Ricardo Mendonça
Ricardo Mendonça: Sobre promessas e calotes de Bolsonaro
O Brasil estaria pior se ele não tivesse esquecido seu plano
Na virada de 2020 para 2021, daqui a duas semanas, Jair Bolsonaro completa dois anos na Presidência. A metade exata de seu mandato é uma ótima ocasião para um balanço de realizações e do andamento das promessas feitas em 2018.
À primeira vista, um balanço assim parece exercício simples de ser feito. Com meio mandato percorrido, seria razoável esperar que Bolsonaro estivesse com algo próximo a 50% das promessas executadas. Ou que as metas estivessem 50% implementadas - pouco mais ou pouco menos, considerando as dificuldades inerentes e as variações de conjuntura.
Só que não.
A primeira dificuldade é identificar o que Bolsonaro prometeu em 2018. A forma mais óbvia, recorrer ao programa formal de governo, é também a mais inútil. Toscamente organizado e pessimamente redigido, o documento “O Caminho da Prosperidade”, protocolado no TSE, é uma peça imprestável com ponto de partida para uma análise minimamente razoável.
Trata-se de uma apresentação de 81 páginas que amontoa colagens de fotos e gráficos despadronizados com slogans vazios (“faremos uma aliança da ordem com o progresso”), compromissos genéricos (“enfrentaremos os grupos de interesses escusos”), muito conspiracionismo (“enfrentaremos o viés totalitário do Foro de São Paulo”) e pitadas de autoajuda (“SOMOS MUITO MAIS FORTES que todos esses problemas”, assim mesmo, com maiúsculas). Áreas inteiras são ignoradas, como meio ambiente, e não há metas nem prazos fixados. Como medir o desempenho de um governo a partir de uma base assim? Não dá.
Outra caminho é fazer um apanhado dos poucos compromissos objetivos do plano e juntar o suco ralo com falas dispersas de Bolsonaro em entrevistas e propaganda. Com ajuda dos jornais da época, é possível montar um conjunto mínimo de promessas mensuráveis feitas pelo capitão reformado dois anos atrás, lista que, lida hoje, longe do calor da campanha, talvez até surpreenda pelo radicalismo e pela ambição. Eis a relação:
- Eliminar o déficit público primário em um ano;
- Reduzir a carga tributária, simplificar e unificar tributos;
- Criar a carteira de trabalho verde e amarela, para que o jovem possa optar por um regime desvinculado da CLT, e eliminar a unicidade sindical;
- Criar isenção de Imposto de Renda para quem ganha até 5 salários mínimos e criar alíquota única de 20% no IR;
- Promover uma reforma da Previdência que implique num modelo de capitalização com contas individuais;
- Criar um 13º pagamento permanente no Bolsa Família;
- Liberar o porte de armas para toda a população, reduzir a maioridade penal, acabar com a progressão de pena, a saída temporária de detentos e as audiência de custódia;
- Criar o chamado excludente de ilicitude, dispositivo que isenta policiais de responder por mortes cometidas;
- Ampliar o número de ministros do STF de 11 para 21;
- Resgatar o projeto Dez Medidas Contra a Corrupção;
- Implementar o projeto Escola Sem Partido, construir pelo menos um colégio militar em cada capital e extinguir as cotas raciais nas universidades;
- Extinguir o Ministério do Meio Ambiente (MMA);
- Tipificar atos do MST e do MTST como ações terroristas;
- Tirar o Brasil do Conselho de Direitos Humanos da ONU;
- Acabar com a distribuição de cargos e liberação de emendas em troca de apoio no Congresso.
Do conjunto, é possível dizer que Bolsonaro se esforça para facilitar o acesso às armas e que tentou extinguir o MMA e criar o tal excludente de ilicitude. Fracassou nas duas tentativas. Em relação ao 13º do Bolsa Família, um abono foi pago no fim de 2019, mas o mesmo não ocorrerá em 2020. Neste caso, ele pode se defender citando o auxílio emergencial como substituto.
Em todo o resto, o que há até agora é um rotundo calote.
Bolsonaro mais atrapalhou do que ajudou na reforma da Previdência. E o que foi aprovado, muito mais por mérito do Congresso, não guarda semelhança com o que ele dizia em 2018.
Algumas ideias foram esquecidas. É provável que ele ainda defenda, retoricamente, uma ou outra coisa. Mas na maioria dos casos, sequer tentou encaminhar projeto.
Já a rendição ao Centrão, em face da promessa de repúdio aos velhos métodos, soa como o mais puro estelionato eleitoral.
Feitas essas constatações, duas questão emergem para reflexão. Primeira: Seria desejável que Bolsonaro cumprisse suas promessas? Segunda: Os eleitores e admiradores do capitão tendem a abandoná-lo quando (ou se) se deram conta da distância entre promessas e realidade?
As respostas para as duas perguntas são não e não.
Embora, por princípio, o que se espera de um governante é que ele cumpra com sua palavra, parece não restar dúvida de que o Brasil estaria pior hoje (ou ainda pior) se Bolsonaro levasse a cabo a maior parte do que anunciou em 2018.
Até os mais fanáticos sabem que o projeto de elevar o número de ministros do STF para 21 não era inspirado na necessidade de melhoria do Judiciário. No contexto em que foi citado, era muito mais um desejo de captura o tribunal. O mesmo vale para o Escola Sem Partido, com seu indisfarçável desejo de perseguição a professores, e outras propostas meramente destrutivas relacionadas à segurança, meio ambiente e direitos humanos.
Mas e o eleitor bolsonarista? Alguém pode esperar queda de popularidade em razão do abandono de promessas? A julgar pelas pesquisas, isso não ocorrerá. No Ibope, Bolsonaro tem 35% de aprovação, exatamente o mesmo patamar de seu quarto mês de mandato.
E numa avaliação mais subjetiva, a manutenção de Bolsonaro na Presidência talvez represente para uma parcela significativa de seus eleitores o atendimento de dois anseios muito fortes de 2018.
Quem, revoltado com a política, votou em Bolsonaro pelo desejo vingativo de ver um personagem vulgar no topo do sistema, tem hoje o que queria. E quem votou pelo único desejo de ver o PT longe do poder, confirmou, nas eleições municipais, que a coisa parece estar funcionando.
Ricardo Mendonça: O recuo da militância virtual bolsonarista
Alexandre Moraes não se intimidou com os memes e as ameaças
Na manhã de 28 de maio, na porta do Alvorada, um enfurecido Jair Bolsonaro disse a repórteres e a uma pequena plateia de simpatizantes que “ordens absurdas não se cumprem”. O tom da voz foi aumentando. “Não teremos outro dia igual ontem. Chega! Chegamos num limite”, advertiu. Teve até palavrão. “Acabou, p…! […] Acabou! Não dá para admitir mais a atitude de certas pessoas individuais.”
A irritação era em relação a uma operação da Polícia Federal deflagrada na véspera: Buscas e apreensões em endereços de 17 bolsonaristas suspeitos de financiar e disseminar informações falsas pela internet. Não houve prisões naquela ocasião. Entre os alvos estavam os empresários Luciano Hang (Havan) e Edgard Corona (Smart Fit e Bio Ritmo); os blogueiros Allan dos Santos e Bernardo Kuster, donos de perfis muito populares na extrema-direita; e o ex-deputado federal Roberto Jefferson, o chefão do PTB que foi condenado no mensalão e, mais recentemente, ressignificado no bolsonarismo.
O “certas pessoas individuais” da bronca presidencial era o ministro Alexandre de Moraes, do STF, não citado nominalmente. Relator do inquérito que apura produção de “fake news” e ameaças à corte, foi ele que autorizou as buscas do dia 27.
Numa conversa sobre a mesma operação, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi ainda mais explícito que o pai. Falando sobre a hipótese de uma ruptura institucional, disse que não era mais uma questão de saber “se” a cisão iria ocorrer, mas “quando”.
A claque bolsonarista captou os recados e, nos dias seguintes, pareceu bastante à vontade para manter o padrão usual de comportamento nas redes e nas ruas. Muitos debocharam do Supremo. Uma deputada aliada pediu o impeachment de Moraes. Um dos blogueiros alvo chamou o ministro do STF de “moleque” e “criminoso” em novo vídeo. Reunidos semanas depois nos arredores da corte, um grupo atacou a instituição com fogos de artifício.
Algo, porém, mostrou-se muito errado na apoplética advertência de Bolsonaro. Para o bolsonarismo, houve, sim, outro dia como o 27 de maio. E não foi só um. Foram três com as mesmas características.
Em 15 de junho, em nova operação, a PF prendeu a bolsonarista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, líder de um grupo armado de extrema-direita que fazia um estranho acampamento em Brasília. No dia 16, Moraes atendeu pedido da Procuradoria-Geral da República e determinou a quebra do sigilo bancário de dez deputados bolsonaristas e um senador. São personagens de um segundo inquérito no STF, o que apura organização de atos antidemocráticos. Nesse ato foram mais 21 mandados de busca, alguns contra figuras que já haviam sido visitadas pela PF dias antes. No dia 26 foi a vez da prisão do blogueiro Oswaldo Eustáquio, um dos mais ativos e ousados bolsonaristas da rede.
O fato de ter existido uma segunda rodada de buscas nesse campo, e desta vez com prisões, mostra que: 1) O ministro Alexandre de Moraes não se intimidou com memes, xingamentos, insinuações e ameaças após a primeira operação; e 2) Bolsonaro estava blefando quando afirmou que não haveria outro dia como aquele - ou, mais revelador ainda, não teria obtido respaldo de outras forças para tentar incapacitar o Supremo Tribunal Federal.
Os dias seguintes à segunda leva de buscas foi bem diferente na orbe bolsonarista. À coluna, o pesquisador David Nemer, antropólogo da Universidade da Virginia (EUA) que monitoria 1.874 grupos do WhatsApp de apoio ao presidente, disse ter apurado uma queda de até 30% no fluxo diário de mensagens. “O tom também baixou muito”, notou Pablo Ortellado, professor da USP que estuda o tema. Não surgiram mais notícias de zombaria contra o STF. E o blogueiro que havia chamado Moraes de “moleque” e “criminoso” foi flagrado apagando vídeos antigos de seu canal no YouTube.
“Vários correram para apagar vídeos e tuítes”, afirma a antropóloga Letícia Cesarino, pesquisadora de novas mídias da UFSC. “Foi algo inédito nesse ambiente. Uma queima de arquivos. Estão vendo que não estão mais imunes.”
STF e PF não são as únicas frentes de pressão contra a cibermilitância do presidente. Há duas semanas o Facebook derrubou uma rede de contas e perfis inautênticos que se dedicava a desinformar e a fazer ataques coordenados. As mais de 80 contas e páginas retiradas do Face e do Instagram nem eram as maiores do campo bolsonarista, mas a ação teve impacto político relevante por mostrar que eram ligadas a integrantes do gabinete da Presidência, aos filhos de Bolsonaro e ao PSL.
Outro pedregulho está no Twitter. O recém-criado perfil “Sleeping Giants” Brasil dedica-se a desmonetizar canais, sites e blogs identificados como os mais descarados difusores de notícias falsas.
Em apenas dois meses mobilizou mais de 450 empresas a remover anúncios de alguns dos principais portais de apoio do presidente (calcula-se no meio que os chamados “ads” automatizados chegam a render mais de R$ 20 mil por mês a propagadores de notícias falsas).
Há ainda a CPI das “fake news” no Congresso - pronta para ganhar força conforme diminuem as restrições da pandemia - e um projeto de lei sobre o tema que, embora criticado com argumentos defensáveis, criaria restrições a operários da desinformação.
Não parece exagero dizer que a militância radicalizada das redes seja um dos principais alicerces de sustentação política de Bolsonaro. Os outros são os militares, os evangélicos e, de um tempo para cá, os recém-contratados partidos e congressistas do Centrão.
Na internet, nenhum outro político do Brasil tem ou teve aparato similar a seu dispor. Na comparação com a concorrência, os bolsonaristas da rede sempre ganharam em escala, linguagem, velocidade, motivação e virulência. Como jamais havia ocorrido desde a campanha de 2018, essa militância virtual sofreu abalos. Sob inédita pressão, deu alguns passos para trás.
Irão voltar? É uma questão de “se” ou de “quando”?