rio de janeiro
Merval Pereira: Um tapa na sociedade
Toda a cúpula do PMDB do Rio está neste momento na cadeia, com exceção do governador Pezão, que continua no posto apesar de todas as acusações, e do ex- prefeito Eduardo Paes, que está no exterior, também envolvido em várias denúncias. É um fato político relevante, essa prisão em massa de um grupo político inteiro, e a revelação de que todas as campanhas eleitorais dos últimos anos foram realizadas com o suporte de dinheiro desviado de obras públicas as mais diversas. A delação premiada do marqueteiro Renato Pereira é das peças mais devastadoras politicamente já surgidas nesses tempos de Lava Jato.
Não houve praticamente um setor da administração que não tivesse sido acionado para alimentar essa máquina partidária que domina o Estado há décadas. Nos votos dos juízes do Tribunal Regional Federal da 2 ª Região ( TRF- 2), a crise econômica do Estado foi atribuída à corrupção desenfreada desse grupo político, e a prisão foi apontada como a única maneira de estancar a prática de atos ilegais, que continuaram mesmo depois da prisão do ex- governador Sérgio Cabral.
É alta a probabilidade de que a Assembleia Legislativa do Rio decida ainda hoje não permitir a prisão de seu presidente, Jorge Picciani, e de outros dois deputados estaduais do grupo, que passaram a noite no mesmo complexo penitenciário onde está preso o ex- governador Sérgio Cabral, o chefe da organização criminosa que ainda controla a política estadual. O presídio de Benfica abriga todos os envolvidos nos processos da Operação Lava- Jato no Rio.
Tanto que o ex-governador continua tendo, dentro da prisão, regalias que presos comuns não têm, sempre se utilizando de métodos escusos como usar um pastor próximo a seu grupo para instalar um home theater na cadeia. O relato de que comandou uma salva de palmas para receber na prisão o ex-presidente do Comitê Olímpico Brasileiro Carlos Arthur Nuzman revela o nível de cinismo do ex- governador e confirma que não se arrependeu de nada do que fez, mantendo ainda uma liderança dentro da cadeia, como os chefões da bandidagem carioca que fingia combater.
As denúncias contra Sérgio Cabral mostram que ele começou a participar do esquema corrupto da política do Rio de Janeiro quando ainda era deputado estadual e presidiu a Assembleia Legislativa, mesma função que hoje exerce o presidiário Picciani.
A longevidade do esquema, e sua força política no estado, demonstram como está arraigada na política estadual a corrupção. O PMDB é o único partido político do Rio com esquema eleitoral espalhado pelo estado, não havendo concorrência possível, pois PT e PSDB, os dois partidos mais fortes a nível nacional, têm estruturas muito fracas no Rio.
A legenda, no entanto, tornou- se tóxica no estado, diante da revelação dos esquemas de corrupção, e já na disputa pela Prefeitura do Rio o partido perdeu a condição de eleger seu candidato, que além do mais tinha problemas pessoais que o inviabilizaram.
A decisão por unanimidade do Tribunal Regional Federal da 2 ª Região de mandar prender os deputados estaduais Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi, todos do PMDB, e sobretudo os comentários dos juízes sobre a necessidade de afastá-los do convívio da sociedade para que cessem de praticar crimes, revela que a provável decisão da Assembleia de liberá-los será considerada uma afronta não apenas ao Tribunal Federal, mas à opinião pública, que está sendo convocada para protestos em frente à Assembleia para pressionar os deputados.
Eliane Cantanhêde: O Rio de Janeiro chora
Governadores, secretários, deputados, membros do TCE, empresários... Quem escapa?
Aos que até hoje condenam a transferência da capital da República, ironizam a “ilha da fantasia” e imaginam que Brasília é a origem de todos os males e o centro da corrupção brasileira: já imaginaram se a capital continuasse no Rio de Janeiro?
A Lava Jato explodiu esquemas em vários Estados do País, inclusive no DF, mas nada tão avassalador quanto no Rio, pela abrangência, pelos valores e pela diversidade de órgãos, partidos, personagens. Onde o MP, a PF e a Justiça mexem, há escândalos. Nada escapa.
O símbolo disso é o ex-governador Sérgio Cabral, que se arvorava até candidato à Presidência da República, enquanto dilapidava o patrimônio público e vivia como magnata com sua mulher, Adriana Ancelmo. Só faltou um apartamento com R$ 51 milhões em dinheiro vivo.
Não escapam nem os secretários de Cabral, nem mesmo Sérgio Côrtes, da Saúde. Da Saúde!!! Mas o Rio não tem só um, mas pelo menos três ex-governadores enrolados. Além do megalomaníaco Cabral, estão na mira Anthony e Rosinha Garotinho que, diante do sucessor, parecem ladrões de galinha, mas também são de colarinho-branco e têm fama de espertos.
Os desmandos no Rio, que continua lindo, não se resumem ao Executivo. O presidente da Assembleia Legislativa, Jorge Picciani, foi preso com dois outros deputados estaduais e é a ponta de um iceberg. Dá para imaginar as falcatruas na Alerj? E na família Picciani? São três filhos: Leonardo, ministro de Dilma e de Temer, Rafael, deputado estadual, e Felipe, empresário, que também foi preso. Agora, é saber se os pares dos Picciani na Alerj vão impedir a prisão do chefão. Chegariam a tanto?
É também do Rio o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, um outro peixe graúdo a cair na rede da Lava Jato na Baía da Guanabara e agora passando um tempo em Curitiba. Mas grandes, médios e pequenos empresários brilham nesse cardume.
Como o espaço é curto, fiquemos nos grandes, como Eike Batista, do grupo X, e Jacob Barata Filho, o “rei do ônibus”. E o vice-almirante da reserva Othon Silva, que presidiu a Eletronuclear, controlada pela Eletrobrás? Difícil entender como alguém que entraria para a História como pai do programa nuclear brasileiro joga tudo no lixo por corrupção, pelo vil metal.
O que dizer do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), que, de acordo com o TCU, gerou um prejuízo de US$ 12,5 bilhões à Petrobrás? A própria Petrobrás, aliás, tem sede no Rio, uma coleção de ex-diretores e gerentes condenados e três ex-presidentes respondendo por corrupção e/ou má gestão, como Aldemir Bendine, que Dilma tirou do Banco do Brasil e jogou na petroleira, apesar da Lava Jato e da má fama do nomeado.
E já que se falou de TCU, que tal o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ)? Dos sete conselheiros, cinco, inclusive o presidente, Aloysio Neves, são acusados de corrupção pela Operação O Quinto do Ouro, por aceitarem propinas à época do governo Sérgio Cabral. A eles se junta mais um ex-conselheiro. Por enquanto...
Haveria ainda muito a dizer sobre o passado macabro do lindo Estado do Rio, mas é preciso também refletir sobre o presente e o futuro. No presente, o governador Pezão negocia dívidas com o mesmo empenho com que precisa se descolar do padrinho Cabral. E o futuro é incerto e não sabido, com Eduardo Paes, César Maia e Rodrigo Maia, todos três batendo na trave da Lava Jato e seus desdobramentos.
Enquanto isso, quem sofre é a população carioca, sem salários, sem 13.º, sem saúde e educação e ameaçada por ladrões e assassinos sanguinários. Nem uma inofensiva moradora de rua escapou da barbárie. Só falta o Cristo Redentor chorar.
Fernando Gabeira: No coração das trevas
Uma querida amiga disse que leu um artigo meu três vezes para entender bem. Prometi que na próxima, reescreverei três vezes. Italo Calvino disse que o texto do século XXI teria de ser leve. Mas como são pesados os temas do Brasil de hoje. ministro da Justiça, Torquato Jardim, disse que os comandantes da PM estão ligados ao crime e que o governo não controla sua polícia. Não ficou aí, nessa sinistra generalização. Disse que a esperança de mudar só viria mesmo após as eleições de 2018. Estamos em novembro de 2017. Quantos tiroteios, quantas balas perdidas, quantas mortes nos esperam até lá? Se o quadro é esse mesmo que o ministro pintou, o governo federal deveria fazer algo para transformá-lo.
O ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirmou há algum tempo que havia relação entre políticos e o crime organizado. Eles precisam de voto, o crime organizado controla mais de 800 pontos apenas no Rio. Quem vai à Baixada, viaja a cidades como Campos e Macaé ou cruza a Baía de Guanabara, vai até Niterói, constata que o número de territórios ocupados é muito maior.
Jungmann propôs uma força-tarefa para desvendar os vínculos entre crime e política no Rio. Raquel Dodge concordou. Até aí, tudo bem.
Uma revelação bombástica antes mesmo da força-tarefa começar o seu trabalho é inadequada. Acaba complicando a vida das pessoas já amedrontadas no seu cotidiano. O ministro Jardim nem mata a cobra nem mostra o pau. É como se dissesse: “Xi, a segurança está na mão de bandidos mas isso pode mudar depois de 2018.”
Felizmente não é bem assim. Ouvi alguns amigos da PM e eles garantem que há bons e honestos comandantes.
O Rio foi abalado por um governo que era, na verdade, uma organização criminosa. Todas as estruturas do poder foram de alguma forma contaminadas. Certamente será necessário um paciente e árduo trabalho com ajuda federal para desfazer todas as teias, os nichos da corrupção.
Quando o Exército veio pela primeira vez nessa crise, defendi a ideia de que deveria estabelecer um contato maior com a sociedade, oferecer um trabalho comum. Com as formas de comunicação de hoje seria possível criar um sistema de defesa muito mais poderoso. A própria sociedade se mexe. O aplicativo OTT (Onde Tem Tiroteio) é um um dos exemplos disso.
Nas primeiras investidas, a operação fez inúmeros cercos, apreendeu poucas armas. Era uma indicação de que o trabalho de inteligência precisava melhorar. Da soma que o governo federal destinou, foram usados apenas 22% para enfrentar a crise de segurança pública no Rio. E os cercos são a tática mais cara com menores resultados.
No meio do áspero caminho, uma crise no relacionamento entre os governos. Parecia haver algo no ar entre o ministro Jungmann e as autoridades estaduais de segurança. Ao invés da possibilidade de uma cooperação em grande escala, incluindo as pessoas que vivem aqui, o que nos ofereceram foram crises de relação, desconfiança mútua.
É preciso formar um bloco bem intencionado entre as forças de segurança. E pedir a ajuda da sociedade. Não temos armas. Mas o conhecimento coletivo é um instrumento que potencializa o trabalho armado, em certas ocasiões, pode até dispensá-las.
De uma certa forma, a luta contra o terrorismo na Europa e nos Estados Unidos, os esforços emergenciais após uma catástrofe natural — todos esses grandes embates demandam um vínculo através da rede. Nas inundações do Texas foi impressionante acompanhar o mapa das pessoas ilhadas; bastava clicar no ponto que aparecia a mensagem: falta comida, dificuldade de respirar, rompeu a bolsa d’água. Um terrorista procurado na Europa pode ter seu retrato passado para todos os smartphones de uma extensa área onde opera.
O potencial de descobrir os caminhos para programas que reforcem a segurança no Rio não está em governos combalidos, mas na própria sociedade. Como acionar esse poder sem ter o mínimo de credibilidade? O que os que ainda sobrevivem nos governos poderiam pelo menos tentar. E tentar com uma visão clara do que distingue propaganda de resultado real.
O grande problema não é só que os bandidos furam facilmente os cercos. O difícil é furar os cercos mentais que às vezes dominam as cabeças no governo. Quase todas têm medo de falar com pessoas reais. Preferem fazê-lo através das grandes máquinas de propaganda que filtram as críticas ou enfatizam as pequenas vitórias.
Sem que os sobreviventes no governo peçam socorro e a sociedade lhes dê mão, não vai prosperar uma defesa real diante da crise de segurança. De outra forma, voltamos aquela história de esperar 2018. É muito tempo, sobretudo para os que perdem a vida em segundos nas ruas do Rio.
É tudo tão grave, certamente não é uma dessas dores estranhas que simplesmente passam se ficamos em repouso. Nossas chances dependem também da percepção do abismo: quanto mais rápida, melhor.
Luiz Carlos Azedo: O finado coronel
O Palácio do Planalto tenta debelar a crise política aberta pelas declarações de Torquato, mas isso não resolve a situação caótica da PM fluminense, que vive uma guerra de facções políticas
O falecido coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que comandou a Polícia Militar fluminense nos dois governos de Leonel Brizola, foi uma espécie de precursor das unidades de pacificação implantadas nas favelas cariocas pelo ex-governador Sérgio Cabral (PMDB), que está preso em Benfica. Defendia uma mudança de conceitos e mentalidade na corporação, que fora engessada, segundo ele, em uma estrutura concebida por Getulio Vargas, em 1936, para atuar como força auxiliar do Exército numa guerra civil ou contra insurreições, em razão da Revolta Constitucionalista de 1932 e da chamada Intentona Comunista de 1935. Durante o regime militar, essa concepção se consolidou.
O Plano Diretor da PMERJ elaborado por Cerqueira tinha o objetivo de mudar o comportamento repressivo da tropa e implantar um novo modelo de policiamento, a partir de efetiva integração comunitária. A política, porém, enfrentou grande resistência e dividiu a corporação entre “bundões” e “fodões”. No jargão grosseiro dos quarteis, os primeiros eram os oficiais burocratas, defensores da integração e da prevenção; os segundos, oficiais operacionais, defensores da repressão.
Com Brizola no governo fluminense, a PM deixou de subir o morro e usar as botas para arrombar as portas dos barracos, como era tradição, mas a outra face da moeda foi a entrega do controle dos morros para os traficantes. Não era a intenção de Nazareth Cerqueira, mas foi o que acabou acontecendo. O interesse eleitoral falou mais alto. Nas eleições municipais de 1988, por exemplo, Marcelo Alencar foi eleito prefeito graças ao prestígio de Brizola nas comunidades.
Desde então, a cada eleição, um dos grupos apoia o candidato de oposição. Moreira Franco, por exemplo, em 1986, foi apoiado pelos “fodões”. Já Anthony Garotinho, em 1998, pelos “bundões”. Foi no seu governo que emergiu o poder de uma nova categoria na PM fluminense: “a banda podre”, como denunciou o então secretário de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, que acabou demitido. Os filmes Tropa de Elite 1 e 2, citados pelo ministro da Justiça, Torquato Jardim, relatam os bastidores da PM fluminense.
O Palácio do Planalto tenta debelar a crise política aberta pelas declarações de Torquato, mas isso não resolve a situação caótica da PM fluminense, que vive uma guerra de facções políticas, num ambiente cuja cultura é secular. A situação da PM do Rio é de caos doutrinário. As unidades de pacificação já não dão conta recado, nem os antigos batalhões. Como ontem foi Dia de Finados, fica o registro de que o coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira foi assassinado no saguão do prédio onde trabalhava, pelo sargento da PM Sidney Rodrigues, na tarde de 14 de setembro de 1999. O assassino foi morto logo a seguir, com um tiro na nuca, supostamente, disparado por um segurança da Terma Aeroporto, que funciona no térreo do edifício. Pai de sete filhos, Cerqueira estava aposentado na Polícia Militar desde 1994. O crime nunca foi esclarecido.
Merval Pereira: Investigações em curso
Se causaram rebuliço entre os políticos e as autoridades estaduais, as declarações do ministro da Justiça Torquato Jardim sobre a contaminação política do crime organizado com as forças policiais não surpreenderam os cariocas e aqueles que acompanham a situação da segurança pública no Rio.
Os políticos que saíram em defesa das corporações o fizeram corretamente para evitar generalizações, mas eles certamente sabem o que acontece em setores da segurança do Estado. Essa promiscuidade não é inerente às forças policiais do Rio, mas acontece em todos os lugares em que o combate ao crime organizado está em andamento.
A célebre história do policial Sérpico, em Nova York, que ajudou a desbaratar quadrilhas de criminosos que atuavam dentro da polícia novaiorquina, transformada em filme de sucesso de Al Pacino, foi lembrada ontem pelo deputado Miro Teixeira.
O que milhões de pessoas viram nos filmes Tropa de Elite 1 e 2, citados pelo ministro Torquato Jardim como situações que voltamos a viver no Rio depois de um breve intervalo em que as Unidades Pacificadoras funcionaram, era ficção baseada na realidade.
A Força-Tarefa que foi criada recentemente pela Procuradoria-Geral da República, a pedido do ministro da Defesa Raul Jungman, tornou-se necessária justamente devido à situação específica do Rio, em que a corrupção política abriu caminho para a atuação do crime organizado dos traficantes e dos milicianos.
Os precedentes de sucesso no Acre e, sobretudo, no Espírito Santo, estados que já estiveram dominados pelo crime organizado comandado pela classe política, mostram que a criação de uma Força-Tarefa para combater o crime organizado, sem prazo determinado, com uma visão de longo prazo e sem estar atrelado a mandatos governamentais, é o melhor caminho para restabelecer a supremacia da lei no Estado do Rio.
Como já escrevi aqui, a criação dessa força-tarefa, reunindo equipes do Ministério Público Federal, da Justiça Federal, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, surgiu do diagnóstico das forças de segurança de que o Estado foi capturado pela corrupção e pela criminalidade, ambos se cruzando.
Temos cerca de 1 milhão de pessoas no Rio de Janeiro vivendo em um estado de exceção, sob o controle de bandidos, milicianos ou traficantes. Quem tem esse controle sobre o território, tem o controle político, é capaz de direcionar votos, de eleger seus representantes, fazer seus aliados, que se encontram na Câmara Municipal, na Assembléia Legislativa e mesmo no Congresso Nacional.
Isso significa que são capazes de colocar seus prepostos dentro do aparato de segurança. No Rio de Janeiro, alguém dessa ligação pode indicar um chefe de batalhão, um delegado, e assim por diante. Essa prática, comum no Estado, em algum momento voltou, e a captura de postos chaves no aparato de segurança por indicações políticas acabou sendo uma realidade novamente no governo estadual, envolvido profundamente na corrupção e na proteção de quadrilhas, segundo diagnóstico original dos serviços de inteligência.
Sempre que as Forças Armadas são chamadas a intervir no Rio, devido ao recrudescimento da ação dos bandidos, há um desconforto que não é explicitado formalmente na relação com as polícias locais. Não é possível generalizar, e esse certamente foi um erro do ministro Torquato Jardim, mas a citação de que ações sigilosas vazam com freqüência é de conhecimento de todos dentro dos setores de segurança.
Tanto que a Força Tarefa recém-criada é federal, terá a participação das polícias do Rio em posição secundária. O Rio necessita de uma força-tarefa federal para dar conta, sobretudo, de um estado paralelo, classificado pelas análises dos serviços de informação como “capturado pelo crime organizado”.
Foi a partir das informações dos serviços de inteligência do Exército e da Polícia Federal que ministro Torquato Jardim soltou informações importantes sobre a segurança pública no Rio, e não foi à toa o que disse. A hipótese mais provável é que ele tenha falado para fazer andar as investigações, que estariam paradas por pressões políticas.
O improvável é que ele tenha sido leviano, o que falou, primeiro para o blog de Josias de Souza, depois para O Globo, foi com base em investigações que estão sendo feitas no Rio, desde a intervenção das Forças Armadas. Não adianta o governo do Estado nem a Polícia Militar reclamarem; o sistema de inteligência do Exército está atuando. O ministro sabe certamente o nome dos políticos que estariam envolvidos nesse conluio, e os indícios das investigações levaram às suas declarações. E certamente levarão a ações concretas de repressão.
Míriam Leitão: Os custos da violência
Nesta semana blindados das Forças Armadas voltaram a circular pela cidade e houve novos tiroteios na Rocinha. O custo da violência para o Rio e o país é incalculável, mas o economista Daniel Cerqueira, do Ipea, avalia que nacionalmente se perde pelo menos R$ 362 bilhões ao ano. A economista Joana Monteiro, presidente do ISP do Rio, lembra que o “Brasil vive uma tragédia do ponto de vista dos jovens".
Há prejuízos que se pode calcular, há outros que se pode apenas imaginar. Há custos econômicos e há perda para as famílias que ficam além de qualquer conta. A tragédia maior, diz Joana, é a dos jovens negros e pobres.
— Grande parte dos custos da violência está sobre as comunidades pobres e os que vivem nas áreas que são disputadas pelas facções. O Rio sofre com isso desde meados dos anos 1980, foi muito forte nos anos 1990. Houve esperança de melhora no final dos anos 2000, agora estamos de novo nesse cenário. A sociedade não tem muito claro o custo da violência — diz Joana.
Mesmo assim, os dois especialistas admitem que é preciso contabilizar, calcular os prejuízos tangíveis, porque a violência afeta a atividade econômica de diversas formas, na redução do turismo, produção, consumo. E, principalmente, nas mortes.
— O investimento feito em educação se perde se os jovens morrem. Tem o custo da despesa financeira do Estado, seja para manter o sistema de segurança, seja para manter o sistema prisional, seja para atender as vítimas da violência no sistema de saúde. A economia é atingida de diversas formas, porque as pessoas deixam de consumir produtos mais caros pelo medo de serem roubadas. No estudo que fizemos, a estimativa que chegamos, conservadora, é de que o custo da violência a cada ano é de 6% do PIB, algo em torno de R$ 362 bilhões em 2016. Claro que a tragédia é imensurável — diz Daniel Cerqueira, autor de um livro exatamente sobre o custo da violência.
O que explica o Rio, segundo Joana Monteiro, é que a cidade sempre esteve sob o controle de três facções criminosas que lutam entre si. Recentemente tudo isso piorou como reflexo do colapso financeiro estadual. Daniel acha que não houve trabalho de inteligência prévio à ação das Forças Armadas e das forças de segurança.
— Tudo que está sendo feito é uma reação midiática. Teria que ter um trabalho de inteligência para identificar os paióis de armas para ter efetividade. O que a gente viu foi o Exército fazendo perímetro, a PM entrou, mas o efeito não foi duradouro.
Joana acha que é muito forte afirmar que não houve trabalho de inteligência.
— Foi muito questionado por que não se agiu antes, por que não houve intervenção. Havia indicação de que haveria ocupação. É muito difícil, do ponto de vista operacional, ter certeza de quando vai acontecer um conflito. Até porque a Rocinha não é a única favela do Rio, e há vários indicativos disso em vários pontos da cidade.
A conversa com os dois especialistas com os quais gravei o programa dessa semana na GloboNews mostra o quanto é complexa a crise de segurança no Brasil e no Rio. A política das polícias pacificadoras deixou lições porque deu certo por algum tempo e é preciso refletir sobre o que levou a esse sucesso momentâneo para se construir uma proposta permanente.
— Não existe saída para a violência do Rio enquanto a gente tiver áreas conflagradas, com domínio de grupos criminosos armados. A nossa cidade nunca deixará de ser partida enquanto houver territórios que o Estado não controla, não detém o monopólio da força — diz Joana.
A economista acha fundamental entender as políticas, avaliar o que foi feito e voltar atrás quando for o caso. Para ela, além das UPPs, foi fundamental para o sucesso que houve tempos atrás o sistema integrado de metas. A informação e as metas são essenciais, diz ela.
Daniel lembra que as estatísticas mostram a queda de homicídios em alguns estados nos últimos anos: no Rio antes da última piora, em São Paulo e em Pernambuco no meio de um Nordeste em que as mortes aumentaram muito. É preciso avaliar o que deu certo e os erros, olhar dados, compartilhar números, ter metas. Pode ser o começo do avanço nessa área onde tudo, às vezes, parece perdido.
O Globo: Ministro da Defesa diz que situação está estabilizada na favela da Rocinha
Ministro da Defesa Raul Jungmann afirmou que as Forças Armadas ficarão no Rio até o fim de 2018
O ministro da Defesa Raul Jungmann, disse na manhã desta segunda-feira, em entrevista à rádio CBN, que há uma 'estabilização' na situação da Rocinha, na Zona Sul do Rio. Ele avaliou como positiva a operação como positiva e fez um balanço do último fim de semana.
— Tivemos a apreensão de 22 fuzis, aproximadamente 8 granadas, uns 80 carregadores, quantidade de drogas, pouco dinheiro, além de prendermos 17 bandidos, inclusive um dos chefes do tráfico do Caju (...) Além disso, há uma estabilização de ontem (domingo) para cá dentro da comunidade da Rocinha, e os tiroteios que foram reportados não eram mais como anteriormente, entre facções, mas sim entre polícia e bandido.
O ministro afirmou que as Forças Armadas ficarão no Rio até o presidente Michel Temer sair da Presidência.
— Nós estaremos lá (Rio), segundo determinação do presidente Michel Temer, até o último dia de dezembro de 2018. Estamos permanentemente colaborando, apoiando as polícias. E nós temos feito isso. Já é praticamente a quinta operação que nós fazemos. Além disso, estamos atuando de forma integrada em termos de logística, em termos de troca de informação e sempre atendendo à demanda do estado. É bom lembrar que as Forças Armadas atuam por demanda exatamente das policiais, porque são elas que conhecem o terreno, a dinâmica criminal. E nós estramos, como fizemos agora recentemente, fazendo um cerco, um bloqueio, para que ninguém escape — afirmou, ele acrescentando que há outras ações previstas para o Rio.
Sobre a falta de sintonia entre os governos estadual e federal no início da operação na Rocinha, o ministro disse que isso já foi acertado.
— Eu tive uma reunião com o governador (Luiz Fernando Pezão) onde nós passamos a limpo todos os nossos pequenos conflitos, que nós vinhamos tendo até então. Isso foi devidamente superado e o exemplo está aí. Nós temos atuado de forma extremamente harmônica na Rocinha e vamos continuar atuando assim, por que isso é uma exigência do povo do Rio de Janeiro, e as autoridades têm que se entender quando há uma exigência do povo. Afinal de contas, o que justifica estarmos aonde estamos é exatamente para procurar atender à população — disse.
O ministro acredita que os índices de segurança devem começar a melhor a partir de 2018, quando o Rio voltar a ter crédito:
— Todos os indicadores de roubo de carga, crime doloso, roubo de carro, assalto a pedestres e até as UPPs vinham tendo um desempenho positivo até meados de 2014, sobretudo, 2015. Aí você tem a queda de todos esses índices. Mas eles caem de uma maneira absolutamente uniforme. O que quer dizer isso? A crise fiscal do Rio de Janeiro, a crise econômica do Rio de Janeiro, a falta de recurso para pagar salário, para pagar o RAS (Regime Adicional de Serviço) — horas extras —, para pagar o Sistema de Metas que premia por desempenho. Então, tudo isso levou a uma queda enorme das conquistas que tinham sido feitas. Na hora em que o governador voltar a ter crédito, obtiver o empréstimo de R$ 3 bilhões, voltar a pagar os salários atrasados a partir de outubro, voltar a pagar o RAS, a fazer concursos, botar mais policias nas ruas, sem sobra de dúvidas, vão representar uma melhora — afirmou.
Sobre a atuação de bandidos de dentro do presídio, como no caso do traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, que deu ordens para criminosas invadirem a Rocinha, o ministro defendeu que as conversas dos chefes do tráfico de drogas, advogados, agentes carcerários, parentes e visitantes deles sejam gravadas.
— Se a gente não corta a comunicação do comando do crime que está dentro da unidade prisional, penitenciária, presídio, se o comando do crime transforma as nossas penitenciárias em home office, gabinete de trabalho porque ele continua se comunicando com quem está na rua, a gente está enxugando gelo (...) Há uma campanha também que peço: que se corte a comunicação do comando do crime que está na prisão com o comando do crime que está nas ruas. Isso só se faz gravando tudo e colocando à disposição da Justiça. E isso faz parte do conjunto de medidas que nós vimos solicitando junto ao estado e ao legislativo — disse o ministro, acrescentando que foram feitas 30 varreduras em presídios do país. Segundo ele, em cada três presos, um estava armado. Também foram encontramos chips e celulares.
Cacá Diegues: Flores do mal
Aos ricochetes, a favela se tranca, os meninos não vão para a escola, os pais não saem para o trabalho, as mães choram, como já vi tantas chorarem
É primavera! O sol capricha e brilha de cara para a linha do Equador. Por uns dias, os dias serão iguais nos dois hemisférios, com a mesma duração das noites para igual curtirem trabalhadores e boêmios, atletas madrugadores e poetas crepusculares. Embora, como Verissimo diria, não seja hora para poesia, a cidade floresce, pelo menos a nossos olhos, a pedir para que não seja abandonada.
A primavera chegou, está aí mesmo. Tem bosta no mar, tem lixo na rua, tem o homem armado a pedir seu celular. Mas essa lua é sua e só você a sabe usar, gente dessa cidade.
De arma em punho, o punho cerrado, os bandidos passeiam armados e os soldados os repetem. Ambos se protegem atrás de nós, somos a barreira inútil que impede o fracasso de suas missões. O tiroteio entre a mata e a estrada só atinge a quem está no meio das duas. E dos dois.
Aos ricochetes, a favela se tranca, os meninos não vão para a escola, os pais não saem para o trabalho, as mães choram, como já vi tantas chorarem, mesmo diante de uma câmera. Tudo isso se tornou normal, desinteressante para quem pode se desviar do horror pela hipnótica beleza da Vista Chinesa e, se tiver mais tempo, pelo encanto das Paineiras. A Rocinha que se dane, ninguém tem nada a ver com isso. Nem mesmo seus próprios moradores.
Mas leio no jornal que agora está tudo bem. A autoridade local anuncia que treina os professores para salvar seus alunos, quando começar “o tiroteio que mata nossas crianças até dentro das escolas. (...) Firmamos parceria com a Cruz Vermelha, que oferecerá um curso para orientar nossos educadores sobre como proceder em situações de conflito”. É meio como oferecer um curso de natação àqueles emigrados que atravessam o mar Mediterrâneo em barcaças frágeis.
As escolas privadas, mais sofisticadas, desenvolvem “protocolos de segurança” para seus alunos, criando até passagem subterrânea para que, no fim do dia, deixem as aulas como personagens de um “Indiana Jones”. Agora sim, está tudo bem. Que tais sábios ouçam as gargalhadas da cidade; gargalhadas que, apesar de tudo, espero que ela não tenha desaprendido.
Porque a cidade sempre soube rir, mesmo com bosta no mar e lixo nas ruas, mesmo que a lua se negasse a mostrar-se por tantas noites de tão densas nuvens. Nunca por conformismo, sempre por apenas humor e inspiração guerreira para marchinhas de carnaval, onde dizíamos que, na cidade que nos seduz, de dia falta água e de noite falta luz. É que tínhamos, para nos compensar, o futuro diante de nós, logo ali.
Esta cidade seria o coração deste país do futuro. Futuro que ninguém tiraria de nós, que estava garantido por nossa própria e firme certeza, pelo que de nós todos esperavam. Vivemos tantos anos dessa ilusão, que mal percebemos quando o futuro passou por nós e nos deixou no passado. E descobrimos que nem esperança tínhamos mais o direito de alimentar. Ou para nos alimentar.
Tínhamos tanta esperança nas UPPs! Mas agora o secretário estadual de Segurança nos ensina que “a UPP foi uma tentativa ousada demais, (...) nós fomos ousados demais e talvez estejamos pagando um preço caro por essa tentativa de levar a paz a todas as áreas, inclusive as mais carentes”. Que dizer, não merecemos nada que seja superior à nossa carência, à nossa insignificância.
Na maçonaria, o general Mourão promete tirar novamente os militares dos quartéis. Nos acenou com um novo 1964 e, quem sabe, mais 20 anos de sofrimento geral, bem distribuído entre a população. Contra a previsão do general Mourão, os candidatos que pintam para a mudança democrática de 2018 trocam de nome mas não são nada diferentes dos de antigamente. Caminhamos alegremente para a mesma coisa.
Pela ausência de futuro, o que está em volta de nós se tensiona no passado que mais curte. A política se desmaterializa, sem pique nem referência para, ao menos, podermos torcer por alguma coisa. O que julgávamos moribundo renasce como numa sessão espírita em que os santos que baixam só sabem falar de suas querelas de um passado longínquo.
Renascida na ausência de outra coisa mais nova, a esquerda se radicaliza no culto sem conteúdo do amor ao passado populista. E a direita se organiza popularmente, pela primeira vez na história do país, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sem vergonha de dizer seu nome. E, em tal tensão, não existe mais centro. Ou, melhor dizendo, o que podia ser um centro parece, com seu nariz empinado, querer apenas voar, todo empombado, acima do bem e do mal.
A cidade, como o resto do país, vive todas essas misérias. Mas gosto dela mesmo assim, minha cidade louca que já foi tão delicada, berço de Nem, mas de Cartola também, cidade de bambas e de bombas, tão linda e tão depravada. Gosto tanto dela, mesmo assim.
Em vez de nos satisfazermos com a culpa do Rogério 157, será que a ninguém ocorre tentar mudar o mundo que permite o tiroteio na Rocinha e salvar nossa cidade da tristeza que destrói?
* Cacá Diegues é cineasta
Luiz Carlos Azedo: O cerco à Rocinha
Os traficantes cariocas dispõem de uma topografia favorável, enraizamento social e fonte permanente de financiamento: a venda de drogas
Quem leu Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e Abusado (2003), de Caco Barcellos, traça um inevitável paralelo entre a iniquidade social que deu origem ao povoado de Canudos, no sertão baiano, e a do Morro Dona Marta, na encosta de Botafogo, no Rio de Janeiro. Os Sertões conta a história de Antônio Conselheiro, um líder messiânico; Abusado, a de Marcinho VP, um traficante carioca. O soldado do tráfico é um jagunço urbano. Euclides de Cunha fez a cobertura da quarta campanha de Canudos (1896-1897) para o jornal O Estado de São Paulo. Seu livro, porém, escandalizou a opinião pública. Além de revelar a miséria e o abandono dos habitantes do interior do país, desnudou o despreparo do Exército para lidar com a situação.
Na terceira campanha contra Canudos, o coronel Moreira César, que havia reprimido a Revolução Federalista (1893-1895) e fora enviado pelo presidente Prudente de Moraes para acabar com a rebelião, liderou um desastre. Com canhões Krupp e armas de repetição, seus 1.300 soldados invadiram o arraial de 5 mil casebres com facilidade. Os jagunços não ofereceram resistência, bateram em retirada para os arredores, na caatinga, de onde fustigaram as tropas federais durante a noite. Moreira César foi morto por uma bala traiçoeira e a tropa se desorientou, perdida entre palhoças incendiadas. O tenente-coronel Tamarindo, que assumira o comando, ordenou a retirada: “É tempo de murici; cada um cuide de si!”. A fuga virou carnificina:
“Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas as armas e munições de guerra, os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas…(…) Um pormenor doloroso completou essa encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do tenente-coronel Tamarindo.
Era assombroso… Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e pernas pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão demoníaca.”
O massacre
Em resposta, o ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, mandou para Canudos duas colunas com mais de 4 mil homens. De janeiro a setembro, o Exército penou. O próprio Bittencourt foi para a região organizar as linhas de suprimento e o cerco a Canudos. A morte de Antônio Conselheiro, possivelmente por disenteria, facilitou a vitória do Exército, que prometeu liberdade aos que se entregassem, mas bombardeou o arraial impiedosamente. Homens, mulheres e crianças foram degolados, a “gravata vermelha”. O corpo de Antônio Conselheiro foi exumado, decapitado e queimado. Mais de 12 mil soldados de 17 regiões do Brasil participaram do massacre de 25 mil pessoas. Mais tarde, as revelações de Euclides da Cunha levaram a jovem oficialidade a engrossar o Movimento Tenentista.
As Forças Armadas cercaram a Rocinha na sexta-feira. Têm homens treinados e equipados no Haiti para esse tipo de operação, mas enfrentam uma realidade diferente da caribenha, principalmente porque não estão numa ilha nem dispõem do mesmo amparo legal para intervir. Os traficantes cariocas dispõem de uma topografia favorável, enraizamento social e fonte permanente de financiamento: a venda de drogas. Estão em situação muito melhor do que os jagunços na caatinga. Um confronto aberto resultaria numa tragédia. O cerco à Rocinha é uma missão difícil, de resultados até agora pífios. Parece até ironia, mas as favelas do Rio receberam esse nome por causa dos casebres dos soldados que lutaram em Canudos e foram morar no Morro de Providência.
Maria Alice Carvalho: Descrédito nas instituições cria ‘salvadores da pátria’
Para professora da PUC-RIO, relação entre Legislativo e Executivo representa só os interesses de políticos e setores da burocracia
O Globo
Professora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio, a historiadora e socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho afirma que a investigação, o julgamento e a punição dos casos de corrupção são "a ideia-mãe da democracia", mas não devem levar a um descrédito nas instituições que abra espaço para "salvadores da pátria". Para Maria Alice, a propalada parceria entre União, estado e município que vigorou no Rio nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Sérgio Cabral deveria ter gerado desconfiança desde o início. Não havia "nenhuma voz dissonante", lembra.
De todos os episódios revelados pelas investigações de corrupção no Rio de Janeiro, qual a senhora considera mais simbólico?
Não sei se há um fato mais específico. Estamos vivendo no país todo uma crise política, e a corrupção tem a ver com essa crise. Não sei se dá para mapear limites federativos dessa corrupção. Há evidência de que ela é sistêmica, extrapola os limites nacionais e se manifesta de forma distinta na cidade e na Região Metropolitana do Rio, em São Paulo, Alagoas. Cada lugar tem sua história.
O que marca a política no Rio de Janeiro?
A transferência da capital para Brasília é um marco da alteração da vida política, cultural e institucional do país sem qualquer compensação que pudesse reerguer a economia e o prestígio regionais. O que o Rio apresentou de interessante, e o golpe de 1964 eliminou, foi o início de uma organização popular autônoma nos anos de 1950, com movimentos associativos bastante consistentes. Às vésperas da Constituinte de 1988, essa malha associativa estava arrasada, mas a cidade não estava inerte. Os constituintes receberam demandas e sugestões de associações e movimentos sociais. Havia um nexo entre política e organização social e popular, e isso foi a grande novidade da redemocratização brasileira.
O que interrompeu esse processo?
Fomos atropelados pela dimensão do tráfico de drogas e pelos nexos que ele estabeleceu na cidade, corrompendo a segurança e a política locais. Hoje, tudo isso está muito agravado pelo armamento pesado, um componente mais do que pernicioso na vida da cidade, que produz o terror nas ruas e multiplica a violência. Há uma dificuldade da vida social do Rio, e das favelas principalmente, em estabelecer limites para os desmandos de “mandões” e do próprio governo.
O cenário tem se agravado?
Nas últimas décadas, o cotidiano, a vida como ela é, ficou de fora do arranjo político entre o Executivo e o Legislativo. É uma política de representação que não representa a sociedade, só os próprios interesses de políticos e de segmentos da burocracia do Estado, construída à base de benefícios mútuos e barganhas, e não em torno do compromisso com o bem público. Esse modelo entrou em colapso. E a sociedade só não explodiu porque, para grande parte dela, a política não importa. É lamentável de dizer, porque não há democracia que sobreviva à apatia dos cidadãos, mas as pessoas têm tentado levar suas vidas, alimentar seus filhos, garantir a escola, a saúde, sem pensar que a política pode facilitar ou dificultar nossa vida. A política enche barriga, sim: dependendo de em quem se vota, as liberdades e a justiça social são mais ou menos contempladas. Isso se perdeu, a política se tornou “coisa de políticos”. A corrupção deslegitima a democracia porque corrói os mecanismos pelo quais as pessoas entendem os limites às suas práticas. É como se vivêssemos em permanente e profundo descontrole, e essa sensação é ruim para a democracia, pois ativa as fantasias exclusivas de ordem e punição.
Como o Rio passou, em tão pouco tempo, de símbolo da parceria entre União, estado e município, com os ex-presidentes Lula e Dilma, a síntese do colapso e do abandono?
Essa noção de unidade deveria ter gerado desconfiança. Imagine esses três agentes — presidente, governador e prefeito — sem voz dissonante. Era como se a única saída para nosso desenvolvimento fossem as obras, a Olimpíada, a articulação com empresas, com empreiteiras para construir um novo Rio. E a política, inerte. Não havia oposição e, portanto, discutiu-se muito pouco acerca do que parecia ser um grande consenso. A política exige limites. A democracia é essa tensão entre o direito e o poder.
O Ministério Público e a Justiça apontam que, no Rio, talvez tenha havido o esquema mais duradouro e organizado de corrupção.
A ideia de tornar mais transparente esses processos, de revelar a corrupção, é uma medida salutar. Mas a transparência é um procedimento, não um valor em si. Tem que ser perseguida, e há regras para tal. Essa sede de revelação do sistema de enriquecimento ilícito e de descompromisso com a coisa pública propicia o surgimento de uma histeria ética que pode favorecer a desmoralização das instituições e, no limite, a desinstitucionalização da política. Passa uma noção de que tudo está tão deteriorado que não há o que fazer. A ideia de revelar, de arrolar os casos a serem investigados, julgados e eventualmente punidos, é uma ideia-mãe da democracia. Mas viver alimentando a imaginação social com listas de culpados, de testemunhas, fazer da agenda brasileira apenas essa caça aos corruptos empobrece a natureza da política, os valores em torno dos quais estamos alinhados. Essa apreciação da política como lugar onde todos os vícios se apresentam e onde se encontram todos os malfeitores é grave, acaba criando uma descrença, uma relação de recusa da sociedade ao mundo da democracia e suas instituições.
Os movimentos que pregam o voto em pessoas de fora da política servem à renovação?
Não sei se são “de fora” da política, porque, se vão concorrer, passam a ser de dentro. É um truque, não convence. A sociedade espera uma renovação, mas demora. Não vamos achar uma boa política, um bom político, imediatamente. Temos que fortalecer e reinventar as formas de associação que produzem coesão na base da sociedade. No mundo das favelas ou nos bairros populares da Zona Norte, há uma força associativa, a despeito do tráfico, que é cada vez mais importante. Produção cultural intensa, a chegada dessa juventude negra e pobre, moradora da favela, à universidade; uma voz autoral sobre aquele mundo — o nosso mundo — que não é mais apenas a dos acadêmicos do asfalto. Assim, vamos reconstruindo uma sociabilidade mais amena e uma política participativa e democrática. Não vai ter solução mágica, a democracia é um processo de construção permanente.
As eleições de 2018 já vão mostrar sinais de mudança?
O caminho aponta para a novidade. Por enquanto, falamos de procedimentos: transparência, punição. Em breve, será preciso recuperar valores como compromisso público, uma ética social menos individualista, uma experiência associativa mais densa. Não dá para dizer “está tudo perdido”, pois isso pode fazer com que líderes oportunistas e carismáticos apareçam como salvadores da pátria, desprezando instituições e reeditando um padrão de governo que não interessa.
Revista Veja: Poderes corrompidos
O ministro da Defesa defende a Lava Jato e diz que, no modelo atual, qualquer presidente, inclusive Temer, precisa render-se ao leilão de cargos e verbas, sob pena de não governar
Por Robson Bonin, Páginas Amarelas, Revista Veja
A agenda do ministro da Defesa, o pernambucano Raul Jungmann, de 65 anos, é espinhosa. É dele a responsabilidade de comandar a intervenção das tropas federais no Rio de Janeiro, contornar a insatisfação dos militares com a penúria orçamentária e intermediar a relação do presidente Michel Temer com o seu partido, o PPS, que, apesar de ter abandonado a aliança governista, ainda pode dar votos favoráveis à reforma da Previdência. Para encarar a dureza da rotina, Jungmann despacha ao som de óperas do compositor italiano Giuseppe Verdi. Na militância política, o ministro, que é suplente de deputado federal, lamenta o estado deplorável do sistema político-eleitoral, mas acha que a Lava-Jato está fazendo um necessário trabalho de saneamento. Hoje, tal como está, o sistema é um convite à corrupção mútua, em que um poder corrompe o outro. A seguir, os principais trechos de sua entrevista a VEJA.
O PPS, seu partido, deixou a base governista por causa das denúncias de corrupção. O senhor se sente à vontade no governo do presidente Michel Temer? Se não me sentisse à vontade, sairia. Houve uma precipitação do PPS, e eu disse isso ao presidente do partido. Não me senti obrigado a deixar o governo porque estou em uma função de Estado, em um momento de crise, e tenho compromisso de lealdade com o presidente Temer e os comandantes das Forças Armadas.
Não é constrangedor dividir o ministério com investigados na Lava-Jato? Essa purgação trazida pela Lava-Jato é necessária. Do mesmo jeito que no Brasil há capitalismo de laços, vivíamos uma política de laços, e acho que isso está sendo rompido pela Lava-Jato. Melhor seria se o próprio sistema político tivesse se antecipado. Não o fez, agora está pagando o preço. Esse processo não pode nem deve parar, para o bem do Brasil.
O senhor disse que o presidente Temer tem o direito de terminar o mandato. Não era direito da sociedade ver o STF investigando as denúncias que pesam contra ele? Lembro que o Congresso decidiu que não cabe investigar o presidente agora. A investigação deverá prosseguir, se assim o Judiciário entender, depois do mandato. Mas acho que há interesse público na continuidade de um governo que se propõe a retirar o país da crise a que o populismo nos lançou. Aceitar a denúncia lançaria o país numa turbulência ainda pior.
Como político, o senhor acha razoável destinar bilhões de reais para financiar campanhas eleitorais? Não é razoável. Fomos lançados nessa situação por uma decisão equivocada do Supremo ao proibir — e não limitar, que seria o correto — as doações privadas. O Brasil não tem tradição de doação de pessoa física às campanhas. A proibição do financiamento privado nos condenou à busca de saídas equivocadas como essa. Não é aceitável nem palatável concordar com essa saída neste momento.
Como o senhor avalia as negociatas e barganhas envolvendo o Congresso? Temos um sistema ingovernável, com mais de trinta partidos. Ressalvando meia dúzia que têm projeto, a grande maioria se transformou em negócios. A lassidão e a frouxidão no controle dos partidos levam à situação em que qualquer presidente da República, para fazer maioria, precisa barganhar cargos e emendas. É uma forma sofisticada e disfarçada de corromper um poder pelo outro.
O senhor cogita concorrer ao governo do Rio de Janeiro, como dizem? Se eu fizesse um movimento desses, jogaria no lixo todo o trabalho e a operação que aí estão. E teria de pedir demissão do cargo, porque as Forças Armadas, como instituição do Estado, não se prestam a ser cabo eleitoral de quem quer que seja. Não sou moleque para fazer uma coisa dessas.
"Lula teve chances incomparáveis, com condições econômicas favoráveis aqui e lá fora, de tornar o Brasil um país moderno e não o fez. Ele ficou no populismo econômico"
Lula tem chances de vencer a próxima corrida presidencial? Se o Lula tiver condições de ser candidato, acho difícil que ganhe as eleições. Ele tem teto eleitoral, e esse teto não lhe permite chegar à Presidência. Lula teve chances incomparáveis, com condições econômicas favoráveis aqui e lá fora, de tornar o Brasil um país moderno e não o fez. Ele ficou na esfera do populismo econômico e fiscal, torrou bilhões de reais e deu guarida ao maior esquema de corrupção já investigado na história brasileira.
O senhor foi ministro da Reforma Agrária no governo FHC. Aquele desafio era maior do que o atual? Eu peguei o auge dos conflitos fundiários no Brasil. Fui nomeado doze dias depois de Eldorado dos Carajás (quando a Polícia Militar do Pará, em abril de 1996, matou dezenove trabalhadores sem-terra). Brinco que aqui é o Ministério da Defesa. Lá era o Ministério da Guerra. Naquele momento, o PT usava o MST para fazer o governo FHC sangrar. Hoje as coisas mudaram. Os governos Lula e Dilma promoveram a cooptação do MST, que passou a ser chapa-branca e entrou em declínio, tendo agora um papel secundário.
Qual o impacto da penúria financeira na caserna? Estamos operando no limite. Se não houver a liberação de recursos até o início de outubro, teremos problemas operacionais nas Forças Armadas. Isso gera preocupação e desconforto como em qualquer outra instituição que depende de orçamento. A pressão existe, mas a área econômica prometeu liberar recursos agora que a meta fiscal foi revisada. O que o Brasil ganha investindo dinheiro e tropas em ações como a missão no Haiti? Em treze anos de operação, cerca de 36 000 soldados brasileiros passaram pelo Haiti. Foi uma grande oportunidade de treinamento para as tropas. O país ganhou respeito e reconhecimento internacional pelo desempenho dos nossos soldados em prover a paz, tanto que temos solicitações de dez países para coordenar uma futura missão. Depois do Haiti, iremos para a República Centro-Africana.
Qual o resultado das varreduras que o Exército vem fazendo em presídios de vários estados? É espantoso. Na 14ª de 21 varreduras realizadas até agora, o somatório da população carcerária revistada dava 12 000 homens e já contávamos mais de 4 000 armas brancas. Ou seja, você tinha uma arma branca para cada três apenados. Isso é a maximização da tragédia e do massacre. Ainda tinha celular, armas de fogo, drogas, munição, televisores, rádio, geladeira, freezer... Identificamos presídios em que o controle interno era feito pelos próprios presos. A superpopulação carcerária e o déficit de agentes penitenciários levaram os governos de alguns estados a realizar pactos não escritos com o crime organizado.
Se o sistema carcerário não impede a entrada de novas armas nos presídios, o que fazer? É exatamente essa a nossa preocupação. Por isso, tornamos público o resultado das varreduras nos presídios e chamamos a atenção dos governos estaduais e da opinião pública. O governo liberou recursos para a construção de pelo menos um presídio em cada estado. Mas é muito difícil que os municípios aceitem recebê-los e que haja velocidade em suas obras. É uma face da tragédia do sistema carcerário.
O uso das Forças Armadas em conflitos de segurança pública é adequado? Quando um governador solicita o emprego de Forças Armadas, o presidente da República se vê diante de um dilema. Ele não pode deixar a população exposta e vulnerável ao crime. Por outro lado, a utilização das tropas, cada vez mais recorrente em decorrência da crise de segurança, vem banalizando as operações de garantia da lei e da ordem. As Forças Armadas não são treinadas e preparadas para combater o crime. Costumo dizer que o emprego delas para esse fim faz com que o bandido simplesmente tire férias. As tropas entram, o bandido sabe que não pode ficar ali e se retrai. Quando as tropas saem do território, ele volta. A presença das Forças Armadas apenas inibe, mas não tira a capacidade operacional do crime. Isso quem pode fazer são as polícias. É como se fosse uma anestesia. A dor passa no primeiro momento, mas, quando cessa o efeito da anestesia, o mal está lá, continua.
É o que acontece no Rio de Janeiro? O Rio de Janeiro é um caso necessário de intervenção federal. Pelos dados que temos, o Rio tem mais de 800 comunidades controladas pelo crime organizado e pelas milícias. Quem controla a comunidade controla votos, e quem tem votos elege aliados e representantes. Essa cooptação do poder público, esse Estado paralelo é o grande problema do Rio. O estado foi cooptado pelo crime em suas mais diversas esferas. Precisamos criar uma força-tarefa federal que consiga fazer essa desintrusão do crime dentro do estado do Rio de Janeiro. É preciso golpear o comando do crime, os arsenais e o circuito financeiro. Isso se faz com integração de órgãos e inteligência de todas as forças. O presidente determinou que as Forças Armadas ficarão no Rio de Janeiro até o último dia de governo.
"As Forças Armadas inibem, mas não tiram a capacidade operacional do crime. A dor passa no primeiro momento, mas, quando cessa o efeito da anestesia, o mal está lá"
A crise na Venezuela pode trazer instabilidade para toda a região? A Venezuela definitivamente se tornou uma ditadura. A Constituinte de Maduro encerra a ideia de que somos o subcontinente da paz, que os nossos conflitos são de baixíssima intensidade e que o Brasil é líder nesse subcontinente. É muito provável que a gente venha a ter uma repressão de Estado. Se o cenário se degradar desse jeito, teremos um problema sério, porque isso pode provocar o envolvimento de outras potências de fora do subcontinente em assuntos sobre os quais o Brasil se vê como líder. Isso vai nos deixar diante de um grande dilema.
O que preocupa mais: uma escalada militar ou a questão dos refugiados? Não creio em intervenção militar, porque o Brasil tem na Constituição o respeito à soberania das nações e a paz como instrumento essencial. Creio em um período longo de dificuldades humanitárias crescentes. As nossas preocupações mais imediatas são com os refugiados e os brasileiros que vivem na Venezuela. São 17 000 legalizados, mas esse número pode chegara 30 000 com os ilegais. Estamos nos preparando para a hipótese de termos de criar um corredor humanitário para retirar esses brasileiros do país. Isso vai demandar um esforço logístico e uma atuação grande da Defesa.
Para evitar o impeachment, aliados da presidente Dilma cogitaram decretar no Brasil o Estado de Defesa. Era viável? Naquele instante, as Forças Armadas mandaram recado à presidente Dilma que de forma alguma consideravam necessário, tampouco se comprometiam com a decretação de um Estado de Defesa. Antes de isso ocorrer, houve algo mais sério, que foi o decreto que retirava dos comandantes a competência para a promoção das tropas. Isso, sim, representava um retrocesso democrático inaceitável.
Jornal da ABI destaca mesa redonda sobre Gramsci em parceria com a Fundação Astrojildo Pereira
Evento tem o objetivo de discutir a importância do legado intelectual de Gramsci, 80 anos depois da sua morte, e a contribuição de sua obra como instrumento de percepção e análise da atual crise brasileira
A mesa redonda, que será realizada nesta segunda-feira (21/8), às 18h, será aberta pelo presidente da ABI, Domingos Meirelles, e terá como mediador o Conselheiro da entidade e colunista político Luís Carlos Azêdo. O encontro contará com a presença de Luíz Sérgio Henriques (tradutor e ensaísta ), Alberto Aggio (representante da Fundação Astrogildo Pereira), e Andrea Lanzi, do Partido Democrático Italiano. O objetivo do debate é discutir a importância do legado intelectual de Gramsci, 80 anos depois da sua morte, e a contribuição de sua obra como instrumento de percepção e análise da atual crise brasileira. Ao contrário do pensamento marxista tradicional, que se dedicava ao estudo das relações entre política e economia, ele chamava a atenção para o papel da cultura e dos intelectuais nos processos históricos de transformação social.
“A mesa redonda foi proposta para lembrarmos os 80 anos da morte de Gramsci. Isso é importante especialmente para nós, que somos os maiores divulgadores das interpretações e debates sobre o pensamento de Gramsci no Brasil por meio da coleção de livros (Brasil & Itália)”, aalia Alberto Aggio, historiador e professor titular da UNESP.
Gramsci foi também um dos fundadores do Partido Comunista Italiano e tornou-se mundialmente conhecido pela teoria da hegemonia cultural, onde sustentava que o Estado utilizava o arcabouço das instituições culturais para proteger os interesses de classe das elites e se perpetuar no poder. Pensador agudo das contradições do seu tempo, formulou questionamentos que parecem atuais. Uma de suas reflexões encontra ressonância nos dias de hoje : ” A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem “.
Gramsci foi uma das principais referências do pensamento de esquerda no século XX. Foi também uma das poucas vozes, na época, a denunciar a tirania política de Stálin, e as consequências inerentes a esse processo degenerativo que não foram percebidos, no começo dos anos 30. Suas construções teóricas estão reunidas em um dos clássicos da literatura socialista,” Cadernos do Cárcere “, onde desenvolveu inclusive uma revisão crítica dos postulados de Marx com o objetivo de adaptá-los às condições da Itália durante o Governo Fascista de Benito Mussolini.
Apesar de ser um ativista apaixonado, era fisicamente frágil, seu aspecto franzino e a forma de caminhar lembravam mais um padre que um revolucionário. Preso em 1926, inicialmente condenado a cinco anos, teve logo depois sua pena ampliada para 20 anos. Deixou a prisão, extremamente debilitado, em abril de 1937, em busca de tratamento médico para os pulmões arruinados pela tuberculose, mas morreria três dias depois.
Suas ideias foram condensadas em textos produzidos durante o período em que esteve preso. Sua obra não é fácil de se ler. Escrevia quase sempre em código para evitar a censura dos seus carcereiros. Os textos deixavam a cadeia pelas mãos de sua cunhada, funcionária da Embaixada Soviética, em Roma, para sem encaminhadas ao líder comunista italiano Palmiro Togliatti, que vivia exilado em Moscou.
A lucidez com que Gramci refletiu sobre os problemas e as contradições do seu tempo fizeram com que seu pensamento sobrevivesse não apenas a ele, mas ao próprio socialismo real que desmoronou em bloco, entre 1980 e 1990, com o esfacelamento dos países comunistas do Leste Europeu.
Sua obra foi editada no Brasil em quatro volumes pela Editora Civilização Brasileira, na década de 1970. ” Cadernos do Cárcere ” foi relançado pelo mesmo selo, em 1999, sob a coordenação de Luiz Sérgio Henriques, que será um dos debatedores da mesa-redonda que será realizada na sede da ABI, no Rio de Janeiro.
A mesa redonda terá transmissão ao vivo pelo canal no Facebook da FAP: https://www.facebook.com/facefap