rogério furquim werneck
Rogério Furquim Werneck: Um beco com saída
Salta aos olhos que há um surto na 'demanda' por um candidato de centro viável nas eleições em 2022
Rogério Furquim Werneck / O Globo
Na esteira da frenética mobilização do governo com o projeto da reeleição, o país se viu arrastado para grave crise institucional. Ao angustiante desalento com o provável desfecho da disputa presidencial, soma-se agora crescente apreensão com as tensões políticas e sociais por enfrentar, na longa e tumultuada travessia até o final do mandato de Bolsonaro.
É natural que estejamos assombrados por cenários soturnos. Mas a verdade é que ainda é muito cedo para nos deixarmos levar pelo pessimismo. A esta altura, parece mais frutífero explorar os limites do possível e tentar vislumbrar contornos de cenários mais promissores.
O quadro torna-se mais claro quando se tenta entrever as dificuldades da reeleição. Bolsonaro tem hoje três preocupações básicas. Duas delas perfeitamente legítimas: proteger sua retaguarda no Congresso e recuperar a popularidade perdida.
Sua terceira preocupação — assegurar a possibilidade de não aceitar uma derrota eleitoral — tem-se mostrado completamente tóxica. Não só para o país como para o próprio projeto da reeleição.
Para proteger sua retaguarda no Congresso, o presidente colocou todas as suas fichas no Centrão. Já tinha contratado um seguro básico contra o impeachment, em meados de 2020. Dobrou a aposta, em fevereiro, ao apoiar a eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara. E redobrou-a, agora, ao entregar a “alma do governo” a Ciro Nogueira.
Na fantasia de que poderá recuperar sua popularidade com uma farra fiscal, em 2022, Bolsonaro conta com sólido apoio do Centrão. Seus aliados só têm aplausos para a determinação do Planalto de fazer o que for preciso — whatever it takes — para viabilizar expansões eleitoreiras de gasto público no ano que vem.
Mas nem tudo são flores. Longe disso. Se há algo que não interessa em absoluto à cúpula do Centrão é dar respaldo à aposta de Bolsonaro numa escalada de confrontação que dê margem a um desfecho autoritário.
Nem tanto por convicção democrática, mas pela consciência clara de que o poder do Centrão advém das dificuldades de governabilidade do regime democrático vigente. Numa autocracia, todo esse poder desapareceria como por encanto.
Como Bolsonaro continua a dar sinais claros de que não abandonará a aposta na possibilidade de contestar o desfecho da eleição, as contradições de sua complexa relação com o Centrão deverão se exacerbar.
E tudo indica que tal aposta será tão mais pesada quanto mais convencido estiver o presidente de que não conseguirá ganhar no voto.
Mesmo que Bolsonaro deixe de ser um candidato tóxico, o Centrão ainda poderá ter boas razões para abandoná-lo, caso sua candidatura não tenha perspectiva clara de vitória. Não sendo um agrupamento monolítico, o Centrão poderá abandoná-lo aos poucos, à medida que seus membros reavaliem, à luz de seus desafios regionais específicos, a aliança que mais lhes convém na disputa presidencial.
Não faltará, claro, quem argua que, se a candidatura de Bolsonaro murchar, a vitória de Lula será inevitável. Mas vale a pena examinar outras possibilidades. São mais do que conhecidas as dificuldades envolvidas no surgimento, a tempo, de um candidato de centro com boa chance de ser eleito.
Merece atenção, contudo, o timing da percepção, a cada dia mais generalizada, de que Bolsonaro não é uma alternativa aceitável a Lula. E que, ademais, corre alto risco de ser por ele derrotado.
Seria bem pior se isso só ficasse óbvio em meados de 2022. Mas a escalada precoce de confrontação das instituições por Bolsonaro vem deixando isso mais do que claro desde já, bem mais cedo do que se temia. O que talvez crie, no campo fértil da ampla aliança que vem sendo formada para conter Bolsonaro, ambiente político favorável ao surgimento, a tempo, de um candidato de centro com chance de ser eleito.
Salta aos olhos que há um surto na “demanda” por um candidato de centro viável. O mínimo que se pode dizer é que a probabilidade de que tal candidatura desponte parece agora bem mais alta do que se imaginava há poucos meses.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/economia/um-beco-com-saida-25162809
Rogério Furquim Werneck: Tensão política e reformas
Não falta quem nutra a fantasia de que, nos próximos meses, antes da completa mobilização de Brasília com as eleições de 2022, ainda haverá uma janela de tranquilidade política que permitirá engajamento efetivo do Congresso no avanço do programa de reformas. O mais provável, contudo, é que o paralisante clima de alta tensão política que hoje se vê no País perdure por muitos meses mais.
Com base em longo histórico de CPIs criadas com grande estardalhaço e que acabaram dando em nada, vem sendo arguido, agora, que a recém-instalada CPI da Pandemia pode perfeitamente se revelar um completo fiasco. Mas a verdade é que as peculiaridades dessa CPI tornam pouco crível o prognóstico de que, mais uma vez, a montanha acabará por parir um rato.
É preciso ter em conta que nesse momento dramático da evolução da pandemia e de indignação generalizada, com as proporções da devastação e a lentidão com que avança a vacinação, o objeto do inquérito permanecerá sendo uma questão crucial, de fácil entendimento, na qual a grande maioria da população terá grande interesse.
É bom também ter em mente que, tendo se permitido desmandos de toda ordem no enfrentamento da pandemia, o governo já não consegue esconder seu alarme com a instalação da CPI e com os danos políticos que dela poderão advir. E que, ao se deixar levar por reações completamente destrambelhadas, vem garantindo à CPI uma caixa de ressonância de enorme potência que, a mídia, por si só, jamais conseguiria replicar.
Contando com não mais que quatro senadores governistas, entre os 11 membros da Comissão Parlamentar de Inquérito, o Planalto não teve melhor ideia do que conseguir que um juiz federal de primeira instância concedesse grotesca liminar, determinando ao Senado que não permitisse que o senador Renan Calheiros fosse “eleito” relator da CPI, quando, de fato, a escolha do relator não é feita por eleição, mas pelo presidente da Comissão.
Ao ver a liminar solenemente ignorada, o senador Flávio Bolsonaro voltou suas baterias contra o presidente do Senado, acusando-o de irresponsabilidade e “ingratidão”, por ter acatado a decisão do Supremo que determinava a criação da CPI e desacatado a do juiz de primeira instância que impedia a “eleição” do relator.
Na situação em que está, não será com hostilização ostensiva do presidente do Senado e do relator da CPI que o Planalto conseguirá conter os danos políticos que a comissão de inquérito poderá lhe trazer.
Entre as reações desastradas à instalação da CPI, merece também destaque a impensada divulgação, pela “sala de guerra” montada no Planalto, de longa lista de nada menos que 23 flancos distintos pelos quais a postura do governo durante a pandemia poderia vir a sofrer censura na CPI.
Com justa razão, a lista foi logo vista no Senado como um roteiro de confissões de culpa no qual a comissão de inquérito poderia se basear, de início, para organizar o trabalho que tem pela frente.
Tudo indica que, ao longo dos próximos meses, a relação entre o Planalto e o Congresso estará dominada pelos atritos advindos da CPI. A composição da Comissão deixou mais do que claro o caráter flagrantemente minoritário do apoio parlamentar efetivo com que conta o governo.
Tendo isso em mente, alguém acredita mesmo que, a 17 meses das eleições de 2022, o Planalto terá condições de conduzir com um mínimo de sucesso a aprovação de reformas econômicas complexas no Congresso?
É dessa perspectiva que se deve avaliar a pretensão do presidente da Câmara, Arthur Lira, de retomar o esforço de aprovação, ainda que fatiada, da reforma tributária. Entre as muitas razões para ceticismo, não se pode deixar de mencionar que esta é uma agenda sobre a qual o governo tem mantido posições especialmente confusas.
É difícil que, logo agora, com o Ministério da Economia fragilizado, e já privado da colaboração da competente Vanessa Canado, o governo consiga se livrar das suas confusões e dar coerência a uma discussão séria sobre reforma tributária no Congresso.
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/economia/tensao-politica-reformas-24995416
Rogério Furquim Werneck: Jair, Guedes e Lira
Não falta agora quem queira se convencer que, com sua nova escalação, o governo passará a funcionar como um relógio suíço. E a verdade é que nem mesmo se sabe para que lado girará o relógio. Para vislumbrar com mais clareza divergências que terão de ser enfrentadas, é preciso perceber que Guedes, o Centrão e Bolsonaro acalentam visões muito distintas do que será possível extrair de 2021.
Há 12 meses, Guedes esperava que, na esteira da reforma da Previdência, 2020 fosse o ano do aprofundamento da consolidação fiscal, em que seriam aprovadas as três PECs que o governo submetera ao Congresso no final de 2019. É bem sabido que nada disso aconteceu. E, pior, entregue ao negacionismo, diante da eclosão da pandemia, o governo acabou levado de roldão por pressões políticas em favor da adoção de medidas de amenização dos desdobramentos socioeconômicos da disseminação da covid-19. E, tendo em vista a pressa e a improvisação com que foram concebidas, as medidas afinal aprovadas acabaram tendo impacto primário de mais de 8% do PIB nas contas do governo central, no ano passado.
O esforço de consolidação fiscal que agora se faz necessário afigura-se incomparavelmente mais difícil do que parecia em fevereiro do ano passado. E é mais que natural, portanto, que o ministro da Economia acalente a esperança de transformar 2021 num ano de vigorosa retomada do esforço de consolidação fiscal que teve de ser abandonado em 2020.
No final do ano passado, Guedes contentou-se em ressaltar que a não prorrogação do auxílio emergencial havia sido um sinal importante de compromisso do governo com a responsabilidade fiscal. Comemoração um tanto precipitada. O recrudescimento da pandemia, as novas cepas do vírus e o desalento com o avanço da campanha de vacinação, em um quadro de desemprego ainda muito elevado e perspectiva de recuperação mais lenta da economia, vêm dando força redobrada às pressões políticas em favor da restauração do auxílio emergencial.
O ministro já se viu obrigado a recuar para posição mais conciliatória. Declara-se, agora, até disposto a conceder mais três ou quatro meses de auxílio emergencial se, em contrapartida, o Congresso lhe der condições de levar adiante o esforço de ajuste fiscal que se faz necessário. Quer vincular a concessão de novo auxílio à aprovação de gatilhos de contração de gastos que seriam a disparados na medida do agravamento da situação fiscal.
Tendo afinal se apossado da presidência da Câmara, com apoio ostensivo do Planalto, o que espera o Centrão de 2021? Que uso pretende dar ao temível poder de barganha com que agora poderá contar nas suas relações com o governo?
O agrupamento parece, de fato, um saco de gatos. A argamassa que lhe dá coesão é a visão comum, que seus integrantes compartilham, do que constitui a essência da atividade política: um processo de infindável extração de benesses do Estado para atendimento de interesses especiais. A ascensão de Arthur Lira à presidência da Câmara não caiu do céu. Foi fruto de longa campanha no Congresso. Sobram promessas de campanha a pagar.
É improvável que o Centrão não faça pleno uso da posição de força que agora detém para avançar para valer na ordenha do Estado. E se disponha a entregar a Guedes as chaves do acionamento de gatilhos que garantiriam o programa de corte de gastos públicos que o ministro contempla. Não entregará mais do que o estritamente necessário para livrar as autoridades fazendárias e o presidente da República do risco de responsabilização pela expansão fiscal que advirá da restauração do auxílio emergencial. E para manter as contas públicas em seu nível atual de precariedade.
Não será um desfecho que desagradará a Bolsonaro. Tendo solapado o avanço de todos os esforços mais sérios de ajuste fiscal no ano passado, o presidente tem outros planos para o Centrão. Proteção contra o impeachment e, na medida do possível, avanço da sua velha pauta conservadora no Congresso. Restaurado o auxílio emergencial, é o que, por ora, o mobiliza.
Rogério Furquim Werneck: Em câmera lenta
Presidente já não esconde entusiasmo com expansão do gasto público
A divulgação, pelo IBGE, dos dados mais recentes de evolução do nível de atividade impôs um choque de realidade que nos ajuda a perceber, com a devida nitidez, as reais proporções da crise que o país enfrenta.
O que agora se sabe é que o PIB já tinha sofrido queda de 2,5% no primeiro trimestre deste ano, quando os desdobramentos econômicos da pandemia mal começavam a se fazer sentir. E que, no segundo trimestre, sofreu contração adicional de nada menos que 9,7%.
Já extenuado por longa e profunda recessão, com queda de 8% no PIB, entre 2014 e 2016, e por três anos de crescimento medíocre, entre 2017 e 2019, o país se vê, agora, às voltas com nova e vertiginosa queda do nível de atividade. O que se estima é que, mesmo que o movimento recessivo seja atenuado no segundo semestre, como se espera, o recuo do PIB, em 2020, possa ser da ordem de 5%.
Constatação tão desalentadora dá um fecho melancólico ao período de 120 anos para os quais se tem dados minimamente aceitáveis sobre a evolução do PIB real no Brasil. E, por isso mesmo, ganha realce se percebida de uma perspectiva de longo prazo.
Uma periodização muito simples, que meramente decomponha essas 12 décadas em três períodos de 40 anos, já se revela altamente elucidativa. A taxa anual média de crescimento do PIB foi de cerca de 4%, entre 1901 e 1940. E de mais de 7%, entre 1941 e 1980. Mas de não mais que 2%, entre 1981 e 2020. Salta aos olhos que, nas últimas quatro décadas, o dinamismo da economia foi perdido. Simplesmente desapareceu.
Os dados dos últimos dez anos são especialmente desanimadores. Se a recessão de 2020 for, de fato, da ordem de 5%, a taxa anual média de crescimento real do PIB, no período 2011-2020, ficará próxima de zero. Ou seja, a economia voltará a ter este ano o PIB que tinha em 2010. E, tendo em conta o crescimento demográfico, o PIB por habitante de 2020 deverá ser mais de 8% menor que o de 2010. Uma boa medida das proporções trágicas da perda de dinamismo da economia na última década.
Ao contemplar as razões para tamanho fiasco, não há como deixar de lembrar que a conta do descarrilamento da economia, na esteira do descalabro fiscal do governo Dilma Rousseff, continua em aberto. A estratégia de superação da crise de confiança, causada por descontrole tão escancarado das contas públicas, baseou-se na assunção de um compromisso, inscrito na Constituição, de estrito respeito à rígida limitação à expansão do gasto público.
A presunção era que, só assim, seria possível dar credibilidade ao argumento de que o esforço requerido de mudança do regime fiscal não precisaria ser feito de imediato. Que poderia ser viabilizado de forma paulatina, desde que houvesse persistência no avanço das reformas fiscais que se faziam necessárias.
Mas a verdade é que, passados 20 meses do governo Bolsonaro, o compromisso com a preservação do teto de gastos vem sendo rapidamente erodido. O presidente já não esconde seu entusiasmo com as possibilidades eleitorais da expansão do gasto público. Vem dando claro alento às ideias da ala desenvolvimentista do governo. E não disfarça seu fascínio com a possibilidade de turbinar o Bolsa Família e transformá-lo num novo programa — Renda Brasil —, que possa substituir com sucesso o auxílio emergencial, quando for suspenso, no final do ano.
Por enquanto, o governo vem tentando dissimular as divergências. Diante do impasse, na disputa entre o Ministério da Economia e o Planalto, vem se refugiando na indefinição. Adia recorrentemente a apresentação de propostas de reforma prometidas ou opta, como no caso da reforma administrativa, por uma proposta desdentada, que, ao poupar os atuais servidores, deixa de ter impacto sobre as contas públicas no horizonte relevante.
Mas não há como alimentar ilusões. A batalha mais importante que vem sendo silenciosamente travada em Brasília é a que se dá em torno da preservação do teto de gastos. E o que se teme é o que o Ministério da Economia esteja sendo derrotado aos poucos. Em câmera lenta.
Rogério Furquim Werneck: Brasil e Uruguai
Não há espaço para autoengano. No combate à pandemia, nosso país está levando um baile dos uruguaios
Dia 16 de julho, os uruguaios comemorarão 70 anos de sua lendária vitória sobre o Brasil na final da Copa de 1950, perante 199 mil torcedores que abarrotavam o recém-inaugurado Maracanã. Nas décadas seguintes, o Brasil encantaria o mundo com seu futebol, sagrando-se tricampeão mundial, em 1970, e penta, em 2002. Para nós brasileiros, contudo, não importa de que idade, o Maracanazo de 1950 continuou entravado na garganta. Uma amargura mal resolvida que, depois de tantos anos, teima em nos assombrar cada vez que, mesmo como franca favorita, a seleção brasileira enfrenta a uruguaia. Coisas do futebol.
Mas os uruguaios têm agora outra razão incomparavelmente mais importante para comemorar: seu desempenho espetacular no macabro torneio mundial de combate à pandemia. Num momento em que o Brasil já acumula mais de 55 mil mortes decorrentes da Covid-19, o Uruguai registra não mais que 26. Isso mesmo, 26 mortes.
Há que ter em conta, claro, que o Brasil, com 211,7 milhões de habitantes, tem uma população 60 vezes maior que seu vizinho de 3,5 milhões de habitantes. O razoável, portanto, é que a letalidade da Covid-19 nos dois países seja recalculada por milhão de habitantes. No Brasil, a pandemia já trouxe 259,8 mortes por milhão de habitantes. No Uruguai, 7,4 mortes.
A comparação é acachapante. Com base nessa métrica, o desempenho do Brasil no combate à pandemia mostra-se mais de 35 vezes pior do que o do Uruguai. É bom notar que não se trata de comparação com Nova Zelândia, Austrália, Cingapura ou Japão. E, sim, com outro país sul-americano, limítrofe, com o qual temos tanto em comum.
Não faltará quem alegue que, sendo o Uruguai um país pequeno, menos desigual, com população mais educada, melhores condições de saneamento básico e um sistema de saúde mais eficaz, não é surpreendente que venha tendo mais sucesso no combate à pandemia.
Tudo isso, claro, pode e deve ser levado em conta. E talvez pudesse explicar que o desempenho do Brasil fosse, digamos, dez vezes pior. Mas o que os dados mostram, vale repetir, é que nossa performance foi, por enquanto, mais de 35 vezes pior.
Não há espaço para autoengano. No combate à pandemia, o Brasil está levando um baile do Uruguai. A comparação deixa exposta a extensão da trágica lambança que estamos aprontando. E, também, a extraordinária competência com que os uruguaios souberam se mobilizar para combater a Covid-19.
Tal como no Brasil, o Uruguai vem padecendo de inegável polarização política. Mais civilizada do que a que se vê por aqui, mas, ainda assim, acirrada. No segundo turno da eleição presidencial do final do ano passado, Luis Lacalle Pou, à frente de uma coalizão de centro direita, ganhou com 50,8% dos votos válidos, contra 49,2% do candidato de centro esquerda.
Mal empossado em 1º de março, com um discurso de conciliação nacional, o novo presidente se viu às voltas com a chegada da pandemia ao Uruguai. Mas a polarização política não impediu que, extraindo lições corretas dos erros e acertos de países que já haviam sido colhidos pela pandemia, os uruguaios articulassem um combate concertado e extremamente eficaz à Covid-19.
Em contraste com o negacionismo sarcástico e eleitoreiro de um presidente entregue ao obscurantismo sanitário, em Brasília, o que se viu em Montevidéu foi um governo respaldado por assessoria científica de excelente nível e firmemente empenhado em liderar o país no combate à pandemia, com entrevistas coletivas diárias na televisão, em que se revezavam ministros e o próprio presidente da República.
Sem recurso a medidas compulsórias de distanciamento social, o novo presidente soube apelar para o espírito cívico dos uruguaios para conseguir que o país aderisse em massa a longo esforço voluntário de confinamento.
Rogério Furquim Werneck: Limites do senso de missão
Militares vêm sendo arrastados para constrangedor comprometimento com os descaminhos do governo
Engolfada pelo turbilhão da pandemia, da recessão e da crise política, a nação assiste, estarrecida, à escalada de desatinos que continua a marcar a forma com que o governo vem lidando com o devastador alastramento da Covid-19.
Basta acompanhar o que vem ocorrendo em outros países, inclusive vizinhos, para perceber quão desastrosos foram os equívocos por aqui cometidos nessa frente de batalha. E é preciso ter em conta que, ao amplificar as proporções da pandemia e alongar sua fase mais crítica, o governo vem condenando o país a enfrentar uma recessão cada vez mais profunda e um quadro fiscal que se torna a cada dia mais alarmante.
Tendo apostado no discurso irresponsável de desdém pela pandemia e na fantasia de poder empurrar o ônus político da recessão para governadores e prefeitos, o presidente parece ter-se dado conta, afinal, de quão impensada se revelou sua aposta. E já não esconde sua crescente apreensão com o desgaste político que o avanço da pandemia vem impondo ao governo.
Aflito com a torrente de más notícias, não ocorreu ao Planalto melhor ideia do que passar a maquiar os dados de disseminação da Covid-19, acompanhados a cada dia, com crescente interesse, pela opinião pública. E é espantoso que tenha encontrado no Ministério da Saúde quem se prestasse a levar tal desatino adiante.
Tendo já se defrontado com dois médicos que se recusaram a contemporizar com seus desmandos, o presidente preferiu manter como ministro interino da Saúde o oficial-general de intendência que vem tripulando altos cargos do ministério com dezenas de militares.
Será lamentável se, no combate à pandemia, militares continuarem a ser mobilizados para preservar as linhas de suprimento da longa marcha de insensatez que vem sendo promovida pelo governo Bolsonaro, e permitir que o país se embrenhe ainda mais no terreno da irracionalidade.
O desatino, já sustado pelo STF, enseja uma discussão mais ampla sobre a forma como, no Brasil, militares encaram o papel que lhes cabe quando nomeados para altos cargos públicos civis no governo federal. Há boas razões para crer que, em geral, percebem suas nomeações como missões a eles atribuídas pelo presidente da República, seu superior hierárquico máximo, como comandante em chefe das Forças Armadas.
O problema é que isso os deixa não só em posição desconfortável para se opor a encaminhamentos inadequados de certas questões, como resistentes a pedir demissão. E, portanto, mais vulneráveis a manipulações do presidente. Não é por outra razão que militares de todas as patentes, do Ministério da Saúde ao Palácio do Planalto, vêm sendo progressivamente arrastados para constrangedor comprometimento com os descaminhos do governo Bolsonaro.
Não faltará quem alegue que não há o que fazer a respeito. Que a percepção do cargo público civil como uma missão da qual não se pode desvencilhar é intrínseca aos militares. Não é uma alegação convincente. No próprio governo Bolsonaro, já houve vários militares cujas reações não se enquadraram nesse padrão. Resistiram ao que deles foi exigido e acabaram saindo do governo.
É bom também ter em conta o que vem ocorrendo nos EUA, num governo tão caro ao Planalto. Ao longo do mandato de Donald Trump, houve muitos casos de militares que se recusaram a compactuar com os desígnios do presidente. E que acabaram se demitindo ou sendo exonerados. Ou vindo a público para se retratar, como fez agora, com grande repercussão, o general Mark Milley, no mais alto comando militar dos EUA.
Pobre do país cujo presidente não teme que ministros e ocupantes de altos cargos públicos se demitam. No caso do governo Bolsonaro, é mais do que sabido que, na área econômica, as coisas só puderam ser mantidas sob relativo controle porque o presidente sempre temeu que um abuso maior de sua parte pudesse levar à demissão do ministro da Economia. Por fantasioso que seja, vale indagar: como teria sido este governo se, desde o início, Bolsonaro estivesse tomado do mesmo temor em relação aos demais ministros?
*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
Rogério Furquim Werneck: O desafio da ação coletiva
A política de distanciamento social só vai ter sucesso com apoio maciço da população
O coronavírus vem pondo à prova a capacidade de ação coletiva eficaz nos países afetados. Os que souberam se antecipar no combate à pandemia, como Japão, Taiwan e Coreia do Sul, têm mostrado desempenho superior ao da China e da Itália, onde a epidemia tem sido bem mais devastadora.
Quando a China, afinal, se deu conta da gravidade da crise e anunciou medidas drásticas de estrito confinamento de 60 milhões de pessoas, a reação inicial do resto do mundo foi atribuir medida tão extrema à brutalidade do regime autocrático chinês. O que, de fato, fez soar o alarme foi ter a Itália, semanas depois, adotado medida similar. Mesmo diante das enormes dificuldades de confinar toda a população do país, numa democracia tão complexa, prevaleceu no Parlamento italiano o cálculo político de que a medida era inevitável. Ficou mais do que claro que tanto a Itália quanto a China haviam se dado conta de algo que o resto do mundo ainda não percebera.
A política de distanciamento social vem sendo replicada em boa parte da Europa e nos EUA. O nome do jogo é conseguir atenuar o crescimento exponencial da disseminação do vírus, de forma a que o número de casos graves se mantenha compatível com a limitada capacidade de tratamento adequado disponível no sistema de saúde. Redistribuir no tempo o impacto da pandemia para impedir que o sistema de saúde entre em colapso.
O Brasil tem a vantagem de só agora ter sido atingido pela epidemia. Como late comer, tem muito a aprender com a experiência dos antecessores. Para levar esse jogo adiante com sucesso, será preciso, em primeiro lugar, claro, que o governo, especialmente na área federal, saiba atuar com competência.
Quis o destino ou, quem sabe, um dos deuses da sorte, que, entre tantos ministérios tão mal tripulados, a pasta da Saúde tenha caído em boas mãos. Tem sido uma grata surpresa para o país constatar que o ministro Luiz Henrique Mandetta e sua equipe parecem à altura dos desafios que terão de ser enfrentados. O que, sim, preocupa, e vem sendo motivo de justa e generalizada indignação, é a espantosa leviandade com que o presidente Bolsonaro vem lidando com a questão.
Além de competência do governo, o sucesso na contenção da epidemia deverá exigir que o país se mostre capaz de levar adiante, com eficácia, um gigantesco esforço de ação coletiva. A política de distanciamento social só terá os resultados que dela se espera se puder contar com apoio maciço da população. E, quanto a isso, sobram razões para apreensão.
São bem estudadas, em economia, as dificuldades de ações coletivas em grande escala. Muito fáceis de perceber no caso em pauta. Não há no país quem não queira que a epidemia seja prontamente debelada. Mas cada pessoa mostra disposição distinta de incorrer nos custos que dela serão requeridos para que isso ocorra. Há quem queira deixar a outros o ônus do distanciamento. Quem prefira pautar seu comportamento pela taxa de mortalidade de pessoas da sua faixa etária específica. E, ainda, quem considere proibitivos os custos em que teria de incorrer para participar desse esforço coletivo. Tudo isso conspira contra a adesão maciça da população, condição necessária para que a epidemia seja debelada, objetivo comum de todos.
Há fatores óbvios a ter em conta, para entender como diferentes países podem lidar de forma distinta com o desafio de ação coletiva envolvido do combate à epidemia: o nível de coesão social, a equidade na distribuição de renda, as virtudes cívicas da sociedade e o grau de discernimento dos seus cidadãos.
Salta aos olhos que estamos fadados a ter mais dificuldades que a Itália. É fundamental que, em tempo hábil, saibamos compensar nossas deficiências em cada um desses fatores, com campanhas maciças de esclarecimento dos menos informados, mitigação dos custos em que terão de incorrer os segmentos mais desfavorecidos da população e, se não for sonhar demais, articulação de apoio suprapartidário inequívoco às medidas que se fazem necessárias à contenção da epidemia.
Rogério Furquim Werneck: Mudar o Brasil em 15 semanas
Não existe uma base parlamentar governista que possa dar celeridade à aprovação dos projetos
Aleluia! O governo afinal se deu conta de quão pouco tempo lhe resta para aprovar o complexo programa de reformas que pretende extrair do Congresso, neste problemático ano de eleições municipais. No início desta semana, ao tentar atrair o apoio de movimentos de rua à aprovação das reformas pendentes, numa reunião em Brasília, o ministro Paulo Guedes soou o alarme com certa grandiloquência: “Temos só 15 semanas para mudar o Brasil”.
É o que falta para o recesso parlamentar de julho. O governo bem sabe que, quando retomarem os trabalhos em agosto, deputados e senadores já estarão com a cabeça virada, mobilizados com as campanhas eleitorais que terão de enfrentar nos municípios.
Mesmo que as relações do governo com o Congresso fossem impecavelmente harmônicas e o governo contasse com o apoio irrestrito de ampla base parlamentar, o cronograma apresentado pelo ministro, para tramitação em 15 semanas dos muitos projetos contemplados, já pareceria pouco factível. Menos factível ainda parece quando se leva em conta a tumultuada relação que o Planalto continua a manter com o Congresso e, pior, a completa inexistência de base parlamentar governista que possa dar celeridade à aprovação dos projetos.
Mais curto ainda se afigura o prazo de 15 semanas, quando se tem em mente que alguns dos principais projetos que o governo pretende ver aprovados —como a reforma administrativa e a reforma tributária — nem mesmo foram submetidos ao Congresso.
O caso da reforma tributária é emblemático. É bem sabido que, nessa questão, o governo manteve-se, desde o início, na contramão do Congresso, onde já tramitavam, na Câmara e no Senado, projetos ambiciosos de racionalização da tributação do valor adicionado no país. Era na desoneração da folha de pagamentos que Paulo Guedes queria centrar o esforço de reforma. Convicto de que isso teria enorme impacto sobre o emprego, o ministro preconizava a recriação de um tributo sobre pagamentos, similar à extinta CPMF, que pudesse gerar receita suficiente para que encargos patronais sobre a folha deixassem de ser cobrados.
Durante boa parte de 2019, enquanto a equipe econômica e o Congresso se empenhavam pela aprovação da reforma da Previdência, persistiu essa completa incongruência entre os reordenamentos do sistema tributário contemplados pelo governo e pelo Congresso.
No início de setembro do ano passado, contudo, a irredutível resistência do presidente Bolsonaro à recriação de qualquer tributo similar à CPMF acabou redundando na demissão de Marcos Cintra da Secretaria da Receita Federal. Enterrado o projeto que Paulo Guedes tinha em mente, o Ministério da Economia passou a se mostrar mais propenso a se integrar ao esforço de reforma tributária que vinha sendo desenvolvido no Congresso. Era o que parecia.
Já em outubro, a mídia cobrava do governo a explicitação da nova proposta de reforma que submeteria ao Congresso. A ideia, de início, era que o governo apresentaria um projeto detalhado de racionalização do PIS/Cofins. Não antes, esclareceu depois o Ministério da Economia, de o Congresso conseguir conciliar as Propostas de Emenda Constitucional relativas à reforma tributária que vinham tramitando na Câmara e no Senado. A última promessa, agora, é a de que o governo submeteria ao Congresso, “até abril”, uma proposta integrada ao esforço de racionalização da tributação do valor adicionado que já vem tendo lugar no Legislativo.
Notícias recentes, contudo, dão conta de que não será tão simples. Lobistas de segmentos importantes do setor de serviços, inconformados com a redistribuição de carga tributária que tal racionalização acarretaria, vêm tentando, de forma bastante ostensiva, desestabilizar o avanço desse esforço de reforma e ressuscitar a ideia de desoneração da folha de pagamentos com a recriação de um tributo análogo à CPMF.
Estará tudo isso contemplado no cronograma com que o governo alega trabalhar, a 15 semanas do recesso de meio de ano do Congresso?
Rogério Furquim Werneck: Uma estratégia mais realista
Já não há qualquer esperança de que o governo possa montar uma coalizão governista eficaz no Congresso
Já há muitos meses, o governo tem mostrado alarmante despreocupação com a exiguidade de tempo com que se debate a condução da política econômica. Fevereiro se foi. E a agenda de reformas, postergada para este ano de eleições municipais, pouco ou nada avançou, num momento em que a recuperação da economia se mostra bem menos convincente do que se esperava. E em que se dissemina o temor de que o círculo virtuoso que parecia ter ganho força no final do ano passado tenha perdido fôlego.
Já não há qualquer esperança de que o governo possa montar uma coalizão governista eficaz no Congresso. O presidente insiste em se mover na direção oposta. O avanço da militarização do Planalto — com a nomeação do general Braga Netto para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República — não deixa qualquer dúvida sobre a exacerbação do encastelamento de Bolsonaro.
Não surpreende que boa parte dos analistas esteja convencida de que, para todos os efeitos, o presidencialismo de coalizão desapareceu da cena política brasileira. Há até quem se apresse a assegurar que desapareceu de vez. E, diante do não sistema presidencialista que hoje se tem, não falta quem se agarre à esperança de que, no avanço do pesado programa de reformas, a desalentadora falta de empenho do presidente venha a ser plenamente suprida pelo protagonismo do Congresso. Pode até ser. Mas é inevitável constatar que, nessa esperança, há muito mais torcida do que análise.
Os argumentos que vêm sendo brandidos são frágeis e pouco convincentes. E têm o travo das racionalizações apressadas. Mal comparando, o que vem à mente é a famosa frase que teria sido sussurrada por Galileu, após ter sido obrigado a abjurar a ideia de que a Terra girava em torno do Sol: E pur si muove. (E, no entanto, se move.) Não obstante tudo que acabara de dizer, tinha sólidas evidências de que, de fato, a Terra se movia.
Em contraste, boa parte dos analistas do problemático quadro econômico e político que vive o país vem se comportando como Galileu às avessas. Confrontados com infindáveis dúvidas e indicações em contrário, insistem em sussurrar, sem qualquer fundamentação mais sólida, sua inabalável convicção de que o Congresso voltará a se mover, como em 2019, em novo e inexorável surto de protagonismo reformista.
Mesmo que a deficiência do presidente fosse tão somente falta de empenho no avanço das reformas, já seria muito difícil que tal carência pudesse ser plenamente compensada pelo protagonismo do Congresso. Muito mais difícil se afigura essa compensação, no entanto, quando se leva em conta o incorrigível papel desestabilizador que vem sendo desempenhado por Bolsonaro.
Sem ir mais longe, basta ter em mente o pandemônio político armado pelo presidente ao longo das duas últimas semanas. Assombrado pelos possíveis desdobramentos da morte do miliciano Adriano da Nóbrega em cerco policial na Bahia, o presidente se permitiu desencadear uma crise federativa de proporções inusitadas, que redundou em carta de protesto contra sua postura, subscrita por 20 dos 27 governadores. De Flávio Dino a João Doria.
É fácil perceber como episódios desestabilizadores desse tipo, recorrentemente deflagrados pelo Planalto, têm amplificado em grande medida as dificuldades de mobilização do Congresso com a tramitação das reformas. E nada indica que tais episódios estejam prestes a se tornar menos frequentes ou menos danosos. Muito pelo contrário.
Não há como ter ilusões. Sem empenho decisivo do Poder Executivo, o avanço do complexo programa de reformas que o país tem pela frente ficará seriamente comprometido. Pode até ser que, mesmo em condições tão adversas, uma parte restrita das reformas em pauta venha a ser aprovada pelo Congresso. Mas se o jogo possível é esse, há que se adotar estratégia mais realista. É fundamental que os presidentes da Câmara e do Senado saibam exercer sua seletividade e se concentrem nas reformas cruciais cuja aprovação seja factível. Desde já. Não há tempo a perder.
Rogério Furquim Werneck: Se o Planalto não atrapalhar
Precariedade da articulação do governo com o Congresso limita sua capacidade de assegurar a aprovação das medidas fiscais
As perspectivas da economia brasileira parecem, hoje, bem mais auspiciosas do que em janeiro do ano passado. Inflação sob estrito controle permitiu que o Banco Central, afinal, conduzisse a economia brasileira à fabulosa terra incognita das taxas reais de juros efetivamente baixas. A recuperação mais rápida do nível de atividade parece estar a caminho. Nada espetacular, mas o suficiente para que a taxa de crescimento do PIB em 2020 seja o dobro da observada em 2019.
A consolidação fiscal tornou-se mais crível, na esteira da aprovação da reforma da Previdência e das propostas de medidas complementares requeridas para manter o teto de gastos em vigor. A combinação de taxas de juros baixas, crescimento mais rápido e redução do déficit primário vem tornando a dinâmica do endividamento público bem menos adversa do que parecia.
Mas a melhora do quadro fiscal tem de ser entendida com percepção clara das qualificações pertinentes. Não deve dar lugar a ilusões infundadas. O jogo ainda está longe de estar ganho. Boa parte do esforço de ajuste fiscal que se faz necessário ainda está por ser feito.
Não foi uma decisão sábia dispersar, em três Propostas de Emendas à Constituição (PECs), as medidas complementares de ajuste fiscal contempladas pela equipe econômica. A tramitação de três PECs simultâneas, em ano de eleições municipais, já parece bem mais do que o precário esquema de articulação do governo com o Congresso dará conta de entregar. Mas há ainda muito mais em jogo no Congresso, na batalha pela preservação do teto de gastos.
O agravamento da crise fiscal dos governos subnacionais tem dado lugar a pressões políticas cada vez maiores por formas variadas de resgate federal. Chegou a conta do equívoco de ter deixado estados e municípios de fora da reforma da Previdência. A chamada PEC Paralela, que supostamente sanaria parte desse equívoco, sofreu deformações sérias no Senado que teriam de ser devidamente recompostas na Câmara. Descrentes do que ainda poderá vir do Congresso, vários estados, cada um a seu modo, vêm tentando aprovar reformas de seus sistemas previdenciários, sob cerrada oposição.
O governo terá ainda de zelar pela tramitação de outros projetos de sua iniciativa, como o controvertido programa de fomento ao emprego e a proposta de reforma tributária que prometeu submeter ao Legislativo em fevereiro. E terá também novos desatinos fiscais a enfrentar. A precariedade da articulação do governo com o Congresso não só limita sua capacidade de assegurar a aprovação das medidas fiscais propostas, mas também lhe deixa sem capacidade de bloqueio de iniciativas parlamentares irresponsáveis, na contramão do ajuste fiscal necessário.
Mas, mesmo tendo em conta todas essas dificuldades, é inegável que o delicado círculo virtuoso que vem ganhando força na economia, desde 2016, afigura-se agora bem mais promissor. Com a aceleração do crescimento que, enfim, parece estar a caminho, o governo está prestes a se livrar de um ponto crucial de tensão na condução da política econômica, que era a impaciência com a demora da retomada.
A questão, agora, é em que medida será possível atenuar o principal ponto de tensão remanescente, que é o desgaste político decorrente do aperto fiscal progressivo, envolvido na compressão sem fim das despesas discricionárias. No melhor cenário, o sucesso do esforço de ajuste fiscal em 2020 abriria espaço para que o teto de gastos pudesse ser mantido em vigor por um período prolongado. No pior, a manutenção da contenção requerida de despesas ficaria politicamente inviável, e o governo seria forçado a promover um temerário “aperfeiçoamento” do teto de gastos. Num cenário intermediário, o governo, com algum desgaste, pelo menos conseguiria manter crível o respeito ao teto ao longo do atual mandato presidencial.
Tudo isso, claro, na presunção, um tanto heroica, de que possam ser mantidas sob relativo controle as forças desestabilizadoras que continuam a emanar do Planalto e do hipertrofiado lado aloprado do governo.
Rogério Furquim Werneck: Tensões em jogo
É preciso resistir à tentação de afrouxar o teto de gastos para aliviar o incômodo do aperto fiscal progressivo
Nos próximos meses, a condução da política econômica estará submetida a crescente pressão política, de dentro e de fora do governo. Há dois pontos de tensão em que o risco de fadiga deve ser monitorado com atenção: a impaciência com a demora de uma recuperação mais vigorosa da economia e o desgaste decorrente do aperto fiscal progressivo, que vem estreitando de forma muito rápida o espaço para despesas discricionárias no Orçamento.
Para não ter de submeter as convicções do presidente a um teste de esforço mais exigente do que a prudência recomendaria, o Ministério da Economia terá de se desdobrar para tentar aliviar, na medida do possível, as tensões provenientes desses dois pontos. O que estará em jogo é a sustentabilidade política do programa econômico em curso.
Dos dois pontos de tensão, o de alívio menos problemático parece ser o que decorre da impaciência com a demora de uma recuperação mais vigorosa da economia. Mesmo com toda a desestabilização política que tem emanado no Planalto, alguma aceleração do crescimento da economia parece estar a caminho.
Bem mais difícil será aliviar o desgaste imposto pelo aperto fiscal progressivo que, em decorrência do teto de gastos e da expansão ainda descontrolada de despesas obrigatórias, vem exigindo contração cada vez mais drástica de gastos discricionários. O desafio, claro, é conseguir viabilizar tal alívio sem comprometer o esforço de ajuste fiscal que hoje se faz necessário.
É preciso resistir à tentação de afrouxar o teto de gastos para aliviar o incômodo do aperto fiscal progressivo. Não há como ter ilusões a respeito: o teto de gastos é o esteio do círculo virtuoso que, aos poucos, parece estar ganhando força com a aprovação da reforma da Previdência, apesar da permanência de um quadro fiscal em que as contas públicas ainda estão longe de parecer sustentáveis.
Por sorte, o Ministério da Economia não dá mostras de ter qualquer dúvida quanto a isso. O que vem contemplando, para tentar aliviar e reverter o aperto fiscal progressivo em curso, é algo mais do que defensável: um amplo esforço de flexibilização dos orçamentos da União, dos estados e dos municípios, com medidas ousadas de desvinculação, desindexação e desobrigação.
Seria desavisado, contudo, subestimar a força dos interesses contrariados que terão de ser enfrentados para que haja avanços importantes nessas três frentes. É improvável que, a esta altura, a batalha política que se fará necessária possa ser levada a bom termo com base numa retórica abstrata de defesa da flexibilização dos orçamentos, por mais corretos que possam estar os argumentos. Para que seu esforço de convencimento tenha chance razoável de sucesso, o governo terá de saber dar concretude e conotação positiva a suas propostas.
Não bastará arguir que se tornou crucial sustar a contração progressiva de gastos discricionários e abrir espaço para um aumento substancial de despesas de investimento no Orçamento da União. O embate no Congresso teria de ser travado em torno de uma proposta muito mais concreta e promissora: liberação de recursos orçamentários para viabilizar um programa específico de investimento, cuja prioridade comande amplo e inequívoco consenso no país. Quanto maior o montante liberado, mais ousado seria o programa.
O governo poderia, por exemplo, comprometer-se a usar a maior parte da ampliação do espaço para despesas de investimento, propiciada pelo esforço de desvinculação, desindexação e desobrigação, para alavancar a expansão da infraestrutura de saneamento básico em áreas especialmente carentes.
Se a proposta tivesse esse grau de concretude, o embate no Congresso tenderia a assumir uma conformação muito mais conveniente ao avanço da flexibilização.
Os custos de preservação dos interesses encastelados na rigidez do Orçamento teriam de ser contrapostos, às claras, aos benefícios de um programa de investimento inequivocamente prioritário, com amplo apoio parlamentar. Seria outro jogo.
Rogério Furquim Werneck: E depois da Previdência?
A agenda pendente de reformas terá de ser conciliada com o enfrentamento de desafios mais imediatos
O governo terá de fazer bom uso da preciosa ampliação de espaço de manobra para condução da política econômica propiciada pela aprovação da reforma da Previdência. É mais do que natural que a equipe econômica esteja tentada a aproveitar o embalo para fazer avançar, tão rapidamente quanto possível, a pauta de reformas pendentes. Sobram, contudo, boas razões para desaconselhar a aposta de todas as fichas nessa possibilidade.
Em primeiro lugar, a agenda pendente de reformas terá de ser conciliada com o enfrentamento de desafios mais imediatos, advindos da recuperação decepcionante da economia. Com a persistência de um crescimento medíocre, da ordem de 0,8% em 2019, e de 12,8 milhões de pessoas desempregadas, a equipe econômica enfrentará, nos próximos meses, pressões cada vez maiores, de dentro e de fora do governo, para mostrar resultados.
Em segundo lugar, as duas reformas que o governo agora contempla são extremamente complexas e encerram enorme potencial de conflito com Congresso. Seria um erro insistir em tratar a reforma tributária e o que vem sendo chamado de Novo Pacto Federativo como precondições para a retomada do crescimento. O mais prudente, a esta altura, é passar a defender as duas reformas como esforços de ampliação das possibilidades de crescimento econômico do país. E evitar transformá-las num desastroso campo de batalha com o Congresso.
Não cabe dúvida de que o país terá de continuar a encarar a pesada agenda de reconstrução fiscal que tem pela frente. Mas a aprovação da reforma da Previdência dará credibilidade à ideia de que há um esforço sério de ajuste fiscal em andamento. E o aumento de receitas extraordinárias provenientes do pré-sal, do BNDES e da aceleração do programa de privatização poderá dar mais tempo ao governo para articular novas medidas de ajuste fiscal.
É importante que, em paralelo à agenda pendente de reformas, o governo saiba dar o alento necessário ao delicado círculo virtuoso de expectativas favoráveis deflagrado pela aprovação da reforma da Previdência na Câmara. Sem excesso de ativismo e — Bolsonaro permitindo — sem choques desestabilizadores.
É bem verdade que o excesso de capacidade que se observa em boa parte da economia dá lugar a muita incerteza sobre em que momento os investimentos serão, afinal, destravados. Mas é perfeitamente possível apressar a retomada de investimentos que prescindem da recuperação prévia da economia, em setores promissores importantes que já vêm contando com o apoio de políticas públicas bem concebidas, como óleo e gás, infraestrutura e agronegócios.
Quanto às reformas pendentes, as dificuldades vêm sendo agravadas em grande medida por propostas equivocadas do próprio governo. Basta ter em mente o que vem ocorrendo com o debate sobre a reforma tributária. Como há nada menos do que cinco propostas distintas em consideração, é fundamental evitar que o entrechoque desses projetos no Congresso converta a discussão da reforma numa desastrosa pororoca parlamentar. Em meio ao pandemônio, a última novidade é que os governadores estão agora fascinados com a estapafúrdia ideia de permitir que os estados voltem a taxar ostensivamente as exportações.
O governo terá de reconhecer que sua proposta —equivocada como está, e sem respaldo da sociedade —não terá passagem no Congresso. Diante de tal profusão de projetos e da ferrenha disputa por protagonismo, entre o Executivo, a Câmara e o Senado, é fundamental que o governo tenha condições de pôr ordem no debate e fazer valer o seu peso para tentar negociar e aprovar um projeto viável. O que, em princípio, exigiria o que o Planalto vem se recusando a fazer: montar uma ampla coalizão governista baseada no compartilhamento de poder com o Congresso.
Não há como fugir à constatação mais geral de que a ambição das reformas pendentes terá de ser compatível com as possibilidades, necessariamente mais acanhadas, de um governo que se recusa a arregimentar e manter uma coalizão sólida no Congresso.