rio de janeiro
Vinicius Torres Freire: Meteoros vermelhos caem, esquerda se renova e centrão domina
Eleição municipal foi uma onda cinza, dominada pelo crescimento do PSD e pelo ressurgimento do DEM
Os meteoros vermelhos que brilharam nesta eleição caíram. Os candidatos mais jovens da esquerda perderam, por diferença de votos maior do que as das projeções de véspera das pesquisas. O PT não venceu nenhuma capital. O PSOL conquistou Belém, com Edmilson Rodrigues, prefeito agora pela terceira vez, com um vice do PT, batendo o candidato bolsonarista.
De destaque, foi tudo. A eleição foi uma onda cinza, dominada pelas sub-legendas do centrão, pelo crescimento do PSD e pelo ressurgimento do DEM, onda confirmada neste segundo turno.
Guilherme Boulos (PSOL) perdeu para o PSDB em São Paulo, Marília Arraes (PT) perdeu para a “esquerda de centro” do PSB em Recife, Manuela D’Ávila (PC do B) perdeu para a velha política do MDB em Porto Alegre.
Sob certo aspecto, ainda assim essas derrotas têm um quê de ressurreição no fundo do poço. Nessas cidades muito grandes, simbólicas e importantes, candidatos de cara nova mostraram que a esquerda tem um grande potencial de votos. Deve haver mais gente no restante do país disposta a ouvir candidatos esquerdistas. Talvez seja necessário mudar a conversa.
As derrotas do PT e a passagem dos meteoros vermelhos indicam que o eleitorado desse campo do território político procura alternativas ou pode prestar atenção nelas. As lideranças nacionais da esquerda, ao menos em poder de voto, estão agora divididas em vários partidos, das velhas às novas, de Ciro a Boulos. O PT aparece no retrato, mas num canto.
Das legendas contadas como “esquerda” na geografia do Congresso, apenas o PDT de Ciro Gomes teve resultados razoáveis, em termos de números. Quase manteve o número de prefeituras conquistadas pelo país na eleição passada. Ganhou em duas capitais, Aracaju e Fortaleza.
O PT levou apenas 4 das suas 15 disputas de segundo turno, em redutos tradicionais em Minas Gerais, com duas prefeitas eleitas (Contagem e Juiz de Fora), e na região metropolitana de São Paulo (Mauá e Diadema).
Foi o partido com mais candidatos na disputa final deste domingo (em 2016, disputou apenas 7 rodadas finais). Mas esse desempenho não apaga nem traços do desastre na cidade de São Paulo e da derrota da renovação que seria Marília Arraes, novidade sabotada pelo PT local até quase as vésperas da campanha eleitoral.
Um problema do partido, notável neste século, pode explicar parte de suas dificuldades: o centralismo, o culto da personalidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o escanteamento das novas lideranças, o abafamento de quem ponha a cabeça para a fora, a desconexão crescente com os novos movimentos sociais. Tudo isso dificulta a renovação de quadros e ideias do PT.
Em parte, o PSOL, em especial o paulista, cresceu neste vácuo, mostrando caras novas e levando coletivos e movimentos sociais novos da periferia para o Legislativo.
Hélio Schwartsman: O encolhimento do PT
Partido precisa apresentar lideranças renovadas
O PT é um dos partidos que saem derrotados destas eleições. Pela primeira vez em 35 anos, não comandará nenhuma capital do país.
No cômputo geral, viu o total de prefeituras conquistadas reduzir-se de 254 em 2016 para 183 agora, com o incômodo detalhe de que as eleições municipais anteriores já haviam sido catastróficas para a legenda, que despencara de seu recorde de 630 prefeituras em 2012.
E não é só. Em duas das capitais mais dinâmicas, São Paulo e Porto Alegre, nas quais o PT tinha quase que cadeira cativa no segundo turno, os candidatos de esquerda que chegaram à disputa final eram de outros partidos, PSOL e PCdoB.
Esses são fatos objetivos que só um Trump ou um Bolsonaro ousaria negar. Apesar disso, eles não pintam um quadro muito completo da realidade. Se escarafuncharmos bem os dados, encontraremos pelo menos uma boa notícia para a sigla.
Embora tenha vencido em apenas quatro, o PT chegou ao segundo turno em 15 cidades (o maior número de participações entre todas as legendas). Em 2016, haviam sido apenas sete, dos quais saiu derrotado de todos. Acho que dá para afirmar que o eleitor dos maiores centros urbanos recolocou o partido na condição de ator importante, ainda que não o tenha contemplado com tantas vitórias.
Não há nada de muito surpreendente aí. Tirando momentos de recessão democrática como o atual, o embate mais natural de uma democracia é entre forças de centro-esquerda e de centro-direita. O PT havia sido, nas últimas quatro décadas, a sigla que melhor representava a centro-esquerda.
Poderá continuar a exercer esse papel, desde que interprete corretamente os recados dos eleitores e responda a eles. O mais eloquente é que o PT precisa apresentar lideranças renovadas. Não dá para as três prioridades do partido continuarem sendo o salvamento da biografia de Lula, e a quarta, a defesa de regimes como o venezuelano e o cubano.
Cristina Serra: A difícil travessia de 2021
Foi um alívio assistir à confirmação do fracasso de Bolsonaro como cabo eleitoral
As eleições municipais de 2020 desenham alguns contornos importantes sobre o realinhamento de forças conservadoras e progressistas no Brasil. Desde a ruptura institucional de 2016, que deve ser chamada pelo nome de fato, ou seja, golpe, essas forças vêm passando por uma reacomodação.
No pleito de agora, foi um alívio assistir à confirmação do fracasso de Bolsonaro como cabo eleitoral, sobretudo com a derrota esmagadora de seu aliado no Rio de Janeiro, o inqualificável bispo Crivella. Até aí, estamos falando da extrema direita. Já no campo da direita mais tradicional, é preciso, antes de tudo, apontar uma falácia. Partidos de direita fazem um tremendo esforço para vender a imagem de centristas. Mas é preciso não perder de vista o DNA dessas legendas. PP e DEM, por exemplo, têm sua origem no PDS, partido de sustentação da ditadura. Haja marketing para tirar esse bolor.
Também é difícil reconhecer no PSDB comandado por Bolsodória o perfil de centro (alguns diriam centro-esquerda) do partido criado em 1988 por FHC, Mário Covas e Franco Montoro. Como já era esperado, no dia seguinte às eleições, Doria voltou a adotar medidas impopulares de restrição, em São Paulo, para tentar conter a pandemia. Qual o custo humano de esperar o fechamento das urnas para anunciar essa decisão? Feitas essas considerações, é forçoso reconhecer que as legendas de direita —e não o centro— saíram fortalecidas em 2020.
Entre os progressistas, há um vácuo de estratégia. O PT perdeu preponderância, e partidos que disputam o mesmo campo não conseguem envergadura nacional. É de se notar, porém, uma bem-vinda renovação geracional na figura de Guilherme Boulos. Como esses eixos políticos se alinharão para 2022 depende menos desta eleição e muito mais da travessia que faremos em 2021. Bolsonaro e sua irresponsabilidade criminosa continuam. A pandemia também, com todos seus efeitos: morte, desemprego e fome. Com o agravante de que estamos todos exaustos.
Demétrio Magnoli: A cidade de Crivella
Não há como fugir à constatação de que prefeito venceu no primeiro turno em territórios controlados por uma milícia específica
No primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, Bruno Covas (PSDB) obteve 33% dos votos, e Guilherme Boulos (PSOL), seu rival no segundo turno, 20%. A ampla diferença, de 13 pontos percentuais, refletiu-se no triunfo de Covas em todos os distritos da capital paulista. No primeiro turno do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM) conseguiu 37% dos votos, contra 22% de Marcelo Crivella (Republicanos). Mas a diferença, de 15 pontos percentuais, não se traduziu por vitórias de Paes em todos os distritos. O atual prefeito venceu em cinco zonas eleitorais, quatro delas situadas na Zona Oeste. O mapa eleitoral conta uma história sobre o Rio.
Há uma regra sociológica geral, violada pelo mapa do primeiro turno no Rio. No caso de eleições decididas por margens apertadas, é normal que se verifiquem vencedores distintos em diferentes regiões. Contudo, em pleitos muito assimétricos, o primeiro colocado triunfa em todas as grandes regiões. As exceções merecem análise específica, pois decorrem de cisões sociais marcantes. O mapa de Crivella inscreve-se nessa categoria.
A cisão de renda não explica o fenômeno. Certamente, o atual prefeito obteve suas escassas vitórias em áreas pobres da cidade — mas não em todas, nem na maioria delas. O cenário Leblon versus Campo Grande, tão atraente para analistas apressados, distorce radicalmente a realidade eleitoral do primeiro turno. Prova disso está nos triunfos de Paes em diversos bairros ainda mais pobres da própria Zona Oeste.
A influência neopentecostal da Igreja Universal explica apenas um aspecto do fenômeno. A Universal opera com força em quase todas as periferias da cidade, não apenas nos bairros que deram maioria ao prefeito. Não há como fugir à constatação de que Crivella venceu em territórios controlados por uma milícia específica.
A territorialização de grupos armados ilegais percorre duas etapas clássicas. Na primeira, os milicianos estabelecem redes de negócios, explorando o mercado compulsório formado pelos habitantes das áreas sob seu domínio. Na segunda, a fim de consolidar tais atividades econômicas, infiltram-se na esfera política, capturando instituições estatais. O mapa de Crivella evidencia o grau de progresso das milícias cariocas nessa direção.
No Rio, as milícias nasceram no interior da polícia, um aparato estatal, e já operam há tempo na política, elegendo vereadores e deputados. A impunidade prolongada dos grupos de milicianos, bem como a natureza explícita de seus negócios, indica a cumplicidade passiva ou ativa de sucessivos governos estaduais e municipais com essas organizações criminosas. Policiais-milicianos foram celebrados e agraciados por comendas parlamentares. As casamatas das milícias atravessaram, intocadas, o longo período de intervenção militar federal na segurança pública do estado. Hoje, em certas regiões da cidade, como revela o mapa de Crivella, as milícias sequestraram o direito de voto dos cidadãos.
Campo Grande, centro do mapa de Crivella, é a base da Liga da Justiça (hoje Bonde do Ecko), maior milícia carioca, fundada pelos irmãos Natalino Guimarães, ex-deputado estadual, e Jerominho Guimarães, ex-vereador. A milícia expandiu-se para a Baixada Fluminense e controla negócios variados e bem conhecidos, com um foco especial em condomínios do programa Minha Casa Minha Vida.
As empresas do grupo financiam campanhas eleitorais de inúmeros candidatos. Um inquérito policial apura o envolvimento de milicianos do Bonde do Ecko no assassinato de diversos pré-candidatos rivais às câmaras de vereadores da Baixada Fluminense, do ano passado para cá. Desde as eleições de 2016, a organização criminosa tem candidato a prefeito — e o nome dele é Crivella. A cruz do pastor e a arma do miliciano marcham juntas na Zona Oeste do Rio.
O conceito de “Estado falido” aplica-se aos países em que o poder estatal perdeu, total ou parcialmente, o monopólio da força. O Brasil ainda não pode ser rotulado como “Estado falido”, mas a classificação descreve à perfeição a paisagem de sua segunda maior cidade. O mapa eleitoral não mente.
Bernardo Mello Franco: Fiasco de Crivella freia projeto da Igreja Universal
Ao despejar Marcelo Crivella, o eleitor carioca impôs um freio ao plano de poder da Igreja Universal. Nos últimos quatro anos, o Rio virou laboratório de um projeto que mistura fé e política. Ontem essa fórmula foi rechaçada nas urnas.
Crivella se elegeu em 2016 com o discurso de que governaria para todos. Foi uma das muitas promessas que ele não cumpriu. O dublê de bispo e prefeito favoreceu abertamente seu grupo religioso. Transformou a administração municipal em guichê da Universal.
O caso do “Fale com a Márcia” resumiu essa apropriação indevida. Crivella escalou uma assessora para ajudar pastores e fiéis a furarem fila nos hospitais. O escândalo deu origem a CPI e pedido de impeachment. Como estamos no Rio, também virou marchinha de carnaval.
Nem a maior festa da cidade escapou da guerra santa do bispo. Ele suspendeu o apoio às escolas de samba e passou quatro anos sem pisar na Sapucaí durante os desfiles. Num ato de pura birra, também se recusou a entregar as chaves da cidade ao Rei Momo.
No reinado de Crivella, a prefeitura promoveu o obscurantismo e sufocou a diversidade. No ano passado, o bispo mandou fiscais à Bienal do Livro para apreender um gibi. Tentou ressuscitar a censura por causa do desenho de um beijo gay.
A agenda reacionária tinha um objetivo claro: esconder o abandono da prefeitura. Enquanto Crivella pregava, a máquina pública deixou de funcionar. Aos poucos, a população percebeu o truque. Ele se tornou o prefeito mais impopular em décadas — uma façanha de proporções bíblicas, dado o histórico da cidade.
Em busca da reeleição, o bispo praticou seu ato final de oportunismo. Ex-ministro de Dilma, ele tentou pegar carona na popularidade de Bolsonaro. Apesar do apoio do capitão, recebeu a menor votação entre todos os candidatos que já disputaram um segundo turno no Rio.
Ontem Eduardo Paes anunciou o fim do governo “mais preconceituoso” que já passou por aqui. A vitória esmagadora do ex-prefeito teve um quê de exorcismo. No futuro, 2020 será lembrado como o ano em que os cariocas se libertaram de Crivella.
Fernando Gabeira: Um momento decisivo no Rio
Um potencial de desenvolvimento limpo e grandes problemas sociais pela frente são um enorme desafio para o novo prefeito
As eleições de hoje são importantes em todas as 57 cidades em que há segundo turno. Mas, no Rio de Janeiro, parecem ser uma questão de vida ou morte porque a cidade vive um longo processo de decadência prestes a ultrapassar um ponto de não retorno.
Personalidades cariocas enfatizam que a cidade, bonita por natureza, ainda pode encontrar sua vocação no desenvolvimento sustentável, produção do conhecimento, turismo e cultura.
Segundo algumas pesquisas, mais da metade do território do Rio é controlado pelas milícias. Um entre quatro moradores do Rio vive em favelas, sem endereço legal, título de propriedade, serviços públicos, sobretudo saneamento básico.
Uma velha canção diz que quando derem vez ao morro, toda a cidade vai cantar. Um potencial de desenvolvimento limpo e grandes problemas sociais pela frente são um grande desafio para o novo prefeito.
As pesquisas indicam que Eduardo Paes tem 70 dos votos contra apenas 30 do atual prefeito Marcelo Crivella.
Tudo indica que as necessidades de uma metrópole cosmopolita chocaram-se com a estreita visão religiosa de Crivella que subestimou até o carnaval, ponto central do calendário turístico, ao lado de outros como o Rock in Rio.
Apesar da crise profunda, ou talvez por causa dela, a sociedade se move. Durante a pandemia, morros como o do Alemão criaram comitês de crise para angariar fundos e ajudar a população, algo semelhante ao que aconteceu em Paraisópolis, São Paulo, embora num nível menor.
Há mais de um ano, um grande grupo de profissionais e urbanistas foi constituído na internet: o Juntos somos +Rio.
No momento mais intenso da crise, os debates sobre o futuro da cidade abriram para ações, como por exemplo alugar hotéis para que funcionários da saúde descansassem sem colocar em risco suas famílias.
Eduardo Paes foi prefeito do Rio duas vezes. Parece sensível a todos os problemas. É um político, sobrevivente da era Cabral, e terá de provar que aprendeu com os erros e não apenas se adaptou ao novo momento para vencer as eleições.
As lagoas da Barra da Tijuca, bairro onde Paes vive, jamais foram recuperadas num projeto urbano que poderia reviver na área o movimento aquático de uma Veneza.
Da mesma forma, Paes contraiu covid-19 um pouco antes da campanha e teve sintomas leves. É importante que se organize para enfrentar a pandemia e preparar o caminho para uma vacinação em massa, o que pode viabilizar o carnaval remarcado para o meio do ano que vem.
Até o momento não se dedicou muito ao tema, sequer visitou a Fundação Oswaldo Cruz, onde a vacina será fabricada.
O final de campanha no Rio foi marcado pelo baixo nível. Crivella acusa Paes de ter o apoio o PSOL, que iria para o setor de educação promover a pedofilia. O padrinho de Crivella, Bolsonaro, fortalece essa acusação, revivendo a famosa mamadeira de piroca que foi uma das estrela de sua campanha de fake news.
Se conseguir realmente demonstrar maturidade, Paes pode mobilizar o potencial da sociedade assustada com o processo de decadência. Se quiser, por exemplo, além da qualidade de vida num território contido entre o mar e Mata Atlântica, poderá implementar os passos de uma cidade inteligente.
O conhecimento para esse passo revolucionário na administração já é desenvolvido na Universidade Federal do Rio e estaria à sua disposição.
Portanto, apesar de discretas, sob o impacto da pandemias, as eleições no Rio podem marcar o futuro, inclusive porque este ano está prevista uma revisão do Plano Diretor da cidade - decisões que envolvem praticamente tudo no cotidiano dos cariocas.
Ascânio Seleme: O bispo e o voto evangélico
Eleitor evangélico provou que não vota unitariamente nem cai mais em lorotas tão facilmente
Difícil dizer se foi o voto evangélico que abandonou Marcelo Crivella ou se foi o velho bispo da Igreja Universal que o fez correr. O fato é que o eleitor evangélico, que até outro dia parecia apenas parte de um rebanho ideologicamente garroteado, provou que não vota unitariamente nem cai mais em lorotas tão facilmente. O sonho de Edir Macedo, que imaginava fazer uma cabeça de ponte no Rio para daí conquistar o país, virou vexame e ainda pode se tornar pesadelo.
O Rio não votou outra vez no bispo. Crivella ficou curto, apequenou-se. O resultado do primeiro turno da eleição municipal, que deve se repetir amanhã, desvelou uma novidade: os votos dos fiéis foram diluídos entre diversos candidatos. A ordem do pastor não vigora quando o candidato indicado pela igreja é ruim. Ou péssimo, como no caso em questão. Como essa verdade é comum em outros cantos do país, temos uma boa nova: o voto de cabresto religioso perdeu força.
O crescimento da população evangélica, ou a conversão de católicos em protestantes e evangélicos ao longo dos anos, produziu a sensação de que as igrejas dominariam em pouco tempo o cenário político nacional. Da mesma forma que se avalia hoje que em mais 30 anos os eleitores da Bélgica, por exemplo, serão majoritariamente de origem muçulmana. No Brasil, em dez anos, o número de evangélicos cresceu em média 61%. No Rio, seu aumento foi ainda maior, chegando a 64%.
A trajetória de Crivella mostra como foi importante e preocupante o que parecia ser a conformação de um curral eleitoral imbatível por ser administrado pela fé, que se imaginava blindada. O prefeito entrou na vida pública em 2002 se elegendo senador. Foi reeleito em 2010. No intervalo, concorreu sem sucesso a prefeito do Rio e a governador do estado, mas seus resultados foram melhorando. Em 2016, ganhou a prefeitura com 59,6% dos votos. Imaginou-se que o caminho estava consolidado, mas aí apareceu a inacreditável incompetência de Crivella.
Desde a posse, em janeiro de 2016, o capital político do bispo foi se deteriorando a ponto de ele ter hoje um dos maiores índices de rejeição entre todos os candidatos que concorrem neste segundo turno. Na primeira rodada das eleições, ficou com magérrimos 21,9% dos votos. Perdeu um oceano de sufrágios em quatro anos. Pelo que mostram as pesquisas, se Crivella fizer amanhã 30% dos votos válidos, terá perdido a metade dos eleitores que o elegeram em 2016. Dentre eles, incontáveis evangélicos.
A fé pode ser disciplinada e determinada, condescendente e tolerante, mas o fracasso eleitoral de Crivella prova que cega ela não é. O eleitor evangélico percebeu, como cada um dos 6,7 milhões de cariocas, que a gestão do bispo foi um desastre para a cidade. Seu governo sempre foi ineficiente, e não se pode culpar a pandemia pela agonia que a cidade atravessa. O eleitor evangélico também vê isso.
Vê, lê e ouve. A tecnologia da internet também ajudou a desidratar o monolítico voto evangélico. Além de perceber no seu dia a dia a desordem urbana, o eleitor fiel também foi informado pelas redes sociais. Muitas vezes desinformado, com certeza, mas sem dúvida estas ferramentas foram importantes para quebrar a “verdade” absoluta que se ministra nas igrejas evangélicas.
O voto orientado pelo pastor pode ainda dar resultado na eleição de vereadores e deputados, mas para cargo majoritário a iminente derrota de Crivella parece estar mostrando uma nova tendência que o tempo poderá confirmar. Por ora, Rio deve festejar o fim do mandato do bispo como uma benção. Crivella só vai fazer falta a Márcia e aos seus guardiões.
Derrota entre turnos
Jair Bolsonaro perdeu outra disputa política. Esta, depois do primeiro e antes de abrirem-se as urnas do segundo turno. Foi em Santa Catarina, onde o seu zero menor trabalhou incansavelmente para derrubar o governador Carlos Moisés. Bolsonaro e zerinhodespacharam para a capital catarinense a advogada da família, Karina Kufa, para conseguir que o governador fosse afastado e sua vice bolsonarista preservada depois de o governo ter equiparado os salários dos procuradores do estado com os da Assembleia Legislativa. Diziam que o reajuste era ilegal. Deu certo até ontem, quando a comissão que julgava o afastamento de Moisés teve de restabelecê-lo no cargo porque o Tribunal de Justiça do estado decidiu na véspera que ele não cometeu crime algum.
Defesa do Fla
O governo federal é tão desorganizado, atrapalhado e abilolado que lembra em muitos aspectos a defesa do Flamengo. Além de tremer de medo, quando o torcedor vê aqueles dois patetas do Léo Pereira e Gustavo Henrique trocando passes em frente à área, deve pensar imediatamente nos ministros Ricardo Salles e Ernesto Araújo. Com estas duplas, bola no pé do adversário e gol contra é questão de tempo.
Ministro da Logística
Se o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, conseguiu deixar estocado, sem uso, mais de seis milhões de testes de coronavírus em plena pandemia, imagina o que ele seria capaz de fazer se fosse general e cuidasse da logística de uma Força Armada durante uma guerra.
Aliás
A ampliação por mais 12 meses do prazo de validade dos testes esquecidos por Pazuello num galpão em São Paulo levantam uma lebre. Será que os laboratórios não estão estabelecendo validades muito curtas para seus medicamentos de maneira que eles vençam e o consumidor os descarte e compre um frasco novo? Tem alguma esperteza aí ou se trata do exclusivo cuidado com a saúde humana? Pelo preço dos remédios, é melhor que esta história seja muito bem explicada.
Acertos e desacertos
A chance de Guilherme Boulos de acertar se vencer a eleição de amanhã é tão grande quanto a de Bruno Covas. Sua chance de errar, entretanto, é maior. O programa de Boulos é mais ambicioso e muito mais caro do que o de seu adversário. Além disso, gerou uma expectativa entre os seus eleitores que pode se transformar rapidamente em frustração quando as pautas começarem a cair por falta de recursos ou adequações legais.
Boa surpresa
O ministro Luiz Fux devolveu grandeza ao posto de presidente do Poder Judiciário. Ao mandar para o plenário todas as ações penais e inquéritos, Fux resolveu que os casos da Lava-Jato voltarão a ser julgados e não apenas descartados sumariamente pela turminha. Boa também sua recomendação aos larápios de dinheiro público. Não adianta tentar esconder, “se tiver mala de dinheiro a imprensa vai descobrir”.
Carro usado
Aquela máxima “você compraria um carro usado do fulano de tal?” cabe muito bem agora ao ex-deputado, ex-secretário de estado e ex-presidiário Pedro Fernandes. O GLOBO noticiou na terça passada que Fernandes virou corretorde imóveis. O ex-secretário foi preso temporariamente por desvios em contratos na área da assistência social e responde a processo correspondente. Daí, vale perguntar: você compraria uma casa desse sujeito?
Não culpem o Leblon
Bares cheios você vê todos os dias em Ipanema, Laranjeiras, Botafogo, Barra da Tijuca, Taquara ou por onde quer que você ande. Em São Paulo, BH e Recife é assim também. Mas sempre que alguém quer fazer uma referência aos maus hábitos dos jovens baladeiros nesta pandemia cita a Rua Dias Ferreira, o Leblon. É uma injustiça. Não porque a garotada do bairro esteja trancada em casa, claro que não. Mas porque não são os únicos. Gilberto Bueno, leitor do GLOBO, mandou uma carta para o jornal dizendo que o Leblon estava fazendo escola. Será mesmo?
Crime eleitoral
É muito bom o livro “Uma terra prometida”, a autobiografia de Barack Obama, lançado na semana passada pela Cia das Letras com pompa e circunstância. Há inúmeros grandes momentos na narrativa da vitoriosa trajetória do ex-presidente americano. Mas há também dados do cotidiano, triviais. Um deles, que quase passa despercebido, explica como funcionam as campanhas eleitorais nos EUA. Na véspera do caucus de Iowa de 2007, a arrancada das primárias americanas, fazia muito frio e a neve poderia afastar eleitores das urnas. O que a adversária Hillary Clinton fez, como conta Obama, seria crime eleitoral no Brasil. A campanha da candidata distribuiu milhares de pás entre os eleitores alegando que com as ferramentas eles poderiam remover a neve acumulada em suas portas e ir votar.
Diego disse
“Tampouco morto encontrarei a paz. Me utilizam em vida e encontrarão um modo de fazê-lo estando morto”. A afirmação de Maradona, feita em 1996, faz parte de uma coletânea de 1.000 frases organizadaspor Marcelo Gantman e Andrés Burgo no livro “Diego dijo”. Ontem, dia seguinte ao velório, soube-se que os 11 filhos do jogador já iniciaram uma contenda pelo seu espólio.
Luiz Carlos Azedo: Três cidades
Em São Paulo, Bruno Covas é assediado por Boulos; no Rio de Janeiro, Eduardo Paes está praticamente eleito; em Recife, Marília e João Campos têm disputa acirrada
Muito interessante a disputa nas três principais capitais onde há segundo turno: São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Apontam tendências políticas completamente diferentes. A única conclusão que podemos inferir em relação a 2022, com segurança, é o fato de que o presidente Jair Bolsonaro caiu do cavalo nas três cidades. Seus candidatos não emplacaram. A queda de sua popularidade em quase todo o território nacional, em razão da pandemia de coronavírus, das altas taxas de desemprego e das suas patacoadas em relação a alguns temas relevantes, como a política externa e o meio ambiente, fez com que seu apoio se tornasse irrelevante.
Em São Paulo, Bruno Covas (PSDB) mantém a liderança, mesmo caindo de 48% para 47%. Guilherme Boulos (PSol) estacionou nos 40%, segundo o DataFolha. Como o candidato de Bolsomaro, Celso Russomano (Republicanos), virou mosca morta no segundo turno, a disputa reflete uma guinada à esquerda na capital paulista. Bruno Covas é um tucano de raiz, com uma narrativa que não nega a herança familiar do ex-governador Mario Covas. É falsa a acusação de que seria um bolsonarista, sua candidatura se posiciona no campo da centro-esquerda.
O que acontece é que Boulos, candidato do PSol, está à esquerda do PT, o que está contingenciando sua candidatura. Não deixa de ser um fenômeno de implicações nacionais, pois sinaliza a quebra de hegemonia do PT e a emergência de uma nova liderança política em São Paulo com projeção para outros estados. Também é falsa a tese de que seria uma espécie de lulismo sem Lula, quando nada porque o transformismo do PT ocorreu no exercício do poder e não à margem dele. Não se pode confundir o aggiornamento de Boulos com isso.
Boulos tem ampla vantagem entre jovens de 16 a 24 anos (61% a 27%); Covas, entre quem tem 60 anos ou mais (61% a 28%). Os mais jovens, porém, pesam menos (12%) no eleitorado do que os mais velhos (23%). Entre os mais pobres, com renda familiar de até dois salários, o candidato do PSDB tem 46% das intenções de voto, ante 39% do adversário. Também lidera entre quem tem renda familiar de dois a cinco salários (48% a 38%). Boulos vence na faixa de renda de cinco a 10 salários (48% a 42%). Entre os mais ricos, com renda superior a 10 salários, Covas tem 53%, e Boulos, 42%. No total de votos válidos, Covas tem 54% e Boulos, 46%.
Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro, a situação é completamente diferente da de São Paulo. O segundo turno virou uma disputa entre o centro e a direita. A novidade é o maciço apoio da esquerda ao candidato do DEM, Eduardo Paes, que passou de 54% para 55%. O prefeito Marcelo Crivella, um dos raros candidatos de Bolsonaro no segundo turno, mostra resiliência na sua base evangélica, mas avançou apenas de 21% para 23% dos votos, segundo o DataFolha. Em termos de votos válidos, Paes venceria Crivela por 70% a 30%.
A vitória de Eduardo Paes repercute no cenário nacional porque fortalece o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e a ala do partido que namora a eventual candidatura a presidente da República do apresentador Luciano Huck. A disputa também aponta uma tendência de convergência de forças contra o presidente Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2022.
A segmentação da pesquisa também mostra uma derrota profunda do projeto político da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, de quem Crivella é sobrinho. Sua narrativa conservadora em relação aos costumes esbarrou na vida mundana dos cariocas. O aparelhamento da administração da cidade pelos pastores evangélicos também se revelou um fracasso político.
Não é à toa que Paes ampliou a vantagem sobre Crivella entre as mulheres (74% contra 26%); entre os que têm 60 anos ou mais (75% a 25%); entre os mais instruídos (75% a 25%); entre os com renda familiar mensal acima de 10 salários mínimos (85% a 15%); entre os funcionários públicos (83% a 17%); entre os católicos (84% a 16%); e entre os simpatizantes do PT (93% a 7%). Crivella manteve-se em vantagem apenas entre os evangélicos (64% contra 36%).
Recife
A eleição no Recife está eletrizante e virou a política de Pernambuco de pernas para o ar. Marília Arraes (PT) subiu de 41% para 43%, mas João campos (PSB) tem uma curva de crescimento melhor: passou de 34% para 40%. Nos votos válidos, a petista venceria por 52% a 48%, uma diferença que caiu de 10 para quatro pontos, apenas. O mais inusitado da disputa é que ela se dá praticamente no mesmo campo, em todos os sentidos. PT e PSB são partidos de esquerda, socialistas, os dois candidatos pertencem ao clã da família do ex-governador Miguel Arraes e disputam a sua herança.
Curioso é o fato de a direita pernambucana apoiar maciçamente a candidata petista, com objetivo de enfraquecer o governador Paulo Câmara e o jovem deputado federal João Campos, neto de Arraes e herdeiro político do falecido governador Eduardo Campos, que morreu num desastre aéreo na Baixada Santista, em plena campanha eleitoral de 2014.
Marília Arraes leva vantagem entre os homens (46% a 36%); entre as mulheres, fica um pouco atrás (41% a 43%). Entre os mais jovens, de 16 a 24 anos, abre 14 pontos (47% a 33%). Na faixa seguinte, de 25 a 34 anos, tem 43%, ante 41% do candidato do PSB. Entre os eleitores de 35 a 44 anos, Campos lidera (45% a 37%), mas perde entre quem tem de 45 a 59 anos, faixa na qual a petista abre vantagem de 14 pontos novamente. No grupo de eleitores mais velhos, com 60 anos ou mais, o candidato do PSB tem 44% e Marília, 43%.
Bernardo Mello Franco: Disputa na lama
A disputa pela prefeitura do Rio desceu até o nível do pré-sal. Nos últimos dias de campanha, Marcelo Crivella e Eduardo Paes travam um duelo de agressões e ofensas. O comportamento dos candidatos ajuda a rebaixar a cidade, que já sofre com a pandemia, a crise econômica e os sucessivos escândalos de corrupção.
Em apuros nas pesquisas, Crivella apelou à tática da guerra santa. Num vídeo dirigido a eleitores evangélicos, ele disse que Paes implantaria a pedofilia nas escolas. Não foi a única baixaria protagonizada pelo bispo da Igreja Universal.
Sua campanha imprimiu 1,5 milhão de panfletos em que Paes aparece ao lado de Marcelo Freixo. Além de emporcalhar as ruas, a peça difunde mentiras. Acusa os dois de defenderem legalização do aborto, liberação das drogas e “kit gay” nas escolas.
Crivella investe no fundamentalismo e na desinformação. A legislação sobre drogas e aborto é federal, nada tem a ver com as atribuições de um prefeito. O “kit gay” nunca existiu. É uma ficção usada por políticos reacionários para tapear eleitores religiosos.
O bispo parece descontrolado diante da perspectiva da derrota. No debate da Band, ele disse que o adversário “não gosta de mulher”. Ontem faltou à tradicional sabatina da rádio CBN. À noite, sua propaganda afirmou que Paes estaria prestes a ser preso por corrupção. O discurso já foi usado por um certo ex-juiz, hoje mais perto de Bangu do que do Palácio Laranjeiras.
Com 42 pontos de vantagem, Paes poderia ignorar as ofensas e fazer uma campanha propositiva. Não é o que se vê na TV. Para rebater a sujeirada de Crivella, o ex-prefeito também resolveu chafurdar na lama. Ontem à noite, ele não deu as caras no próprio programa. Foi representado por uma atriz que chamou o outro candidato de “falso pastor”, “mercenário” e “traíra”.
No rádio, o ex-prefeito disse ser contrário à educação sexual nas escolas. “Isso deve partir de dentro de casa, do seio da família”, afirmou. O ensino demonizado por demagogos ajuda a prevenir doenças e gravidez precoce. Na corrida pelo voto religioso, Paes se curvou ao obscurantismo do rival.
Cora Rónai: As emoções das urnas
Vontade de bater a porta na cara dessa cidade sem vergonha que não aprende, e ir embora para algum lugar onde as pessoas raciocinem
Ainda me emociono quando vou votar. Isso se define como “o triunfo da esperança sobre a experiência”. Não me lembro mais quando foi a última vez em que consegui eleger um vereador, ou comemorar o resultado das urnas. Mesmo as (poucas) alegrias que elas me trazem são alegrias capengas, ofuscadas pelas criaturas dos pântanos que vicejam entre os votos vencidos.
Na semana passada escrevi sobre a eleição nos Estados Unidos. A vitória de Biden e de Kamala Harris foi festejada no mundo inteiro, mas antes de ficarmos muito felizinhos convém não esquecer que mais de 70 milhões de americanos votaram em Trump; e…
—Tá, tá! — disse a minha Mãe, quando fui jantar com ela. — Amanhã a gente pensa nisso. Por enquanto, vamos aproveitar e nos regozijar com o resultado.
Mamãe tem bastante experiência de governos medonhos, e foi com regozijo que sacou a palavra regozijo da algibeira. Claro: um verbo dessa grandeza não pode ficar guardado em qualquer bolso ou envelope, precisa mesmo de uma algibeira.
De modo que nos regozijamos então, e mais um pouco até domingo, quando a quantidade de votos no Crivella provou, por A + B, que o Rio não tem moral nenhuma para criticar ninguém. Os evangélicos e as esquerdas cariocas nos garantiram, como de costume, um segundo turno eletrizante.
Detesto a frase idiota que os sinalizadores de virtude usam para se mostrar superiores aos circunstantes, mas ela é perfeita para a ocasião: parabéns aos envolvidos.
Beto Santos, um amigo do Facebook, fez a melhor analogia: “A derrota de Martha Rocha e Benedita da Silva bem juntinhas me remete à lembrança da cena final de um dos episódios do filme ‘Relatos selvagens’, em que dois motoristas travam uma luta insana e sem sentido dentro dos carros acidentados até morrerem carbonizados e abraçados”.
Se Eduardo Paes ganhar no outro domingo estamos salvos; mas se perder, olha só para quem perde! Vontade de bater a porta na cara dessa cidade sem vergonha que não aprende, e ir embora para algum lugar onde as pessoas raciocinem.
(Quando vocês descobrirem onde há um lugar assim, por favor avisem.)
Por outro lado, foi bom ver Tarcísio Motta como campeão de votos. Ele fez um excelente trabalho na Câmara, e não foi por sua culpa que o bispo deixou de ser impichado, como deveria ter sido.
Em compensação, o 02 ficou em segundo: um vereador omisso, que passou a maior parte do mandato em Brasília, e ainda assim conseguiu 71 mil votos dos seus empregadores.
Só não digo que o Rio merece estar na situação em que está porque nenhuma cidade no mundo merece.
A entrevista que Barack Obama deu a Pedro Bial e a Flávia Barbosa, colega querida aqui do jornal, foi uma pausa no mundo grotesco que nos cerca, um ponto de luz e de civilidade.
Não há, no nosso tempo, líder mais carismático, ou orador mais eloquente.
Ao contrário dos seus contrários, quando Obama fala a gente presta atenção, porque tudo o que diz parece ser extremamente relevante — e é, no mínimo, muito interessante e bem contado. A entrevista terminou depois das duas da manhã, mas eu teria atravessado a noite acompanhando aquela conversa.
Educação, bom-senso, cordialidade, elegância — tantas coisas que não vemos mais.
Um grande entrevistado, com entrevistadores à altura.
Bernardo Mello Franco: O salto alto do Dudu
Na noite de terça, Eduardo Paes faltou a um debate na TV para ir ao aniversário da Tia Surica. A matriarca da Portela é uma figura querida e merece as homenagens pelos 80 anos. Mas a atitude do ex-prefeito indica que ele subiu alegremente no salto alto.
Paes tem motivos para estar confiante. De acordo com o Ibope, ele tem 30 pontos de vantagem sobre Marcelo Crivella. Se a eleição terminasse agora, o ex-prefeito venceria por 53% a 23%. Em votos válidos, a pesquisa sugere um massacre: 69% a 31%.
A distância não se deve apenas ao carisma de Paes. Reprovado por sete entre dez cariocas, o bispo virou presa fácil para qualquer oponente. Até o nanico Cyro Garcia, eterno candidato do PSTU, seria favorito para vencê-lo no confronto direto.
O Rio vive uma eleição atípica, com pouca campanha de rua e quase nenhum debate sobre a cidade. A pandemia abateu a população e aumentou o desinteresse pela política. A abstenção chegou aos 32% e tende a bater novo recorde no dia 29.
Na propaganda, Paes acenou com um retorno à normalidade após quatro anos de abandono administrativo. A promessa de volta ao passado não empolgou. Ele recebeu 974 mil votos no primeiro turno, menos de metade dos que obteve em 2012.
A maldição do terceiro mandato, que já moeu a popularidade do ex-prefeito Cesar Maia, é o menor dos perigos para o candidato do DEM. Se vencer, ele assumirá uma cidade em condições muito piores do que já viu do alto do Piranhão.
O desemprego aumentou, os turistas sumiram e milhares de negócios fecharam para sempre. O Rio não sediará outra Olimpíada nas próximas décadas, e o futuro prefeito não terá ajuda federal para furar túneis, implodir viadutos e construir museus.
O coronavírus já matou quase 13 mil cariocas, o equivalente a toda a população de bairros como Humaitá ou Vidigal. Em entrevista a Lauro Jardim e Fernando Gabeira, Paes admitiu ontem que ainda não tem um plano concreto para conter a pandemia. Não deverá encontrá-lo na quadra da Portela.
Bernardo Mello Franco: A penitência do bispo Crivella
Os últimos dois prefeitos do Rio se reelegeram com um pé nas costas. Em 2004, Cesar Maia liquidou a fatura no primeiro turno, com pouco mais de 50,1% dos votos válidos. Em 2012, Eduardo Paes teve uma vitória ainda mais tranquila, com 64,6%.
O cenário não deve se repetir em 2020. Apesar de controlar a máquina da prefeitura, Marcelo Crivella corre o risco de ficar fora do segundo turno. Paes lidera com folga, e o bispo disputa a outra vaga com Martha Rocha e Benedita da Silva.
De acordo com o Ibope, o prefeito entrou na semana final da campanha com 15% das intenções de voto. Em 2016, ele registrava 35% no mesmo período.
O encolhimento levou Crivella a mudar radicalmente de estratégia. Depois de anos tentando desvincular sua imagem da Igreja Universal, ele agora escancara a mistura de fé e política. “Aleluia! Aleluia! Aleluia porque a luta continua!”, canta, em hino gospel transformado em jingle eleitoral.
Ontem o prefeito divulgou vídeos em que recebe o apoio de dois líderes evangélicos: o missionário R. R. Soares, seu tio e líder da Igreja Internacional da Graça, e o apóstolo Ezequiel Teixeira, da Igreja Cara de Leão. Seu outro tio famoso, o bispo Edir Macedo, ainda não apareceu formalmente na campanha. Nem precisa. É ele quem dá as cartas no Republicanos (antigo PRB), partido que abriga o sobrinho desde 2005.
Além de apelar aos fiéis, Crivella tenta pegar carona na popularidade de Jair Bolsonaro. Ex-ministro de Dilma Rousseff, ele agora se apresenta como bolsonarista desde criancinha. O capitão aparece tanto na propaganda que um eleitor mais distraído pode pensar que o candidato é ele, e não o bispo.
As pesquisas explicam o mau desempenho do prefeito. Segundo o Ibope, 66% dos cariocas consideram sua gestão ruim ou péssima. Ele também amarga a maior rejeição: 58% dizem não votar nele de jeito nenhum.
Bolsonaro não disfarça o constrangimento a cada vez que precisa citar o nome do novo aliado. Na live de ontem, ele reservou apenas 20 segundos para a campanha de Crivella. O mesmo tempo que dedicou a um candidato a vereador em Queimados.