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Roberto Macedo: Prossegue a tragédia do PIB brasileiro
Quanto a políticas públicas em contrário, confesso meu pessimismo
O relatório do IBGE sobre o produto interno bruto (PIB) do quarto trimestre e do ano de 2020, divulgado ontem, é mais um amontoado de más notícias e outro retrato da tragédia por que passa o PIB brasileiro. Este caiu 4,1% em 2020, principalmente como resultado do impacto da covid-19.
Logo que a covid surgiu, houve previsões de queda próximas de 9% A política econômica governamental moveu-se em sentido contrário, como no auxílio emergencial e no crédito, mas uma queda de 4,1%, mesmo supondo que poderia ter sido pior, é por si mesma muito alta. E lamentável. Aliás, o relatório aponta que foi a pior taxa desde que a série dados foi iniciada em... 1996 (!). E mais: o PIB per capita, ou por habitante, caiu ainda mais, 4,8%, pois a população segue aumentando.
Em retrospecto, em 2020 as taxas trimestrais, relativamente ao trimestre imediatamente anterior, foram de -2,1% no primeiro, -9,2% no segundo, 7,7% no terceiro, e 3,2% no quarto. Esse movimento de descida e subida costuma ser chamado de recuperação em V, mas ele veio com sua haste direita sem voltar à mesma altura da haste esquerda. Assim, fazendo essa altura no último trimestre de 2019 igual a 100, em 2020 o PIB caiu para 89 no ponto mais baixo do V e alcançou 98,8% no alto de sua haste direita com as taxas positivas verificadas nos dois últimos trimestres do ano. Também se pode dizer que o PIB passou por uma recessão no primeiro semestre de 2020, que foi interrompida no segundo, mas sem voltar ao valor que tinha no final de 2019. Além disso, por conta desse V a média do PIB em 2020 ficou bem abaixo da média de 2019, o que levou a essa queda de 4,1%.
É importante colocar essa taxa no contexto mais amplo da tragédia do PIB brasileiro. Voltando à década passada, desde 2015 o PIB entrou num buraco do qual não saiu até hoje. No detalhe o relatório mostra isso, mas não há referência ao assunto na notícia do documento. Um dos gráficos do relatório apresenta um índice do PIB trimestral entre o primeiro trimestre de 1996 e o quarto de 2020, e percebe-se que o valor mais alto ficou lá atrás, no primeiro trimestre de... 2014! Ou seja, sete anos depois ainda não voltamos a ele. Em 2015 começa um movimento lembrando um U bem rebaixado e estendido, mas cuja haste direita não retornou ao mesmo nível marcado pela esquerda em sua ponta. Isso define uma depressão, algo mais longo do que as duas recessões ocorridas durante o mesmo movimento, a de 2015-2016 e a da covid-19.
Venho insistindo em apontar essa depressão ainda em curso, mas o noticiário, a classe política e mesmo vários economistas parecem ignorá-la, ou negligenciar a busca do seu enfrentamento. Aliás, influenciados pelo que se passa nos países desenvolvidos, muitos economistas brasileiros focados na economia como um todo concentram sua atenção na chamada macroeconomia, que foca principalmente em movimentos cíclicos ou de curto prazo. Questões de longo prazo são negligenciadas. Além da referida depressão, merece destaque o fato de que desde a década de 1980 a economia brasileira está em estagnação ou cresce abaixo do seu potencial, e muito pouco se fala disso.
Com dados do PIB desde 2014, incluídos os de 2020, estimei que ele precisaria crescer um total perto de 7% a partir de 2021 para voltar ao seu valor de 2014, o que tomaria cerca de três anos aumentando perto de 2,4% ao ano, e com muitas incertezas pelo caminho. Assim, para ao final voltar ao PIB de 2014, tomaria nove anos! Ou seja, quase uma década para voltar a um PIB que o Brasil já havia alcançado antes!
Passo agora a uma visão setorial do último ano. Um gráfico do relatório abrange 12 subsetores da economia, oito mostraram desempenho negativo em 2020, com destaque para o subsetor de outras atividades de serviços e o de transporte, comunicação e correio. O primeiro teve a maior queda, de 12,1%, e o segundo caiu 9,2%, resultados condizentes com o maior impacto da crise da covid-19 nesses subsetores. Entre os que cresceram, destacaram-se o de atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados (4%) e o de atividades imobiliárias exceto construção (2,5%). Este último teve queda de 7,8%, a terceira entre as maiores.
Enfim, esse é um quadro trágico do péssimo estado da economia brasileira. Quanto a políticas públicas em sentido contrário, confesso meu pessimismo com o cenário à frente. 2021 pode até mostrar um crescimento do PIB próximo de 3%, mas principalmente pelo fato de que 2020 teve média muito baixa, bastando a economia não cair mais este ano para mostrar algo até acima dos 2,4% citados. Bolsonaro não se interessa pelo assunto e até mesmo atrapalha com suas propostas, como ao interferir em estatais, gerar incertezas e desencorajar investidores. E a covid-19 voltou até com mais força, e sem um forte retrocesso também agravará a situação da economia. Mas, nesse mau contexto, pessoalmente hoje me sinto melhor, pois vou sair para tomar a vacina com que sonhava.
*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP. É Consultor Econômico e de Ensino Superior
Roberto Macedo: Sistema político passou ao incentivado presidencialismo de cooptação
Parlamentares ficam soltíssimos para defender interesses pessoais e grupais
Há o presidencialismo de coalização, descrito como uma combinação do presidencialismo com o apoio de uma coalizão multipartidária no Legislativo. Segundo o cientista político Sérgio Abranches, que criou esse conceito, “... é um requisito imprescindível da governabilidade no modelo brasileiro. Nem todos os regimes presidenciais multipartidários dependem tanto de uma coalizão majoritária. No Brasil, as coalizões não são eventuais, são imperativas. Nenhum presidente governou sem o apoio e o respeito de uma coalizão. É um traço permanente de nossas versões do presidencialismo de coalizão”.
E há o presidencialismo de cooptação. Nele o presidente busca o apoio de parlamentares por meio do toma lá verbas e cargos e o dá cá apoio parlamentar. Outra diferença relativamente ao de coalização é que essa troca se dá com parlamentares específicos, ou um grupos deles, e pode ser feita mesmo contrariando a orientação das lideranças e dos programas partidários.
A recente eleição para a presidência da Câmara e a do Senado foi bem mais na linha da cooptação do que da coalizão. Meu artigo anterior neste espaço destacou a reportagem deste jornal Por eleição, Planalto libera R$ 3 bi a parlamentares, publicada em 29 de janeiro. Nela, o que chamou a atenção foi a grande dimensão desse valor, a coincidência dos entendimentos com o período pré-eleitoral nas duas Casas e o amplo alcance de negociações individuais. O ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, que tentou articular uma candidatura em oposição à apoiada pelo Executivo, até reclamou quanto à cooptação praticada.
O senador Tasso Jereissati, em entrevista ao jornal O Globo digital no domingo passado, afirmou: “... esse período agora é diferente, (...) todos os partidos, todos, foram triturados (...) pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. (...) Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. (...) o processo (...) nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual”.
A cooptação individualizada envolveu grupos de tamanho relevante no contexto das organizações partidárias, mas também houve dentro delas grupos contrários à cooptação, com o que vieram rachas partidários marcados por posições opostas na eleição. O mais evidente foi no DEM, de Rodrigo Maia, onde alcançou o grupo dele em contraposição ao do ex-prefeito de Salvador Antônio Carlos Magalhães Neto. Os dois até trocaram impropérios em declarações à imprensa.
Outro racha muito citado foi no PSDB. Aí a liderança do governador João Doria alcançava deputados que votaram em Baleia Rossi, o candidato articulado por Rodrigo Maia. Mas houve também quem optasse por Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro. O deputado tucano Aécio Neves, uma liderança em evidente declínio nacional, ainda assim foi apontado por Doria como um dos mobilizadores desse apoio, novamente com troca de insultos entre as partes.
Esses dois partidos terão enorme trabalho para recuperar sua identidade programática, e arregimentar seus membros em torno dela, se quiserem ter uma influência de peso nas eleições de 2022. Tudo isso tem como pano de fundo um sistema partidário e eleitoral que cria incentivos para os parlamentares buscarem as cooptações. Não havendo o voto distrital, eles não são cobrados pelos eleitores ao longo de seus mandatos, nem tomam por si a iniciativa de relatar o que fazem, ficando assim soltíssimos para defender interesses pessoais e de grupos que os pressionam. Esse comportamento é também aético, pois se desvia do que, como representantes do povo, e não de si mesmos ou desses grupos, deveria marcar as atitudes parlamentares, a defesa do bem comum.
Temas como a retomada do crescimento econômico, o enorme tamanho e a disfuncionalidade do Estado brasileiro, as carências educacionais, sanitárias, ambientais e tecnológicas, a imagem do Brasil no plano internacional, onde está bem atrás dos países que mais avançam, nada disso parece despertar seu interesse e o empenho em ações corretivas. Salvo exceções cada vez mais excepcionais, o que os move mesmo é o interesse em renovar seus mandatos, para o que focam nas distribuições de benesses, sem ponderar seus custos, e no apoio político inquestionado a quem tem o poder de financiar seus projetos eleitorais.
No contexto desse poder, tem papel importante a enorme quantidade de cargos governamentais a oferecer e a liberação de verbas de interesse exclusivo dos parlamentares e de seus apoiadores, as quais constituem financiamento público indireto de campanhas eleitorais, em prejuízo de candidatos não incumbentes.
Mas a Constituição não diz que todos são iguais perante a lei? Ora, no Brasil é costume dizer que leis são como vacinas: umas pegam, outras não. Assim, o momento atual, o das vacinas previamente testadas, deveria servir para o País buscar vacinas legais eficazes contra nossos muitos males político-institucionais.
*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP. É consultor econômico e de ensino superior
Roberto Macedo: Ao escolher o presidente, Câmara ignorou seus representados
Os congressistas deveriam explicar aos eleitores o seu voto e a razão
A Carta Magna de 1988 diz no seu artigo 1.º, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A julgar por isso, a recente eleição de Arthur Lira (PP-AL) para presidente da Câmara seria inconstitucional, tamanha a distância que a maioria dos seus deputados manteve do povo.
O que se viu foi um processo de vassalagem a um candidato que não teria vencido se não fosse o apoio recebido do presidente Jair Bolsonaro, até mesmo sob forma que anteriormente abominava, o toma lá de verbas e cargos, e o dá cá de votos, vistos como o melhor para lhe evitar incômodos, como um processo de impeachment e comissões parlamentares de inquérito. E também para facilitar medidas para aumentar sua popularidade e suas chances de reeleição em 2022. O anterior presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, não se curvava diante de Bolsonaro, já Lira deve responder com gratidão.
Quanto a isso, merece destaque a reportagem Por eleição, Planalto libera R$3 bi a parlamentares, publicada por este jornal no último dia 29. Lamentavelmente, negociações de liberação de recursos para parlamentares em troca de apoio político no Congresso é prática antiga e comum em Brasília, mas o que chamou a atenção agora foi a dimensão do valor e a coincidência com o período pré-eleitoral nas duas Casas do Congresso.
Quanto a essas negociações, o jornalista Carlos Brickmann fez esta comparação: “Para evitar o constrangimento de levar uma proposta indecente a um parlamentar decente”, o que procurasse o governo ou fosse chamado para negociar deveria portar um código de barras para mostrar o valor de seu interesse, e acelerar as negociações.
Nos Estados Unidos, propostas legislativas feitas por congressistas em favor de seus redutos eleitorais são chamadas de earmarks, como aquelas plaquinhas colocadas em orelhas de bovinos. Lá são combatidas por uma instituição chamada CAGW (Cidadãos contra o Desperdício Governamental), como não cabíveis num orçamento federal que deve ser voltado para o bem comum, e não para interesses específicos e locais. Aqui caberia iniciativa similar, pois tais emendas parlamentares e outras verbas que recebem violam outro dispositivo constitucional, o de que todos são iguais perante a lei, pois no processo eleitoral os candidatos já incumbentes são beneficiados por essas dotações relativamente aos candidatos sem mandato. Assim, elas constituem indiretamente um financiamento público de campanhas, que distorce a competição entre candidatos.
Voltando à representação dos eleitores, a brasileira é extremamente frágil. Vivi em países com voto distrital, em que o eleito passa a representar um distrito, e não apenas aqueles que o elegeram, e tem o hábito de prestar contas aos moradores distritais ao longo de seu mandato, sem o que poria em risco a renovação dele. Houvesse isso aqui, os congressistas deveriam estar agora explicando em quem votaram na segunda-feira passada e a razão. Muitos enfrentariam problemas, pois a avaliação de Bolsonaro vem caindo e está perto de 30% a proporção dos que veem sua gestão como ótima ou boa. Aliás, a representatividade dos parlamentares eleitos no Brasil é tão baixa que é como se eles fossem parlamentares cometas, pois só aparecem diante do eleitor a cada quatro anos, em busca de votos.
No Senado, o resultado pareceu-me diferente do da Câmara e não tão ruim. Foi eleito o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) por maior margem relativa de votos, tendo como adversária apenas uma concorrente simbólica, Simone Tebet (MDB-MS), que disputou individualmente. Seu próprio partido deixou de apoiá-la. Bem articulado, Pacheco teve apoio até do PT.
Li na Agência Brasil reportagem sobre seu discurso de posse e destaco estes trechos: “Defendeu a independência da Casa, o combate à corrupção, a geração de empregos, o combate à pandemia, a estabilidade econômica e a preservação do meio ambiente. (...) (O Senado deve) atuar com vistas no trinômio saúde pública, desenvolvimento social e crescimento econômico, com o objetivo de preservar vidas humanas, socorrer os mais vulneráveis, gerar emprego e renda. (...) também citou as reformas, sobretudo a tributária. (...) votações de reformas que dividem opiniões (...) deverão ser enfrentadas com urgência, mas sem atropelo”. Em tese, tudo muito bonito.
Pacheco chegou ao Congresso em 2014, como deputado federal, e no seu primeiro mandato alcançou a presidência da importante Comissão de Constituição e Justiça, o que demonstra poder de articulação, ratificado pela eleição recente. Seu currículo não levanta tanto as sobrancelhas como o de Arthur Lira, mas tem sido criticado por conflito de interesses entre suas ações políticas e negócios da família.
O que quero mesmo é um Brasil melhor, mas tenho minhas dúvidas quanto à eficácia, nessa direção, dos novos presidentes da Câmara e do Senado, principalmente do primeiro. Certo mesmo é que vou acompanhar de perto o trabalho deles.
*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP.
Roberto Macedo: Forte queda do PIB agrava saúde da economia
Banco Central vai comprar empréstimos hipotecários e debêntures
O produto interno bruto (PIB) do Brasil caiu 1,5% no primeiro trimestre de 2020, relativamente ao último trimestre de 2019. Essa queda veio do impacto da covid-19 na economia, desde a segunda quinzena de março último. Como, em números redondos, cada trimestre tem seis quinzenas, bastou esse impacto em apenas uma, a última, para levar a esse mau resultado do PIB, que deverá ser bem mais forte no trimestre corrente, o segundo, todo ele afetado. Isso é confirmado por indicadores de produção, emprego e desemprego, que já alcançaram o mês de abril e mostraram péssimos resultados.
Tal perspectiva também sustenta previsões correntes de que o PIB poderá chegar no fim do ano a uma queda anual superior a 6%. Na melhor das hipóteses, o início da recuperação só viria no terceiro trimestre, mas dependendo da evolução dos efeitos da covid-19, sujeita a muitas incertezas
Com números próximos de mil mortes por dia, conforme dados em média móvel de sete dias publicados ontem pelo jornal Financial Times, o Brasil e os Estados Unidos são os países que hoje apresentam maior número de falecimentos. Mas esse número não é recorde, pois este se verificou há cerca de um mês, quando os Estados Unidos alcançaram 2 mil mortes por dia. Levando em conta o número de mortes por milhão de habitantes, no Brasil está perto de 5, suplantado de perto por Itália, Suécia e Reino Unido. No passado esse número ficou em torno de 20 na Bélgica e na Espanha. O do Brasil havia se estabilizado nos últimos dez dias, mas ontem houve um pequeno avanço, não se podendo afirmar que o pico da doença já tenha sido atingido. Alcançado ou não, a perspectiva é de que vamos conviver com ela por bastante tempo. Por motivos explicados no meu último artigo neste espaço, nossa capacidade de enfrentá-la é frágil.
Preocupado também com a saúde da economia, de onde vêm os impostos, tomei posição por uma liberação controlada e diferenciada por atividades específicas, por municípios, e com protocolos que contemplem equipamentos e serviços de proteção individual, distâncias mínimas entre pessoas em locais fora de casa, e que elas sejam frequentemente testadas para saber se houve contágio ou não. Vejo que se fala muito de respiradores e UTIs, mas a testagem ainda é muito restrita, e é fundamental para conter a expansão da doença.
Como a economia também adoeceu, ela precisa de remédios. No plano macroeconômico, podem vir de duas áreas: a do orçamento do governo, ou fiscal, e a monetária e creditícia, de competência do Banco Central (BC). A situação fiscal do governo já era grave antes da covid-19 e os gastos orçamentários envolvidos na guerra contra ela tornaram essa situação ainda pior, levando a um forte aumento da dívida. Mas esse aumento precisa ser contido, pois pode levar a um desastre se o mercado financeiro relutar em dar crédito adicional ao governo, ou o fizer a um custo que complique ainda mais a situação fiscal. Isso poderia levar também a uma crise cambial, que geraria inflação, complicando ainda mais a situação.
Como a dívida é medida como proporção do PIB, essa proporção poderá ser aliviada se este cair menos ou iniciar uma recuperação. Como fazer? Em face das enormes dificuldades fiscais, a política monetária precisa ser usada com maior vigor. O governo criou um enorme pacote creditício, algo superior a R$ 1 trilhão, mas de impacto limitado pelos bancos, que não estão muito a fim de expandir crédito em condições de risco ampliado. E, salvo poucas exceções, mantêm a sua velha prática de cobrar spreads que elevam muito o custo para o tomador.
Foi por isso que desde meados do ano passado passei a sugerir a adoção, pelo BC, de uma política de aquisição de títulos privados, como hipotecas imobiliárias, debêntures e créditos do BNDES, para irrigar o sistema creditício com novos recursos para expandir esses financiamentos, num procedimento que crescentemente vem sendo adotado por bancos centrais de vários países, conhecido internacionalmente como quantitative easing, ou QE, e aqui como afrouxamento monetário. Hipotecas imobiliárias, debêntures e créditos do BNDES cobram juros bem mais razoáveis, algo como entre 5% e 10% ao ano. (Atenção, escrevi ao ano!) No Brasil ainda se praticam taxas que alcançam 5% ou mesmo 10% ao mês, até mais.
O BC finalmente optou por esse caminho, mas foi preciso uma emenda constitucional para lhe dar poderes para tanto. Aprovada no início do mês passado, trouxe também complicações para o QE, mas não vi uma atuação do BC no Congresso no sentido de eliminá-las e imaginei que talvez ele soubesse superá-las.
Nessa linha, logo depois veio uma boa notícia, que não vi na imprensa brasileira: foi na edição de 8 de maio do citado jornal, que entrevistou o presidente do BC, Roberto Campos Neto, sobre a adoção do QE no Brasil. Ele afirmou que também iria comprar empréstimos hipotecários e debêntures, mas não disse quando.
É a pergunta que fica.
- Roberto Macedo é economista (Ufmg, Usp e Harvard), professor sênior da Usp e Consultor econômico e de ensino superior
Roberto Macedo: Na economia, mais por fazer. E rapidamente
Cabem afrouxamento monetário e medidas para os trabalhadores informais
O noticiário internacional continua focado no coronavírus e seus impactos. Há muitas notícias de medidas econômicas para amenizá-los e de outras que há tempos já vinham sendo adotadas ou cogitadas contra um esfriamento da economia mundial, agora agravado pela covid-19.
No Brasil segue o debate sobre a crise econômica, a novela das reformas propostas pelo ministro Paulo Guedes e a retomada ou não de um crescimento mais forte, com o não subindo nas apostas também por causa do coronavírus.
O que fazer na economia? Internacionalmente, destacam-se medidas recém-adotadas nos EUA pelo seu banco central, conhecido como Fed. Primeiro, no dia 3 deste mês reduziu a taxa básica de juros, que corresponde à nossa Selic, para um valor entre 1% e 1,25% ao ano, procurando estimular a economia. E no último dia 15, um domingo, também como reação ao impacto econômico do coronavírus, anunciou não só outra redução dessa taxa, para entre zero e 0,25%, como também um quantitative easing (QE), ou afrouxamento monetário
No QE, o Fed adquire títulos da dívida pública em poder no mercado, bem como créditos privados, como os de hipotecas imobiliárias. O QE veio na crise de 2008 e se recomenda quando a taxa básica de juros e a de inflação se tornam zeradas ou próximas disso, e a primeira deixa de estimular a demanda de crédito.
Aqui, em artigos entre julho e setembro de 2019, defendi a adoção do QE no Brasil pelo Banco Central (BC), mas só para créditos de hipotecas imobiliárias, para estimular a construção civil, grande geradora empregos. E para créditos ligados a obras de infraestrutura, como os concedidos ou a conceder pelo BNDES.
Ao argumento de que nem a inflação nem a Selic estão próximas de zero no Brasil para um QE, respondo que na nossa economia ainda é ampla a indexação de preços, tarifas públicas e rendimentos, ou seja, sua correção pela inflação, com o que esta tende a se perpetuar. Se fosse para esperar que ela e a Selic cheguem a zero ou muito próximas disso, um QE não ocorreria, com o que a política monetária perderia a oportunidade de recorrer a um instrumento que se tem revelado útil, como nos EUA e na área do Banco Central Europeu (BCE).
Também propus que fosse liberado um valor significativo de parte dos depósitos compulsórios que os bancos mantêm no BC. Isso foi feito em pequena magnitude no ano passado, mas em 19/2/2020 foi anunciado um valor bem maior, de R$ 135 bilhões, porém sem o direcionamento que propus, como no QE.
Ele se justifica porque nosso sistema bancário é disfuncional e só excepcionalmente dá crédito a juros razoáveis, como para adquirir imóveis. Em geral as taxas que cobra são muito altas para necessidades importantes como as de capital de giro e crédito pessoal. E há casos em que suas taxas são escorchantes, como no cheque especial e no financiamento rotativo dos cartões de crédito.
Ontem o Comitê de Política Monetária do BC deve ter decidido novamente sobre o valor da Selic. Não sei o que virá, mas ele deveria refletir muito acerca do potencial de reduções adicionais sobre a expansão do crédito da economia. Com as características dos bancos já citadas, com uma Selic menor eles tomam recursos a taxas menores, mas em cima desses custos mais baixos põem spreads enormes, que contêm enormemente o estímulo que viria das reduções da Selic. Ademais, como a Selic já está próxima da taxa de inflação, novas reduções poderão afetar a demanda por títulos da dívida pública, dificultando sua rolagem e ampliação.
Também no Brasil, o ministro Guedes anunciou no último dia 16 um pacote de medidas para conter impactos econômicos e sociais do coronavírus. Numa lista neste jornal, contei 13 novas medidas, além de cinco previamente anunciadas. Não tenho espaço para detalhá-las, mas um traço comum é que não são medidas com impacto fiscal relevante, notando-se assim a cautela do ministro no sentido de preservar seu esforço pelo ajuste das contas públicas. Mas ontem soube da notícia de que o governo pediria o aval do Congresso para declarar calamidade pública e gastar mais na área de saúde.
É uma emergência séria e não vejo outra saída. Mas isso não deve ser feito em prejuízo do teto de gastos para as demais despesas. Nem com aumento de impostos. Vi que a Constituição (artigo 167, III), permite operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital se autorizadas via créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Legislativo por maioria absoluta. Cabe ampliar a dívida, não vejo outra saída.
Não vi, contudo, medidas mais voltadas para os trabalhadores do mercado informal, exceto uma ampliação do Bolsa Família, destinada a reduzir em apenas um terço a fila desse benefício. Muitos desses trabalhadores dependem das pessoas que se movimentam pelas ruas, cujo número se vem reduzindo rapidamente, principalmente nas cidades de maior porte. É preciso fazer algo por eles. E rapidamente.
*Economista (UFMG, USP e HARVARD), professor sênior da USP, é Consultor Econômico e de ensino superior
Roberto Macedo: Ampliar ascensão social é menos difícil que desconcentrar renda
Só com o PIB crescendo bem mais voltará a haver condições de ascender socialmente
Continuo a pregar que a situação da economia é ainda pior que a percebida pelo governo, pelos meios de comunicação, pelo tal mercado e pela sociedade em geral. Meu último artigo neste espaço, em 16/1, foi PIB – 2010-2019, a pior de 12 décadas. O texto analisou dados desde 1901 e assim sintetizou a situação atual da economia: teve uma recessão que durou dois anos, embutida numa depressão que já tem cinco anos, e também passa por uma estagnação de quatro décadas.
Hoje relacionarei essa situação com outro enorme problema do País, a desigualdade de sua distribuição de renda, sabidamente enorme, e argumentarei que ampliar a ascensão social é menos difícil do que desconcentrar a renda. Não sou contra essa desconcentração, mas a desigualdade começou com a nossa colonização, com destaque para a escravidão, que vicejou por três séculos, e aliviá-la envolveria imensas dificuldades.
A título de exemplo, entre outras medidas, seria necessária uma profunda reestruturação da estrutura tributária, dando maior peso a impostos sobre a renda e sobre heranças, pois hoje predominam impostos indiretos, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que onera relativamente mais os pobres, ao ter forte incidência sobre o consumo, que absorve maior parcela da renda desse grupo que da dos ricos.
Do lado dos gastos públicos, seria importante cortar privilégios das classes de maior renda, como o ensino gratuito nas universidades públicas. A gratuidade deveria ser apenas para os estudantes de famílias de menor poder aquisitivo. E, além disso, eles receberiam bolsas para matrículas em cursos com dedicação integral, como o de Medicina, pois hoje não têm condições de frequentá-los, dada a necessidade de trabalhar para sustento próprio e de suas famílias. Nas universidades públicas paulistas a distorção é mais grave, pois elas são sustentadas por parcela da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Assim, até mendigos, ao gastarem em bens de consumo as suas esmolas, estão subsidiando estudantes que poderiam pagar por sua educação.
Nossa classe política, contudo, não teve ainda a coragem de corrigir distorções como as apontadas, pois, salvo raras exceções, teme o ônus político dessa correção e danos a seus próprios interesses.
E a ascensão social, o que é e por que seria menos difícil de se concretizar? Ela vem quando surgem mais e melhores oportunidades de trabalho que também alcançam famílias de menor renda. Isso dependeria essencialmente de um crescimento do produto interno bruto (PIB) da ordem de 4% ou 5% ao ano, com abertura de muitas novas empresas, forte expansão das existentes e proliferação de novas frentes de negócios. Mas nas últimas quatro décadas, com o PIB crescendo à medíocre taxa média de 2,4% ao ano, essas condições estiveram ausentes, salvo em curtos “voos de galinha” do PIB. A maior parte das oportunidades de trabalho surgidas foram em ocupações de baixa qualificação, que não ajudam na ascensão social. E há que lembrar os elevados números do desemprego, da informalidade e do desalento na procura de trabalho, que seguem o mau estado da economia inicialmente descrito.
Um especialista em mobilidade social, o professor José Pastore, publicou dois livros sobre o assunto, o último com Nelson V. Silva, em 2000, intitulado Mobilidade Social no Brasil, no qual usam dados de 1996 e de décadas anteriores. Concluíram que a mobilidade social se acelerou nas décadas de 1960 e 1970, cujas taxas médias de crescimento do PIB foram as maiores das 12 décadas que analisei. Em média, 7,5% ao ano. Foi uma época em que muitas pessoas ascenderam na escala social, entre outros aspectos, por deixarem a precariedade do trabalho do campo e se mudarem para as cidades, onde as oportunidades de trabalho eram mais amplas e mais bem remuneradas. Isso lhes abriu novos horizontes, matriculando seus filhos na escola, comprando uma pequena propriedade, etc. Foi um tempo de “mercado comprador” de quem desejava trabalhar, ganhar mais e ascender socialmente.
Pondera José Pastore, em entrevista concedida a este jornal em 5 de janeiro: “Hoje tudo mudou. Para os mais jovens, está difícil chegar à posição que seus pais alcançaram (...). E não há perspectivas de subir a escala social no curto prazo, com raras exceções. Muitos ficam frustrados, desanimados, se sentem inferiores em relação aos pais. Essa percepção cria um ambiente negativo, e faz crescer (...) movimentos populistas que se aproveitam dessa camada social que perdeu a oportunidade de ascender”.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, com as reformas que vem propondo, está correto ao dar prioridade ao equilíbrio orçamentário do setor público. Mas as reformas tomam muito tempo, é preciso acelerá-las, e muito. E há muito mais por fazer. Cabe focar todo o esforço do governo e da sociedade na retomada de um crescimento econômico bem mais forte, para que a ascensão social ocorra com vigor e venha a confiança de que terá continuidade.
*ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), PROFESSOR SÊNIOR DA USP, É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR
Roberto Macedo: Ampliar ascensão social é menos difícil que desconcentrar renda
Só com o PIB crescendo bem mais voltará a haver condições de ascender socialmente
Continuo a pregar que a situação da economia é ainda pior que a percebida pelo governo, pelos meios de comunicação, pelo tal mercado e pela sociedade em geral. Meu último artigo neste espaço, em 16/1, foi PIB – 2010-2019, a pior de 12 décadas. O texto analisou dados desde 1901 e assim sintetizou a situação atual da economia: teve uma recessão que durou dois anos, embutida numa depressão que já tem cinco anos, e também passa por uma estagnação de quatro décadas.
Hoje relacionarei essa situação com outro enorme problema do País, a desigualdade de sua distribuição de renda, sabidamente enorme, e argumentarei que ampliar a ascensão social é menos difícil do que desconcentrar a renda. Não sou contra essa desconcentração, mas a desigualdade começou com a nossa colonização, com destaque para a escravidão, que vicejou por três séculos, e aliviá-la envolveria imensas dificuldades.
A título de exemplo, entre outras medidas, seria necessária uma profunda reestruturação da estrutura tributária, dando maior peso a impostos sobre a renda e sobre heranças, pois hoje predominam impostos indiretos, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que onera relativamente mais os pobres, ao ter forte incidência sobre o consumo, que absorve maior parcela da renda desse grupo que da dos ricos.
Do lado dos gastos públicos, seria importante cortar privilégios das classes de maior renda, como o ensino gratuito nas universidades públicas. A gratuidade deveria ser apenas para os estudantes de famílias de menor poder aquisitivo. E, além disso, eles receberiam bolsas para matrículas em cursos com dedicação integral, como o de Medicina, pois hoje não têm condições de frequentá-los, dada a necessidade de trabalhar para sustento próprio e de suas famílias. Nas universidades públicas paulistas a distorção é mais grave, pois elas são sustentadas por parcela da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Assim, até mendigos, ao gastarem em bens de consumo as suas esmolas, estão subsidiando estudantes que poderiam pagar por sua educação.
Nossa classe política, contudo, não teve ainda a coragem de corrigir distorções como as apontadas, pois, salvo raras exceções, teme o ônus político dessa correção e danos a seus próprios interesses.
E a ascensão social, o que é e por que seria menos difícil de se concretizar? Ela vem quando surgem mais e melhores oportunidades de trabalho que também alcançam famílias de menor renda. Isso dependeria essencialmente de um crescimento do produto interno bruto (PIB) da ordem de 4% ou 5% ao ano, com abertura de muitas novas empresas, forte expansão das existentes e proliferação de novas frentes de negócios. Mas nas últimas quatro décadas, com o PIB crescendo à medíocre taxa média de 2,4% ao ano, essas condições estiveram ausentes, salvo em curtos “voos de galinha” do PIB. A maior parte das oportunidades de trabalho surgidas foram em ocupações de baixa qualificação, que não ajudam na ascensão social. E há que lembrar os elevados números do desemprego, da informalidade e do desalento na procura de trabalho, que seguem o mau estado da economia inicialmente descrito.
Um especialista em mobilidade social, o professor José Pastore, publicou dois livros sobre o assunto, o último com Nelson V. Silva, em 2000, intitulado Mobilidade Social no Brasil, no qual usam dados de 1996 e de décadas anteriores. Concluíram que a mobilidade social se acelerou nas décadas de 1960 e 1970, cujas taxas médias de crescimento do PIB foram as maiores das 12 décadas que analisei. Em média, 7,5% ao ano. Foi uma época em que muitas pessoas ascenderam na escala social, entre outros aspectos, por deixarem a precariedade do trabalho do campo e se mudarem para as cidades, onde as oportunidades de trabalho eram mais amplas e mais bem remuneradas. Isso lhes abriu novos horizontes, matriculando seus filhos na escola, comprando uma pequena propriedade, etc. Foi um tempo de “mercado comprador” de quem desejava trabalhar, ganhar mais e ascender socialmente.
Pondera José Pastore, em entrevista concedida a este jornal em 5 de janeiro: “Hoje tudo mudou. Para os mais jovens, está difícil chegar à posição que seus pais alcançaram (...). E não há perspectivas de subir a escala social no curto prazo, com raras exceções. Muitos ficam frustrados, desanimados, se sentem inferiores em relação aos pais. Essa percepção cria um ambiente negativo, e faz crescer (...) movimentos populistas que se aproveitam dessa camada social que perdeu a oportunidade de ascender”.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, com as reformas que vem propondo, está correto ao dar prioridade ao equilíbrio orçamentário do setor público. Mas as reformas tomam muito tempo, é preciso acelerá-las, e muito. E há muito mais por fazer. Cabe focar todo o esforço do governo e da sociedade na retomada de um crescimento econômico bem mais forte, para que a ascensão social ocorra com vigor e venha a confiança de que terá continuidade.
*Economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP, é Consultor Econômico e de Ensino Superior
Roberto Macedo: Só fiscalizar barragens não resolve
Solução é proibir novas a montante, como a de Brumadinho, e a operação das existentes
Como muita gente, acompanho com grande pesar a tragédia de Brumadinho. E também porque tenho uma ligação afetiva com essa cidade. Quando criança, em Minas Gerais meu tio padre Aderbal foi vigário na localidade. O nome vem da bruma ou neblina que se forma na região e pode ser vista ao amanhecer.
Bem mais recentemente estive em Brumadinho para uma caminhada com amigos no entorno dela, que terminou no Inhotim, amplo espaço que na natureza acomoda importante acervo de arte contemporânea e coleção botânica com espécies raras de vários continentes. Já fui lá duas vezes e numa delas via a bruma.
Nessa caminhada vi uma pequena mineração, mas não a enorme do Córrego do Feijão, onde aconteceu o recente desastre. O noticiário sobre o assunto foi abundante. E continua. Resumo aqui o que aprendi com ele e minha visão sobre a administração de riscos de barragens como essa.
Inicialmente as notícias enfatizaram muito a associação do desastre com falhas de fiscalização da estabilidade das barragens. Depois ficou claro que houve também falha de projeto, pois são permitidas barragens a montante, como nesse caso. Elas são construídas mediante sucessivas camadas desses resíduos, compactadas numa ponta de onde se localizam. E não a jusante desses depósitos, onde em terreno firme e com outros materiais elas teriam maior sustentação. O último vídeo que vi sobre o rompimento foi o mais amplo, mostrou-o desde o início, e vê-se que a lama começou a sair pelo lado de baixo da represa, evidenciando a fragilidade da construção a montante.
Cabe, assim, proibir a construção de barragens desse tipo e desativar as ainda existentes. O presidente da Vale falou de “descomissionar” todas essas barragens, explicando que isso significa prepará-las para que sejam integradas à natureza.
É ver para crer. Por enquanto, essas barragens, da Vale e de outras empresas, estão aí. E mesmo que proibido o seu uso, decorrerá algum tempo até que os riscos sejam eliminados. Assim, é preciso monitorá-las, mas algo mais abrangente que fiscalizações e outros exames periódicos. O noticiário referiu-se a laudos de datas passadas, mas o monitoramento deve ser permanente, em tempo real, com sensores e alarmes que indiquem o seu status, a probabilidade de rompimentos, a antecipação e o alarme de eventuais problemas. Segundo a Folha de S. Paulo de 4/2, tecnologia para isso já existe, mas a Vale se recusou a adotá-la. Sabe-se que havia no local da barragem de Brumadinho uma sirene que deveria ter funcionado quando o desastre começou, mas foi levada pela lama. A mesma reportagem fala de uma combinação de satélites, drones e sensores para o monitoramento em tempo real.
A lição básica de Mariana e desse novo desastre é que riscos foram mal avaliados e mal administrados. Um risco é associado à incerteza quanto a um evento que, se materializado, pode trazer perdas econômicas e humanas. Na sua administração há dois aspectos essenciais: a probabilidade de se manifestarem e a severidade dos danos a que podem levar. Ponderando frequência e severidade, pode-se evitar, reduzir, transferir, compartilhar ou assumir riscos.
Nas barragens a montante, evitar seria proibir novas e desativar as ainda existentes. Isso implicaria transformá-las em terrenos secos ou com pequenos lagos e reflorestar as áreas correspondentes, entre outras formas de reintegrá-las à natureza. Reduzir riscos envolveria medidas como essa do monitoramento em tempo real.
A tradicional fiscalização governamental poderia ajudar, mas não vejo como o governo possa realizá-la de forma ágil e eficaz com os recursos humanos e financeiros de que dispõe. E muito menos em tempo real. Riscos também poderiam ser menores se removida a ocupação de terrenos a jusante que poderiam ser atingidos por seu rompimento. Como foi possível a Vale ter um restaurante e escritório nessa condição, em Brumadinho? Foi mesmo uma irresponsabilidade.
Transferir riscos seria, por exemplo, o caso de passá-los a uma seguradora, mas a julgar pelo desastre de Mariana elas não cobrem a extensão das perdas econômicas, muito menos a de perdas humanas, a preocupação fundamental. O compartilhamento, uma forma de transferência, não sei no que ajudaria se realizado entre seguradoras. Assumir riscos foi o que a Vale essencialmente fez. E merecidamente terá de arcar com os ônus decorrentes.
Políticas públicas quanto a riscos de barragens como a de Brumadinho precisam ponderar, portanto, que empresas responsáveis por elas envolvem o risco de não se comportarem adequadamente, aumentando a probabilidade de o risco se materializar. E de serem ineficazes na reparação dos danos se isso acontecer. O desastre de Mariana mostrou que multas não foram pagas em sua totalidade e ainda há gente reclamando indenizações.
Portanto, a solução é proibir novas barragens a montante e o funcionamento das existentes. Respeitado um período de ajuste, isso não paralisaria a mineração, pois há tecnologias modernas que dispensam o uso de barragens de resíduos, qualquer que seja o seu tipo.
Mas é preciso dar um tempo às mineradoras, sem asfixiá-las financeiramente ou em suas atividades produtivas. A Justiça já bloqueou R$ 11,8 bilhões nas contas da Vale, sem ponderar os riscos de exagerar na necessidade de tantos bilhões. E na terça-feira aquele mesmo jornal anunciou ordem judicial que mandou suspender as operações de oito barragens da Vale em Minas Gerais, incluída a de uma mina que é a maior da empresa no Estado.
Parecem-me decisões tomadas a montante do problema, sem ponderar os riscos a jusante, como o desemprego e os danos à arrecadação tributária de municípios dependentes das atividades de mineração.
*ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR, É PROFESSOR SÊNIOR DA USP