revolução russa

Hubert Alquéres: Todo poder a Stalin

“Paz, Pão e Terra”, prometiam os bolcheviques que fizeram a revolução de 1917 sob o lema “todo poder aos sovietes” e contrariaram os cânones do marxismo, para quem o socialismo pressupunha uma base material desenvolvida, o que não existia na Rússia czarista. A “heresia” de Vladimir Ilyich Lenin consistiu em pular a etapa da revolução burguesa e fazer a revolução socialista em um país agrário, no qual a classe operária era extremamente minoritária.

A rigor mesmo, o poder dos sovietes nunca foi constituído. A vida desses conselhos operários foi efêmera. Cedo eles se transformaram em peça decorativa. E a chamada “democracia proletária”, dos quais os sovietes seriam sua expressão máxima, em uma falácia.

Os hagiográficos da revolução socialista justificam o “Comunismo de Guerra” e o “Terror Vermelho” dos primeiros anos da Revolução em virtude da sangrenta guerra civil que se seguiu à tomada de poder. Essa mesma visão determinista e conjunturalista também é usada para justificar os crimes de Josef Stalin. E tendem a livrar a cara de Lenin, ao considerar Stalin como uma distorção do leninismo.

Uma meia verdade, ou melhor, uma falsificação histórica.

Após a tomada do poder, ainda em 1917, Lenin cumpre a promessa de convocar a Assembleia Constituinte. Mas manda fechá-la logo em seguida porque os socialistas revolucionários de esquerda e os mencheviques liderados por Julius Martov tinham elegido a maioria. Nascia ali a ditadura do partido único, que depois se transformaria na ditadura de uma corrente – a do stalinismo – e, em seguida, na ditadura unipessoal de Stalin.

Lenin e seus seguidores cumpriram a premonição de Rosa de Luxemburgo, por meio de uma carta escrita em uma prisão alemã, em 1918:

-Sem eleições gerais, sem liberdade de imprensa e de reunião, sem um livre debate de opiniões, a vida em todas as instituições públicas fenece, torna-se uma mera rotina e só a burocracia permanece viva (...) Na essência é o governo da camarilha e sem dúvida sua ditadura não é uma ditadura do proletariado, mas a ditadura de um punhado de políticos (...) Socialismo sem liberdade política não é socialismo(...) Liberdade ativa para partidários não é liberdade”.

Em 1º de março de 1921 os marinheiros da fortaleza de Kronstadt se sublevaram, exigindo eleição livres nos sovietes, inclusão de todos os partidos socialistas nos sovietes, fim do monopólio no poder dos bolcheviques, dissolução de órgãos burocráticos, liberdade econômica para operários e camponeses, além de restauração dos direitos civis.

A agenda democrática e a Revolta de Kronstadt tem como reposta o massacre de seus marinheiros por tropas do Exército Vermelho comandadas por Mikhail Tukhachevsky. A repressão à Fortaleza, símbolo da Revolução de Bolchevique, uniu dois inimigos figadais: Stalin e Trotsky. Os bolcheviques foram os jacobinos da Revolução Russa, elevados a enésima potência. No livro O Fim do Homem Soviético, Svetlana Aleksievitch, prêmio Nobel de Literatura 2015, reproduz sentenças de três bolcheviques, que ilustram o desapreço pelo ser humano:

- Precisamos atrair para nós noventa ou cem milhões que povoam a Rússia Soviética. Com o restante não devemos falar – é preciso exterminá-los. (Zinoviev 1918)

- Enforcar (sem falta, enforcar para que o povo veja) não menos de mil kulaks (camponeses ricos) presos, que enriquecem... tirar-lhe todos os cereais, designar reféns... De tal modo que que a cem quilômetros em redor o povo veja e trema”. (Lenin, 1918)

- “Moscou está literalmente a morrer de fome” (professor Kuznetsov para Trotsky) Isso não é fome. Quando Tito ocupou Jerusalém, as mães judias comiam seus filhos. Quando eu forçar as vossas mães a comerem os seus filhos, então podem vir ter comigo e dizer “Temos fome”. (Trotsky, 1918)

A frase de Trotsky virou quase uma premonição. Quinze anos depois o canibalismo pintou com força na Ucrânia, no período grande fome decorrente da coletivização forçada da agricultura promovida por Stalin.

Svetlana narra um desses casos: “Na aldeia deles uma mãe matou o próprio filho com um machado para cozer e dar aos outros. O seu próprio filho... Receavam (os pais de família) deixar as crianças saírem de casa. Apanhavam as crianças como os gatos e cães”.

O quadro dantesco da grande fome de 1932/1933 foi produto direto de como se deu a acumulação primitiva do socialismo diante de uma sociedade agrária e de base material atrasada.

A eliminação dos kulaks e a apropriação de grãos para a exportação financiaram a industrialização acelerada. Em apenas dois planos quinquenais, a URSS tornou-se uma potência econômica.

Mas às custas de encharcar de sangue a imensa mãe Rússia. Da Ucrânia aos Urais, do Báltico ao Mar Negro, do Cáucaso a Sibéria.

O caminho da acumulação socialista escolhido por Stalin seria inviável sem o Grande Terror dos anos 30. Com Lenin, a URSS era uma ditadura para toda a sociedade e a democracia existia apenas no interior do partido bolchevique, embora o direito de facção tenha sido suprimido no 10º Congresso do PCUS em 1921. Os anos pós Lenin transformaram a ditadura do partido único na ditadura de uma única corrente do partido (a leninista-stalinista) e, em seguida, na ditadura unipessoal de Stalin.

Em vez de “todo poder aos soviets”, todo Poder a Stalin. Tudo o que a história provou ser o sinônimo da insensatez e da barbárie.

* Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo

 

 


José Antonio Segatto: Revolução Russa – da esperança à tragédia 

O fim trágico do socialismo real acabou por legitimar o capitalismo

Há um século, em outubro de 1917, o processo revolucionário desencadeado na Rússia em fevereiro – com o colapso do império czarista – sofreu drástica inflexão e ganhou um curso imprevisto sob a direção do partido bolchevique.

Ainda no calor da hora, um jovem militante socialista italiano, Antonio Gramsci, escreveu um pequeno e instigante artigo intitulado “A revolução contra O Capital”. Segundo o autor, a conquista do Estado pelos bolcheviques contrariava as diversas tendências do movimento socialista europeu e também russo (mencheviques e socialistas revolucionários). A leitura que faziam do livro de Karl Marx (que, aliás, completava 50 anos da publicação de seu primeiro volume, em 1867) presumia que a revolução democrático-burguesa e o consecutivo desenvolvimento do capitalismo seriam pressuposto básico e necessário para o socialismo – para ele, as agruras da guerra teriam criado condições (vontade coletiva), de maneira célere e inusitada, para a tomada do poder pelos bolcheviques num país atrasado, de capitalismo incipiente, como a Rússia.

Sem dúvida, a guerra potencializou a crise estrutural que já era latente em todo o imenso Império Russo, abarcando inúmeros problemas acumulados secularmente: dominância tirânica da autocracia czarista, subjugação de nacionalidades não russas, brutal opressão do campesinato, bloqueios à organização da sociedade civil, inexistência de direitos mínimos (tanto civis como políticos), etc. Em 1917 a crise irrompe com tal força que desintegra o todo-poderoso império czarista, criando uma situação caótica, que se agrava com a constituição de um governo provisório privado de credibilidade dirigente e impotente para enfrentar as graves circunstâncias. Estavam criadas as condições – vazio de poder, revolta e fúria popular, anomia, desorganização econômica, etc. – para que um pequeno partido de vanguarda, resoluto e com propostas que atendiam aos anseios imediatos das classes subalternas (pão, paz e terra) se apoderasse dos aparatos do Estado, sem resistência, em nome dos sovietes (conselhos).

Conquistado o Estado – onde ele era tudo e a sociedade civil, nada –, os bolcheviques logo trataram de recompor o poder, em meio a uma devastadora guerra civil, consolidando-se como “ditadura do proletariado” e com a edificação de um Estado demiurgo sob a direção do partido único. No decorrer da década de 1920 – envolto em disputas e concepções variadas – foi-se corporificando um protótipo de socialismo que seria fixado nas décadas seguintes e cujas características gerais podem ser sintetizadas, topicamente, como segue: 1) Estatização dos meios de produção e circulação, planejamento ultracentralizado da economia, industrialização extensiva, coletivização da agricultura, abolição da economia de mercado, métodos de gestão burocráticos e coercitivos; 2) estatização dos sovietes, sindicatos, imprensa e outros órgãos; 3) inexistência de normas democráticas – as facções e as dissensões foram criminalizadas com o banimento (gulags), ou mesmo com a eliminação física, e o Estado-partido chegou, em alguns momentos, a ganhar caráter terrorista; 4) os problemas das nacionalidades, étnicos e religiosos tratados com a coerção, anexações, remoções e russificação; 5) o marxismo-leninismo tornado ideologia ou doutrina oficial, como um sistema de dogmas que tudo explicava e justificava; 6) conformação de estratos sociais privilegiados, os donos do poder: dirigentes partidários, alta burocracia estatal, oficialidade militar e outros.

Desde o primeiro momento, houve a tentativa de universalizar o modelo bolchevique de socialismo. Em 1919 foi criada a III Internacional Comunista (IC), para impulsionar o processo revolucionário na Europa (em especial na Alemanha). O insucesso desse intento levou a IC a investir em sua eclosão nos países coloniais ou dependentes ( Ásia, América Latina e África), com caráter anti-imperialista e de libertação nacional. Esse modelo teve seu momento áureo no pós-guerra, com sua expansão no Leste Europeu e no Oriente.

Entretanto, já nesse período começou a dar sinais de exaustão, pelo acúmulo de problemas e de contradições irresolvidas. Um grupo dirigente do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) procurou ainda, sob o comando de Mikhail Gorbachev, renovar o socialismo real, para preservá-lo, por meio de reformas econômicas e da democratização do Estado (perestroika e glasnost). Mas, ao fazer isso, despertou forças e energias, interesses e ideologias, que estavam latentes, porém adormecidas ou contidas – estas ganharam uma dimensão e uma dinâmica incontroláveis, que levaram à sua derrocada.

No terceiro quartel do século 20, o socialismo real entrou numa crise irreversível, que acarretou sua ruína na União Soviética, no Leste Europeu e em outras partes do mundo, de forma fulminante e até inesperada, expondo o seu caráter autoritário-burocrático em toda a sua crueza.

Se no limiar do século 20 e nas décadas seguintes a História parecia indicar que o capitalismo estava condenado e o futuro seria do socialismo – que prometia o paraíso terreno e/ou a emancipação dos pobres e oprimidos –, em seu término a situação se inverteu totalmente. Ele passou a ser identificado com autoritarismo e opressão.

O fim trágico do socialismo real revelou para a esquerda em geral (comunistas, socialistas ou social-democratas, trabalhistas, cristãos, etc.) uma situação dramática e trouxe em seu bojo problemas e elementos capazes de abalar não só a práxis do movimento, mas os próprios ideais do socialismo, além de legitimar, por tempo imprevisto, o capitalismo. Gramsci, se vivo estivesse – no ensejo do sesquicentenário da obra capital de Marx –, provavelmente advertiria que estaríamos carecendo de uma revolução não contra, mas a favor de O Capital.
- O Estado de S. Paulo

* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp

 

 


Daniel Aarão Reis: Outubro, cem anos depois

Como sempre acontece nos conflitos bélicos, anularam-se as aspirações às liberdades e à democracia

Na noite de 24 de outubro de 1917 consumou-se a vitória da insurreição comandada pelo Comitê Militar Revolucionário do Conselho/Soviete de operários e soldados de Petrogrado. O governo, acuado no Palácio de Inverno, ainda resistiria por mais 24 horas, menos pela força que tinha, mais pela desorganização dos que o atacavam.

No dia seguinte, 25 de outubro, abriu-se o II Congresso dos Sovietes de soldados e operários de toda a Rússia. Por imensa maioria, os deputados eleitos aprovaram o Decreto sobre a Terra, consagrando a revolução agrária em curso. A terra, toda a terra, era nacionalizada sem nenhum tipo de indenização e atribuída aos comitês agrários que, com autonomia, a distribuiriam igualitariamente entre as famílias camponesas, proibidas doravante de contratar qualquer tipo de trabalho assalariado. Era o triunfo da velha utopia de incontáveis guerras e revoltas camponesas.

Em seguida, aprovou-se um apelo internacional à paz e a abertura imediata de conversações para dar um fim definitivo àquela Guerra, iniciada em agosto de 1914, que se transformara na mais horrenda carnificina que a humanidade jamais conhecera, e que devastava de modo inaudito a terra e os povos da Rússia.

Ato contínuo, elegeu-se um Comitê Executivo Central, que velaria pelas decisões do Congresso, e um governo revolucionário, o Conselho dos Comissários do Povo. Estas instituições substituíram o Governo Provisório, derrotado por sua incapacidade de atender às propostas emanadas das grandes maiorias. Um pouco depois, as novas autoridades, entre outras medidas, aprovaram uma carta de direitos sociais, onde se destacava o controle operário sobre as empresas industriais, delegado aos comitês de fábrica, e o direito incondicional dos povos não russos a proclamar a independência nacional, se esta fosse a sua vontade.

No reconhecimento destas quatro grandes reivindicações — terra, paz, controle operário e independência nacional — plasmava-se a vontade, democraticamente aferida, de grandes movimentos sociais que se organizavam na Rússia desde o mês de março anterior, quando a Autocracia fora derrubada por cinco dias de sucessivas manifestações populares.

Menos de três semanas depois, em 12 de novembro, dezenas de milhões de cidadãs e cidadãos iriam às urnas para eleger a Assembleia Constituinte, antiga reivindicação das lutas democráticas contra a autocracia tsarista. Pela primeira vez na história, as mulheres votaram como os homens, assim como algo em torno de cinco milhões de soldados e marinheiros. Os socialistas revolucionários, principal partido entre os camponeses, alcançaram cerca de 40% dos votos. Os bolcheviques, fortes nas grandes e médias cidades, receberam 27% dos sufrágios. No cômputo geral, incluindo-se outros grupos e partidos, cerca de 80% dos eleitores escolheram deputados socialistas para representá-los.

Entretanto, esta revolução radicalmente democrática não se sustentaria no tempo.

As elites sociais, civis e militares, os proprietários de terras e de indústrias e as potências aliadas da Rússia se articulariam contra a revolução e tentariam restaurar, pelas armas, a ordem derrotada, ensejando uma primeira guerra civil, entre brancos e vermelhos.

Mas haveria uma outra guerra, entre os próprios vermelhos. Uma cisão entre eles já aparecera na avaliação do episódio da insurreição, denunciada como um golpe, pois perpetrada sob liderança bolchevique e sem consulta aos congressos de soldados, operários e camponeses. Conversações favoráveis a um governo socialista plural não prosperaram. Em seguida, em 6 de janeiro de 1918, a Assembleia Constituinte foi fechada pela força, acusada de não se subordinar aos decretos revolucionários já formulados. Um pouco mais tarde, a Paz de Brest-Litowski, assinada em março de 1918, acentuou as divergências, exacerbadas por decretos centralistas e estatistas que revogavam, na prática, a autonomia dos comitês agrários e dos sovietes de soldados e operários.

Uma terceira guerra ainda sobreveio, entre bolcheviques e nações não russas, porque aí também, o direito à independência, garantido na teoria, foi recusado de fato.

Neste conjunto de guerras, como sempre acontece nos conflitos bélicos, anularam-se as aspirações às liberdades e à democracia, em proveito de estruturas centralizadas, hierarquizadas, autoritárias. Instaurou-se a ditadura revolucionária, fazendo surgir um socialismo autoritário, imprevisto nas lutas e propostas igualitárias e democráticas do século XIX.

À autonomia e às liberdades das gentes sucedeu-se um Estado todo-poderoso, regulador, minucioso e liberticida, parecendo dar razão à melancólica frase de Albert Camus: “Todas as revoluções modernas contribuíram para o fortalecimento do Estado”. Isto, pelo menos, foi o que ocorreu com as revoluções socialistas do século XX. Estariam os socialistas de hoje condenados a reiterar sempre este destino?

* Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF

 

 


Folha de São Paulo: Revolução Russa é narrada em tuítes que imitam líderes

Existem perfis para Lênin, Stálin, Trótski, Kerênski, governos de outros países, partidos, sindicatos e até da monarquia tirada do poder no começo daquele ano.

"Todos os personagens aparecem de uma maneira caricata. É um trabalho jornalisticamente bem feito e sem deturpação histórica", avalia o professor Osvaldo Coggiola, chefe do departamento de história da USP.

Mas, claro, existem as sutilezas do humor. "Eles apresentam brincando conversas entre pessoas que vão se matar depois."

Também foi criada uma conta para o "Russian Telegraph" (@RT_1917).

No dia 13 de outubro, Lênin criticou o jornal, que estampou na capa a silhueta do socialista com chifres vermelhos, uma alusão a uma capa da "Time" com Donald Trump: "Capa horrível! Mas o que mais esperar da imprensa burguesa", disse. Ninguém se surpreenderia se a mensagem viesse de algum político de 2017.

Na última sexta (20), o líder bolchevique respondeu a perguntas dos russos on-line.

LIVE Q&A session with Bolshevik leader @VLenin_1917 starts NOW! Dear followers, thank you for your questions! So, Vladimir Ilyich 

Uma das questões veio de @OlgaPaley_1917: "Você sempre diz que 'não se pode fazer revolução usando luvas brancas'. Você está realmente pronto para ter sangue em suas mãos?"

A resposta foi, claro, política: "Já disse antes: nossa inevitável vitória será 90% sem sangue. Além disso, encerraremos a guerra e salvaremos milhares de vidas".

Neste final de outubro, as mensagens retratam o clima de rebelião contra o governo provisório. O período antecede à Revolução de Outubro (cuja data, pelo calendário ocidental, é em novembro), quando os bolcheviques tomam o poder.

Kerênski, premiê do governo provisório, escreve "em nome do povo russo, que trabalhadores de Petrogrado [São Petersburgo] cessem atividades que podem prejudicar o bem comum". Já Trótski diz que os bolcheviques não vão negociar com um governo que traiu sua pátria.

A ausência de internet àquela época é mero detalhe, assim como o fato de que, hoje, críticas públicas ao governo russo não são exatamente bem aceitas pelo presidente Vladimir Putin.

Além disso, a efeméride tem sido pouco celebrada e noticiada no país, afirma o professor Coggiola.

Os tuítes também podem ser acessados em 1917.rt.com, que traz uma linha do tempo e informações de contexto (com vídeos) sobre a sociedade russa naquela época. Eles falam, inclusive, sobre a imposição da lei seca no período da Primeira Guerra Mundial (1914-18) e a forte dependência de cocaína dos russos.

Não será preciso aprender russo para acompanhar a história: todas as postagens são em inglês e estão agrupadas pela hashtag #1917LIVE.

Se tudo seguir o cronograma, haverá um URGENTE no Twitter do "Russian Telegraph" no dia 7 de novembro.

CONHEÇA OS TUITEIROS

Got to form assault teams armed w/rifles & grenades to storm key govt installations/infrastructure facilities in do or die attacks 

Bolsheviks quit pre-parliament so nation remains vigilant. Petrograd & Revolution are in danger! All power to Soviets! 

Food coupons also handed to all soldiers of the unit guarding us and our staff of attendants 

Pre-parliament gathers some 300 skeptics busy setting up curious experiments with new political institution 


Hubert Alquéres: “Proletários de todo o mundo, perdoem-nos!”

A Revolução Bolchevique de novembro de 1917 pelo calendário gregoriano e de outubro pelo calendário juliano foi a mola propulsora da grande utopia do século 20: o comunismo. Para o bem e para o mal – e mais para o mal – marcou a vida e a morte, sonhos e pesadelos, como diz o historiador italiano Silvio Pons. E foi, ao mesmo tempo, “realidade e mitologia, ideologia progressista e dominação imperial, utopia libertadora e sistema concentracionário”.

A bipolaridade também caracterizou os descendentes de Vladimir Ilyich Lenin que se espraiaram pelo mundo. Os comunistas foram vítimas de regime ditatoriais e artífices de estados policiais, protagonistas de lutas sociais e libertárias e fundadores de regimes totalitários e liberticidas, na genial definição de Pons em seu livro A Revolução Global.

Sim, os comunistas estiveram na primeira trincheira das lutas pela jornada das oito horas, pelo direito de greve, pelos direitos da mulher no trabalho e ao voto, no enfrentamento do fascismo e do nazismo, entre tantas e tantas batalhas. O surgimento do primeiro país socialista incidiu sobre as sociedades capitalistas no sentido de consagrar em seu arcabouço conquistas sociais que perduram até hoje.

Os anseios por equidade e igualdade despertados pela Revolução Russa teve a sua melhor resposta no Estado de Bem-Estar Social, no qual a justiça social se concretizou em uma economia de mercado sem a supressão da democracia e das liberdades.

Mas ao se erigirem em poder geraram ditaduras atrozes. Do seu passivo fazem parte regimes tirânicos como o de Nicolae Ceausescu na Romênia, Erich Honecker na Alemanha Oriental, Pol Pot no Camboja, o terror da era Josef Stalin ou da Revolução Cultural Chinesa.

A instalação do socialismo em um país atrasado teve seu preço: a consolidação da ditadura do partido único por meio do terror e do extermínio de todas as correntes políticas – inclusive as com raízes operárias e camponesas, como os mencheviques de esquerda liderado por Julius Martov e os esseristas de esquerda (socialistas revolucionários com base sólida no campesinato).

Os fundamentos teóricos para o poder totalitário que viria a se instalar foi dado por Lenin às vésperas da Revolução, por meio do seu livro O Estado e a Revolução. Stalin não foi um desvio de rota. Foi a versão do leninismo levada às últimas consequências.

Como julgar uma revolução que prometia construir o paraíso terrestre por meio de uma sociedade sem classes, sem Estado, e da qual brotaria o homem novo – o “homo sovieticus” - e 74 anos depois ruiu por causa do seu obsoletismo tecnológico, por sua incapacidade de produzir bens de consumo moderno e por ter se transformado na sociedade da escassez?

A revolução de 1917 produziu feitos homéricos. Em poucas décadas a Rússia secularmente atrasada e autocrática dos tempos de czarismo transformou-se na segunda potência mundial, rivalizando com os Estados Unidos nas corridas espacial e armamentista.

Não se pode ignorar as páginas épicas que escreveu, como a derrota das tropas de Adolf Hitler às portas de Moscou, Stalingrado, Leningrado, assim como a vitória do Exército Vermelho na batalha final de Berlim. Os soviéticos foram capazes de mandar o primeiro ser vivo a orbitar o planeta – a cadela Laika - e a levar o primeiro homem ao espaço sideral, o major Yuri Gagarin.

Mas nem por isso merecem a absolvição da história.

Já nos estertores da Pátria Mãe do socialismo, Mikhail Gorbachev indagava como era possível uma nação dominar inteiramente a tecnologia espacial e ser incapaz de fabricar um sapato ou uma calça de qualidade.

Há uma explicação lógica: para fazer frente à corrida nuclear e espacial, que ao final perdeu para os EUA – a URSS teve de deslocar volumosos recursos de outras áreas. A consequência disso foi a escassez de produtos de primeira necessidade.

Para a população dos países que experimentaram o “socialismo real”, o comunismo está indissoluvelmente associado à fome, ao terror, à falta de liberdade, ao Muro de Berlim, às KGB e Stassi, às ditaduras de Stalin, Honecker e Ceaucesco.

Na sua fase terminal já não se discutia mais na URSS se sua história tinha sido um desastre; os debates eram sobre as razões dos desastres. E responsabilizava-se Lenin por ter dado o tom do poder soviético com o Terror Vermelho e os primeiros campos de concentração.

O melhor balanço dos 74 anos da experiência socialista soviética veio em forma de ironia em uma faixa de uma das manifestações multitudinárias de Moscou: “Proletários de todo mundo, perdoem-nos!”. Para quem viveu sob o tacão da tirania do partido único não há como oferecer a outra face e perdoar.

E para a história não há como não ser implacável em seu julgamento sobre os cem anos da Revolução Russa.

 


Luiz Carlos Azedo: Eles eram justos e puros

Faltava tudo em Moscou e os mineiros de Donetsk, na Ucrânia, estavam em greve, inclusive na legendária Mina Outubro, onde surgiu o movimento stakhanovista. A vaia em Gorbachëv na Praça Vermelha, em pleno desfile de Primeiro de Maio, fora o sinal de que a Revolução de Outubro havia se esgotado.

Voltava de Moscou para Buenos Aires lendo As Mil e Uma Noites (Editora Brasiliense), num longo e enfumaçado voo da Aeroflot lotado de pescadores, que bebiam desesperadamente e fumavam papiroskas como caiporas. A frota soviética do Pacífico Sul era formada por verdadeiras fábricas flutuantes de pescado enlatado.

“Você vai morrer!”, repetiu o rei. “Aliás, agora você morreria nem se fosse apenas para eu ouvir sua cabeça falar depois de separada do corpo.” Dubane, o médico suspeito de espionar, fora condenado à morte, mas desafiou o rei a ler um livro que faria sua cabeça falar após ter sido decapitada.

“O rei obedeceu, molhando os dedos com a própria saliva para separar as páginas do livro... E o veneno foi penetrando em seu corpo. Viram-no ensaiar um passo, vacilar e cair”. A cabeça de Dubane, exangue num prato, então, compreendeu que a droga havia produzido seus efeitos e recitou estes versos:

Eles julgaram a seu modo
E se acumpliciaram nesse trabalho
Dentro em pouco, seu poder parecerá que
nunca existiu
Poderiam ter permanecidos justos e puros
mas abusaram do poder
e o mundo por seu turno os oprimiu
assim como a adversidade e a provação

Ei-los vivendo na miséria. Seu presente
É tão-somente o fruto do seu passado.
Quem pensará em censurar o mundo
Por os ter tratado assim.

A poesia foi um raio na minha cabeça, parecia que o avião ia cair: Somos nós, os comunistas, pensei. Eu voltava atordoado pelo que vira e ouvira em Moscou e Leningrado (hoje novamente chamada pelo seu nome de batismo, São Petersburgo). Era o mês de maio de 1990, Mikhail Gorbachëv ainda gozava de enorme prestígio mundial, mas a União Soviética já estava se desmanchando. A viagem fora um choque terrível, que eu ainda não conseguia digerir. Sentia-me o próprio homem das cavernas da fábula de Platão, quando estava cego pela luz e não sabia se voltava para a escuridão, onde já não enxergava mais, ou permaneceria definitivamente à superfície.

A vaia na Praça Vermelha

Havia viajado para uma reunião de representantes dos jornais comunistas de todo o mundo em Moscou, no auge da perestroika. A Voz da Unidade havia sido convidada, apesar de ser um pequeno semanário, insignificante até, diante do L'Humanité, do PCF, fundado por Jean Jaurès, o líder socialista francês assassinado ao tentar evitar a Primeira Guerra Mundial, ou o l’Unità, fundado por Antônio Gramsci, do PCI, que morreu nas masmorras do fascismo italiano de Mussolini. Modesto ainda mais diante do poderio do Pravda, cujo novo diretor, Ivan Frolov, era a estrela do encontro. Ele havia substituído Victor Afanasiev, que comandou o jornal de 1976 a 1989, quando entrou em rota de colisão com Gorbachëv.

Havia uma esquizofrenia no cerimonial do evento, que seguia a hierarquia do partido para o tratamento dado aos convidados. Como eu era membro da Comissão Executiva e do secretariado do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), deram-me importância maior do que aquela que o jornalista realmente merecia. Sabia disso porque, no ano anterior, havia feito a cobertura da XIX Conferência Política do PCUS, na qual Gorbachëv derrotara seus adversários para poder avançar com a perestroika.

O tratamento era outro, o apartamento no qual me alojaram era o mesmo no qual se hospedara Giocondo Dias, pela última vez, segundo me disse a tradutora, Natália Kffeinia, que era dublê de informante da KGB, como quase todos os tradutores do PCUS. A lógica soviética era de que a hierarquia do partido se sobrepunha à do Estado. Desse modo, nessa viagem, estava sendo tratado como se fosse ministro no Brasil, onde o partido estava isolado e fraco, mas tinha um candidato à Presidência da República, o líder do PCB na Câmara, Roberto Freire.

Minha primeira grande surpresa na viagem foi saber que faltava tudo em Moscou e que os mineiros de Donetsk, na Ucrânia (que hoje se declara uma república independente e quer ser anexada à Rússia), estavam em greve, inclusive na legendária Mina Outubro. Foi nela que surgiu o movimento stakhanovista, símbolo da produtividade do trabalho na Era Stálin. Aliás, havia greves por todas as regiões da União Soviética.

Anatole Petrovitch Evchenco, o membro do Comitê Central do PCUS encarregado das relações com o Brasil, me contou que fora obrigado por Gorbachëv a negociar o fim de uma paralisação de mineiros nos Urais, onde fica a Rússia profunda. “Depois de fechar o acordo, eles exigiram que distribuíssemos o estoque de conhaque Napoleon que havia no armazém do partido para voltar ao trabalho. Veja que absurdo, os dirigentes da mina tinham do bom e do melhor e os mineiros passavam necessidades com suas famílias”, disse-me. Anatole hoje é um dos donos de uma fábrica de helicópteros, cujas ações “herdou” do pai.

O meu maior espanto aconteceu nas comemorações do Primeiro de Maio, na Praça Vermelha, cujo desfile assistiria ao lado de outros comunistas do mundo inteiro. Jamais imaginei que Gorbachëv, que arrancara aplausos de populares em todos os lugares onde esteve, inclusive no Brasil e nos Estados Unidos, fosse receber uma bruta vaia na festa mais importante para os trabalhadores de todo o mundo. No alto de um palanque ao lado do mausoléu de Lênin, os líderes comunistas assistiam ao desfile de pioneiros, estudantes e trabalhadores quando surgiram os protestos. Gorbachëv retirou-se do desfile sob apupos, após ver os manifestantes trazendo faixas nas quais se lia: "Abaixo Gorbachëv! Abaixo o Socialismo e o Império Vermelho fascista".

O líder soviético não era um ator como Ronald Reagan, o presidente dos Estados Unidos, mas era um governante carismático, que irradiava simpatia e estava sempre sorridente. Não parecia sinistro como Stálin, não era grosseiro como Kruschev, ou senil como Brejnev. Muito menos temido, como Andropov ou, simplesmente, apático como fora Chernenko. Assim eram seus antecessores na secretaria-geral do PCUS. Encarnava o sonho de democratização do “socialismo real” para a opinião pública mundial e, creio, para a maioria dos comunistas. Simbolizava o fim da guerra fria, pois o acordo de desarmamento nuclear lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz. Representava o sonho de renovação do movimento comunista.

No dia seguinte ao desfile, numa reunião com diretores dos jornais, os discursos dos funcionários do partido eram de duras críticas à oposição, cujos líderes foram chamados de sujos, vagabundos e provocadores. Mas a grande preocupação era com a repercussão da vaia nas demais cidades soviéticas e o destaque dado ao fato pela mídia mundial, relatara-me Oleg Tsukanov, professor de Economia na Escola de Quadros do PCUS, muito querido entre os brasileiros. Ele acabou por morrer voltando ao Brasil, onde procurou trabalho depois que os comunistas deixaram o poder (morava em Brasília e dava aulas na Universidade Católica).

Ao longo da Rua Arbat, a rua de pedestre mais famosa da capital, não se falava de outra coisa, a não ser na vaia do Primeiro de Maio, para espanto de outro camarada, Hudson Correia de Lacerda, que era locutor da Rádio Central de Moscou e me levara para ver a situação na cidade sem os filtros do aparatchik. Ele falava russo sem sotaque e vivia como um autêntico moscovita. A agitação era impressionante. Havia de tudo, de comícios relâmpagos a protestos individuais e silenciosos. Aquilo me lembrava o centro do Rio de Janeiro entre a campanha das Diretas Já e a eleição de Tancredo Neves, já nos estertores do regime militar.

A crise de desabastecimento

Numa conversa após o Primeiro de Maio, o economista Ygor Gaidar, um dos editores de Economia do Pravda, que mais tarde viria ser o ministro da Fazenda de Boris Yeltsin, fez-me um balanço da situação. Ele criticava o que chamou de grande equívoco de Gorbachëv na condução do país: entregar o comando da economia aos engenheiros que dirigiam os grandes combinados industriais.

“Eles cortaram 10% das importações de bens de consumo e compraram máquinas e equipamentos que vão ficar por aí enferrujando”, disparou. Segundo ele, a reforma deveria começar pelas privatizações de serviços e manufaturas, além da liberação da pequena produção mercantil e do comércio em geral para os empreendedores familiares, e pela abertura da economia para a entrada das montadoras de automóveis e fábricas de eletroeletrônicos das multinacionais, como a China acabou fazendo depois.

A “aceleração”, como Gorbachëv batizara inicialmente a sua reforma econômica, estava sendo um fracasso. De imediato, pensei na polêmica do Bukharin com Stálin. O líder russo, assassinado nos processos de Moscou, defendia um modelo de “acumulação socialista” que se baseava na produção capitalista no campo e no barateamento da produção da indústria ligeira para formação da poupança necessária ao financiamento da industrialização pesada.

Diante da necessidade de armar o país para enfrentar a guerra iminente com a Alemanha, porém, Stálin deu um basta a isso, com as "coletivizações forçadas" no campo, que expropriou a pequena burguesia rural. O movimento stakhanovista era uma espécie de trabalho compulsório, mascarado de emulação socialista. Também rasgou a Constituição de 1935, que transformaria a URSS num Estado de direito socialista. Bukharin foi processado e fuzilado como traidor, depois de obrigado a assinar a própria confissão, em meio à onda de assassinatos do grande expurgo promovido pelos chamados “Processos de Moscou”.

A ascensão de Stálin se deu sobre os cadáveres de milhares de quadros bolcheviques. Começou após a morte de Sverdlov, vítima de tifo, quando Lênin perdeu o principal organizador do partido bolchevique, que foi substituído por uma comissão na qual Stálin despontaria. Mas a liderança absoluta viria mesmo após a morte de Lênin, com o assassinato de Kirov, o secretário do comitê de Leningrado, que era o mais popular dos bolcheviques. O crime, mais tarde atribuído ao próprio Stálin, deu início à onda de expurgos que consolidaria o poder do ditador soviético.

Voltemos, porém, à crise do modelo soviético. No verão russo de 1982, durante o Congresso do Konsomol, no Kremlin, Leonid Brejnev quase caiu ao discursar. O velho líder soviético já estava meio gagá, mas gozava de uma conjuntura econômica favorável: havia abundância de frutas tropicais nas ruas de Moscou e as lojas do GUM (Glavny Universalny Magazin), na Praça Vermelha, estavam abarrotadas de produtos importados, dos perfumes franceses aos sapatos italianos. A URSS faturava com a elevação do preço do petróleo e do gás.

Na crise do petróleo, que a liderança soviética erroneamente interpretou como uma nova crise geral do capitalismo, Brejnev havia lançado a consigna “Estado de todo o povo, rumo ao comunismo”. Os americanos haviam sido derrotados no Vietnã e foram corridos do Irã; os comunistas estavam no poder nas colônias portuguesas. A América Latina fervia com a revolução sandinista na Nicarágua e a ofensiva guerrilheira dos comunistas em El Salvador. Até que a invasão do Líbano por Israel mostrou que o outro lado ainda era capaz de arreganhar os dentes.

Vinte anos depois, porém, a conta do atraso havia chegado. O velho problema detectado por Bukharin, e que fora atalhado por Stálin, estava estrangulando a economia soviética: a produção do campo não era suficiente para alimentar o povo e a indústria de bens de consumo, padecia de baixa produtividade e péssima qualidade. Enquanto isso, o mundo capitalista ingressara na terceira revolução industrial, com o toyotismo, os sistemas de produção flexíveis, os novos materiais e supercondutores, a microeletrônica e a telemática. Os grandes combinados russos, engessados pelos planos quinquenais, já tinham ficado para trás.

Nas ruas de Moscou, as “bichas” se formavam do nada. O sujeito chegava com uma sacola e entrava na fila, esperava alguém mais chegar e pedia para guardar o seu lugar. Só então verificava o que estava sendo vendido. Se achasse que era algo que iria faltar, comprava o que os rubros permitissem e ele conseguisse carregar, para estocar ou fazer câmbio negro. O povo aproveitava para falar mal do Gorbachëv e dos comunistas. O abastecimento se tornara completamente caótico.

O despejo do Smolni

No dia seguinte, me despacharam para Leningrado. Fui recebido por um membro da direção do partido no berço da Revolução de 1917, que neste 7 de novembro de 2017 completará 100 anos anos. Com muita gentileza, mas meio sem jeito, disse-me que o secretário-geral do partido não poderia me receber: “Você não sabe da maior, acabamos de ser despejados do Smolni; está a maior confusão por aqui”.

O Instituto Smolni, antigo convento da aristocracia russa, foi a primeira sede do governo soviético, o local onde se realizou o II Congresso dos Sovietes. Nele, os comunistas tomaram o poder e Lênin anunciou as primeiras medidas da revolução: proposta de paz imediata a todas as nações beligerantes; entrega da terra aos camponeses; controle operário de toda a produção e distribuição de bens e o controle estatal das instituições bancárias. Em seguida, outras medidas de larga repercussão foram sendo tomadas, tais como a abolição de todas as desigualdades de classe, sexo, nacionalidade ou credo religioso, nacionalização dos bancos e das estradas de ferro, entre outras. Foram dez dias que abalaram o mundo, como disse John Reed em seu livro famoso.

Com a transferência da sede do governo para Moscou, os bolcheviques se instalaram no local e nunca mais saíram. Ocorre que Gorbachëv havia aprovado um decreto apartando os bens do partido dos bens do Estado e o prefeito de Leningrado, Gavril Popov, aliado de Yeltsin, rompeu com o PCUS e mandou a milícia pôr os dirigentes e funcionários do partido na rua. Não havia nada que legitimasse a posse do imóvel, nem mesmo uma conta de luz ou água paga pelos comunistas desde a tomada do prédio, manu militari, pelos soldados e marinheiros que garantiram o poder dos comunistas em 1917.

Diante do constrangimento, minha viagem a Leningrado virou um grande passeio turístico. Fundada por Pedro, o Grande, às margens do rio Neva, São Petersburgo é a primeira grande cidade planejada do mundo e a quarta da Europa em população, atrás apenas de Londres, Paris e Moscou. Fui ao Hermitage, à Catedral de Pedro e Paulo, conheci o legendário cruzador Aurora e me encantei com o balé Kirov. Caminhei pela famosa Avenida Nevski até a famosa Estação Finlândia, pensando em Maiakovski, na Flauta Vertebrada:

Eu medito.
Os pensamentos, coágulos de sangue,
enfermos, ardendo,
porejam de meu crânio.
Eu,
criador de tudo que é festa,
não tenho com quem ir à festa.
Agora mesmo irei atirar-me
de cabeça
no empedrado da avenida Nevski.

A desintegração da URSS

De volta a Moscou, tinha um encontro marcado com o brasilianista russo A. Karavaiev, autor do livro Brasil, passado e presente do capitalismo periférico, que havia me chamado a atenção porque defendia uma tese heterodoxa diante dos cânones da III Internacional: a de que o nosso país poderia se tornar desenvolvido por uma via não-socialista. No dogma comunista, nenhum país dependente teria chance de chegar lá por outra via que não fosse a tomada do poder numa revolução nacional-libertadora, seguida da construção do socialismo.

“Não vou conversar com você sobre o Brasil, que é um grande país e hoje tem menos problemas que o nosso”, disse-me Karavaiev. Tenso, o que ele queria falar era outra coisa: “a União Soviética está à beira da dissolução”. Fiquei perplexo: “Como assim, vocês não resolveram a questão das nacionalidades?” A resposta dele foi nua e crua. “Com o regime de partido único, a União Soviética não sobreviverá. Os comunistas das repúblicas serão os primeiros a declarar independência para permanecer no poder”, disparou. Não deu outra.

No dia 8 de dezembro de 1991, Yeltsin, sem consultar Gorbachëv, comunicaria ao presidente Bush, o pai, que acabara de extinguir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Para Eric Hobsbawn, a queda da URSS e do socialismo no Leste Europeu selou o fim do próprio século XX. Ninguém esperava isso, mas também não foi um passe de mágica, foi o esgotamento de um modelo de sociedade. O colapso político se deu quando os militares sequestraram Gorbachëv e tentaram um golpe de Estado, entre 19 e 21 de agosto daquele ano. Era outra pedra cantada, na qual não quis acreditar.

A conspiração dos militares

O primeiro cara a me falar do golpe foi o jornalista brasileiro José Arbex, então correspondente da Folha de São Paulo, em Moscou. Eu o havia convidado para almoçar no novo hotel do partido, que o povo chamava de Spaciba Bolshoi, considerado então o mais luxuoso de Moscou e destinado aos dirigentes do PCUS e não aos empresários e turistas que chegam à capital soviética. Era um hotel cinco estrelas como outro qualquer, mas comparado ao Hotel Moscou, da época de Stálin, ou ao velho Spaciba nos fundos do Teatro Bolshoi, o hotel do partido desde a década de 1920, aquilo era um escândalo. Tanto que o secretário geral Yuri Andropov, que foi o grande padrinho de Gorbachëv, recusou-se a inaugurá-lo.

Arbex entrou no hotel observando tudo, pois nunca antes havia posto os pés por lá. Mas conhecia a fama do lugar e fez uma gozação ao ver o buffet farto do hotel, enquanto tudo faltava para o povo lá fora. “Quanta mordomia, camarada Azedo!”. Foi uma longa e divertida conversa. Não acreditei no que ele me falou sobre os militares: “Azedo, você prestou atenção no pronunciamento do ministro da Defesa no Dia da Vitória?”. O desfile do Exército Vermelho, no dia 9 de maio, é o ponto alto das comemorações da Grande Guerra Patriótica, como os russos chamam ainda hoje a II Guerra Mundial. Eu prestara atenção, fora um discurso duro contra a oposição, o imperialismo e em defesa do socialismo, mas dentro da velha retórica soviética. Não interpretei aquilo como a senha para um golpe de Estado.

“Você está com teorias conspiratórias, esses generais são heróis de guerra e velhos bolcheviques, vão fazer o que o partido decidir”, disse-lhe. Arbex riu e rebateu: “Esse é o problema, o partido está contra o Gorbachëv". É óbvio que eu não acreditei no que ele estava falando. Tudo indicava que o golpe realmente estava em marcha, mas eu me recusava a encarar a realidade.

Mais tarde, já no Brasil, durante um encontro de partidos de esquerda com Fidel Castro em São Paulo, da qual participei ao lado do então secretário-geral do PCB, Salomão Malina, o líder cubano disse com todas as letras que estava contra o Gorbachëv e que tinha informações de que era crescente a resistência do partido, inclusive dos militares, à perestroika -- que ele também considerava uma traição ao socialismo. O dirigente cubano sabia do que estava falando.

O equilíbrio estratégico-militar

A Revolução Russa de 1917 foi a maior tentativa já feita de superação do capitalismo, depois da brevíssima Comuna de Paris de 1871, que inspirou Lênin. Na verdade, tomou o rumo dado pelos bolcheviques em consequência da Primeira Guerra Mundial, que interrompeu a primeira experiência de governo socialdemocrata do mundo, na Alemanha. A II Internacional, que reunia num só movimento os principais líderes operários e a intelectualidade marxista do começo do século passado, implodiu.

A Socialdemocracia Alemã, ao aprovar os créditos de guerra, “traiu” o restante do movimento socialista. O Partido Trabalhista britânico, obviam ente, engajou-se no esforço de guerra da Inglaterra. Na França, Jaurès, o grande líder socialista que lutava pela manutenção da paz, fora assassinado. Lênin, então, opôs-se ferozmente à participação da Rússia na guerra, A velha consigna bolchevique lançada por ocasião da Guerra da Criméia estava mais válida do que nunca: “Pão, paz e terra!”.

Foi nessa esquina da História que o chamado “socialismo real” se impôs como alternativa para a construção de uma nova sociedade, em contraposição à experiência fascista em diversos países, cuja ascensão começou com a chegada de Mussolini ao poder na Itália. Depois da derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, a expansão comunista veio no rastro dos tanques soviéticos. O “socialismo real” no Leste Europeu funcionou como uma via de industrialização tardia. Só não se contava com o sucesso do Plano Marshall, que possibilitou a retomada da experiência socialdemocrata na Europa Ocidental, com seu Estado de Bem-estar Social, e com a guerra-fria, que submeteu a economia soviética a um esforço permanente de guerra com a chamada “corrida armamentista”.

Na doutrina comunista, o equilíbrio estratégico militar entre a URSS e os EUA era a chave do avanço revolucionário no resto do mundo. Permitiria neutralizar o imperialismo ianque e avançar nas lutas de libertação nacional, como aconteceu na China, em Cuba e no Vietnã. Do ponto de vista do Ocidente, a visão não era muito diferente, apenas tinha sinal trocado. No histórico encontro de julho de 1945, em Potsdam, nos arredores de Berlim, Josef Stálin, Harry Truman e Winston Churchill, respectivos líderes da URSS, dos EUA e da Inglaterra, traçaram o destino do mundo - especialmente a partilha da Alemanha, que havia se rendido em maio, e o desfecho da guerra contra os japoneses, que ainda não haviam se rendido.

Truman comentou com Stálin que os EUA estavam de posse de uma nova arma, com "inusitado poder destrutivo". Como bom jogador, o líder soviético agradeceu a informação e desejou que os americanos usassem o novo artefato com "sucesso contra o Japão". Um mês depois, as primeiras bombas atômicas foram lançadas em Hiroshima e Nagasaki.

A decisão de lançar as bombas sobre o Japão não teve como objetivo apenas abreviar o desfecho da Segunda Guerra. Era o começo de um novo tipo de tensão mundial: a Europa seria dividida em duas zonas de influência: a Ocidental, capitalista, sob atração dos EUA, e a Oriental, comunista, ajudada pela URSS. A fronteira entre "as duas Europas" seria a própria Alemanha, também dividida. O que realmente estava em jogo era a hegemonia mundial. Os EUA adotaram uma estratégia de domínio indireto; o intervencionismo militar da URSS, ao contrário do que aparentava, porém, seria muito mais frágil.

A debacle do socialismo real

Os comunistas chegaram ao poder na Polônia, Hungria, Bulgária, Romênia, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental com o apoio dos tanques soviéticos, diante de uma economia em frangalhos e elites locais que na maioria dos casos havia colaborado com o nazismo. O preço a ser pago pela igualdade econômica era a perda da liberdade política. Foi assim na Hungria, em 1956, e na Tchecoslováquia, em 1968 - a famosa Primavera de Praga. A antiga Iugoslávia e a China eram casos à parte.

Na Europa Ocidental, Berlim Ocidental era uma vitrine reluzente, uma ilha capitalista encravada na República Democrática Alemã. Quando percebeu que a tal "vitrine" exercia uma enorme atração sobre os berlinenses, que preferiam trabalhar no lado ocidental da cidade, a administração do setor oriental viu-se obrigada a erguer, em 1961, o Muro de Berlim.

Como se sabe, entre a década de 1930 e o início da década de 1960, a consolidação da URSS como potência industrial foi feita com base num "crescimento extensivo", com muita mão de obra barata e abundância de recursos naturais. Na década de 1970, no Ocidente, fábricas projetadas para produzir em série determinados produtos passaram a ser substituídas por plantas industriais automatizadas e muito mais flexíveis, capazes de se adaptar às variações de demanda no mercado consumidor.

A linha de montagem criada por Henry Ford já não já dava conta do recado. Mas fora a fonte de inspiração de Lênin para conceber todo o arcabouço do chamado “socialismo real”, do modelo de partido único, da estrutura do Estado soviético e dos sindicatos como correias de transmissão do partido. O socialismo tornara-se anacrônico.

Ao mesmo tempo, havia uma batalha ideológica entre o chamado “americanismo” do Ocidente e a “proletarização” do Leste Europeu. Essa batalha ganhou uma nova dimensão quando o cardeal polonês Carol Wojtyla foi eleito papa. Como João Paulo II, ele desempenharia um papel importante na desestabilização dos regimes socialistas do Leste Europeu, a começar pela Polônia. Um pouco da crise da URSS se deve também a isso, por causa da independência da Estônia, Letônia e Lituânia, republicas de maioria católica da URSS que haviam sido anexadas por Stálin.

Em agosto de 1980, no estaleiro Lenin, na cidade de Gdansk, o eletricista Lech Walesa anunciou a criação do Solidariedade - o primeiro sindicato independente de um país comunista. O dogma de que a vanguarda da classe operária eram os comunistas veio abaixo no Leste Europeu. O partido deixara de ser “a consciência do proletariado”, se tornara uma espécie de nova classe dominante, uma burocracia autoritária e corrompida, encastelada no poder.

Num dos intervalos do encontro promovido pelo Pravda, fui procurado por um dos diretores da agência de notícias Tass, uma das maiores do mundo. Ele era casado com a filha do ministro da Pesca e queria um contato com um grande estaleiro do Brasil para iniciar um grande negócio: criar uma joint-venture para prestar serviços à frota de pesqueiros russa do Atlântico Sul, que passariam a ser reabastecidos e sofreriam reparos em Niterói. Ou seja, a plutocracia que enriqueceria com as privatizaçoes de Yeltsin já estava em posição de combate.

O presidente americano na época, Ronald Reagan, e a primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher, diante da crise, perceberam a oportunidade de uma grande ofensiva neoliberal. O comunismo já era um animal ferido de morte. Encararam como missão resgatar a reputação do capitalismo no Ocidente e afastar de vez o fantasma comunista que rondava o mundo desde o Manifesto de Marx e Engels de 1848. Gorbachëv, que chegou ao poder em 1985, era uma resposta a essa ofensiva, mas já era tarde demais. A reestruturação econômica (perestroika) e a transparência política (glasnost) não teriam o mesmo sucesso que os acordos de desarmamento que o fizeram um notável líder mundial, até hoje respeitado no Ocidente.

Gorbachëv surpreendia o mundo com discursos liberalizantes e democráticos, mas a pressão interna no Leste Europeu crescia. A explosão começou em 1989, ano do bicentenário da Revolução Francesa. Em junho, depois que o líder soviético deu a entender ao novo primeiro-ministro da Hungria que reconhecia que a revolta de 1956 tinha começado em virtude da insatisfação do povo, mais de 200 mil húngaros sentiram-se à vontade para ir à cerimônia do "novo funeral" de Imre Nagy, que liderara a revolta e fora executado por ordem de Kruschev. Três meses depois, com a retirada da cerca de arame farpado ao longo da fronteira entre a Hungria e a Áustria, milhares de alemães orientais cruzaram o território húngaro para o Ocidente.

Na Polônia, o sindicato Solidariedade ganhou as eleições; em Berlim Oriental, no dia 9 de novembro, ou seja há 25 anos a completar neste domingo, o mundo inteiro assistiu pela TV a derrubada do Muro de Berlim. Na Bulgária, Todor Zhivkov, no poder desde 1954, anunciou seu afastamento. Sete dias depois, na Tchecoslováquia um governo de coalizão liderado por Alexandre Dubcek, líder da Primavera de Praga em 1968, tomou o poder dos comunistas pelos braços do povo. Na Romênia, o líder Nicolau Ceausescu, foi destituído e enforcado ao lado de sua mulher, depois de uma revolta popular que terminou com o seu julgamento sumário.

Finalmente, Gorbachëv foi vítima de sequestro, numa tentativa deu golpe militar. A resistência democrática foi liderada por Boris Yeltsin - o mesmo homem que, no dia 8 de dezembro de 1991, decretaria o fim da URSS. No Natal daquele ano, o pai da perestroika passou a Yeltsin os códigos necessários para disparar um ataque nuclear. E assinou o decreto oficial do fim da URSS, no dia 31 de dezembro de 1991.

A travessia do deserto

Numa das passagens de As Mil e Uma Noites, o vizir diz para Sherazade o seguinte:

“Aquele que não sabe adaptar-se às realidades do mundo sucumbe infalivelmente aos perigos que não soube evitar. Aquele que não prevê a consequência dos seus atos não pode conservar os favores do século.”

Aparentemente, esses foram os erros de Gorbachëv, mas isso não passa de uma simplificação de tudo o que ocorreu. Velhos camaradas culpam o líder soviético, mas há muitas interpretações sobre o que houve de fato. Entre os comunistas, como sempre, as divergências são profundas.

Os trotskistas veem a restauração capitalista no Leste Europeu como a confirmação das teses de Leon Trotsky, o líder bolchevique assassinado por ordem de Stálin durante o exílio no México e que acaba de ter sua memória resgatada pelo fabuloso romance O homem que amava os cachorros, do escritor cubano Leonardo Padura.

Os maoístas, mais pragmáticos, corroboram a velha tese chinesa de que Kruschov havia traído a revolução ao denunciar o culto á personalidade e os crimes de Stálin. Sobre isso é muito interessante o relato de Henry Kissinger no livro Sobre a China, na qual mostra como a liderança do PCCh se aliou aos Estados Unidos para derrotar a União Soviética em plena guerra-fria.

Os antigos eurocomunistas, críticos do modelo soviético, aprofundaram suas análises e tentam encontrar um caminho para um projeto transformador assentado na ampliação da democracia, porém, cada vez mais distante do que poderia se chamar de socialismo.

Os comunistas viraram uma espécie de alma penada, com um enorme fardo histórico sobre os ombros. A perplexidade de Lúcio Magri, da esquerda do PCI, diante da dissolução da URSS e do próprio partido italiano, muito bem retratada na sua obra autobiográfica, intitulada o Alfaiate de Ulm, levou o líder do grupo Il Manifesto à depressão e ao suicídio.

Aqui no Brasil, a colapso da União Soviética implodiu o PCB, que já vinha de duas crises na década de 1980, uma provocada pela saída de Luiz Carlos Prestes e outra, pela dissidência do grupo renovador de Armênio Guedes.

Como dirigente do partido, diante da situação que se colocava, tinha minhas próprias opiniões, mas fui muito influenciado por duas pessoas próximas: minha mãe, Aparecida Azedo, ex-camponesa que virou pintora naïf, e Salomão Malina, o então secretário-geral do PCB, com quem trabalhava diretamente.

Ao chegar de Moscou, em conversa com a minha mãe, relatei-lhe o que estava acontecendo e, para minha surpresa, a antiga bóia-fria e operária textil, que havia sobrevivido ao Massacre de Tupã e passara por tantas agruras pessoais e políticas, disse-me sem mais delongas: “meu filho, o partido está morrendo, não consigo recrutar mais ninguém!” Era a tradução de que o poder de atração do "socialismo real" deixara de existir com o colapso do Leste Europeu.

Por causa dessa conversa, escrevi um artigo para o Jornal do Brasil defendendo uma renovação radical no PCB, com o abandono do símbolo da foice e do martelo e a mudança de sigla. Malina soube do artigo quando passei o jornal para ele, num comício de Roberto Freire, na Cinelândia, em plena campanha presidencial de 1989. Ficou muito contrariado.

Eu era o coordenador do grupo encarregado de elaborar as teses do 9º Congresso do PCB, da qual participavam os historiadores Alberto Aggio e José Antônio Segatto e os economistas, Eduardo Rocha e Raul Paixão. Durante oito anos, convivera com Malina quase diariamente, na sede do partido em São Paulo, e sabia que ele comungava do mesmo ponto de vista, mas precisava convencer os demais dirigentes históricos do PCB de que era preciso dar um passo audacioso nessa direção.

Atalhar a discussão, na sua avaliação, organizaria a resistência interna antes que a maioria no Comitê Central estivesse consolidada. Ele tinha certa razão, mas a pressão para a mudança precisaria ser feita de fora para dentro, porque a força de inércia do dogmatismo era grande. A mudança não seria possível com uma discussão intramuros.

Os trunfos da renovação, porém, eram a liderança de Roberto Freire, que seria o sucessor natural de Malina depois do congresso, e de seu candidato a vice, o médico sanitarista e cientista Sérgio Arouca. Foi dramática a reunião do Comitê Central do PCB que aprovou as teses do Congresso, intituladas “Novo socialismo, novo partido".

Velho judeu comunista, herói da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na tomada de Montese, na Itália, Malina teve um papel decisivo na direcão e no congresso. Ele era um dos que mais estudava os novos marxistas, lia os alglo-saxões nos originais em inglês. Havia ficado dois anos preso, na década de 1950. Nesse período, na cadeia, porém, só podia ler a Bíblia. Sua intervenção foi inspirada na saga dos hebreus:

“As mudanças no capitalismo ainda estão em curso, não temos massa crítica para produzir uma nova síntese teórica. Mas temos algumas bandeiras e uma cultura política a preservar, até que uma nova geração encontre o caminho para a sociedade desejada”, disse Malina. Citando Moisés, disse que nós estamos como os judeus “que, por terem sido escravizados, não tinham cabeça para construir uma sociedade livre” após aqueles 40 anos de travessia do deserto. Será preciso que uma nova geração o faça.


Luiz Sérgio Henriques: 1917 

Papel democratizador dos velhos comunistas, no Ocidente, deveria ser lembrado por todos

Os cem anos da revolução bolchevique provavelmente não nos darão – ainda! – a trégua necessária para pôr em perspectiva acontecimentos que estiveram no cerne da “segunda guerra europeia dos 30 anos” e, mais do que isso, lançaram ondas de choque por toda parte – não em último lugar, sobre o vasto mundo então colonial. E talvez não seja para menos: o comunismo histórico, assim como várias outras correntes do século passado, foi intensamente vivido como uma das tais religiões laicas em choque de vida e morte, com sua vontade de assaltar os céus e torná-los uma realidade imediatamente terrena.

Impossível recapitular, mesmo sumariamente, as vicissitudes do “primeiro Estado operário”, surgido entre os escombros da guerra de 1914 e da guerra civil subsequente. Um Estado operário erguido, ainda por cima e contraditoriamente, num país de ampla base rural e costumes autocráticos profundamente enraizados. A dirigir isso que hoje parece uma tarefa irrealizável estiveram o leninismo e, depois, o stalinismo: modalidades militarizadas da política não exatamente iguais, mas, ambas, com um déficit fatal de pensamento democrático ou, caso se queira, com uma visão jacobina de democracia avessa às conquistas do liberalismo, o que daria uma fisionomia despótica à construção do socialismo soviético.

Em vez da recapitulação impossível, mais vale nos determos no “pecado oriental” daquele Estado e dos outros que, depois da 2.ª Guerra, a ele se somaram por força de ocupação e constituíram o “campo socialista”, com as instituições politicamente iliberais que nasceram no começo acidentado e aventuroso do bolchevismo no poder. Um patriarca da esquerda italiana, Pietro Ingrao, identificou como “vício de origem” da ideologia comunista o repúdio à democracia e a escolha da violência revolucionária como método privilegiado de ação. Um método que por definição exclui, divide e mata, como se viu na coletivização forçada dos anos 1930 – de fato, uma guerra civil disfarçada que teve como alvo o vasto mundo dos camponeses, produzindo a fome, a carestia e o gulag.

O repúdio à democracia prolongar-se-ia pelas décadas afora e se materializaria numa rígida estrutura estatal ocupada pelo partido único, incapaz de se renovar, mesmo quando as condições iniciais de cerco se desvaneceram ou se atenuaram razoavelmente, como foi o caso do quadro que se abriu com a vitória sobre o nazismo e o fascismo – uma contribuição extraordinária da antiga URSS, não por acaso ao lado das potências do capitalismo democrático. Aqui, certamente por causa da natureza do mal absoluto de que se revestia o nazismo, os comunistas de Stalin assumiram-se corajosamente como a ala esquerda das democracias, em defesa do patrimônio comum ameaçado.

Estruturas enrijecidas, no entanto, têm dificuldades hegemônicas intrínsecas. Não importavam muito o desfile dos tanques na Praça Vermelha, a ruptura do monopólio americano da bomba ou a paisagem azul vista por Gagarin do espaço. Quem não tem capacidade de direção pode se esconder sob o disfarce de atitudes agressivas, mas no fundo não agrega nem atrai. O anticapitalismo, entendido como contínua reproposição de confronto com o outro campo, sobrepunha-se nos fatos ao antifascismo: o primeiro é uma espécie de chamado das selvas, um convite a cerrar fileiras e a falar grosso; o segundo, ao adotar valores “burgueses”, cedo ou tarde obriga a um repensamento e a uma revisão dos métodos e da própria concepção do mundo. Algo muito mais difícil e arriscado, naturalmente.

Não se sabe muito bem quando a URSS e o campo soviético perderam a disputa com o Ocidente, fosse ela direta e conflituosa, fosse redefinida nos termos da competição econômica e da “coexistência pacífica”. Talvez mais cedo do que normalmente se pensa, o século 20 transformou-se no “século americano” por excelência. O americanismo, tal como percebido no cárcere por um marxista singular, não era só um método de produção revolucionário ou uma nova concepção de fábrica, implantada pelo fordismo, mas uma matriz de comportamentos individuais e um projeto de sociedade mais racional. No entanto, para a maior parte dos marxistas, a falsa percepção de catástrofe iminente impediu a compreensão do modo como o capitalismo se autorreformava e seguia adiante com êxito, especialmente quando o idioma liberal era falado com sotaque universalista. Sirvam como exemplo algumas experiências já dos anos 1930, como o New Deal rooseveltiano, e as do segundo pós-guerra, quando as social-democracias, secundadas em alguns casos por poderosos partidos comunistas, capitanearam as modificações que desaguaram na “era de ouro” do capitalismo reformado.

Difícil fazer um balanço equilibrado da trajetória comunista. No poder, o modelo bolchevique produziu estruturas autoritárias ou, reconheça-se, totalitárias, que afinal se mostraram frágeis e ruíram. Fora do poder, deve-se admitir que aquela trajetória teve luzes às vezes intensas. O próprio Ingrao, cuja capacidade autocrítica destacamos, constatou a ação positiva dos comunistas na organização de uma classe – a dos trabalhadores, mas não só – e na sua integração à sociedade inclusiva, ampliando regras e valores da democracia – rigorosamente, um bem coletivo.

Eric Hobsbawm convidou-nos a uma visão livre de uma das muitas ironias que a História, essa dama caprichosa, acabou por nos reservar: o fato de a revolução russa, que parecia encarnar o mais temido dos fantasmas, na verdade ter salvado duplamente a civilização “adversária”. Na guerra, aniquilando Hitler; na paz, estimulando, até pelo medo de algum novo evento revolucionário, sua reforma e sua capacidade de se expandir além da feição original. Descartado cabalmente o método da violência, o papel democratizador dos velhos comunistas, no Ocidente, deveria ser lembrado por todos nesta hora difícil.

* Luís Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci


O Estado de S. Paulo: Dois livros inéditos no Brasil repassam a história da Revolução Russa

Historiadores Sheila Fitzpatrick e Jean-Jacques Marie têm trabalhos lançados no ano do centenário da Revolução

Marcelo Godoy, de O Estado de S. Paulo / Aliás

As grande rupturas na história permanecem raras e escrever sobre elas jamais é um ato neutro ou inocente. Sheila Fitzpatrick é uma historiadora consciente das armadilhas que seu ofício reserva aos que o escolhem. Uma delas está ligada à necessidade ou não de cortar a história em períodos e como fazê-lo. É este o principal desafio lançado por essa australiana, que frequentou o St Antony’s College, de Oxford, e se tornou uma das maiores especialistas na antiga União Soviética, em seu livro A História da Revolução Russa. Após três décadas de omissão, a obra de Sheila chega atualizada ao Brasil pela editora Todavia.

No último livro de sua obra – A História Deve ser Dividida em Pedaços? –, o francês Jacques Le Goff escreveu que “os períodos têm, por consequência, uma significação particular; na própria sucessão, na continuidade temporal ou, ao contrário, na ruptura que essa sucessão evoca, eles constituem um objeto de reflexão essencial para o historiador”. Diante da raridade das rupturas, Le Goff descreve o “modelo habitual” para a periodização histórica, a longa duração, como “aquele que é mais ou menos longo, com a mais ou menos profunda mutação”. Sheila estuda assim um desses eventos raros na história, cuja primeira vida parecia indicar uma grande ruptura: a Revolução Russa.

E sua obra é marcada por esse desafio: circunscrever o tempo da Revolução. Sheila escolheu o período 1917-1938 como o período revolucionário. Nos anos de Stalin, até o Grande Terror (1937-1938), Sheila vê a conclusão do processo iniciado em 1917. É a revolução pelo alto, iniciada pelo georgiano em 1929, com a coletivização do campo, a rápida industrialização e a eliminação da oposição ao regime. Só depois o regime soviético teria entrado no período pós-revolucionário. A questão é das mais difíceis enfrentadas pelos historiadores. Há quem veja o início do processo revolucionário em 1905 e seu término no Grande Terror. A maioria, porém, circunscreve a revolução ao período de 1917 a 1921, quando é concluída a vitória bolchevique na Guerra Civil.

Para Sheila, o tema das classes sociais é importante para a compreensão do fenômeno histórico até porque “seus participantes-chave o percebiam como tal”. Por fim, a historiadora analisa a violência do período e o terror, cujo principal objetivo era destruir os inimigos da revolução e remover os obstáculos para a mudanças sociais. Sua obra não traz as mutações mais ou menos profundas e mais ou menos longas na vida das pessoas e nas mentalidades. Esse não era seu objetivo.

Sheila começou a pesquisar a história da União Soviética nos anos 1960 e se tornou próxima do grupo que dirigia o jornal Novy Mir. Por enquanto, algumas das principais obras da historiadora – Everyday Stalinism, The Commissariat of Enlightenment (sobre Anatoli Lunacharski) e o Stalin's Peasants – permanecem sem edição no País. Crítica do marxismo, ela diz que a revolução teve duas vidas – a primeira quando era presente e objeto do escrutínio de cientistas políticos. A segunda quando se tornara história. Para Sheila, o significado da Revolução “permanecerá fortemente disputado na Rússia em seu primeiro centenário e depois”.

Guerra Civil. Sheila enfrenta seu objeto de estudo com uma abordagem original e sóbria. De fato, não se encontra em Sheila aquele estilo ou construção intelectual que tornam a história um objeto vulgar a pretexto de fazê-la mais atraente ao leitor comum. Não é esse ainda o caso de outro autor publicado no Brasil nesse ano do centenário de 1917: o historiador francês Jean-Jacques Marie.

Faltam, porém, a Marie a vivacidade e a originalidade de Sheila. Jean-Jacques constrói seu História da Guerra Civil Russa com uma forte presença de relatos de combatentes – falta-lhe a dimensão do povo, o cheiro dos mortos nos povoados abandonados, o rumor das assembleias, o caos econômico e demográfico. Sua pesquisa é extensa, apesar de o livro não trazer notas para esclarecer fontes bibliográficas e documentais.

Jean-Jacques é simpático aos bolcheviques, o que não lhe impede de dar a dimensão da guerra. Primeiro em relação à sua amplitude – cerca de 4,5 milhões de mortos. Depois em relação aos grupos combatentes e suas composições sociais. Por fim, mostra como a fortuna esteve ao lado dos vermelhos, não como resultado do terror ou da violência de brancos, verdes ou vermelhos, mas pela síntese entre a prudência e as armas feita por tantos comandantes bolcheviques que souberam quando era o momento da espada e quando o caminho era o discurso e o convencimento.

 

 

 


Michel Zaidan Filho: Reflexões sobre a revolução russa no ano do seu centenário

Este artigo pretende discutir algumas questões relacionadas à experiência da maior revolução socialista da história da humanidade, a Revolução Russa, que completa neste ano 100 anos. Como se trata de um movimento revolucionário que inspirou, pela teoria e pela prática, milhões de ativistas e militantes sociais no mundo, escolhemos alguns pontos desse grande acontecimento histórico para analisar, em perspectiva das lições e aprendizados para a luta social do século XXI. Primeiro, a questão ocidente versus oriente. Segundo, a relação nacionalismo, luta anti-imperialista e revolução. Terceiro, o lugar da democracia liberal, no processo revolucionário. Quarto, a dialética entre o nacional e o internacional Quinto, a questão camponesa. Sexto, a relação entre democracia e socialismo. Sétimo, a questão da universalização do “modelo” da Revolução russa.

I
O primeiro ponto a se considerar sobre a Revolução Russa, numa retrospectiva de 100 anos, é se ela foi a última revolução europeia contra o capitalismo, do século XIX, ou se ela pode ser caracterizada como a primeira na periferia do mundo capitalista?

É de se lembrar de que a Revolução Francesa iniciou um ciclo revolucionário, na Europa (e no resto do mundo), que se fecha com a derrota da Comuna de Paris (1781). Até a Comuna, é possível vislumbrar um conjunto de influências revolucionárias tais como: o anarquismo, o blanquismo, o socialismo pré—marxista etc. Ou seja, onde é patente a presença de ideias europeias e de militantes sociais europeus naquele movimento, sendo a influência das ideias de Marx muito pequena ou quase nula. (Vejam-se, a propósito, as críticas de Marx aos “comunards” franceses, nos manuscritos guardados no Museu de História Social de Amsterdam, e as de Lenin, no ensaio “As duas táticas da socialdemocracia russa” à Comuna de Paris). Já a Revolução Russa trai a participação decisiva dos bolcheviques e a orientação marxista na condução do movimento revolucionário, sem desprezar o papel de anarquistas, dos camponeses, soldados e marinheiros. Sobre isso, há um longo debate entre revolucionários russos (não marxistas) e o próprio Marx sobre os caminhos disponíveis para a Revolução na Rússia, incluindo as possibilidades de uma passagem da antiga economia agrário-camponesa russa diretamente para o socialismo, muito ao contrário da ortodoxia engelesiana da necessidade de uma “revolução democrático-burguesa”. (Vejam-se as cartas de Marx a Vera Zazulitch, em comparação aos fragmentos publicados por Eric Hobsbawn, em “Formações econômicas pré-capitalistas”). Se for possível tomar a formulação leninista sobre o Imperialismo, e adotar a tese de que a Revolução se daria no “elo mais fraco” da cadeia imperialista, então temos de admitir que a Revolução Russa fosse a última grande revolução socialista europeia, já no século XX. É assim que se pode interpretar a análise de Gramsci sobre “a guerra de movimento”, em referência à revolução. E seu prognóstico de que as futuras revoluções no Ocidente seriam “guerras de posição”. (Veja-se Nota sobre Maquiavel, a Política e o Estado Moderno).

Independentemente da controvérsia sobre a ortodoxia revolucionária dos bolcheviques e a natureza de sua revolução, é indiscutível que Lenin se louvará nas obras de Marx para defender a Revolução Russa. Como se sabe, nenhuma revolução se faz de acordo com um manual; ocorre sempre dentro de circunstâncias bem determinadas. E a despeito do estatuto teórico duvidoso de muitas das posições leninistas, podemos aceitar o caráter socialista da revolução, num contexto de guerra e cerco das potencias imperialistas à Revolução de Outubro.

Nesse sentido, a Revolução Russa pode ser considerada a primeira Revolução Socialista (vitoriosa) da história contemporânea. E que teve um formidável efeito multiplicador das ideias revolucionárias no mundo inteiro: na Europa e fora dela.

II
Outro ponto importante tem a ver com a discussão sobre nacionalismo (ou luta anti-imperialista), democracia liberal e socialismo. Os que apontam na direção do “comunismo de guerra” dos primeiros anos, se dispõem a admitir que originalmente trata-se de uma revolução anti-imperialista, onde uma espécie de acumulação primitiva faz muitas concessões à propriedade agrária dos camponeses. Sendo, portanto, impossível caracterizar esse momento da luta revolucionária como uma construção socialista. É a etapa da chamada “Nova Política Econômica”, em que de fato abre-se um espaço para propriedade camponesa, a fim de que os camponeses apoiem a revolução, num momento crucial de sua existência. A defesa da Revolução é mais importante do que a socialização das terras, num contexto de uma pequena classe operária industrial e do oceano agrário que era a Rússia nesse então. Buscar uma base doutrinária em Marx, Engels, Kautsky ou Chayanov para justificar essas medidas é inútil e desnecessário. As medidas de Lenin se devem ao calor da hora e a urgência de garantir o apoio campesino á Revolução.

Poder-se-ia objetar que tais concessões levariam a um reforço à mentalidade de proprietário do pequeno camponês. E que num momento seguinte, seria necessária a expropriação da pequena propriedade. Mas a questão foi adiada e coube a Stalin resolvê-la, pela força, desorganizando até hoje a agricultura russa.

III
Mais complicado é, sem dúvida, a questão da democracia liberal. Num momento em que a Assembleia Constituinte estava funcionando e mantinha a pluralidade partidária, tanto quanto os Conselhos de Operários e Soldados, os bolcheviques decidiram fechar a ele órgão de representação política e os Conselhos, sob a alegação de conspiração ou oposição contrarrevolucionária à nova ordem instituída. O que teria levado Rosa Luxemburgo a dizer que a democracia e a liberdade de expressão só se colocam para quem diverge de nós, não para quem pensa igual à gente. Na verdade, a questão da democracia no âmbito da cultura marxista-leninista sempre foi encarada como um expediente tático. Nunca como estratégia revolucionária. Seria necessário aguardar o pensamento de Antônio Gramsci e seus intérpretes, para que fosse possível repensar “a hegemonia como contrato”, ou “rousseunizar” Gramsci, como diz o ensaísta brasileiro Carlos Nelson Coutinho. (“Marxismo e Teoria Política”). O núcleo duro da teoria política marxista vê o Estado como um instrumento político à serviço da classe dominante. Dessa forma, a democracia só pode ser vista como um expediente tático, para acumulação de forças, em direção à revolução socialista. Daí o caráter das alianças políticas da classe operária e seu partido.

IV
Outra questão relevante é a dialética entre o nacional e o internacional, que depois estaria no centro do movimento comunista internacional, envolvendo Stalin e Trotsky. A revolução socialista é mundial ou pode fazer, inicialmente, concessões a minorias nacionais? – Como se sabe, desde “o” Manifesto Comunista”, Marx admite que a emancipação do proletariado moderno não pode se dá, isoladamente, neste ou naquele país. Tem de ser um movimento internacional, sob pena da contrarrevolução triunfar. Como o próprio capitalismo ajuda a escrever uma história mundial, a revolução socialista tem ser, também, em escala mundial. Mas as circunstâncias históricas onde ocorreu a Revolução Russa (tanto internas, quanto externas) foram determinantes no recuo estratégico e a defesa da União Soviética, durante o “comunismo de guerra”. Antes mesmo de Stalin proclamar a doutrina do “socialismo em um só país”, o próprio Lenin já reconhecia que era preciso consolidar a revolução e para isso, seria necessário fazer certas concessões ora aos camponeses ora às nacionalidades ora a burocracia residual do velho regime. Rosa Luxemburgo foi a primeira a chamar a atenção do líder bolchevique de que tais concessões poderiam representar, no futuro, uma ameaça ou entrave para a constituição de uma verdadeira República Soviética. Mas naturalmente prevaleceu a opinião de Lenin, depois muito reforçada por Stalin no debate com Zinoviev e Trotsky. Difícil seria, como em outros casos, achar uma segura base doutrinária para essa tese, já que se tratava de um arranjo tático numa conjuntura política crucial para a sobrevivência da Revolução (a propósito, leia-se “Um passo adiante e dois para trás” e “Esquerdismo: doença infantil do comunismo”, ambos de Lenin)

Na verdade, quando se compara a possibilidade de uma revolução socialista na Europa com aquela que se deu na Ásia e depois, na América Latina e na África, é quanto se percebe o peso da questão nacional em relação ao internacionalismo proletário. A despeito, da Internacional Comunista ter sido pensada como “o estado maior da revolução mundial”, ela foi usada por Stalin em função das conveniências políticas (nacionais) da União Soviética. Veja-se, por exemplo, o que ocorreu com os comunistas na guerra civil espanhola.

V
Outro ponto muito discutido na experiência revolucionária russa (e fora da Rússia) é o do papel dos camponeses. É preciso dizer que Marx, diferentemente de Engels, Lenin ou Chayanov, nunca morreu de amores pelos camponeses e/ou a pequena propriedade rural. É conhecida a sua famosa expressão “um saco de batatas”, referindo-se ao campesinato francês, que sempre votava a favor dos Bonaparte. (Veja-se O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte). Seu companheiro Engels, e depois Lenin, é quem manifestaram uma maior acuidade política em relação à questão camponesa, na Europa e fora dela. O primeiro escreveu o conhecido artigo: “o problema camponês na França e na Alemanha”. E o segundo, sempre teve o maior cuidado de contemplar as reivindicações do pequeno campesinato no processo revolucionário, sobretudo na fase democrático-burguesa da revolução. A tendência do desenvolvimento do capitalismo no campo era a proletarização objetiva dos camponeses e sua transformação em operários. Mas, subjetivamente, as coisas não eram assim. Muitos alimentavam a ilusão da posse da terra, mesmo em condições de profundo endividamento. Não eram ideologicamente a favor da coletivização da terra. Se na Europa, ainda havia resquícios de uma mentalidade feudal ou camponesa entre os trabalhadores do campo, imagine na Rússia! Na verdade, a decisão de coletivizar (à força) a agricultura soviética foi de Stalin, numa espécie de acumulação primitiva do “socialismo em um só pais”. E essa decisão custou muito caro: desorganizou a agricultura soviética até hoje.

Agora, como transformar isso numa teoria revolucionária, contemplando a situação particular dos camponeses, esse é o problema teórico. Máxime, para os países de desenvolvimento capitalista tardio. A não ser que os pequeno-camponeses fossem encarados como “aliados táticos”, numa certa fase da revolução. Depois, seriam descartados se não aderissem ao socialismo. Pessoalmente, considero a questão agrária ou camponesa como uma espécie de “ponto dollens” da teoria revolucionária do socialismo, sobretudo quando levado para a periferia do capitalismo.

VI
Já a questão da relação entre Democracia e Socialismo divide os marxistas há muito tempo. Marx, que não morria de amores pela “democracia burguesa”, pareceu não dá muita importância a essa questão. Apesar da tese dos marxistas contemporâneos, apoiados em Gramsci, apontarem para um processo de ampliação do Estado nas sociedades ocidentais, em razão da constituição de uma sociedade civil robusta e complexa, acho difícil encontrar no pensamento de Marx abrigo para uma estratégia democrática radical para o advento do socialismo. Existe, é verdade, o testamento de Engels falando do avanço eleitoral da socialdemocracia alemã, no final do século, e da possibilidade de uma vitória eleitoral do proletariado naquele país. Entretanto, esse testamento tornou-se mais um problema – na história das disputas internas no pensamento socialista, do que uma solução. Foi preciso esperar os debates do pós-guerra, para ver a elaboração daquilo que veio a ser conhecido como “eurocomunismo” e de uma estratégia democrática (processual) para o advento do socialismo.

Nada disso havia no período anterior à duas grandes guerras. O debate entre “guerra de movimento” e “guerra de posição” ainda não tinha se colocado com tanta força para os partidos socialistas do ocidente, como depois do refluxo da onda revolucionária. A questão parecia simples: Revolução Permanente, com a transmutação da revolução democrático-burguesa em revolução socialista, sob a liderança da classe operária, ou as revoluções por etapa, respeitando-se o ritmo, o caráter específico e a direção dos processos revolucionários. Como ficou conhecido, a primeira tese foi defendida por Trotsky, em sua famosa obra “A revolução Permanente”, apoiando-se no voluntarismo de Marx no contexto da revolução de 1848-1851 na França. A segunda, por Stalin e seus seguidores, em vários escritos de ocasião.

Concordando-se ou não com o ponto de vista de Trotsky, é necessário convir que sua tese estivesse mais próxima da de Marx do que a de Stalin ou mesmo das concessões táticas do gênio de Lenin. De toda maneira, a sorte da questão democrática no interior da dialética revolucionária russa, é semelhante à da questão camponesa. Nunca se achou um fundamento estratégico sólido ora para o etapismo ora para a revolução permanente. O que há são escritos políticos de ocasião, com exceção naturalmente do livro de Trotsky. Mas isso dividiu o movimento revolucionário entre aqueles que acham ser a revolução um processo mundial, sem etapas rumo ao socialismo, e outros que defendiam uma sequência necessária entre uma etapa democrático-burguesa e a revolução socialista propriamente dita. Infelizmente, como as outras questões, esse debate produziu consequências políticas sérias para a revolução nos países onde os Partidos Comunistas tinham que atuar, incluindo o caso do Brasil, da China, do México etc. Mas essa é outra história que não cabe ser tratada aqui.

A tese veiculada no 6º Congresso da internacional Comunista falava, por exemplo, de uma revolução democrático-burguesa anti-imperialista que devia realizar tarefas expropriatórias e políticas preparatórias para a revolução socialista. Esta tese hegemônica, inspirada na Revolução Chinesa, se chocava com as elaborações nacionais de outros PCs que acentuavam a necessidade de uma revolução democrático pequeno-burguesa, bem mais limitada do que aquela. Mas prevaleceu a tese da IC e os partidos comunistas se alhearam dos processos revolucionários reais, dirigidos pela chamada “pequena-burguesia”. E os responsáveis pelas elaborações nacionais foram punidos e afastados dos PCs.

VII
Finalmente, chegamos à questão crucial: pode a revolução russa servir de modelo para a revolução socialista no mundo inteiro ou para aqueles países chamados de “coloniais” ou “neocoloniais” ou “dependentes”, como diziam as teses do 6º Congresso da IC?

Faço minhas as palavras da grande revolucionária Rosa Luxemburgo, em seu opúsculo “A Revolução Russa”: não se pode transformar a necessidade em virtude, ou seja, é impossível a universalização de um tipo de revolução, que se deu em circunstâncias históricas e políticas muito particulares, a despeito da formulação leniniana do “elo mais fraco da corrente” numa época de dominação imperialista. Eram louváveis e necessários os esforços da socialdemocracia alemã e russa de analisar a especificidade do “capital monopolista” ou do “capital financeiro”, no final do século 19. E houve várias tentativas: “O Imperialismo – Etapa superior do capitalismo”, “O capital financeiro”, “Acumulação de Capital” e outros. Mas nada disso explicaria ou anteciparia as condições dramáticas em que ocorreu a revolução. Deve-se à enorme frente de militantes (anarquistas, social-revolucionários, bolcheviques) e ao gênio político de Vladimir Lênin todas as concessões táticas e estratégicas necessárias para o triunfo da onda vermelha, da defesa da Revolução e a própria constituição da URSS. Mas a leitura atenta de toda obra de Lenin, acrescida da de Trotsky e Stalin, não nos autoriza a construir um modelo universal de Revolução Socialista calcado nas vicissitudes da experiência soviética. Tanto os problemas que se apresentaram na construção socialista russa, como os advindos da mera transposição de táticas e estratégias do movimento comunista internacional para os movimentos socialistas ou de libertação nacional nos países da periferia do capitalismo foram resultantes de uma racionalização política equivocada e que trouxe mais prejuízos à causa da revolução mundial do que benefícios. De certo modo, a “queda do muro de Berlim” – tomada como uma expressão metafórica para falar da crise do socialismo realmente existente – é produto dessas contradições, ambiguidades e problemas mal resolvidos, que foram simplesmente transformados em solução.

Cabe aos revolucionários do século XXI colher as preciosas lições de grande (e única) revolução socialista para repensar a sua prática revolucionária. A rica experiência da Revolução de outubro oferece um catálogo completo dos desafios e das possibilidades de se construir um mundo mais justo, mais humano e digno para toda a humanidade.

*Michel Zaidan Filho é professor-titular do Centro de Filosofia e Ciências Humanas-UFPE