rio de janeiro
Vera Magalhães: Ponte aérea eleitoral
Possível vitória de nomes de centro em São Paulo e no Rio é vista como ensaio para 2022
Há muitos pontos de contato nas corridas eleitorais em São Paulo e no Rio de Janeiro. E eles são importantes variáveis para a montagem das estratégias políticas para 2022. Sim, eu concordo com os cientistas políticos, historiadores e analistas de dados que alertam que as eleições municipais seguem dinâmicas e pautas locais, e não são necessariamente reflexo das eleições nacionais anteriores nem laboratórios para as seguintes.
Mas é impossível analisar alianças e dinâmicas de eleitorado neste ano sem ter como bagagem 2016 e 2018, por diferentes razões. E sim, algumas das decisões de agora terão reflexos para os próximos dois anos.
Hoje, São Paulo e Rio têm rigorosamente a mesma configuração nas pesquisas: candidatos de centro relativamente isolados na liderança (Bruno Covas na capital paulista e Eduardo Paes na fluminense); um candidato do bolsonarismo tentando se credenciar para o segundo turno, mas enfrentando dificuldades, e nomes da esquerda pulverizada disputando entre si e podendo ficar fora da disputa final justamente por essa “canibalização”.
Covas é tucano desde sempre. Vem de uma família política e adotou um discurso de centro e de defesa da política depois da debacle da mesma em 2018. Paes já percorreu todo o abecedário político e é um dos políticos mais pragmáticos de sua geração. Tem usado a derrota surpreendente que enfrentou em 2018 para jogar um “eu te disse” na cara do eleitor arrependido.
Os dois se prepararam para enfrentar expoentes da direita no segundo turno. Nas duas cidades, a possível vitória de nomes de um centro reabilitado contra a direita é vista como um laboratório importante para uma frente mais ampla em 2022, inclusive como ensaio de aproximação com siglas de centro-esquerda e de esquerda.
A dificuldade de os bolsonaristas Celso Russomanno e Marcelo Crivella irem ao segundo turno é de certo modo surpreendente, e pode fazer os líderes nas pesquisas terem de redirecionar o discurso no segundo turno, para atrair o eleitorado de direita caso eles sucumbam. E isso adiaria as conversas para a tal frente ampla.
As agruras de Russomanno e Crivella evidenciam: 1) o caráter frágil da tal recuperação da popularidade do presidente, 2) o risco do discurso e da conduta negacionistas em plena pandemia fora das redes sociais, e 3) o refluxo da onda de se eleger completos outsiders para funções administrativas importantes. Por fim, paulistanos e cariocas assistem à mesma diáspora de candidaturas de esquerda, num sinal de que também nesse campo não será simples a união de esforços contra Bolsonaro em 2022.
São pelo menos dois os candidatos ditos progressistas que avançam em São Paulo: Guilherme Boulos, do PSOL, e Márcio França, do PSB, que parece ter acertado a previsão de que repetiria o sprint final de 2018, na disputa ao governo do Estado. O problema é que o crescimento simultâneo deles pode ajudar Russomanno a prevalecer por pouco. A disputa tende a ficar embolada até o final. No Rio, os votos de Benedita da Silva (PT) podem ser os que faltarão para Marta Rocha (PDT) se habilitar a tirar a vaga do prefeito na final. O uso sem moderação das máquinas da prefeitura e da igreja pode levar um Crivella mesmo alquebrado ao segundo turno.
Esses todos são fenômenos que transcendem a pauta e a dinâmica municipais, ainda que a decisão de voto os leve em conta. Os aprendizados que caciques e partidos tirarão dos resultados não só nessas, mas em várias capitais emblemáticas (Fortaleza é um case nacional, também) indicará se o Brasil de fato começou a sair do transe lavajatista e revanchista com que foi às urnas em 2018 para caminhar para algo mais racional de agora em diante.
Luiz Carlos Azedo: A pandemia e o luto
No Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado
Uma das singularidades da pandemia do novo coronavírus no Brasil — que chega aos 160 mil mortos e 5,5 milhões de infectados — é a sua naturalização pelo presidente Jair Bolsonaro, que sempre combateu as medidas de isolamento social adotadas por prefeitos e governadores e tratou-a como uma “gripezinha”. A aposta do presidente da República era de que ambos arcariam com as consequências negativas do impacto econômico da crise sanitária e ele, desafiando o vírus mortífero, se beneficiaria do auxilio emergencial aprovado pelo Congresso — cinco parcelas de R$ 600, de abril a agosto, e quatro de R$ 300, de setembro até dezembro e que o governo distribuiu à mais de 60 milhões de pessoa. O governo gastou até setembro R$ 411 bilhões com a pandemia, dos quais R$ 213 bilhões com o auxílio.
Acontece que essas despesas foram feitas como quem faz uma grande compra de consumo imediato com cartão de crédito, ou seja, a conta um dia vai chegar. E está chegando com a dívida pública já equivalente a 90% do PIB e uma taxa de desemprego de 14,4 %, que deve aumentar, porque a procura por emprego, com a redução do auxílio emergencial, também aumentará. Os reflexos políticos do agravamento da crise social são imediatos. Da mesma forma como a popularidade de Bolsonaro subiu com o auxílio emergencial, agora ameaça declinar nos grandes centros, com impacto eleitoral nos candidatos que o presidente da República apoia em São Paulo, onde Celso Russomano (Republicanos) está derretendo, e no Rio de Janeiro, cujo prefeito, Marcelo Crivela (Republicanos), candidato à reeleição, é amplamente rejeitado pelos eleitores. Bolsonaro já começa a se distanciar de ambos.
Nosso presidente da República é um personagem complexo da política brasileira — embora adote soluções simples e erradas para problemas complicados —, foge aos paradigmas do politicamente correto e desenvolve vínculos com parcelas da população que somente a antropologia explica. Mas não tem como fugir de uma realidade social impactada pelos efeitos psicológicos da pandemia na vida das pessoas, em particular o luto dos amigos e familiares das vítimas de COVID-19, que não tem nenhum paralelo com o de outras causas mortis, inclusive porque o rito de passagem de seus funerais foi profundamente afetado pela ausência de velórios e os caixões fechados.
Negação e resiliência
Após naturalizar a pandemia, em algum momento, Bolsonaro haverá de pedir desculpas por esse comportamento, quiça na campanha leitoral de 2022, mas até agora não manifestou um sincero pesar pela escalada da pandemia. Seus lamentos foram sempre preâmbulos de alguma firmação que estabelecia como prioridade manter as atividades econômicas a qualquer preço. Acontece que essa prioridade é apenas retórica, na verdade, há um cada um por si, porque o governo abandonou as reformas, não tem prioridades, se digladia internamente e está prisioneiro das corporações e grupos econômicos que o apoiam. São inúmeros exemplos, os mais recente são os cancelamentos do projeto da BR do Mar — nova Lei da navegação de cabotagem —, por exigência dos caminhoneiros, e o decreto para privatização de 4 mil postos de atendimento básico do SUS, uma proposta inopinada e marota, que transforma a rede pública num grande negócio privado de tecnologia para empresas do setor de saúde.
Entretanto, Bolsonaro está subestimando o luto das pessoas que perderam seus entes queridos. Não são apenas os impactos econômico, social e cultural, em termos de perdas de força de trabalho, conhecimento e liderança social, que devem ser considerados; existe um lado afetivo e psicológico na crise sanitária, que se manifesta de forma duradoura, por etapas, difícil de ser mensurada. Amanhã, no Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado.
O luto ocorre porque a perda física do ente querido não elimina o afeto. É uma ausência de difícil aceitação no tempo em que ocorre, porque o amor sobrevive. Isso gera uma negação, que se manifesta de forma silenciosa, muitas vezes, como fuga da realidade; num segundo momento, vem a revolta, muitas vezes inconsciente e inexplicável. Leva tempo para que as pessoas superem a depressão subsequentemente e aceitem a perda, para que a vida plena se restabeleça. Mas não existe esquecimento. Aceitar não é deixar de sentir. O luto se torna essencial, um marco na vida pessoal. A resiliência diante da morte também gera simpatia ou engajamento em movimentos que sejam antítese do sua causa. É o caso dos familiares de vítimas de balas perdidas ou violência policial. Na pandemia, a naturalização das mortes pode ser apenas a primeira fase de um luto coletivo. Muito mais amplo e profundo.
Maria Cristina Fernandes: Como os milicianos tomaram a República
Depois de "A República das Milícias", de Bruno Paes Manso, fica difícil acreditar que será possível mudar o Brasil em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político a partir das urnas de 15 de novembro
Bruno Paes Manso já estava na reta final de “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 2018), livro que escreveu com Camila Nunes Dias, quando a vereadora carioca Marielle Franco foi morta, em março de 2018.
O livro, construído partir de entrevistas com autoridades penitenciárias e policiais, além de lideranças do PCC e de associações comunitárias, pretendia ser um alerta para os pressupostos da política de segurança pública que, na previsão dos autores, daria as cartas em Brasília com a estreia do ex-governador Geraldo Alckmin no Palácio do Planalto.
O livro se tornaria uma referência incontornável nos estudos sobre o crime organizado no Brasil. Mostrou como a política de encarceramento em massa de São Paulo, aliada aos arranjos que preservavam a capacidade de gerência da cúpula da organização criminosa, embasavam a prolongada trégua nos índices paulistas de homicídio.
Um mês depois de seu lançamento, porém, Bruno Paes Manso sentiu-se atropelado pela história. Vítima de um atentado em Juiz de Fora, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, acabaria catapultado à Presidência da República. Com a eleição de Bolsonaro, o autor concluíra que precisava começar a pensar em outro livro. Desta vez, para contar como a cultura da violência miliciana, travestida em apelo da lei e da ordem, havia se transformado na expectativa majoritária de redenção do eleitorado nacional.
O resultado, “A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro” (Todavia, 2020), repete a fórmula de “A Guerra”, com entrevistas em profundidade com chefes da milícia e do tráfico, autoridades policiais, lideranças comunitárias, estudiosos de segurança pública e uma sensibilidade aguçada para distinguir a evolução que moldara as comunidades do Rio em contraposição àquelas da periferia de São Paulo, que percorre há mais de duas décadas como jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Até então, sua incursão de mais fôlego no Rio havia sido durante a cobertura que fizera, para “O Estado de S. Paulo”, da intervenção policial no Morro do Alemão durante o governo Sérgio Cabral, em 2007. Nas pesquisas para o livro foi descobrindo um clientelismo que, ao contrário daquele que observara em São Paulo, não havia enfrentado a concorrência do sindicalismo industrial ou das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. É ao entrar em Rio das Pedras, na zona Oeste do Rio, que o autor encontra a chave para entender o fenômeno exportado para o resto do Brasil com a eleição de 2018.
Fora da caixinha dos estereótipos, encontra uma comunidade em tudo diferente da Copacabana decadente em que costumava se hospedar. Vê uma comunidade barulhenta, jovem, com letreiros chamativos a anunciar de médicos a lojas de lingerie e restaurantes de sushi. A pujança mostrava o dinheiro posto em circulação pelas milícias, que, em parceria com a polícia, se tornara donas de parte dos negócios despojando receita do poder público e das grandes empresas de gás, luz, transporte e internet sem precisar desperdiçar com armamentos como nas favelas comandadas pelo tráfico.
A comunidade é parte da jurisdição do 18º Batalhão da Polícia Militar do Rio, o mesmo em que o sargento Fabrício Queiroz e o capitão Adriano da Nóbrega se conheceram. O livro reconstitui a ficha criminal que construíram juntos sob a proteção da família Bolsonaro e do Tribunal de Justiça do Rio.
Bruno Paes Manso descreve uma Rio das Pedras marcada pelo coronelismo dos imigrantes nordestinos, apesar de o primeiro chefe local se chamar Octacílio Bianchi e o maior beneficiário político da propagação de seu modelo de empreendedorismo ser um paulista de Eldorado que levou seus modos bandeirantes para a Presidência da República.
Foi 1964 que deu às comunidades milicianas seu DNA. Com o golpe, a violência e a tortura policial se aproximaram dos porões da ditadura e, juntos, enterraram a utopia de nação que o Rio encarnava, com a sofisticação da bossa nova e a genialidade do samba de morro. O livro escolhe o capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras em 1962, como símbolo da aliança entre bicheiros e policiais endossada pelo regime.
Guimarães era protegido de oficiais envolvidos com o terrorismo de Estado que marcaria a derrocada do regime. Com o planejamento de explosões em Agulhas Negras e numa adutora da capital fluminense, o capitão Jair Bolsonaro se filiaria a esta linhagem. Com a abertura, a entrada do insubordinado capitão na política se daria pela legitimação dos crimes da polícia. “Em vez de lutar pela defesa da pátria, a polícia passou a matar além do limite em nome do ‘cidadão de bem’”, diz Bruno.
As milícias, porém, não se beneficiaram apenas da proteção e das condecorações dos Bolsonaro, mas da vista grossa que lhe fizeram todos os governantes do Rio, de Leonel Brizola a Moreira Franco, passando pelo ex-prefeito Cesar Maia, que fez de Rio das Pedras um curral de votos para a eleição do seu filho, Rodrigo, hoje presidente da Câmara dos Deputados.
Com as Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas pelo ex-governador Sérgio Cabral, o tráfico foi expulso da zona sul, para limpar o cenário da Copa e da Olimpíada. Nesse período, também se espraiaram as associações entre traficantes e milicianos. Esta sociedade prosperou com o propósito de combater o Comando Vermelho, organização nascida no presídio de Ilha Grande do convívio entre presos comuns e políticos na década de 1970.
A explosão da violência causada por esses conflitos e a busca do governo Michel Temer por uma marca positiva levou à intervenção militar no Rio, marcada, logo no seu primeiro trimestre, pelo assassinato de Marielle Franco. Bruno Paes Manso levanta as hipóteses para o crime sem cravar em nenhuma delas - provocação aos militares para mostrar quem manda no Rio, reação às denúncias da vereadora contra a violência policial e retaliação ao então deputado estadual, hoje na Câmara dos Deputados, Marcelo Freixo. O deputado teve uma atuação desabrida na Assembleia Legislativa, da CPI das Milícias aos esquemas, comandados pelos caciques locais do MDB, de distribuição de propinas de empresários de transportes.
A única aposta do autor é no poder do jogo de dissimulações envolvidas, que passa até mesmo por telefonemas forjados entre suspeitos que se sabiam grampeados para incriminar inimigos. Foi a reação de um deles, Orlando Curicica, miliciano preso por homicídio e associação criminosa, que levou à prisão de Élcio Queiroz e Ronnie Lessa. A partir dos relatórios a que teve acesso, Bruno Paes Manso descreve as manobras contra a elucidação do crime que ruma para mil dias sem a prisão de seus mandantes.
A chegada ao Palácio da Guanabara de Wilson Witzel, outro paulista emigrado para o Rio pelo sonho de uma carreira nas Forças Armadas, reincorpora à polícia civil e militar, com status de secretarias, personagens afastados desde os governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.
A queda de Witzel, que, de aliado, virara desafeto da família Bolsonaro, e a posse do vice, Claudio Castro, promove alguns desses personagens. Alan Turnowski, por exemplo, passa de braço direito a secretário de Polícia Civil, com o apoio da família do presidente da República. Em outro depoimento de Curicica ao qual o repórter Allan de Abreu, da revista “Piauí”, teve acesso, Turnowski e o atual secretário da Polícia Militar, Rogério Figueredo, são detalhadamente acusados de ligação com as tiranias paramilitares que ocupam a cidade. Ambos negaram as imputações à revista.
O pacote de rearranjos acordados entre o novo governador do Rio e os Bolsonaro ainda passa pela substituição do procurador-geral do Ministério Público do Rio, José Eduardo Gussem, cujo mandato acaba em dezembro. É Gussem quem tem, em grande parte, garantido a autonomia da investigação do esquema de rachadinhas no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio. A negociação que está em jogo na substituição de Gussem por um nome de interesse da família presidencial passa pelo atendimento das demandas do governador em relação à Superintendência da Receita Federal e à Polícia Federal.
A presença de Castro no governo do Estado é a blindagem com a qual a família Bolsonaro conta como anteparo à ascensão do ex-prefeito Eduardo Paes (Democratas) ou da delegada Marta Rocha (PDT), que substituiu Turnowski na chefia da Polícia Civil, em 2011. Paes e Marta aparecem nas pesquisas como os mais cotados para o lugar do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado do presidente. É cedo para dizer se a ascensão de um ou outro à Prefeitura levará o DEM ou o PDT, dois anos depois, ao Palácio da Guanabara. Os grupos políticos de ambos pagaram pedágio às milícias quando estiveram no poder, mas não exerceram o poder em nome delas.
Como mostrou o Mapa dos Grupos Armados do Rio, 57% da área da cidade está hoje sob domínio das milícias. Esse avanço se deu ao longo de um governo federal que flexibilizou o porte e afrouxou o controle de comercialização e sob administrações locais que lhes franquearam espaços.
A República das Milícias, retratada por Bruno Paes Manso, chegou ao poder com Bolsonaro, mas o extrapola. Está entranhada no dia a dia das comunidades, dos serviços de transporte público às licenças de construção, cujos despachantes, nas Câmaras de Vereadores e nas prefeituras, serão definidos pelas urnas em 15 de novembro. Depois de ler o livro, fica difícil acreditar que seja possível mudar o país em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político.
Bernardo Mello Franco: O exilado do Laranjeiras
Mergulhado numa crise econômica e sanitária, o Rio de Janeiro completa hoje dois meses sem governador. Em 28 de agosto, o Superior Tribunal de Justiça afastou Wilson Witzel. Eleito com discurso moralista, ele foi acusado de desviar verbas da Saúde na pandemia.
O ex-juiz não tem do que reclamar. Enquanto ex-comparsas mofam em Bangu, ele desfruta um doce exílio no Palácio Laranjeiras. Divide o ócio com a mulher, três filhos e o gato Elvis, que se estica livremente sobre o mobiliário Luís XV.
Embora tenha sido alijado do poder, o governador continua a usufruir suas mordomias. Um garçom fica de prontidão para manter seu copo cheio. Ele alterna os goles de uísque com baforadas de charuto cubano.
No início de outubro, uma ação popular pediu que o Churchill de chanchada fosse removido do palácio. O juiz Marcello Leite, da 9ª Vara de Fazenda Pública, decidiu que ainda não era hora de despejá-lo. Até que o impeachment seja sacramentado, ele poderá permanecer na residência oficial.
O processo deve ter novidades amanhã. O deputado Waldeck Carneiro promete entregar seu relatório ao tribunal misto que examina as denúncias. O texto tende a ser aprovado na semana que vem, mas a novela da cassação pode se estender até o fim de janeiro. Até lá, o estado será governado interinamente pelo vice Cláudio Castro, também investigado sob suspeita de receber propina. A exemplo do colega de chapa, ele nega todas as acusações.
A derrocada não abalou a megalomania de Witzel. Em entrevista à revista “Veja”, ele informou que continua a mirar a Presidência. Atribuiu o desejo a um “sentimento patriótico”. “Minha missão na política está apenas começando”, disse.
Denunciado por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, o ex-juiz já ensaia fugir do país para não ser preso. “Se perceber que há perseguição política e cooptação das instituições contra mim e a minha família, pretendo pedir asilo político no Canadá”, declarou. Depois de sonhar com o Planalto, Witzel pode acabar na lista da Interpol.
Luiz Carlos Azedo: Eleições pandêmicas
Ao se engajar nas candidaturas de Russomanno e Crivella, em vez de manter distância regulamentar, Bolsonaro corre o risco de ser o grande perdedor das eleições municipais
Eleições municipais nunca foram uma amostra grátis do que virá depois, nas eleições gerais, mesmo na época do regime militar. Por exemplo, em 1974 a oposição (MDB) obteve uma espetacular vitória nas urnas; em 1972, fora massacrada. Em 1976, sofreu nova derrota para o governo (Arena), mas em 1978, o MDB virou o jogo: o resultado das urnas sinalizou o fim da ditadura, iniciando-se a transição que resultou na anistia (1979), nas eleições diretas de governadores (1982) e na eleição de Tancredo Neves no colégio leitoral (1985) . Tirando São Paulo e Rio de Janeiro, as capitais mais cosmopolitas — em Brasília não há eleição —, é muito difícil captar tendências no processo eleitoral que sinalizem o que virá depois nas eleições gerais. Além disso, estamos vivendo um cenário a típico, sem debates e grandes comícios, o que faz o processo eleitoral se desenvolver em “home office”, para usar a expressão que representa a forma predominante de trabalho durante a pandemia.
Sim, as fábricas estão voltando a funcionar, o comércio também, mas não há o burburinho das ruas, nas padarias, nos barbeiros, nas filas das lotéricas e dos caixas dos supermercados, os sintomas de engajamento da grande massa de eleitores na disputa eleitoral. O embate se desenvolve nas redes sociais e, principalmente, nas listas de WhatsApp, subterrâneos nos quais as pessoas se organizam como “tribos”. São as listas da família, dos colegas de escola, dos amigos do futebol, dos parceiros de baralho, dos colegas de trabalho etc. As pessoas se relacionam por afetos e interesses; é assim, de forma compartimentada, segmentada, confinada, em bolhas, que o processo eleitoral hoje ganha a escala da democracia de massas. Somente as urnas eletrônicas poderão nos revelar os mistérios do voto popular.
Polarização
As pesquisas indicam — sempre elas — que apenas seis capitais estariam com as eleições decididas: Natal, com Álvaro Dias (PSDB), reeleição; Salvador, Bruno Reis (DEM); Campo Grande, Marquinhos Trad (PSD), reeleição; Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), reeleição; Curitiba, Rafael Grecca (DEM), reeleição; e Florianópolis, Gean Loureiro (DEM), reeleição. Mesmo assim, é bom dar um desconto: reviravoltas acontecem, pesquisas nem sempre são tiro e queda. Nas demais capitais, há disputa acirrada e perspectiva de segundo turno.
Destacam-se São Paulo, onde o pleito está se polarizando entre o prefeito Bruno Covas (PSDB), que tenta a reeleição, e Celso Russsomano (REP), que começou na frente e está derretendo, mais uma vez; e Rio de Janeiro, onde o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) se mantém na liderança, faturando o desgaste do prefeito Marcelo Crivella (REP), que fez uma gestão “terrivelmente evangélica” e queimou o filme dos pastores. Guilherme Boulos (PSOL) e a delegada Marta Rocha(PDT) correm por fora, nas duas capitais, respectivamente.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, há engajamento do presidente Jair Bolsonaro nas candidaturas de Russomanno e Crivella. Embora venha mantendo distância regulamentar da maioria das disputas municipais, até porque não conseguiu formar um partido para disputá-las, nos dois casos o presidente da República corre o risco de ser o grande perdedor das eleições. Sua alternativa será jogar todo o seu prestígio e mobilizar seus aliados nas disputas de segundo turno, não só nessas capitais mas também nas demais cidades, o que será uma manobra de alto risco.
Bolsonaro correria o risco de perder seu favoritismo nas eleições de 2022. É preciso uma administração muito desastrada na politica para inviabilizar a reeleição, porém, um estado de calamidade financeira pode tornar a tarefa do gestor uma missão impossível, como aconteceu com Saturnino Braga (PDT), no Rio de Janeiro, cuja falência decretou em 1988. Com a dívida pública igual a 100% do PIB, esse risco também existe para Bolsonaro, se fracassar na economia. Aliás, o fracasso financeiro vem sendo o carma dos governantes gaúchos, que não conseguem se reeleger, como se houvesse uma maldição de Borges de Medeiros no Palacio Piratini, construído para ser o mais belo do Brasil, com esculturas de Paul Landowski, criador do Cristo Redentor, telefone folheado a ouro, réplicas dos lustres do Palácio de Versalhes e murais de Aldo Locatelli. O caudilho gaúcho foi presidente do Rio Grande do Sul de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928, quando passou o poder a Getúlio Vargas, porque o Acordo de Pedras Altas (1923) proibira a reeleição.
Alvaro Costa e Silva: Os bons brasileiros
Nos quase dois anos de Bolsonaro em Brasília, o Rio teve plenos poderes para cumprir seu ideal: transformar-se no paraíso da milícia
Bolsonaro é um produto carioca. Como o sacolé da favela ou o biscoito Globo, tem gente que adora e gente que detesta. Mas sua origem —origem política— é indiscutível. Como também sua projeção nacional a partir do Rio: vereador em 1989; 30 anos como deputado federal defendendo a caserna; presidente. Em todo esse tempo ele foi se acariocando, até virar um legítimo morador da Barra. Registre-se, contudo, que não perdeu de todo o sotaque interiorano de São Paulo, onde nasceu.
Nos quase dois anos de Bolsonaro em Brasília, o Rio teve plenos poderes para cumprir seu ideal: tornar-se terra de miliciano. Sede do poder no Brasil Colônia, Vice-Reino, Império e República, a cidade hoje tem dois milhões de moradores e mais da metade de seu território sob o domínio de grupos paramilitares.
Um assunto com o qual o presidente tem intimidade é milícia. Muito mais do que com vacina. Em entrevistas, ele já sugeriu sua legalização. Na Câmara, elogiou seus integrantes, entre os quais o PM Adriano da Nóbrega, que comandava o Escritório do Crime em Rio das Pedras e foi morto na Bahia --seus 13 celulares até agora continuam mudos. Flávio, o filho 01, condecorou policiais que tinham ligação com o terror armado.
Velho amigo do Queiroz e vizinho de um acusado de matar Marielle Franco, Bolsonaro, mais do que ninguém, tem conhecimento do que se passa no Rio. A pergunta a ser feita é se ele se importa. Deu alguma ordem ao ministro da Justiça? Ou André Mendonça só ocupa a pasta para invocar a Lei de Segurança Nacional contra jornalistas e cartunistas?
Com a desculpa de que eram "maus brasileiros", o general Heleno mandou a Abin monitorar participantes da conferência climática da ONU realizada na Espanha. O governo poderia agir com a mesma inteligência no combate a milicianos que atuam dentro do país. Mas estes devem ser bons brasileiros.
Nelson Motta: Bye bye, Crivella
A degradação econômica, urbana e cultural da cidade foi acompanhada pela deterioração do que se chamava ‘espírito carioca’
Irmãos, trago boas novas. Tudo indica que vamos nos livrar do satânico bispo Crivella nas eleições de novembro. É o líder absoluto entre os mais rejeitados. Graças a Deus! Aleluia! Epá Babá Oxalá! Mas e o day after? O novo prefeito vai encontrar uma cidade devastada e degradada por uma administração marcada por escândalos e ineficiência, destruindo ou abandonando legados da administração anterior, como o Porto Maravilha e o VLT.
No “Retrato de Dorian Gray”, Oscar Wilde diz que só pessoas superficiais não julgam pelas aparências. Crivella, por exemplo, com sua conversa mole e sua brancura de cera, parece um clássico personagem de histórias de terror, o antigo mordomo do casarão, que fala macio, é humilde e prestativo com o casalzinho que herdou a mansão, mas à noite se transforma num vampiro e lhes suga o sangue. Coitado, não tem culpa de ter nascido com esse physique du rôle, mas combina com seu populismo canhestro e seu obscurantismo provinciano.
A degradação econômica, urbana e cultural da cidade foi acompanhada pela deterioração do que se chamava “espírito carioca”, que nos orgulhava e diferenciava do resto do Brasil. Até os paulistas admiravam nosso estilo de vida mais relaxado e informal, nosso humor e cordialidade, nossa simpatia e a nossa fala cheia de gírias e chiados.
O humor e a cordialidade viraram rispidez e antagonismo, o relaxamento virou desleixo com as leis, a educação e a ordem, a leveza ficou pesada, a irreverência virou grosseria. Motivos não faltaram, o fato é que vivemos uma mudança de comportamento profunda. E a administração Crivella ajudou a piorar.
Empacado em 12%, o homem está desesperado e implorando o apoio de Bolsonaro, até agora em vão, porque o Bozo não é bobo e não quer queimar o seu filme já chamuscado com o eleitorado do Rio de Janeiro. O vídeo dos dois dançando abraçados é uma mistura de terror com humor que tira mais votos de Bolsonaro do que dá para Crivella. Devia ser exibido todo dia pelos adversários dos dois.
Elio Gaspari: O nome do crime é milícia
O que se fez foi colocar na praça um novo tipo de bandido, o miliciano
A má notícia vem de um consórcio de pesquisadores: metade dos bairros do Rio de Janeiro estão ocupados por milícias. Um em cada três moradores da cidade vive em áreas controladas por essas organizações criminosas. A boa notícia está nas livrarias. É “A República das Milícias”, do repórter Bruno Paes Manso, com um retrato da construção dessa ruína social.
Paes Manso mostrou como os justiceiros surgiram até de forma simpática: “Milicianos de PMs expulsam tráfico”. Isso em 2005, passaram-se 15 anos e a simpatia é atraída para a notícia de que na semana passada a polícia do Rio matou doze milicianos.
Policiais expulsando traficantes de drogas em nome da benemerência era uma lenda urbana. Logo veio o controle das vans que faziam transporte ilegal de passageiros. (A Fetranspor, guilda dos empresários que faziam transporte legal, corrompia parlamentares e governadores.)
É difícil acreditar que Jair Bolsonaro não conhecesse a cidade em que vivia quando disse, em 2018, que “as milícias tinham plena aceitação popular, mas depois acabaram se desvirtuando. Passaram a cobrar gatonet e gás”.
Bolsonaro tinha no seu entorno o ex-sargento Fabrício Queiroz e o ex-capitão Adriano da Nóbrega. Um está preso. O outro, foragido, foi queimado no interior da Bahia.
Pela lenda urbana 1.0 a milícia vendia segurança, cobrando de R$ 15 a R$ 60 por família no bairro que protegia. A milícia “desvirtuada” cobraria pelo gás ou pelo gatonet (cerca de R$ 50). É a lenda urbana 2.0. Mesmo deixando-se pra lá que cobram entre R$ 30 e R$ 300 aos comerciantes, em pouco mais de uma década, elas avançaram nos mercados de regularização de terrenos e de construções ilegais. Privatizam espaços públicos achacando camelôs e motoristas que estacionam seus carros.
Outra lenda urbana esteve na ideia segundo a qual as milícias combatiam o tráfico de drogas. Pode ser que isso já tenha acontecido, mas hoje elas toleram os traficantes ou se aliam a eles. Não é preciso ser um gênio para perceber que essa fusão é inevitável.
Quando Bolsonaro defendia os milicianos era apenas um parlamentar federalmente inexpressivo e municipalmente astuto. Hoje é o presidente da República. No seu estado ajudou a eleger um juiz que prometia “balinha na cabeça” e foi afastado por mau uso do dinheiro da Viúva. O prefeito da cidade que persegue o apoio do capitão foi apanhado usando o dinheiro da Viúva para custear uma milícia que constrangia cidadãos insatisfeitos com a saúde pública.
Bolsonaro, como Wilson Witzel, elegeu-se com um discurso político de defesa da lei e da ordem. O governador do Rio perderá a cadeira e deverá batalhar para ficar solto. Bolsonaro e os generais da reserva que levou para o Planalto estão reciclando suas agendas moralistas. Para quem falava em segurança e combate à corrupção, a pesquisa das milícias e o livro de Bruno Paes Manso estão aí para mostrar que não adianta olhar para o lado. A menos que se pretenda colocar mais uma lenda urbana na ciranda, a dos confrontos nos quais morrem os milicianos que expulsavam os traficantes. Como o tráfico vai bem, obrigado, o que se fez foi colocar na praça um novo tipo de bandido, o miliciano. Como as milícias são quase sempre recrutadas na polícia, com a proteção de governantes, seria melhor olhar para dentro.
Luiz Carlos Azedo: Tudo é perigoso
Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo a batalha para a violência
A música Divino, Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, veio à lembrança por causa da morte do jovem Caio Gomes Soares, atingido por uma bala perdida após levantar da cama para pegar um suco, por volta das 7h de ontem, no Catumbi, Rio de Janeiro. Faleceu nos braços da irmã, sem tempo de receber socorro. É uma canção de 1968, que faz parte do antológico disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circenses, do qual participaram também os Mutantes, Tom Zé, Nara Leão e Gal Costa, que interpretou a canção da forma explosiva que viria a ser sua marca registrada.
“Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”. Atenção para a estrofe e para o refrão: a música fala do perigo ao dobrar uma esquina, do que pode cair do alto de uma janela, do cuidado ao pisar no asfalto e do sangue no chão. Não havia naquela época o perigo de levar um tiro por ir até a geladeira, para tomar um refrigerante, em certas localidades do Rio de Janeiro.
Um tiroteio entre traficantes e policiais no Morro da Coroa teria sido a origem do disparo que matou o jovem Caio, num bairro tradicional do Rio de Janeiro, muito próximo do centro histórico da cidade, um dos cenários de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A obra de Machado de Assis inaugurou o nosso realismo, ao retratar a escravidão, as classes sociais, o cientificismo e o positivismo de sua época. Entre o Rio Comprido, Santa Teresa e o Estácio, hoje, o Catumbi não é mais um bairro abastado. É um território em frequente disputa entre traficantes e milicianos, principalmente por causa da proximidade do Morro de São Carlos, onde existe uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Polícia Militar fluminense, e o túnel Catumbi-Laranjeiras, de acesso à Zona Sul carioca, que o transformou num bairro de passagem.
Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo novamente a batalha para a violência, resultado de uma política de segurança pública que facilita a venda de armas, estimula a justiça pelas próprias mãos e tolera a formação de milícias, fenômeno que está sendo exportado do Rio de Janeiro para os demais estados do país, sem que se tenha muita noção do perigo que isso representa.
Pesquisa divulgada neste fim de semana sobre a expansão de organizações criminosas no Rio revela que milícia e tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da cidade, nos quais vivem 3,76 milhões de pessoas, do total de 6.747.815 habitantes da capital fluminense: 2,1 milhões de pessoas (33% da população) vivem em área sob o comando de milícias; 1,1 milhão de pessoas (18,2% da população) vivem em área dominada pelo Comando Vermelho; 337,2 mil pessoas (5,1% da população) vivem em área dominada pelo Terceiro Comando; 48,2 mil pessoas (0,7% da população) vivem em área dominada pelo Amigos dos Amigos.
Enquanto isso…
Em Brasília, a cúpula do Senado pressiona o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) para que se licencie do cargo, antes do julgamento da liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que o suspendeu do mandato, previsto para amanhã, no plenário da Corte. O parlamentar foi flagrado pela Polícia Federal (PF) tentando esconder R$ 33,1 mil na cueca, durante operação de busca e apreensão em sua residência. Agora, alega que o dinheiro era destinado ao pagamento de funcionários e tenta justificar a sua posse, argumento que não cola na opinião pública, mas é a linha de defesa de seus advogados. Os senadores do grupo Muda Senado querem cassar seu mandado no Conselho de Ética, mas o presidente do órgão, senador Jayme Campos (DEM-MT), seu colega de partido, se recusa a convocar uma reunião do colegiado — prefere sugerir que Chico se licencie logo.
Por sua vez, Bolsonaro resolveu reiniciar sua campanha negacionista contra a obrigatoriedade do uso da vacina contra a covid-19: “Tem uma lei de 1975 que diz que cabe ao Ministério da Saúde o Programa Nacional de Imunização, ali incluídas possíveis vacinas obrigatórias. A vacina contra a covid — como cabe ao Ministério da Saúde definir esta questão — não será obrigatória”, disse, em cerimônia no Palácio do Planalto, para apresentação de pesquisa sobre um medicamento. Completou: “Qualquer vacina precisa ter comprovação científica e ser aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”. Foi uma resposta ao governador de São Paulo, João Doria, que anunciou ontem a intenção de iniciar a vacinação contra a covid ainda neste ano. Uma vacina chinesa que está sendo testada pelo Instituto Butantan.
Ana Carla Abrão: Fraternidade
‘A tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não’
Quando escreveu o Samba da Bênção, há mais de meio século, Vinicius de Moraes, o branco mais preto do Brasil, não imaginaria um mundo tão cheio de ódio e divisão como o atual. Menos ainda uma situação como a que vivemos hoje, em que o isolamento e distanciamento físico se impõem, empurrando a alegria das noites boêmias para o campo de uma memória quase distante.
Mas de tudo, a maior das distâncias entre o Rio de Janeiro de então e o atual que agoniza, afundado em um mar de corrupção e violência, é a da desigualdade social. Mas o Brasil é o Rio de Janeiro. Entre os altos e baixos nos índices de concentração de renda e de redução da pobreza nesses tantos anos, voltamos a piorar e pioramos muito. Exclusão, marginalização e ausência de oportunidades para tantos são as características do Brasil de hoje. Temperadas por intolerância, polarização e a desinformação propagada por fake news.
É sobre tudo isso, ou melhor, sobre o combate a tudo isso que versa a nova encíclica papal. Não por coincidência, a 3.ª encíclica do papa Francisco foi tornada pública no dia em que se celebra São Francisco de Assis, o mais fraterno dos santos cristãos. Fratelli Tutti, a encíclica social recheada de conceitos econômicos, busca mobilizar não só os católicos, mas todas as pessoas do bem, em torno do que há de melhor nas nossas capacidades humanas: o encontro, a convergência, a empatia, a união, a compreensão, a inclusão e a fraternidade. Num mundo tão marcado pelo desencontro, nela o Samba da Bênção ressurge, lembrando-nos que, apesar disso, a vida é a arte do encontro – entre pessoas, entre povos, entre nações. E é desse encontro que um mundo melhor surge.
Embora cometa o erro de usar o termo neoliberalismo de forma excessivamente dogmática, o capítulo V da encíclica destaca a importância de termos políticas melhores. Políticas melhores são aquelas que permitem a geração de emprego, uma melhor distribuição de renda, a inclusão das minorias e o fim das injustiças. Contrapõem-se às ações populistas que visam à perpetuação de grupos no poder e ao interesse individual, lideranças transformadoras que pensam no bem comum e no desenvolvimento econômico e social. Aqui, segue o texto, a grande questão é o trabalho. Ser popular de verdade é dar condições para que todos possam se desenvolver e viver das suas capacidades, iniciativas e forças. Sem negar a importância das redes de proteção social nas sociedades genuinamente fraternas, seu caráter provisório e a necessidade de focalização são um destaque. Da mesma forma, o texto chama a atenção para a degeneração do termo “popular”, por líderes populistas em busca do interesse imediato. Tendo como única finalidade a garantia de votos, responde-se às exigências populares, sem que se avance na árdua tarefa de proporcionar às pessoas as oportunidades e os recursos para o seu desenvolvimento, de forma perene e sustentável.
Não, Fratelli Tutti não foi escrita para o Brasil em resposta à falta de apetite que vemos no governo atual em avançar numa agenda de reformas estruturais que nos devolva a capacidade de crescer e de gerar emprego e renda para uma população que empobrece a cada dia. Não, ela não foi escrita para colocar luz na incapacidade do governo e dos agentes públicos de atacar os privilégios e enfrentar grupos de interesse que jogam o País num impasse diário. Impasse que gera como resultado uma opção distributiva sempre cruel. Ela também não foi escrita para mostrar que a principal motivação para a ampliação do programa universal de renda básica, sem desenho e sem fonte clara de financiamento, é a eleição de 2022 e à custa de um país ainda mais pobre e capturado pelo clientelismo. Ela tampouco visa ao Brasil quando cita a importância da abertura entre os países, do acolhimento dos povos, da importância da sustentabilidade ambiental. O mesmo vale para o horror crescente que são a intolerância, o fomento ao ódio ou à agressividade que tomaram conta do debate. Não, ela não foi escrita para o Brasil, mas foi.
Fratelli Tutti clama por fraternidade e método. Fraternidade com método significa estabelecer relações pessoais, institucionais e de política pública que tenham por objetivo o bem comum e a proteção da democracia. Incluir, tolerar, reduzir as diferenças sociais, gerar oportunidades para todos e trabalhar por um mundo melhor é ser fraterno. No Brasil, infelizmente nunca estivemos tão distantes disso. Hoje somos mais intolerantes, menos fraternos e também mais desiguais. E por isso mesmo, mais tristes. Que o Samba da Bênção, que é só fraternidade, continue nos lembrando que “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não”.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman
Carlos Pereira: Maldição ou virtude?
Virtude governativa emerge de instituições de controle fortes e independentes
Nos últimos anos, cinco dos ex-governadores do Rio de Janeiro (Moreira Franco, Antony Garotinho, Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão) já foram ou ainda estão presos. Por ampla maioria, o Superior Tribunal de Justiça manteve o afastamento do governador Wilson Witzel.
A Assembleia Legislativa acaba de aprovar, por 69 votos a zero, a continuidade do processo de impeachment do governador por crime de responsabilidade. O prefeito da capital, Marcelo Crivella, foi condenado pelo Tribunal Regional Eleitoral por abuso de poder político e está inelegível por 8 anos.
O que esses eventos recentes dizem do que de fato está acontecendo no Rio de Janeiro? Estaria o Rio de Janeiro condenado à maldição de maus governantes?
O sistema democrático não nasceu necessariamente para gerar eficiência ou resultados consistentes com as nossas preferências. Mas para garantir liberdade competitiva à população na escolha de seus representantes e proporcionar resolução pacífica de conflitos sociais a partir da representação/inclusão dos mais variados interesses no jogo político. Raramente a democracia seleciona os melhores governantes. E mesmo quando o faz, não demora muito para que os eleitos frustrem as expectativas dos eleitores.
A qualidade da democracia, portanto, não é produto dos atributos ou crenças particulares do eleito, mas da qualidade institucional e da capacidade das organizações de controle de fiscalizar e impor medidas repressivas a comportamentos desviantes.
Impor sanções políticas e judiciais a seis de seus governantes não é trivial nem frequente em democracias. Essa performance sugere robustez das organizações de controle estaduais e capacidade de atuação coordenada e conjunta com organizações de controle de outras esferas, principalmente a federal.
É, portanto, míope quem enxerga na situação do Rio de Janeiro apenas a maldição da corrupção, sem perceber que há também virtude institucional.
Com isso não se está ingenuamente argumentando que as instituições de controle no Rio de Janeiro seriam perfeitas. Na maioria das vezes elas agem tardiamente e de forma retrospectiva ao invés de preventiva. As punições ocorrem quando os maus governantes já não estão mais no poder e os prejuízos de suas administrações predatórias já foram consumados.
Embora as organizações de controle tenham apresentado relativa capacidade na responsabilização e punição de governantes, elas ainda não o fazem de forma tão eficiente a ponto de desencorajar o mau comportamento.
Parece que os ganhos esperados com comportamentos desviantes continuam sendo maiores que os riscos de os governantes serem pegos em práticas desonestas. Isso acontece porque as chances de se detectar corrupção são ainda relativamente muito baixas.
O fortalecimento das organizações de controle não é linear. Além do mais, o sistema político é por demais protetivo dos governantes de plantão que dispõem de várias garantias legais e procedimentais que tornam a atividade criminosa atrativa e de relativo baixo risco.
A virtude na administração pública não decorre da conversão moral ou de compromissos políticos de governantes eleitos. Bons governos surgem da existência de organizações de controle fortes e independentes.
Bernardo Mello Franco: Soldados de Bolsonaro
Jair Bolsonaro jurou que não se envolveria nas eleições municipais. Bastaram três dias de campanha para ver que essa promessa também ficará pelo caminho.
Embora não tenha conseguido criar seu próprio partido, o presidente já mergulhou nas duas disputas mais importantes do país. No Rio e em São Paulo, vai apoiar candidatos do Republicanos (ex-PRB), sigla do centrão ligada à Igreja Universal.
Na capital paulista, Celso Russomanno iniciou a campanha com uma visita a Bolsonaro no hospital. Ontem usou a primeira agenda de rua para prestar continência ao capitão. Disse que ele foi o único político a “estender a mão” aos pobres na pandemia.
Ao oficializar a chapa, o deputado já havia exaltado o trinômio “Deus, Pátria e Família”. O lema pertenceu ao integralismo e foi ressuscitado pelo bolsonarismo, neto bastardo do movimento de ultradireita dos anos 1930.
No Rio, Crivella já deixou claro que fará de tudo para colar na imagem de Bolsonaro. No fim de semana, ele divulgou uma fotomontagem ao lado do presidente. Ontem sua campanha lançou o slogan “Bolsocriva”.
O truque é uma imitação canhestra do “Bolsodoria”, usado por João Doria na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes. Em 2018, a fusão de sobrenomes funcionou. Agora ninguém atreve a convidar governador e presidente para o mesmo palanque.
Derrotar o PSDB de Doria é a obsessão de Bolsonaro em São Paulo. Por isso o presidente montou na sela de Russomanno, que ganhou fama de cavalo paraguaio em eleições paulistanas. Em 2012 e 2016, ele largou na frente e acabou fora do segundo turno. Agora conta com a ajuda do Planalto para se manter no páreo até o fim.
No comitê de Crivella, a aliança é vista como tábua de salvação. Mal avaliado pelos cariocas, o prefeito tentará nacionalizar a disputa e deslocar o debate para temas de comportamento.
Russomanno e Crivella estão longe de serem bolsonaristas de raiz. Os dois apoiaram Dilma Rousseff, e o bispo chegou a ser ministro da ex-presidente petista. O capitão sabe disso, mas precisa de soldados dispostos a defendê-lo.