revolucionários
Alberto Aggio: A teoria pura da revolução
“O dever de todo revolucionário é fazer a revolução”. Essa máxima tautológica, atribuída a Ernesto Che Guevara, tornou-se a senha para diversas gerações de militantes políticos que fizeram parte do que muitos chamam de “revolucionarismo” latino-americano. Nas palavras do historiador chileno Alfredo Riquelme, uma manifestação da “imaginação revolucionária” que incendiou as inúmeras correntes e grupos que emergiram nos “longos anos sessenta”[1], que se iniciam com a Revolução Cubana de 1959 e se prolongam até a derrubada de Salvador Allende no Chile em 1973.
Che Guevara e Fidel Castro
Também identificado como “ultraesquerda”, o revolucionarismo se antagonizou dura e permanentemente com todas as correntes de esquerda ou de centro-esquerda (ainda que tal terminologia não existisse na época) que buscavam patrocinar ou apoiar reformas que modernizassem ou tornassem menos desiguais as sociedades latino-americanas. Tais grupos assumiram a luta armada como ação política ou como perspectiva estratégica de seus programas revolucionários. Instalaram no seio da esquerda latino-americana uma “muralha chinesa” entre reforma e revolução, caracterizando os partidos políticos que não seguissem suas orientações como “tradicionais” ou simplesmente “reformistas”, mesmo que as reformas fossem projetadas dentro de uma perspectiva de “revolução processual” voltadas para o socialismo. Esse vigor antagonista era expressão de uma atitude reativa à esquerda latino-americana, especialmente aquela que se pautava pelo marxismo originário da Revolução bolchevique, ou seja, os Partidos Comunistas orientados por Moscou e que buscavam se atualizar em função das variações táticas de lá emanadas e “traduzidas” para seus países.
Apesar dessa busca incessante de apartação da esquerda prévia a ele, o revolucionarismo não conseguiu se desvencilhar dos pressupostos de orientação geral que marcaram historicamente o comunismo no século XX. Como anotou José Rodriguez Elisondo[2], era nítido o apelo à fórmula da “classe contra classe”, que se acoplava a outras noções, tais como, (1) o caráter do Estado burguês como simples aparelho de dominação de classe; (2) a validade da “ditadura do proletariado” e a fusão entre partido e Estado; (3) o caráter de “destacamento avançado” do partido revolucionário, composto por revolucionários profissionais; e, por fim, (4) a militância como “forma de vida” e a “vigilância revolucionária” como conduta permanente. Evidentemente, são pressupostos seletivamente assumidos. Não à toa deixa de aqui comparecer o Lenin crítico ao vanguardismo e à pequena-burguesia radicalizada.
Mas há no revolucionarismo uma espécie de sincretismo de ênfases e orientações que formam um mosaico, assumido caso a caso, no qual se prega a luta contra o “cerco capitalista” e a denúncia do “reformismo burguês” como “ala moderada do fascismo”; recusa-se o etapismo, afirmando o caráter internacional da revolução socialista; defende-se a tese de Mao Tse-Tung de que o centro da revolução mundial havia se deslocado para Terceiro Mundo ao mesmo tempo em que se critica o “aburguesamento” da então União Soviética e sua política de “coexistência pacífica”; por fim, last but not least, sob a influência da chamada “nova esquerda” da década de 1960 (H. Marcuse e Wright Mills) adota-se o ódio à “sociedade de consumo” e se sugere que os intelectuais passem a compor uma “nova formação revolucionária” que tivesse como base a aliança entre intelectuais, estudantes e setores marginalizados, em geral.
É mais do que evidente que o revolucionarismo latino-americano se expandiu a partir de uma leitura mitológica da Revolução Cubana. Dela emerge um “modelo” de revolução concebido como único para o continente. Nele estão algumas fórmulas que se tornaram verdades insofismáveis, a começar pela visão geral de que a revolução foi impulsionada por “um punhado de homens decididos e audaciosos” que abriram passagem para o “povo” se constituir na força motriz da revolução. Esse “punhado de homens” se constituiu na direção política da revolução, substituindo o partido operário-socialista, e, acima deles, emerge a figura carismática do líder revolucionário. Contestando fortemente os pilares do comunismo soviético, a pedra de toque dessa leitura se fixava na ênfase de que a base guerrilheira e logística da revolução é camponesa e não uma organização partidária operária e popular. Soldando essas formulações, cria-se o axioma de que a revolução cubana nasce do “atraso”, mas assume seu caráter anti-imperialista e se coloca a tarefa da construção do socialismo. É, portanto, uma revolução que realiza o chamado “salto” do capitalismo, superando a tese da necessidade de uma etapa “democrático-burguesa”. Por tudo isso, o socialismo cubano seria uma “criação heroica”, única e desafiadora para o mundo intelectual vinculado ao marxismo anterior a ela.
As derivações da leitura mitológica da revolução cubana para as teses gerais que fundamentaram o revolucionarismo latino-americano podem ser sintetizadas, de acordo com José Rodriguez Elizondo, em seis pontos: 1. a revolução latino-americana é continental; 2. seu caráter é socialista pois o desenvolvimento capitalista no continente é obstaculizado pela dependência que cancela a possibilidade de a burguesia nacional liderar uma revolução democrático-burguesa; 3. a forma e o método é o da luta armada, concebida como “uma forma superior de luta”; 4. em função da defasagem do proletariado latino-americano em relação aos países mais avançados, a pequena-burguesia assume o papel dirigente da revolução; 5. a revolução pede alianças entre frentes e polos revolucionários – e não alianças entre classes – para confrontar tanto o inimigo estratégico, o imperialismo, quanto o inimigo tático, a burguesia local; 6. os partidos comunistas latino-americanos não são instrumentos revolucionários válidos porque se burocratizaram, são etapistas, privilegiam as diferenças entre os países latino-americanos ao invés da sua homogeneidade, negam o caráter socialista da revolução, adotam condutas pacifistas e se submetem a frentes políticas amplas[3].
A partir desta visão formou-se no continente o que se pode chamar de uma “militância da revolução cubana” que teve muita influência por toda a década de 1960. Entretanto, depois de um primeiro momento de acumulação de forças, o “partido da revolução cubana” se enfraqueceu, golpeado pelo impacto da morte de Che Guevara, na Bolívia, em outubro de 1967, a derrota da revolta de maio de 1968, em Paris, e, por fim, a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em agosto do mesmo ano. Estes acontecimentos exacerbaram os sentimentos anticomunistas da ultra-esquerda latino-americana. No tocante ao Che, pela suposta “traição” do PC boliviano. Em relação ao maio parisiense, pela generalização da avaliação de que “os comunistas têm medo da revolução”. E, quanto a Checoslováquia, passou a pesar a qualificação da URSS como uma potência imperialista, que encobria este caráter com a retórica revolucionária.
Quando Fidel Castro visitou Salvador Allende no Chile, no final de 1971, permanecendo no país por 24 dias[4], o cenário mundial era bastante diferente daquele no qual a revolução trinfou em Cuba. A revolução era, por certo, uma retórica compartilhada, mas a obsessão do revolucionarismo havia se deslocado para o tema do socialismo. Por esse entendimento, é explicável que Fidel tenha admitido, em parte e apenas publicamente, a “insólita” existência de uma via chilena ao socialismo como uma “via política ao socialismo” (Allende), embora discordasse inteiramente dela. Aliás, naquele momento, Cuba já havia alterado sua orientação, aliando-se incondicionalmente a URSS e julgava que o fundamental era manter o poder conquistado, arrefecendo a ênfase anterior de promover outras revoluções a todo custo. De fato, anos mais tarde, numa entrevista a Newsweek, em 09 de janeiro de1984, Fidel esclareceria que a estratégia guerrilheira na América Latina era uma das muitas variáveis de defesa do regime revolucionário cubano, ao contrário do que se havia afirmado na década de 1960 de que a revolução na América Latina “caia de madura”. Nas palavras de Fidel: “Nem ao menos oculto o fato de que, quando um grupo de países latino-americanos, sob a direção e inspiração de Washington, não apenas buscou isolar Cuba politicamente, mas a bloqueou e patrocinou ações contrarrevolucionárias (…) nós respondemos, num ato de legítima defesa, ajudando a todos aqueles que queriam combater contra esses governos”[5].
Os pressupostos da teoria pura da revolução acabaram se cristalizando e diversas gerações os assumiram e os vivenciaram sem espírito crítico. Mesmo admitindo que, com o tempo eles sofreram ajustes, alterações ou mesmo supressões, é importante estabelecer uma avaliação rigorosa a respeito das orientações que sustentavam o chamado “processo revolucionário latino-americano” que aquela “teoria” supunha. Isso é ainda mais importante porque ela ainda influencia significativas parcelas da esquerda latino-americana além de inúmeros intelectuais que trabalham em diversos campos do conhecimento na área de Humanidades.
Expressando claramente o caldo de cultura de abstracionismo existente na época, o mito da revolução vitoriosa acabou por sustentar a construção de um modelo que, ao ser tomado como “universal”, se voltou contra a História. Cultuou-se um modelo alternativista que via a política a como jogo de soma zero, evitando funcionar dentro de um sistema político que obrigava os atores a partilharem um consenso mínimo; produziu-se um modelo de antipolítica, essencialmente. Essas posições tinham correspondência com uma postura confrontacionista no plano internacional, que compreendia a América Latina como vanguarda do Terceiro Mundo e tratava como inevitável o confronto com os EUA. Che Guevara qualificava os EUA como a “mais bárbara nação do mundo”, o “grande inimigo do gênero humano”. Isso contrastava, por exemplo, com a postura do Vietnam que preferiu atuar dentro dos EUA, explorando as suas divisões internas. No plano nacional, como não poderia ser diferente, o modelo supôs a existência de dicotomias excludentes: o Estado é o aparelho de coerção que precisa ser tomado; o Exército é a versão concentrada do Estado como expressão da violência contra as classes dominadas; o Direito sublima as relações de força e institucionaliza a exploração das maiorias; as classes sociais são a representação de explorados e exploradores; os partidos políticos fazem apenas o jogo das classes dominantes e estão destinados a desaparecer.
Não há como eludir o resultado de que toda essa formulação só poderia redundar numa nova ditadura de classe, flagrantemente autoritária. A democracia e a liberdade se tornam, aqui, categorias subjetivamente instrumentais: a democracia dos exploradores não é, em nenhum aspecto, a dos explorados e as liberdades de alguns são derivadas das carências de outros, sem uma área intermediária. Em síntese, democracia e liberdade devem ser revolucionárias e isto significa que devem servir para garantir a implantação de uma nova ditadura. É inexplicável como poderá nascer daí uma sociedade nova, um “homem novo”.
Assim, mais que interpretar ou revolucionar o mundo, a teoria pura da revolução serve para afastar da reflexão a complexidade da realidade. Ela é simplesmente “falsa consciência”, pura ideologia. Sua imaginação funciona para eludir um jogo intelectual de tipo circular, exercitado nos seguintes termos: a impaciência revolucionária se justifica pelo “atraso histórico”, levando à busca de um atalho revolucionário que permita, por sua vez, recuperar o tempo perdido … que justifica, uma vez mais, a impaciência revolucionária.
Mirando historicamente, o resultado não é outro senão o fracasso: não se implantou uma “nova sociedade”, nem em termos revolucionários, nem em termos reformadores. Nesse sentido, perdeu tanto a reforma como a revolução. Nenhum dos teatros de operação da região serviu como suporte para levantar e sustentar uma “segunda Cuba”. Tampouco para consolidar aquelas transformações estruturais que alguns governos reformadores vinham colocando em prática.
Ao contrário da imagem europeia que qualifica a década de sessenta como uma “década prodigiosa”, na América Latina ela foi, antes de tudo, “uma década perdida”, especialmente para aquela esquerda que aderiu à teoria pura da revolução. Foi preciso atravessarmos o século e o milênio para vermos emergir, em traços ainda bastante rudimentares, uma esquerda ainda sem nome próprio, que ainda coqueteia como aqueles paradigmas e claudica em se conformar como um ator distinto do que foi no passado e do que é na atualidade.
[1] RIQUELME S. Alfredo, “La vía chilena al socialismo y las paradojas de la imaginación revolucionaria”. In Araucaria. Revista ibero-americana de Filosofia, Política y Humanidades, año 17, n. 34, segundo semestre de 2015, p. 203-230.
[2] RODRIGUEZ ELIZONDO, J. Crisis y renovación de las izquierdas – de la revolución cubana a Chiapas, pasando por “el caso chileno”. Santiago: Andres Bello, 1995, pp.131-167. A expressão que dá título e que inspira diversas passagens desse artigo é de José Rodriguez Elizondo.
[3] RODRIGUEZ ELIZONDO, J., 1995.
[4] AGGIO, A. “Uma insólita viagem: Fidel Castro no Chile de Allende” In AGGIO, A. “Um lugar no mundo – estudos de história política latino-americana. Brasília: Fundacão Astrojildo Pereira, 2ª. Edição, 2019, p. 121-136.
[5] RODRÍGUEZ ELIZONDO, J. “El invierno del Messías”. La Tercera. Santiago, 28 de octubre de 2001. p. 9 (Cuaderno Reportajes intitulado El invitado que saboteo a Allende).
Fonte:
Blog Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/a-teoria-pura-da-revolucao/
(Artigo publicado simultaneamente em Estado da Arte, 08 de maio de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/teoria-pura-revolucao-aggio-hd/)
Antonio Fausto: Ascensão e crise do movimento sindical no Brasil
A organização dos trabalhadores brasileiros, em Sindicatos, tem início nos primeiros anos do Século XX, derivada do movimento anarquista, trazido pelos imigrantes, que durante meio século (1880/1930) chegaram a quatro milhões de pessoas, a maioria estabelecida no Estado de São Paulo, de onde saíram muitos militantes e dirigentes socialistas revolucionários, influenciados pela revolução russa de 1917.
A produção em bases capitalistas, no Basil, começou no último quartel do século XIX com o surgimento do mercado de trabalho assalariado, possibilitado pela abolição da escravatura e a deterioração das estruturas tradicionais. A fabricação têxtil foi durante muitos anos o principal ramo da indústria nacional, que cresce e se diversifica em várias regiões do País.
Três séculos e meio de dominio do escravismo e de outros sistemas arcaicos, exploração sem limites legais e opressão social das camadas despossuídas, escravos e pobres livres foram mutilados moral e fisicamente. A falta de instrução mínima, analfabetismo mesmo, tradições e costumes primitivos foram obstáculos à exploração da mão-de-obra existente. Daí que os fazendeiros de café e os industriais principiantes preferissem contratar operários-imigrantes.
A primeira etapa da formação do sistema foi concluída ao fim da Primeira Guerra Mundial e com ele se consolida a organização dos trabalhadores em entidades sindicais. Já em 1903, no Rio de Janeiro, ocorrem duas grandes greves, com a participação de cerca de 25 mil operários. Em 1908, foi criada a Confederação Operária Brasileira-COB, a primeira Central Sindical nacional, de influência anarco-sindicalista. Em São Paulo (1917/1919), duas greves gerais (foto acima, greve em 1917), abrangendo cem empresas industriais e milhares de trabalhadores.
Durante quarenta anos, a organização sindical do proletariado brasileiro ocorre no quadro da República oligárquica (1889/1930), cujo traço profundamente repressivo norteou a relação do Estado com as classes subalternas da Sociedade. Desde o início da República, até os anos 20 do Século passado, leis de exceção foram eliminando progressivamente as liberdades previstas na Constituição de 1891, a primeira do regime republicano.
O Código Penal de 1890 considerava reincidente o "vadio ou vagabundo" que não encontrasse ocupação dentro de quinze dias a partir da pena, e o infrator seria recolhido a colônias penitenciárias em ilhas marítimas, nas fronteiras do território nacional ou em presídios militares. Se fosse estrangeiro seria deportado. Entre 1907 e 1915, 342 (trezentas e quarenta e dois) deportações, grande parte de militantes operários. O desterrro será um instrumento largamente utilizado para reprimir as classes subordinadas, a revolta contra a vacina, de 1904, as lutas contra a carestia, as greves dos anos dez e as rebeliões tenentistas a partir dos anos vinte.
Também houve conquistas sociais, formuladas em lei, tais como definição da jornada de trabalho, descanso semanal, regulamentação do trabalho feminino, férias remuneradas e previdência social, estabilidade no emprego dos dirigentes sindicais, ainda que aplicadas parcialmente ou desconsideradas na maior parte do País e somente efetivadas a partir da Revolução de 1930, acrescidas do salário mínimo e de outros benefícios, enfeixados na Consolidação das Leis do Trabalho-CLT, em favor somente dos trabalhadores urbanos.
No período de 1930/1945, uma ditadura, o governo dirigido pelo presidente Getúlio Vargas (foto acima. Arquivo Nacional) alternou benefícios sociais e trabalhistas com violações da liberdade e autonomia sindical, utilizando o Ministério do Trabalho e uma legislação intervencionista. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, retorno ao Estado de direito, uma Constituição de muitas disposições democráticas, e do próprio presidente Vargas, por via eleitoral direta, em 1950, substituindo um remanescente do Estado Novo, que arrochou salários e reprimiu violentamente as manifestações dos trabalhadores e de suas organizações sindicais. Em Maio de 1954, o salário mínimo, congelado desde 1943, foi dobrado pelo Presidente, ao preço de uma crise político-militar provocada pelo Manifesto dos Coronéis das Forças Armadas, contrários à medida, resultando na queda do então Ministro do Trabalho, João Goulart.
A partir de meados da década de cinquenta, no governo Kubitschek (1956/1960), intensificou-se a presença do capital estrangeiro. Indústria automobilística, construção naval e demais ramos manufatureiros datam dessa época, ao abrigo da Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito-SUMOC, embrião do Banco Central, com ampla disponibilização de privilégios aos capitais dos países desenvolvidos. Aumentaram igualmente os investimentos estatais, construção de Brasília, de autoestradas, modernização dos portos e ferrovias, centrais elétricas e siderúrgicas. Recrudescimento da inflação, da espiral preços/salários e da dívida externa.
A industrialização acelerada gerou muitos empregos, também o agravamento da situação material de grande parte da população, bastante aumentada pela migração interna campo/cidade, a par do desemprego urbano resultante das novas tecnologias. A grande conquista social do período foi a lei 3807/60, 26/08/1960, Lei Orgânica da Previdência Social, que consolidou e deu mais consistência jurídica á legislação previdenciária existente.
Em Setembro de 1961, chega ao poder o governo João Goulart (foto acima. Arquivo Nacional), como desfecho de uma crise político-militar de enormes proporções que, por muito pouco, nao levou o País a uma guerra civil. Desde o início da era Kubitschek e em decorrência dos grandes investimentos acima relatados, a economia ganhou escala e com ela o movimento sindical e associativo das massas populares, agora em clima de orientação nacionalista, democrática, liberdade e autonomia - frente ao Estado - das organizações dos trabalhadores, mais na prática que inscritas em leis. Surgem novas categorias profissionais, crescem as já existentes, despontam o sindicalismo rural, as associações de camponeses pobres, de profissionais liberais e de funcionários públicos.
A concentração e o verticalismo ministerialista perdem terreno, com o surgimento de entidades horizontais, conselhos estaduais de categorias estratégicas, mais enraizamento nos locais de trabalho. Até mesmo uma central sindical bastante representativa, o Comando Geral dos Trabalhadores-CGT, embora ao arrepio da legislação vigente. Greves e manifestações se multiplicaram, algumas abusivas, prejudicando a população. Também os excessos e postulações utópicas, peculiares a todo movimento de massas, que desgastavam o governo democrático e incentivavam o golpismo civil-militar, vindo a efetivar-se em Março/Abril de 1964. Além de correções salariais mais ou menos favoráveis aos trabalhadores, destacou-se como conquista trabalhista a criação do Décimo Terceiro Salário.
REFORMA DA ESTRUTURA SINDICAL, DIREITOS SOCIAIS CONSTITUCIONALIZADOS E SINDICALISMO DE ESTADO
As forças político-militares, que assumiram o poder em Abril de 1964, desencadearam repressões em massa contra seus adversários, cassação dos direitos políticos de centenas de personalidades, milhares de pessoas foram presas e demitidas do serviço público civil e militar. Grande número de sindicatos foi colocado sob intervenção do Ministério do Trabalho. Foram proibidas as greves. Elevaram-se as tarifas dos serviços essenciais, eliminados subsídios para importação do trigo e aumento dos impostos indiretos, reduzindo de imediato o poder aquisitivo dos salários. De 1964 a 1967 o salário mínimo diminuiu vinte por cento em termos reais, vindo a ser aumentado somente em 1975. Ainda assim, foi trinta e nove por cento inferior ao de Janeiro de 1963, no governo deposto. O regime militar também registrou êxitos econômicos e crescimento que não se revelaram sustentáveis e conduziram a seu esgotamento e retorno ao Estado de direito democrático.
A partir de 1978, os trabalhadores organizados em Sindicatos retornaram á cena política. A greve numa fábrica de automóveis em São Paulo abrangeu, rapidamente, toda a indústria metal-mecânica do Estado, com mais de duzentos mil operários. No ano seguinte, incorporaram-se ao movimento categorias do funcionalismo público e dos assalariados agrícolas. No período de 1978/1980, houve mais de quatrocentas paralisações, o direito de greve foi reconquistado na prática e prosseguiu pelas décadas seguintes. Aumentou a filiação sindical, atingindo contingente significativo da população economicamente ativa.
A organização em sindicatos expandiu-se bastante, difundiu-se largamente pelo meio rural, diversificou-se, incorporando amplos setores das classes médias urbanas e de profissionais liberais. Os anos oitenta viram nascer legalmente as centrais sindicais. Houve mudanças legislativas, com abolição do estatuto padrão, que subordinava inteiramente o movimento laborativo ao Estado. A Constituição de 1988 foi o corolário desse processo de democratização e reforma, também de continuidade da subordinação aos Poderes do Estado, Executivo, Legislativo e Judiciário. Desde sempre, a necessidade de reconhecimento oficial pelo aparelho de Estado é o elo fundamental da estrutura sindical, a unicidade, as contribuições dos trabalhadores e a tutela da Justiça do Trabalho.
Os anos oitenta, a década perdida, foram marcados pela estagnação do crescimento, pela instabilidade das políticas econômicas do governo, das regras de correção salarial e dos mecanismos de controle da inflação, que redundaram na queda do poder aquisitivo dos salários, no crescimento da terceirização das relações de trabalho, informalidade e trabalho precário, superando largamente o contrato formal e o asseguramento dos direitos sociais.
O sindicalismo de Estado, no Brasil, nasceu com os primeiros governos populistas, a partir da Revolução de 1930 e da ditadura do Estado Novo. A Constituição de 1988 consagrou a liberdade e autonomia sindical e os próprios direitos sociais foram elevados á condição de normas constitucionais, um avanço sem precedentes no ordenamento jurídico vigente no País, embora com exclusão de mais da metade da força de trabalho.
Uma nova onda de populismo e atrelamento ao Estado ressurge com os governos petistas, a partir de 2003, culminando na destinação de parte expressiva do ainda existente Imposto Sindical às Centrais Sindicais, que evoluiram para perto de uma dezena, com intensa proliferação de sindicatos de "carimbo", levando um presidente da CUT a declarar ser mais fácil fundar um sindicato que uma pequena empresa, e mais lucrativo.
Em agosto de 1981, em Praia Grande, Estado de São Paulo, realizou-se a I Conferência Nacional da Classe Trabalhadora - CONCLAT. Presentes 1091 entidades sindicais e 5036 delegados. O meio rural participa com 348 sindicatos, 17 federações e uma Confederação, a CONTAG. Em 1983 é fundada a CUT, em 1984, a CGT, as duas primeiras centrais sindicais nacionais, legalmente constituídas, pelo menos no plano político, ante o esgotamento do regime militar e o retorno ao Estado de direito, no ano seguinte.
Em que pesem todos os avanços, o movimento sindical continuou a conviver com antigas e novas distorções. Baixo índice de sindicalização e de organização nos locais de trabalho, à exceção de algumas poucas categorias, manipulação política na distribuição de cartas sindicais pelo governo, forte instrumentação do assistencialismo, continuismo e prorrogação de mandatos, adiamento de eleições, mediante alterações estatutárias, aparelhamento partidário e formação de clientelas eleitorais. Persistência do peleguismo e do sindicalismo de negócios, que embora tenham perdido a direção das entidades mais importantes, ainda controlam a esmagadora maioria dos sindicatos oficiais.
Convivência submissa com o baixo grau de escolaridade dos trabalhadores, em torno de cinco anos, excessiva rotatividade, conduzindo ao achatamento dos salários, desigualdade social e crescente pobreza de massas, burla da legislação trabalhista e previdenciária com a pejotização dos titulares de remunerações mais elevadas. Rebaixamento de grande parte das aposentadorias e pensões para um salário mínimo e seu entorno, obrigando a maioria dos beneficiários a continuarem no mercado de trabalho, realimentando o desemprego das novas gerações de trabalhadores.
A pandemia do Coronavirus há quase um ano,já ultrapassando mais de duzentos mil mortos, a maioria de idosos, agravou todas as contradições da Sociedade. O desemprego, incluídos os desalentados, atinge vinte milhões de trabalhadores, um quinto da força de trabalho, somente atingido na Grande Depressão dos Anos Trinta do século passado. Com tendência de alta em face das novas tecnologias, que automatizam e simplificam processos e subutilizam instalações físicas.
O fim do auxílio emergencial e as pressões inflacionárias remetem à pobreza e indigência milhões de trabalhadores, que poderão corresponder a 30,8% da população, segundo pesquisador da Uerj. O movimento sindical e associativo dos trabalhadores brasileiros tem um peso político, na Sociedade, que deve ser exercitado no sentido de agilizar a vacinação em massa da população, negligenciada pelo governo, o restabelecimento de alguma forma de ajuda aos desempregados e informais e a retomada do crescimento da economia, com investimentos públicos e privados e reformas estruturais.
*Antonio Fausto é administrador e ex-dirigente sindical
Obras de referência: 1) Estratégias da Ilusão - Paulo Sérgio Pinheiro - Companhia das Letras - 1991. 2) Brasil, Passado e Presente do Capitalismo Periférico - A. Karavaev - Edições Progresso - 1987. 3) O Sindicalismo Brasileiro Nos Anos 80 - Armando Boito Jr. (org) - Editora Paz e Terra - 1991 4) Brasil: Uma Biografia - Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling - Companhia das Letras - 2015.