Rogério F. Werneck

Rogério F. Werneck: Compromisso com o erro

Governo agride a China enquanto o Brasil se tornou crucialmente dependente de insumos chineses para a fabricação de vacinas

Entre as incontáveis deficiências do governo, uma lhe tem sido fatal. Faltam-lhe mecanismos eficazes de correção de erros. Bolsonaro é capaz de persistir meses a fio em linhas de ação equivocadas, ao arrepio dos seus melhores interesses, sem que isso deflagre as correções requeridas no seu processo decisório.

O Brasil levou 38 dias para reconhecer a vitória de Joe Biden, sem que houvesse, em Brasília, uma boa alma capaz de demover o presidente de tamanho despropósito. E, mesmo assim, o Planalto não se deu por satisfeito. Há não mais que 15 dias, ao comentar a brutal invasão do Capitólio, Bolsonaro se permitiu voltar a insinuar que a eleição presidencial nos EUA fora fraudada.

Pouco depois de Trump ter sido banido do Twitter, do Facebook e do Instagram, Bolsonaro saiu do seu caminho para aconselhar seus milhões de seguidores a passar a usar aplicativo alternativo, mais tolerante com a proliferação de fake news e a pregação da violência, em linha com o que já vinham disseminando as piores hostes trumpistas.

Tudo indica que o governo continua completamente despreparado para a guinada que Joe Biden promoverá nas relações dos EUA com o resto do mundo. E que será atropelado pela súbita restauração do compromisso norte-americano com o multilateralismo, sobretudo pelo realinhamento da postura dos EUA quanto ao aquecimento global e ao controle ambiental de forma geral.

Bolsonaro continua aferrado aos delírios de seu ministro das Relações Exteriores. E certo de que poderá enfrentar o que está por vir com Ricardo Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente. Ainda não há sinais críveis de que, nessas áreas, o Planalto esteja contemplando correção significativa de rumo.

Os segmentos mais lúcidos do agronegócio brasileiro têm agora razões redobradas para se alarmar com o discurso destrambelhado do governo sobre a preservação da Amazônia. Ao desgaste crescente que já vinha sendo observado com países da União Europeia, deverão se somar desavenças com o governo Biden, advindas de pressões da ala ambientalista do Partido Democrata, desta vez, alegremente reforçadas pelo velho lobby agrícola norte-americano. O que está em jogo é nada menos que o promissor projeto de expansão desimpedida das exportações agropecuárias brasileiras.

Já às voltas com um contencioso potencial preocupante com os EUA e a União Europeia, o governo continua propenso a abrir novos pontos de atrito com a China, país que já absorve um terço das nossas exportações e dá sinais cada vez mais claros de alinhamento com as preocupações ambientalistas do mundo desenvolvido. Excessos verbais do entorno familiar do presidente Bolsonaro têm sido fonte recorrente de agressões gratuitas à China. Tudo isso num momento em que o Brasil se tornou crucialmente dependente de insumos chineses para a fabricação de vacinas.

É um desvario a mais a marcar não só a política externa, como a obstinada inconsequência com que o governo tem conduzido o combate à pandemia e, ao que parece, conduzirá a campanha de vacinação.

O surgimento de vacinas contra a covid-19 abriu a Bolsonaro a oportunidade de compensar, ao menos em parte, os desatinos que, por longos meses, perpetrou no enfrentamento da pandemia. Era o momento de tentar dar a volta por cima e criar condições para que o governo federal assumisse a liderança que dele se esperava na coordenação do colossal esforço requerido para levar adiante uma campanha eficaz de vacinação, num país mais de 200 milhões de habitantes com as dimensões territoriais do Brasil.

Mais uma vez, contudo, faltou a Bolsonaro a estatura requerida para promover a mudança de rumo requerida. Como já vinha fazendo no combate à pandemia, o presidente preferiu insistir no discurso negacionista e obscurantista e fazer da vacinação mais um palco para a pequena política, marcada por atritos tolos com os governos subnacionais. Tampouco há, nessa área, sinais de correção de erros. Bolsonaro continua apegado ao patético pau-mandado a quem, há oito meses, entregou o Ministério da Saúde.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de economia da PUC-Rio


Rogério F. Werneck: Entalo fiscal

Governo finge que quer preservar o teto de gastos

Neste final de ano, a política fiscal do governo está fadada a ter um encontro marcado com a verdade. Já não há mais espaço para autoengano sobre suas reais possibilidades. Ao cabo de meses e meses de ilusionismo, falta de foco e escancarada procrastinação do anúncio das medidas de ajuste nas contas públicas que se fazem necessárias, o Planalto se descobre, agora, com não mais que três semanas e meia para escapar do entalo fiscal em que se meteu.

O governo nem mesmo conseguiu que o Congresso aprovasse a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). E a apreciação do Orçamento ainda inspira cuidados. Vem sendo tumultuada pela disputa precoce pelo controle das mesas do Congresso, instigada pelo próprio Planalto. Vai-se entrar em dezembro sem que Comissão Mista de Orçamento tenha sido sequer instaurada. É espantoso.

Salta aos olhos que, prestes a completar a primeira metade de seu mandato, Bolsonaro já não tem mais qualquer intenção de levar adiante um esforço sério de ajuste fiscal no que lhe resta de mandato. Não é isso que preconiza a ala desenvolvimentista do governo, nem o que acalenta a bancada que lhe dá apoio no Centrão nem, tampouco, o que defende o círculo mais próximo de conselheiros do presidente.

O que se viu até aqui foi um jogo de aparências, em que o governo finge que quer preservar o teto de gastos. De um lado, porque continua a temer que qualquer discurso mais ostensivo contra o teto possa desencadear reações implacáveis dos mercados. E, de outro, porque continua assombrado pelo temor de dar margem a um processo de impeachment, caso se disponha a violar abertamente uma regra fiscal claramente inscrita na Constituição.

Sobram razões para a preservação do teto de gastos, especialmente num governo que já não esconde sua falta de compromisso com o ajuste fiscal. E é improvável que as forças do Congresso que já se articulam em torno de projetos políticos de enfrentamento do bolsonarismo, em 2022, estejam dispostas a ajudar o governo a se desvencilhar da camisa de força constitucional que vem tolhendo, com eficácia, seus excessos fiscais.

É bem sabido que, encantado com o ganho de popularidade que lhe trouxe o auxílio emergencial, Bolsonaro continua fixado na ideia de poder implantar um programa similar no início do ano que vem, quando o pagamento do auxílio tiver sido suspenso, ao fim do período de vigência do estado de calamidade.

Dada a dificuldade de acomodar um programa dessas dimensões sob o teto de gastos, a “solução” fácil que, agora, vem sendo contemplada é a simples prorrogação do estado de calamidade que, supostamente (há quem discorde), permitiria estender o pagamento do auxílio por alguns meses mais.

Como tal “solução” só seria minimamente defensável se de fato estivesse havendo claro recrudescimento da pandemia no país, não falta agora, no governo, quem esteja pronto a interpretar qualquer oscilação para cima nos números nacionais de casos ou mortes como evidência inequívoca do avanço de uma “segunda onda” pandêmica no Brasil. Quem te viu, quem te vê. O negacionismo que pautou a postura do governo na primeira onda da pandemia cedeu lugar, agora, a um alarmismo oportunista acerca da suposta segunda onda. “Não tem como não prorrogar” (o auxílio emergencial) é a palavra de ordem que ganha força no Centrão.

Quanto a medidas de ajuste fiscal de mais fôlego, é difícil discernir, em meio ao discurso caótico do governo — seja no Planalto, seja no Ministério da Economia —, algo que se assemelhe, ainda que remotamente, a um plano claro de jogo.

Findo o segundo turno das eleições municipais, a ser disputado em 57 cidades no domingo, o país testemunhará o despreparo com que o governo se verá obrigado a enfrentar, afinal, no apagar das luzes do ano legislativo, as alarmantes indefinições fiscais que, há meses, vem se permitindo manter.


Rogério F. Werneck: Bolsonaro sem Trump

Planalto sabe que a eleição de Biden tornará descaso com a Amazônia mais custoso

Ainda é cedo para vislumbrar com nitidez todos os complexos desdobramentos da vitória de Joe Biden. Mas, mundo afora, governos de nações democráticas festejam, aliviados, a perspectiva de voltar a contar, em Washington, com um presidente que possa restaurar o papel crucial dos EUA na cooperação multilateral que se faz necessária para a boa governança do planeta. Do combate à pandemia ao aquecimento global. Dos esforços concertados de recuperação da economia mundial ao controle eficaz da proliferação nuclear.

Em Brasília, contudo, o governo não esconde sua contrariedade. Não bastasse já se ter permitido indecoroso alinhamento explícito ao candidato republicano durante a campanha presidencial nos EUA, o Planalto fechou-se em copas. Impôs ao governo silêncio fechado sobre o resultado da eleição. E proibiu que órgãos governamentais divulguem projeções econômicas que levem em conta a vitória do candidato democrata. Até o início da tarde de ontem, Bolsonaro ainda não se dignara a reconhecer a vitória de Joe Biden. Mais constrangedor, impossível.

Não há como subestimar as dificuldades que, tudo indica, o Planalto continuará a enfrentar para lidar com o desfecho da eleição americana. É mais do que sabido que, por anos, Bolsonaro viu em Trump o modelo a seguir, copiando-lhe inclusive a forma peculiar com que transformou o dia a dia do seu governo num interminável reality show, focado no acirramento da polarização política.

Ao macaquear Trump, Bolsonaro viu-se, com frequência, mais à vontade para insistir em posições indefensáveis que desavisadamente adotara. Sem ir mais longe, basta ter em conta quão mais difícil lhe teria sido se agarrar ao negacionismo e ao charlatanismo, diante do avassalador avanço da pandemia, se, nesse papel, não se percebesse em fantasioso dueto com Donald Trump.

A criação, por Biden, de uma força-tarefa de combate à Covid-19, que voltará a pautar a política de saúde pública americana por recomendações científicas, prenuncia que a postura obscurantista que Bolsonaro se permitiu adotar no enfrentamento da pandemia está fadada a se tornar cada vez mais isolada e desgastante.

O Planalto bem sabe, também, que a eleição de Biden tornará o desajuizado descaso do governo com a devastação da Amazônia bem mais custoso do que já vem sendo. Ao desgaste que essa postura irresponsável vem trazendo às relações do Brasil com a União Europeia, deverão se somar inevitáveis atritos com os EUA, fomentados por uma aliança tácita — à primeira vista estranha, por isso mesmo temível — da ala ambientalista do Partido Democrata com o poderoso lobby agrícola americano.

O que está em jogo é o promissor projeto de expansão das exportações brasileiras de produtos agropecuários. E, como já perceberam os segmentos mais lúcidos do agronegócio no país, para que possa fazer face às pressões conjuntas de Estados Unidos e Europa por políticas mais consequentes de preservação da Amazônia, o governo terá de dar demonstrações inequívocas de que sua postura mudou. E de que, na condução da política ambiental, já não haverá mais espaço para figuras como Ricardo Salles.

Com o Itamaraty sob a égide das pregações caricatas de Ernesto Araújo contra instituições multilaterais, o governo encontra-se completamente desequipado para lidar com a revitalização do multilateralismo que a eleição de Joe Biden promete. A defesa eficaz dos interesses brasileiros nas negociações que deverão ter lugar nessas instituições depende de um esforço abrangente de retripulação do Ministério das Relações Exteriores, que Bolsonaro dificilmente estará disposto a patrocinar.

Sem Trump, Bolsonaro se verá privado de uma caixa de ressonância importante para o discurso inconsequente e amalucado que se permitiu manter em ampla gama de questões. Terá menos espaço para demagogia e populismo. E estará bem menos à vontade para dar vazão a sua irrefreável fanfarronice mitômana. Mas não se iludam. Mesmo sem Trump, Bolsonaro não deixará de ser o que sempre foi.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Rogério F. Werneck: Guedes e o terceiro cenário da CPMF e o Congresso

Aprovação da contribuição seria derrota da ala parlamentar mais lúcida

Com sua obsessiva fixação pela recriação da CPMF, o ministro da Economia não só vem tumultuando o esforço de reforma tributária do Congresso, como arrisca dar força decisiva à coalizão contrária à preservação do teto de gastos. É fácil entender por quê.

Nunca é demais relembrar o que há de profundamente errado com a CPMF. Em 2007, último ano em que foi cobrada, com alíquota de 0,38%, a extinta contribuição permitiu que o governo arrecadasse nada menos do que R$ 36,5 bilhões. A divisão do valor da arrecadação pela alíquota de 0,0038 revela o assombroso valor da base fiscal sobre a qual incidia a CPMF: R$ 9,6 trilhões. Cifra mais de três vezes e meia o PIB de 2007!

A mágica decorria da incidência em cascata da CPMF, que dava lugar a uma base fiscal fictícia, sem contrapartida econômica real, em contraste com o que ocorre com formas mais civilizadas de tributação, que incidem sobre renda, consumo, valor adicionado, folha de pagamento e riqueza. Uma alíquota “diminuta” sobre uma base gigantesca e artificial. O sonho da tributação populista.

Mas Paulo Guedes continua obcecado. Quer porque quer que o Brasil se junte ao grupo exclusivo de países nada exemplares que impõem esse tipo de tributo: Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, Honduras, República Dominicana, Venezuela, Hungria, México, Paquistão e Sri Lanka.

No afã de quebrar resistências à recriação da CPMF, o ministro deixou de lado sua proposta mais simples de compensar, com a receita do novo tributo, a perda de arrecadação que adviria da redução de encargos sobre a folha. A CPMF passou a ser vendida agora como um tributo de 1.001 utilidades que, além da desoneração da folha, permitiria bancar novos dispêndios, como o programa Renda Brasil e até mesmo, assegurou Guedes, “reduzir, cinco, seis, sete, oito, dez impostos”.

O ministro não percebeu que está brincando com fogo. Sua tentativa de quebrar as resistências do Congresso à criação da CPMF pode acabar tendo três desfechos distintos. No primeiro cenário, tais resistências se mostrariam insuperáveis. No segundo, o ministro teria pleno sucesso. Convenceria o Congresso não só a recriar a CPMF, como a dar à receita do novo tributo as exatas destinações que Guedes tem em mente.

Mas há ainda um terceiro cenário, altamente provável, que parece ter escapado a ele. É bem possível que o Congresso, afinal, se encante com as múltiplas possibilidades desse tributo de tão “fácil arrecadação” que é a CPMF. E tão encantado fique, que prefira tomar para si a tarefa de alocar como bem entender a “folga fiscal” que deverá advir da receita do novo tributo. Quando se trata de distribuir benesses, o Congresso tende a dispensar tutela. Prefere suas próprias ideias.

A aprovação da CPMF representaria séria derrota da ala parlamentar mais lúcida, que vem tentando vertebrar a agenda de reforma fiscal. E deixaria a Câmara e o Senado muito mais propensos a compactuar com uma condução irresponsável da política fiscal, num quadro em que, é bom lembrar, o governo não tem nenhum poder de bloqueio no Congresso.

A preservação do teto tem sido ajudada pela percepção de que não há disponibilidade de recursos fiscais para bancar uma expansão de gastos. Com a CPMF, tudo pareceria mais fácil. Bastaria uma “pequena” elevação de alíquota para abrir amplo espaço para gastos adicionais.

Dentro do próprio governo, ganham corpo as pressões contra o teto de gastos. Ministros influentes se batem pela expansão de investimentos públicos. Generais querem que projetos militares sejam excluídos do teto. E o próprio presidente, já em campanha aberta, parece fascinado com a possibilidade de turbinar o Bolsa Família e se transformar em novo Lula, no Nordeste.

A menos que o plano de jogo tenha passado a ser reeleger Bolsonaro a qualquer custo, com apoio da pior parte do centrão, o ministro deveria se preocupar com quão desastroso poderá lhe ser o terceiro cenário, caso ainda pretenda retomar a agenda fiscal anterior à pandemia.