidada para integrar o governo. Convite recusado depois de dois dias de terror sob o comando do gabinete do ódio.
A investida evidenciou como está avançada a ocupação do território por esta milícia extremista, violenta, agressiva e ilegal do bolsonarismo. Prática de um terrorismo contemporizado pelo presidente, que consolou a vítima com um covarde "faz parte".
Expansão esta que chegou com força ao Congresso. Os presidentes da Câmara e do Senado pagam caro a fatura da sua eleição: o deputado Arthur Lira entregou joias da coroa parlamentar a deputadas da barricada bolsonarista; o senador Rodrigo Pacheco engavetou CPI proposta, dentro das regras, por senadores que pretendem apurar a letal gestão da pandemia pelo presidente da República.
Rosângela Bittar: O Teorema Lula
Lula virou político de novo e restabeleceu o que parecia superado: a polarização
Desafio à esfinge: o que houve de determinante, em tão curto espaço de tempo, que levou o ex-presidente Lula a assumir sua candidatura à Presidência da República? Num dia ele lançou Fernando Haddad, despachando-o para liderar caravanas. Quinze dias depois, sem revogar a primeira ordem, declarou de viva-voz o que todos entenderam como um alto lá. Será ele mesmo o candidato.
No primeiro movimento, o ex-presidente pretendeu tranquilizar o Supremo Tribunal Federal quanto à sua submissão à Lei da Ficha Limpa. Não seria candidato mesmo se lhe fosse favorável o julgamento, esta semana, relativo à suspeição do juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá.
Duas semanas se passaram e eis que o ministro Ricardo Lewandowski permitiu acesso da defesa aos diálogos entre os promotores da força-tarefa e o juiz da Lava Jato. São 10% as transcrições do grampo que se referem a Lula, agora em exame pelo ministro Gilmar Mendes, o relator do processo.
Os advogados puderam constatar a extensão do comprometimento não apenas de Sérgio Moro, como do coordenador Deltan Dallagnol e até do então procurador-geral Rodrigo Janot. Verificaram que a Justiça teria dados suficientes para considerar Lula vítima de perseguição. Constataram que os que o prenderam admitiam não ter provas ou certezas.
Ampliaram-se, então, as expectativas, até aí limitadas ao triplex. Agora seria possível rever também o caso do sítio de Atibaia. Anuladas as sentenças, recuperados os direitos políticos, Lula poderia ser candidato. Aí se precipitou, surpreendendo até quem esperava estabelecer com o PT uma aliança mais ampla ao centro e à esquerda.
O que fará a seguir ainda está em análise. Poderá pedir a extensão dos argumentos do triplex para o sítio. Se não for possível, a defesa ingressará com novo pedido de habeas corpus específico.
Desde que saiu da prisão, o ex-presidente só se manifestava para louvar a preservação da sua potência sexual, anunciava planos de casamento com Janja e sugeria uma vida reclusa em paradisíaca praia da Bahia.
De repente, uma mudança e tanto. Lula virou político de novo e restabeleceu o que parecia superado: a polarização. O presidente Jair Bolsonaro exultou. Vinha projetando o fantasma do ex-presidente como adversário, agora o tinha na realidade. E a Lula sempre interessou o confronto com Bolsonaro. Ambos querem uma disputa de recíproca rejeição acreditando, cada um, que o outro tem pior conceito na praça.
Este cenário é responsável pela ressurreição, nestes recentes episódios nada espontâneos, do aviso do general Villas Bôas ao STF sobre a inconveniência de restaurar os direitos eleitorais de Lula. Um episódio de dois anos atrás, subitamente atualizado pela edição do livro de memórias do ex-comandante, com novas revelações. Entre elas a de que o Alto Comando do Exército referendou a pressão que exerceu sobre a Suprema Corte.
Desta vez, com um agravante: a explosão do apoio aos militares do núcleo de extremistas que sustentam Bolsonaro. Até como pretexto para mais uma vez agredirem o Supremo, o saco de pancadas do grupo.
Uma frente que expõe a geleia geral de obscurantismo, negacionismo, diversionismo, golpismo e provocação.
Como se o tempo tivesse dado uma meia-volta, volver.
Tal enredo ainda não está consolidado. Nada impede que o STF contorne polêmicas e adote uma solução híbrida. Reconheceria a suspeição do juiz Sérgio Moro, mas não restabeleceria os direitos políticos de Lula, que permaneceria inelegível. E já houve precedente desta combinação: a decisão de Lewandowski, agora com sinais trocados, no impeachment da ex-presidente Dilma. Foi deposta, mas sem perder seus direitos políticos.
Estará permeando este julgamento a animosidade jamais superada dos militares com a esquerda. Perfeitamente correspondida.
Rosângela Bittar: O tempo Huck
Empresário tem a candidatura mais consistente fora da política e tem de tomar uma decisão
Entre a máxima de que há vida pensante fora do fisiologismo do Centrão e a constatação de que setenta por cento dos brasileiros não querem mais quatro anos do extremista Jair Bolsonaro, o tempo de tolerância concedido a Luciano Huck está se esgotando. Ele tem a mais consistente das candidaturas fora dos eixos da política partidária e está sendo forçado a se decidir, o que fará em meados do ano.
Não se trata de prazo da lei eleitoral, nem de atender às conveniências pessoais e profissionais do empresário. Mas de uma exigência imposta pelo cenário dinâmico. Huck, que parecia atravessar olimpicamente as preliminares de resistência, inclusive aos preconceitos, está diante da hora da verdade. Avança, em silêncio. Os movimentos políticos de fevereiro não levaram o potencial candidato a mudar sua estratégia. Nem mesmo o revés da submissão do DEM, partido com quem vinha se alinhando, a Bolsonaro.
Ele tem exposto aos colaboradores sua teoria dos três tempos. Há o tempo dos políticos, e os movimentos de hoje nele se encaixam. Há o tempo do jornalismo político, que precisa de definições para trabalhar suas análises. E há o tempo das ruas. Huck acredita estar no tempo certo.
Superou a fase de conhecer o Brasil, reunir as melhores pessoas para ter a melhor visão de cada área e construir, também em discreta ação, um projeto. Sem este, acredita, não poderá se apresentar.
Poucos possíveis candidatos desfrutaram desta regalia e a etapa passou, com sucesso.
A questão agora é transferir para a realidade política estas escolhas. Identificar as afinidades de partidos e líderes, aprofundar as conversas e fechar compromissos. Reúne-se com o PSB e o PSD, dois novos parceiros que se somaram a Podemos, Cidadania, PSDB, PCdoB. A ideia é estimular os “players” destas legendas, para usar um termo do vocabulário empresarial do futuro candidato.
A marca oposicionista essencial é quase um lema: “Quem achar que é Bolsonaro o presidente que o Brasil merece, está fora”.
A própria pandemia exclui o bolsonarismo de um projeto que acene com compromissos políticos racionais. E é a questão número um da agenda da desconstrução do negacionismo, obrigatória para quem vencer. Tal como o modelo Joe Biden, ao remover o entulho deixado por Donald Trump.
Bolsonaro retomou agora um arremedo de governo assinando uma série de medidas insanas que exigem supressão, ao mesmo tempo em que se inicia novo projeto. A vedete é o inoportuno pacote da liberação irresponsável de armas e munições, que as ruas podem definir como “fique em casa e tranque a porta”. Qualquer brasileiro será um atirador em potencial ou vítima provável. Por razões irrelevantes, inclusive nenhuma. Os amigos do rei ficam protegidos, haverá o excludente de ilicitude.
Para a saúde, mantém-se a crença de que o Brasil estará vacinado até o fim do ano, apesar de Bolsonaro. Uma premissa nos encontros preparatórios dos quais participa Huck. Há muito o que revogar nesta área e, também, a transpor nos escombros da Educação e do Meio Ambiente. Bem como muito a desfazer em matéria de constrangimentos nas relações internacionais.
Mas tarefa tão árdua quanto delicada é o necessário resgate das formas apropriadas do Estado de Direito, hoje desfigurado. A desmilitarização de áreas civis de governo é necessária tanto por razões de competência como para afastar temores de golpe. O Supremo, como se viu esta semana, já vem discutindo isto.
É inegável que a atual Presidência dá, a cada dia, mais espaço à expansão de medidas autoritárias e de culto à violência, de conflitos institucionais e desprezo pela vida. AI-5 não é só fechar o Congresso e o Supremo, embora isto esteja no horizonte da família presidencial. Muitos ‘AIs-5’ de Bolsonaro, como os citados, estão em vigor. Mas ele quer mais.
Rosângela Bittar: Gênio ou...
Ao submeter o Congresso aos seus desígnios, Bolsonaro logrou vantagens inesperadas
Contra fatos não há argumentos, diria o debatedor preguiçoso. Por isto, resumidamente: não foi pequena a conquista política de Jair Bolsonaro neste início do terceiro ano de sua inoperante gestão presidencial.
Ao submeter o Congresso aos seus desígnios, ungindo, a preços da União, os que viriam a ser os presidentes da Câmara e do Senado, o presidente logrou outras vantagens inesperadas. Implodiu um partido forte, o DEM, que transitou, em apenas 60 dias, do sucesso absoluto (eleições municipais) ao fracasso retumbante (rendição ao governo).
Ao fazê-lo, destruiu duas articulações já avançadas de seus adversários na disputa eleitoral de 2022.
Numa delas, atingiu os arranjos para o lançamento de uma candidatura viável de centro, dos quais o DEM era interlocutor privilegiado. Por esta fenda foram arrastadas as candidaturas de João Doria, Luiz Henrique Mandetta e Luciano Huck.
Noutra, conseguiu desafinar as cordas de uma orquestração para união das esquerdas na sucessão. Com a adesão do PT ao arrastão no Senado soou o alarme na praia onde devia estar o ex-presidente Lula.
Ordenou a Fernando Haddad se declarar candidato do PT à sucessão de Bolsonaro, de forma a guardar novamente sua vaga enquanto espera decisões judiciais.
O recado à militância e às bancadas foi, assim, entendido: nada de união, o PT terá candidato próprio. Com apenas um telefonema Lula ajudou Bolsonaro a firmar precocemente a polarização que ele vinha tentando, sem sucesso, reconstruir, para ser novamente o beneficiário do voto antipetista.
Dois candidatos desta frente reagiram. Ciro Gomes acusou a presunção petista de achar que um aceno seu à esquerda seguirá na direção apontada. Guilherme Boulos foi mais direto. Lembrou ao ex-presidente que ele transgrediu a filosofia da incipiente união: primeiro, o projeto conjunto, depois o nome do candidato.
Com este espetacular resultado, Jair Bolsonaro ainda não pode anunciar a conclusão de sua trama de espertezas. Falta eleger a deputada extremista Bia Kicis presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. A indicação foi imposta na mesa de negociação presidida pelo general Luiz Eduardo Ramos.
Implícitas nela, as fixações bolsonaristas para atender a freguesia de sua agenda de costumes, ou de maus costumes, para ser mais precisa. Caberá à deputada extremista submeter a maioria da sociedade às ansiedades do seu grupo íntimo.
Kicis encarna um repertório de radicalismo, reacionarismo, golpismo, que sintetiza o ideário dos grupos que o presidente quer favorecer nas decisões do Parlamento. No que dependia de sua capacidade de impor, Bolsonaro agiu sem limites. Estão aí as ruínas dos ministérios da Educação, da Saúde e do Meio Ambiente.
O controle da CCJ pela extremista mergulhará o País em debates que, obrigatoriamente, liberarão ódios, frustrações, confrontos, meandros onde ela, pregadora do fechamento do Congresso e da extinção do Supremo, prefere se ambientar. Numa ordem arbitrária se discutirá da ruptura com a volta do AI-5, como defende Eduardo Bolsonaro, à liberação do mercado já descontrolado de armas e munições, como quer Carlos Bolsonaro.
A excitação de temas marginais, que atraem proselitismo religioso por privilégios e concessões, por exemplo, ficará na conta dos 68% dos votos evangélicos que foram para Bolsonaro, já no primeiro turno, e precisam com ele ficar.
Dominado neste momento por sinais de volúpia do poder, Bolsonaro, ao escolher a deputada extremista, está ainda reforçando sua proteção. Desconfiado da natureza dos políticos do Centrão a quem entregou o poder, Bolsonaro quer ter na CCJ uma executiva fanática para barrar as CPIs da Pandemia e das Fake News, além do impeachment, caso o presidente da Câmara caia em tentação.
Seria Bolsonaro um gênio? Ou...
Rosângela Bittar: Quadrilha
Dominado por Jair Bolsonaro e Centrão, o ambiente político é irreversivelmente estéril
É com profundo sentimento de pesar que se anuncia o fim dos tempos. Sejam das reformas, da rotina política ou tudo o mais que tenha vida ou inspire esperança. Inclusive as soluções para o grande desafio da pandemia.
O ambiente político, dominado por Jair Bolsonaro e Centrão, é irreversivelmente estéril. Sem espaço para avanços ou reformas. Nem a administrativa (como enquadrar o funcionalismo com rigor em meio ao vale-tudo?); nem privatizações (conseguirão vender empresas por eles loteadas?); ou reforma tributária (é lícito perder receita para um projeto liberal que não existe?).
O Congresso renunciou à sua agenda própria. Enfraquecido, dividido e sob nova direção, restou ao Parlamento submeter-se à agenda do Executivo.
O governo, também fragilizado, não consegue adesões, sequer internamente, para suas propostas. O ministro Paulo Guedes é satélite e está estacionado há tempos. Seu anunciado pacote econômico não tem respaldo nem do próprio presidente.
A sucessão na Câmara e no Senado esgotou qualquer capacidade de ação coletiva. Nada se pode esperar além da aprovação de um orçamento caviloso e da indispensável bolsa social de sobrevivência no caos.
A lei é a do mercado persa. Vale tudo para vender.
Como nos versos da Quadrilha do poeta Drummond, o círculo é vicioso. Os elos, porém, não são de amor, mas de oportunismo.
Parlamentares negociam o mandato para fazer caixa eleitoral e alimentar sua campanha de reeleição. É só o que interessa nesses dois anos finais da legislatura. Com os bolsos cheios, fidelizam prefeitos. Uma vez reeleitos, voltam à boca do caixa e começam a vender tudo de novo. E assim sucessivamente: Jair paga a Arthur, que sacia o bando, que transfere ao prefeito, que elege o deputado, que vende seu voto ao governo, que financia a campanha.
Bolsonaro adquiriu com o Centrão o primeiro estágio do projeto da própria reeleição, além de miudezas do seu passivo judicial. Como, por exemplo, o engavetamento do impeachment e a suspensão das CPIs, a das Fake News e a dos crimes de gestão da pandemia.
Numa operação triangular, o Congresso pode ter levado de volta ao estoque um produto encalhado, a CPI da Toga. Quem sabe não conseguirá empacotar junto o comando dos três poderes para quitar sua fatura?
No varejo, há vistosos produtos de safra, indiferentes para o Centrão, mas que valem ouro no Palácio do Planalto. O armamentismo, por exemplo, é um. A macabra licença para matar, outro.
Os brasileiros não estão preocupados com os destinos de Rodrigo Maia, com a sorte de Simone Tebet, ou o sucesso de um futuro projeto democrático à sucessão presidencial. Para isso há tempo.
Tebet foi derrotada por ser candidata da Lava Jato. O deputado Rodrigo Maia perdeu na rasteira habitual de ACM Neto. Pedra cantada há duas semanas: Neto foi visto em festa com Bolsonaro num palanque entre Alagoas e Sergipe, em inauguração da ponte de Propriá. A Bahia, ausente do fato, estava na foto.
Neto já se opusera à primeira disputa da presidência da Câmara por Maia. Quando apoiou o candidato do então presidente Temer, Rogério Rosso, sentenciou sua filosofia: em eleição para presidente da Câmara não se fica, jamais, contra o candidato do presidente da República.
Além do mais, sua disputa pessoal com Maia é antiga e nos últimos anos a balança pendeu para o presidente da Câmara. Chegou ao momento de decisão. Ao destruir Maia, o demista baiano fez uma opção oportuna pensando no seu futuro. Quem sabe a associação Bolsonaro-Lira não representará sua bala de prata na próxima batalha com o PT, que, por acaso, tem na Bahia sua base estadual mais sólida?
Já aos brasileiros em geral sobra o bizarro desafio de apreciar a fusão das táticas milicianas do governo Bolsonaro com a súbita aparição de um novo protagonista alagoano.
Rosângela Bittar: Com as mãos ao alto
A capitulação da Câmara significa muito mais do que engavetar o impeachment
As lideranças políticas estão a cinco dias da rendição ao presidente Jair Bolsonaro, o que se consumará ao elegerem o novo comando do Poder Legislativo. A confirmarem-se as prévias, estarão os parlamentares promovendo sua incorporação às vilanias do governo. Tiremos desta grave onda de cumplicidade o Senado, onde a extremada independência de cada um supera qualquer imposição de compromissos da cúpula.
Na Câmara, porém, é outra a essência do poder. As indicações de insidiosa conspiração parlamentar fazem o favoritismo do candidato Arthur Lira, patrocinado por Bolsonaro com todas as garantias de sucesso. Inclusive os habituais objetos da feira de trocas de favores, avançando pela coação em casos de resistência.
À população, traída, resta levantar as mãos ao alto enquanto alimenta a esperança de reversão do golpe legislativo, pela traição. Embora o momento exija coragem e não esta covardia marota, os deputados, em maioria, estão levando na displicência esta grave iminência de desastre político.
Como se fosse natural, os brasileiros amanhecem o dia temendo a morte, que já levou 220 mil cidadãos por idiossincrasias, crendices e incompetência do governo. Têm crescido os protestos de rua e manifestos propondo o impedimento do presidente. Crimes de responsabilidade foram cometidos, sobretudo na gestão da crise sanitária mundial. O País tinha, até agora, no Judiciário e no Legislativo, sua fresta de oxigênio.
Mas a Câmara parece disposta a sujeitar-se e debandar. Sem ter consciência de que está prestes, inclusive, a referendar o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro para continuar o desgoverno que vem liderando.
A capitulação da Câmara significa muito mais do que engavetar o impeachment. O compromisso inclui a aprovação de políticas contrárias aos interesses da população.
O candidato favorito fala a linguagem do presidente. Fugiu do debate alegando que a pandemia é assunto demagógico. Se ainda houvesse dúvida sobre tão estreita afinidade, está sobre a mesa, já compromissado, o aumento de impostos, com a aprovação da mal afamada CPMF.
Negacionista desumano, para quem vida e morte são a mesma coisa, Bolsonaro escolheu para exercer o controle da Câmara, em seu nome, alguém ardorosamente com ele identificado. O faroeste não é um modelo de projeto parlamentar, entretanto será o único possível com a direção da Câmara subjugada pelo presidente da República.
Bolsonaro perdeu Donald Trump, cujo exemplo copiava e se esgotou como modelo. Está isolado politicamente e escolheu para o Brasil a posição de pária. Seu governo é fraco, sem maioria, investigado em inquéritos judiciais variados. Contudo, supera estas desvantagens com um arsenal de guerra que construiu para resguardar sua cidadela.
Registros de uma breve memória: já reuniu a proteção do procurador-geral da República; duas vagas no STF; duas vagas no TSE por onde tramitará sua denúncia de fraude no sistema eleitoral; a cooptação das polícias militares, que deseja agregar oficialmente ao portfólio de poder; boa parte da Polícia Federal; o apoio das tropas armadas, que cultiva como se líder sindical ainda fosse; acesso às violentas seitas da conspiração; a fidelidade de extremistas e milícias, sob o comando do gabinete do ódio e de empresários do círculo íntimo.
São itens especiais: o culto às armas de fogo, que segue em velocidade e disseminação preocupantes; e a produção de uma rede de filhos e amigos dispostos a cometer o que for preciso para autenticar seu método.
A rendição irrestrita da presidência da Câmara é armação política de um pacto que tornará o Executivo e o Legislativo um só bloco, indiferente à dor, ao luto e à indignação do povo.
Rosângela Bittar: Não há aviso aos navegantes
Tudo em 2021 dependerá do êxito da vacina. Não há mais espaço para conversa fiada de Bolsonaro
Os meteorologistas da política não encontram garantias para prever absolutamente nada de novo para 2021, mais um ano a ser dominado pela pandemia e pela expectativa da vacina. O que deve acontecer é a expansão de 2020 em todos os sentidos.
Jogaram-se para a frente as crises de saúde, a principal entre todas que castigam o Brasil. Também prorrogaram-se os prazos das crises econômica, social e política. Tudo em 2021 vai girar exclusivamente em torno da vacina. O sinônimo de vida.
Na roda de poder dos possíveis candidatos à sucessão de Jair Bolsonaro recomenda-se esquecer o ano novo como calendário original.
Quem tinha perfil de candidato a presidente na sucessão de 2022 e expectativa política deve continuar na mesma. Os fatores que fazem uma candidatura emplacar não estão liberados. Seja para o novato Luciano Huck ou para o veterano Ciro Gomes. Eles, e os demais postulantes conhecidos, entre os quais Hamilton Mourão, João Doria e Sérgio Moro, se tiverem juízo para se submeterem à realidade, continuarão esperando uma possível largada bem mais à frente.
Qual destes possíveis candidatos vai desabrochar, se vai ou não ser um deles, se aparecerá um outro surgido de inusitada situação, qual novo movimento será feito em direção à sucessão, em torno de que plataformas. Um mundo de definições em aberto.
Ninguém está pior que Jair Bolsonaro que, solitário, faz campanha dia e noite, sem nenhuma consequência para os adversários. Ora se vê que está procurando manter seu eleitorado, ora se evidencia o desejo de distrair a atenção do público de alguma de suas mazelas.
O presidente, que não governou na primeira metade do mandato, não governará na segunda, que se inicia; enquanto persegue a reeleição, não tem sequer acrescentado dividendos de peso à sua performance política.
Não se consegue explicar as razões pelas quais Bolsonaro está na posição em que se encontra, com uma adesão acima de 30% nas pesquisas de opinião. O governo é ruim, não há um projeto para o País, ele não apresenta solução para os problemas que angustiam a população cotidianamente e suas questões essenciais são meras demandas para resolver problemas pessoais, enquanto se vê ampliar a vulnerabilidade do seu flanco familiar.
Eleições, em 2021, só as das presidências da Câmara e do Senado, em fevereiro. Nelas só têm lugar compromissos imediatistas.
A sociedade dará atenção total à vacina e seus efeitos. A imprevisão das crises sanitária, social, econômica e política permanecerá nos meses seguintes à imunização. Bem como a oscilação do presidente da República quanto a questões relacionadas à pandemia que interessam a todos.
O governo, com suas posições corrosivas e estapafúrdias, permanecerá causando perplexidade nacional e internacional. Bolsonaro seguirá disfarçando sua ignorância a pretexto de defender a economia contra a vida, tomando atitudes que comprometem uma e outra.
Não é só para a crise sanitária que o governo não tem solução. Faltam-lhe ideias e medidas para resolver qualquer uma das demais crises. Paulo Guedes, o superministro da Economia, parceiro fundamental de Jair Bolsonaro nas soluções esperadas por todos, não terá condições de dizer, em 2021, a que veio. Se permanecer no cargo, depois de ter sido obrigado a desmentir o presidente da República no fim de 2020, continuará a falar sozinho, sem ressonância no governo ou no Congresso. Com todos os instrumentos nas suas mãos, não tem conseguido substituir nem por esperanças as incertezas atuais da economia.
Para lembrar e repetir: tudo em 2021 dependerá do êxito da vacina. Não há mais espaço para conversa fiada de Jair Bolsonaro e sua atração fatal pela morte, contra a ciência e o bom senso. Melhor esquecê-lo. E confiar nas lideranças da sociedade, que podem surpreender. Há espaços , questões e situações que as estimulam.
Rosângela Bittar: O futuro do atraso
A eleição dos presidentes da Câmara e do Senado não ficam definidas por antecipação, nunca. As negociações que levam a reviravoltas na boca da urna não permitem dizer que o favoritismo de hoje, do candidato governista Arthur Lira, permanecerá até 2 de fevereiro.
Dois exemplos da memória.
O mais recente: na primeira eleição de Rodrigo Maia, 2017, depois do mandato tampão após renúncia de Eduardo Cunha, o DEM só o apoiou na véspera, e o aliado principal, o PSDB, definiu-se na manhã da votação.
O mais perturbador: Apesar da proibição regimental, o PT se dividiu em 2005 e lançou dois candidatos. Um oficial, Luiz Eduardo Greenhalgh, outro avulso, Virgílio Guimarães. Venceu Severino Cavalcanti, que não estava na história. E saiu dela como uma anedota.
São fatos que reduzem a mera hipótese a apregoada certeza da vitória dos candidatos do presidente Jair Bolsonaro às presidências da Câmara e do Senado. No Senado ainda há três nomes disputando a unção presidencial mas, na Câmara, o candidato Arthur Lira já negocia abertamente em nome do presidente, há meses.
Embora favorito, com uma campanha agressiva em concessões e troca de favores, Lira ainda não pode receber cumprimentos. Qualquer celebração antecipada é mera ironia.
Tudo pode acontecer nesses longos 40 dias que separam este Natal da inauguração do ano Legislativo, data da eleição das Mesas. Será um janeiro de frenesi político, longe de qualquer realidade dos brasileiros.
Única alternativa que resta ao governo para dar seriedade à sua empreitada é formular uma agenda que dê substância ao varejo das negociações. O Congresso não faz milagres, não tem planos de governo e precisa de uma proposta sobre a qual trabalhar e votar.
O que Bolsonaro já apresentou até agora é um rosário de demandas pessoais, familiares, corporativas e eleitorais. Algumas de exceção à lei. Barrar o impeachment, na Câmara, e salvar o enlameado filho Flávio Bolsonaro, no Senado, são metas explícitas.
O que inquieta nas manifestações recentes do presidente sobre o que quer para o ano que vem é a inexistência das áreas de emergência, começando pelo controle da pandemia.
Bolsonaro quer mandar na Câmara e no Senado para aprovar o excludente de ilicitude (licença para matar), a educação domiciliar, os benefícios para igrejas, o imposto sindical, a redução da Lei da Ficha Limpa e da Lava Jato. Sem esquecer o atraso dos atrasos: a volta do voto impresso.
Não contente em dedicar todo o seu mandato, exclusivamente, à campanha da reeleição, o presidente quer usar a Câmara para discutir o voto impresso e montar desde já o processo de acusação de fraude eleitoral, diante da possibilidade crescente da derrota em 2022.
Os sinais são preocupantes, o Brasil está sendo arrastado ao abismo social, econômico e político. Bolsonaro transforma suas convicções pessoais e retrógradas em políticas públicas.
Sindicato
A propósito das negociações para a volta do imposto sindical, João Carlos Gonçalves, Juruna, secretário-geral da Força Sindical, enviou-me um esclarecimento:
“Li seu artigo cujo título é Depois da meia-noite. Queria lhe informar que o movimento sindical não está pedindo a volta do imposto sindical, aquele que cada trabalhador pagava um dia de salário anual. Pagava porque o não associado também é beneficiado pelos acordos e convenções coletivas. O que o movimento sindical quer, e isso está parado na Câmara dos Deputados, é a regulamentação de legislação que deixe claro se o sindicato vai também trabalhar para não sócios sem receber nada. A cada convenção coletiva que o sindicato faz, precisa fazer um Termo de Ajuste de Conduta, com o Ministério Público do Trabalho, para poder cobrar de quem não é sócio, pelos benefícios das convenções coletivas estendidas a ele”.
*COLUNISTA DO ‘ESTADÃO’ E ANALISTA DE ASSUNTOS POLÍTICOS
Rosângela Bittar: Depois da meia-noite
Rumo à reeleição, afloram os piores instintos políticos. A busca por adesões excita os currais
Para quem não está entendendo o sucesso da plataforma eleitoral antipovo do candidato Arthur Lira à presidência da Câmara, inclusive com o embarque da esquerda na caravana bolsonarista, aqui vai uma explicação. O deputado alagoano e suas costas quentes exploram muito bem, pois a conhecem profundamente, a oportunidade que o calendário oferece.
O tempo do Congresso se divide em dois. No primeiro, os dois anos iniciais do mandato, procuram-se realizar os avanços e as reformas. No segundo biênio, o bom senso dá lugar ao vale-tudo da renovação dos mandatos. Quando coincide com a campanha da reeleição também do presidente da República, a confluência de interesses chega ao paroxismo. É o que está se vendo neste momento.
Deputados e senadores só pensam em poder, emendas e cargos que os ajudem eleitoralmente. No Senado, os prazos são outros, pois o mandato é de oito anos, mas a essência é a mesma.
O ex-deputado e ex-ministro Roberto Brant, com sabedoria mineira, costumava comparar o que ali se passava com as diferentes etapas de uma festa: até a metade, os convidados mantêm a compostura e a elegância, conservam o glamour das novas ideias que trouxeram de casa. Mas, ao bater a meia-noite, tendem ao desespero. Jogam para o ar o que tinham de melhor e partem para o uso e o abuso.
Rumo à reeleição, afloram os piores instintos políticos. A busca por adesões excita os currais. Principalmente se quem vai exercer o poder o faz em nome do presidente da República.
Avanços políticos, alguns verdadeiramente civilizatórios, como foi a extinção do imposto sindical, voltam à mesa de negociação com cínica naturalidade. Celebrado no passado como novo sindicalismo, tal como Jair Bolsonaro foi celebrado como nova política, o malfadado imposto foi reprovado com amplo apoio popular. Para os que dele viviam, os chamados pelegos, a extinção teria sido a razão do enfraquecimento dos sindicatos. Raciocínio que é uma impostura. Sem ele, os sindicatos ganharam autenticidade. Ao associar-se ao projeto, a esquerda atinge o trabalhador em uma de suas mais difíceis conquistas.
Na cabala de votos, sobretudo do PT, o candidato bolsonarista se solidariza também com o período do uso da Petrobrás na montagem de um extenso esquema de corrupção. Acena com a facilitação da volta da candidatura Lula por intermédio da desmoralização da Operação Lava Jato, já abalada por certos equívocos dos principais condutores das investigações. Momento em que os extremos se encontram. Todos deliram na mesma farra eleitoral embora saibam que, Lula, candidato, nunca mais.
Incluiu-se na barganha temática um tranco na Lei da Ficha Limpa, outro avanço com apoio popular prestes a ser perdido. O candidato bolsonarista promete atenuar a lei, quem sabe, abrindo uma janela de fuga. As lacunas são conhecidas, entre elas uma das piores é o poder de juízes locais de fustigar os inimigos políticos com um peteleco jurídico, mas não é nesta circunstância que a discussão será justa e eficiente.
De posse da chave do cofre do governo nesta campanha, o candidato bolsonarista à presidência da Câmara promete reabastecê-lo de recursos, com a aprovação da também defenestrada CPMF. Uma regressão em proporções nunca vistas, camuflada pela infamante versão de que o único obstáculo ao absurdo imposto sobre transações era um capricho do atual presidente da Câmara. O fantasma da meia-noite da virada do mandato vestiu, com isso, sua máscara. A Câmara inteira era aliada da sociedade, contra o imposto. Não se sabe como será agora.
Se ficar a serviço deste projeto de poder, o Congresso deixa de ser proteção para ser ameaça. Pode-se prever o quadro de desequilíbrio que vem por aí. A economia, mal; a recuperação, incerta; o desemprego, subindo; o isolamento internacional, absoluto; o Congresso, servil. Para a sociedade, perplexa, nega-se até a vacina contra a morte.
Rosângela Bittar: Os prazos e o desespero
O trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite com a indefinição sobre a vacina
Começando pelo fim: os prazos costumam definir a tolerância que a sociedade concede aos governos e líderes. Ao se esgotarem, alteram o humor das mais passivas e indiferentes criaturas. Então, o desespero, que parecia contido, transborda, como um aviso aos governantes. Sinalizou-se, no caso da negligência homicida com a imunização contra o coronavírus, que algo precisa ser feito. É imperativa uma intervenção no ritmo da insensatez do presidente Jair Bolsonaro.
Não se propõe impeachment, esclareça-se. Até os eleitores frustrados o desprezam. Mas os poderes Legislativo e Judiciário, os Estados e municípios, as instituições de Estado, os movimentos sociais, dispõem de meios e métodos menos agudos e mais eficientes.
Ontem, em Brasília, empreendeu-se uma dessas batalhas. Em reunião com o ministro da Saúde, os governadores pretenderam mover o governo Bolsonaro em alguma direção. Apesar do mundo civilizado estar celebrando o início da imunização no Reino Unido, pediam o básico do óbvio. O tenso encontro produziu as promessas de sempre, mas apressou o anúncio de intenções negociadas de véspera.
No primeiro encontro, há um mês, Eduardo Pazuello anunciou que iria adquirir a vacina do Instituto Butantã, desenvolvida com o laboratório chinês Sinovac. No dia seguinte recuou, sob vara, com advertência pública do presidente. Ontem, fez nova promessa, de compra da vacina da Pfizer, que o sistema não tem nem condições de armazenar a 70 graus negativos. Mas desta não deve recuar. A vacina é americana e o protocolo de intenções para adquiri-la foi assinado ontem mesmo.
Já esperado, a reunião produziu mais um lance na disputa política de Bolsonaro com João Doria. Ao condenar planos estaduais de vacinação, como o de São Paulo, que contrapôs ao plano nacional, inexistente, o ministro não deu transparência ao que fará com a vacina do Butantã.
A série histórica de afirmações e recuos de Pazuello e Bolsonaro não animam expectativas positivas.
No caos que se delineia, os governadores devem esperar um desfecho carregando pedras, pois têm novo obstáculo imediato, o descaso culposo da Anvisa. O órgão regulador assumiu o critério político para a questão sanitária. E produziu uma pérola de bula administrativa: “Para a solicitação do uso emergencial é esperado que sejam apresentados minimamente os dados descritos do guia sobre os requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária…” Ainda tirou da sacola um prazo novo: depois de receber a papelada final, vai precisar de 60 dias para ruminá-la.
A loucura federal deixou sem sentido a escalada de fortes adjetivos com que cidadãos e críticos se referem ao governo Bolsonaro. Demência. Fascismo. Obscurantismo. Ignorância. Ao se completarem, amanhã, nove meses de devastação e isolamento social, o trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite.
O governo, com seus tanques movidos a ódio, insulta a população, acuada, tentando exercer discretamente seu direito à sobrevivência. E a ataca, de um lado, com a bandeira do Ministério da Saúde, o campeão da morte. De outro, com a bandeira do Ministério da Educação, o vice-campeão. Repartição que se atribui a tarefa de manter sob tensão e risco 53 milhões de estudantes, 2,6 milhões de professores e outros tantos milhões de servidores das escolas. E suas famílias.
Em nove meses de pandemia, o terceiro ministro da Saúde do governo Bolsonaro foi incapaz de negociar para o País uma única dose de vacina. O quarto ministro da Educação foi incapaz de organizar a reabertura de uma única escola. Bolsonaro segue na sua fixação: a campanha eleitoral de 2022. É de reeleição que trata ao se empenhar no domínio do Poder Legislativo. É de reeleição que se ocupa ao providenciar reforma ministerial para ampliar o cofre do Centrão. Sem ilusões: não estaria a vacina sendo usada também na barganha dos interesses eleitorais?