revolução russa 1917
Revista online | A identidade imperial russa e a guerra na Ucrânia
Paulo César Nascimento e Leone Campos de Sousa*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
“Tudo que cessa de crescer começa a apodrecer”, assinalou, certa vez, Catarina II, imperatriz da Rússia de 1761 a 1796, referindo-se à necessidade de seu país expandir-se constantemente de forma a garantir seu status de potência entre as nações europeias. Essa aspiração tem sua origem em Pedro I, que a antecedeu em quatro décadas, e prossegue, por vias tortuosas, até a atual Rússia pós-soviética de Vladimir Putin, influenciando inclusive sua fatídica decisão de invadir a Ucrânia.
Para sustentar a ambição russa de aumentar a influência e o poder do czarismo, Pedro e Catarina tinham tanto que competir com os países que então representavam o Ocidente desenvolvido – Inglaterra, Holanda, Alemanha e França –, quanto copiá-los em certos aspectos. Para tal, procuraram transformar a velha Rússia oriental, dotando-a de infraestrutura moderna. Racionalizaram sua enorme burocracia, incentivaram a ciência e, através do fortalecimento do exército, ampliaram as fronteiras do império por meio de várias conquistas militares. Um ponto muito importante dessas mudanças foi a transferência da capital de Moscou para São Petersburgo, cidade construída por Pedro I com o intuito de ser a “janela para a Europa” da Rússia.
Esse processo de modernização, contudo, nunca incorporou o iluminismo europeu, nem muito menos as instituições democráticas que se desenvolviam na parte ocidental do velho continente. Os sucessivos czares construíram extensas ferrovias, dotaram seus exércitos da mais moderna artilharia e formaram técnicos e especialistas no exterior; no entanto, não reformaram a monarquia autocrática absolutista, que permaneceu sem grandes alterações até à Revolução de 1917.
Essa característica da Rússia – desenvolver-se para competir com as potências europeias, mantendo ao mesmo tempo a tradição autocrática de governo –, refletia na verdade uma ambiguidade da identidade nacional do país, visível na intelligentsia russa. Parte dela, ressentida pelo atraso cultural e político da Rússia vis-à-vis o Ocidente, enaltecia elementos da sua cultura autóctone, como a enigmática “alma eslava”, a “simplicidade” do muzhik – o camponês russo –, assim como a espiritualidade do povo, representada pela igreja ortodoxa. Veneravam as tradições eslavas e, ao mesmo tempo, criticavam o materialismo e o racionalismo ocidentais, bem como a falta de humanidade e transcendência nas sociedades europeias.
Uma outra parte dos intelectuais russos, ao contrário, tomavam o Ocidente como modelo a ser seguido pela Rússia, para que esta pudesse progredir e entrar no mapa mundial como a potência que suas dimensões territoriais, recursos naturais e milenar civilização exigiam. Lamentavam a autocracia czarista, o atraso social e a falta de liberdades democráticas do país. Sua visão do Ocidente, no entanto, muitas vezes pecava por ingenuidade, como se fosse possível transferir mecanicamente para a Rússia as condições que propiciaram o progresso dos países europeus. Aliás, tal ingenuidade parece ser uma constante entre os “ocidentalistas” russos.
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Por óbvio, as posições pró e contra o Ocidente nunca apareciam de forma cristalina, nem suas fronteiras eram rigidamente delimitadas. Era comum intelectuais russos mudarem de visão ao longo da vida, relutando sobre o que a Rússia deveria ser. O escritor e publicista do século XVIII, Denis Ivanovich Fonvisin, resumiu assim o drama russo: “Como poderemos remediar os dois preconceitos contraditórios e muito danosos: o primeiro, que tudo o que temos é horrível, enquanto nos países estrangeiros tudo é bom; e o segundo, que nos países estrangeiros tudo é terrível, e conosco tudo é bom?”. Já no plano simbólico, nada atesta melhor essa dubiedade da identidade nacional russa do que a iconografia imperial da águia bicéfala, com uma cabeça apontando para o Oriente e outra para o Ocidente.
A revolução russa de 1917 não alterou significativamente o quadro da identidade nacional russa, mas deu a ela nova roupagem, além de ter conciliado, pelo menos temporariamente, seus aspectos mais contraditórios. O marxismo popularizou-se entre a intelligentsia russa, a partir da segunda metade do século XIX, justamente porque atendia tanto os sonhos da escatologia eslavófila, que previa que a Rússia se tornaria uma “terceira Roma”, como as aspirações dos ocidentalistas, para quem a ciência do materialismo histórico desenvolvida por Marx apontava para a necessidade de uma revolução socialista que tiraria a Rússia de seu atraso histórico.
A Rússia, a partir de 1917, colocou-se dessa forma como foco irradiador de uma nova era histórica da humanidade. Dalí em diante, seriam os russos, com sua revolução, que iriam mostrar os novos caminhos de desenvolvimento ao Ocidente. É certo que no bolchevismo havia certos elementos que lembravam a busca dos eslavófilos por raízes próprias. Afinal de contas, Lenin rompeu com a socialdemocracia europeia, formando um tipo de partido centralizado até então inexistente entre os marxistas, além de adaptar o marxismo às condições russas, ao saltar a etapa democrático-burguesa pregada pela teoria e avançar direto para o socialismo.
Estas considerações à parte, Lenin e os bolcheviques mantiveram uma firme perspectiva internacionalista. A revolução russa deveria servir como uma faísca irradiadora das revoluções nos países ocidentais, sem as quais a Rússia soviética teria muito mais dificuldades em construir plenamente uma sociedade socialista. O Ocidente, contudo, não respondeu ao apelo revolucionário, deixando a Rússia isolada entre as nações capitalistas. Essa conjuntura minou a perspectiva internacionalista do partido comunista, que sob o comando de Stalin, nos anos vinte do século passado, desenvolveu a teoria do “socialismo em um só país”, segundo a qual a Rússia, já sob o manto da União Soviética, seria capaz não somente de construir o socialismo sem ajuda do Ocidente, como ainda de desempenhar, para os revolucionários de todo mundo, o papel de “pedra-de-toque” do movimento comunista.
Posteriormente, a espetacular vitória sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial elevou ainda mais o status da URSS, que atingiu, junto com os EUA, a condição de superpotência, realizando dessa forma o velho sonho dos profetas da eslavofilia, já que Moscou se tornou finalmente uma “terceira Roma”, ultrapassando, em termos de poder, influência e grandeza, a Roma dos latinos e a Constantinopla do Império Bizantino.
Somente ancorando nossa análise na sociologia weberiana, que enfatiza a importância dos valores e da motivação dos atores na orientação da ação social, somos capazes de compreender como a velha Rússia dos czares, atrasada e camponesa, pôde dar esse gigantesco passo em poucas décadas. A revolução de 1917 elevou a Rússia a este patamar grandioso não tanto por causa da doutrina marxista ou da economia socialista, mas porque soube canalizar, impulsionar e dar um sentido novo à milenar aspiração russa ao status de uma civilização ímpar na história da humanidade.
Ainda assim, a URSS continuava sendo um gigante de pés de barro. Alcançou paridade em ogivas nucleares e força militar com os Estados Unidos, mas continuava atrás dos países ocidentais em termos de instituições políticas democráticas, condições sociais e dignidade humana. A elite soviética pós-stalinista sabia disso, assim como a classe média urbana, sempre ávidas por produtos de consumo das economias capitalistas e informação sobre o Ocidente. Por fim, o inacreditável custo humano do empreendimento socialista, a estagnação econômica e a falta de liberdades elementares – civis, políticas, e de expressão artística – acabaram por minar a legitimidade do regime soviético.
Foi nesse contexto de crise e estagnação que ocorreu, com a Perestroika lançada por Mikhail Gorbachev, em 1986, uma significativa mudança da visão da elite dirigente em relação ao Ocidente, que pode ser atestada no apelo do governante soviético à construção de uma “casa comum europeia”. Mais que um modus vivendi pacífico com o Ocidente, a Rússia buscava ser parte integrante da civilização europeia. Mesmo o desmoronamento da União Soviética não alterou esta aspiração, ao contrário, até incentivou-a. Os primeiros anos da Rússia pós-soviética, ainda sob a liderança de Boris Yeltsin, foram marcados por um intenso sentimento pró-ocidental entre as elites urbanas do país. Parecia que, livre das amarras da União Soviética, e de volta ao convívio com as democracias ocidentais, a Rússia poderia ingressar em um período ilimitado de progresso político, econômico e social.
Como se sabe, nada disso aconteceu. Ao invés de construir uma economia de mercado avançada e gerar riqueza social, a Rússia enveredou pelo caminho de um capitalismo selvagem e corrupto, passando a conviver com desigualdades sociais nunca existentes no regime socialista anterior. Para humilhação do país, sua influência internacional diminuiu tanto que foi obrigada a engolir a expansão da OTAN na área de influência da antiga URSS. Os Estados Unidos, por sua vez, foi paulatinamente entregando a enfraquecida Rússia à própria sorte, na medida em que voltava sua atenção para enfrentar o crescente poderio da China.
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Este novo contexto levou a percepção do Ocidente na Rússia passar de simpatia para animosidade aberta. Forças políticas nacionalistas cresceram entre o eleitorado russo. Já em 1993, o partido liberal-democrático de Vladimir Zhirinovsky (ultranacionalista, apesar do nome) saiu o grande vencedor das eleições legislativas. O próprio partido comunista russo, reorganizado por Guennady Ziuganov após o colapso da URSS, renasceu das cinzas, adotando uma plataforma política com marcado tom nacionalista. A elite mais liberal de economistas e políticos, muito influente nos anos de transição da URSS para a Rússia pós-soviética, praticamente desapareceu do mapa político.
No tocante à política externa, a Rússia buscou reaver sua hegemonia na região que denomina de “exterior próximo”, a antiga área de influência da URSS. Em 1991, por iniciativa de Moscou, foi criada a Comunidade de Estados Independentes, composta de 11 ex-repúblicas soviéticas, e, no ano seguinte, a Organização de Segurança Coletiva com Armênia, Belarus, Cazaquistão e outros Estados da antiga Ásia Central soviética. A nova assertividade da Rússia foi demonstrada também quando o governo russo reprimiu militarmente a tentativa de independência da Chechênia, uma república islâmica da federação russa, em um conflito que se arrastou de 1994 a 1996.
É preciso assinalar que os ziguezagues na identidade nacional russa, ora aproximando-se do modelo ocidental, ora rejeitando-o, não obedecem a qualquer lei histórica ou ciclos inevitáveis. Uma variedade múltipla de fatores – econômicos, sociais e políticos – atuam em sinergia para empurrar a Rússia para um lado ou outro. A classe ou o estrato da sociedade de onde a elite governante russa é proveniente, seu grau de cosmopolitismo e o nível cultural que detém, também exercem influência na formação da sua visão sobre o que a Rússia deveria ser.
Além disso, o contexto internacional oferece seus próprios incentivos, diferentes em cada época, para a liderança russa se aproximar ou se afastar do mundo ocidental. Toda essa gama de fatores não impede o historiador, em retrospectiva, de reconstituir a trajetória que levou a uma ou outra opção, mas torna mais difícil ao analista político prever as tendências do futuro. Não se pode esperar, igualmente, que uma mudança em favor ou contra o que se percebe como “perspectiva ocidental” traga consequências imediatas para o rumo da política do país, devido aos múltiplos constrangimentos internos e externos que limitam os governantes russos.
Em linhas muito gerais, o que se pode afirmar é que, sempre que a Rússia se inclina para o Ocidente, se aproxima de ideais de liberdade, justiça e modernidade; e, por outro lado, toda a vez que o país vai buscar sua identidade no que entende como sendo suas fontes autóctones tradicionais, a tendência à autocracia se fortalece, até porque, em sua história, a Rússia desconheceu o iluminismo e não teve experiências significativas com a democracia.
Quando Putin então assume o poder em 1999, a Rússia já havia abandonado a perspectiva de seguir o modelo de sociedade dos países desenvolvidos do Ocidente, e buscava, através de um crescente sentimento nacionalista, reerguer-se enquanto nação. Putin reorganizou a economia do país, obtendo grande crescimento econômico em seu primeiro governo (1999-2008), em larga medida graças à alta de preços de petróleo e gás, além de fortalecer as forças armadas e elevar o nível de vida da população. Com isso, manteve altos índices de popularidade durante todo o seu mandato.
Quem ouve as constantes diatribes proferidas atualmente pelo governante russo contra os Estados Unidos e a União Europeia, pode ter a impressão de que Putin representa a fina flor da tradição antiocidental eslavófila do país. Mas na verdade, como grande parte da elite russa do século XIX até os tempos atuais, ele foi durante algum tempo ambivalente a respeito do que a Rússia deveria ser em termos identitários. A formação em direito pela Universidade de Leningrado, uma das melhores do país, e a carreira como agente de inteligência da URSS com anos de trabalho na Alemanha Oriental (DDR), ampliaram seus horizontes intelectuais e com isso seu espírito crítico.
Quando ocorreu a tentativa de golpe contra Gorbachev, em agosto de 1991, Putin renunciou ao cargo de tenente-coronel na KGB, declarando naquela ocasião: “Assim que o golpe começou, eu imediatamente decidi de que lado estava”. Atitude surpreendente, haja vista o apoio que a KGB havia dado aos golpistas. Já sobre o regime soviético, quando foi eleito presidente em 2000 ele declarou em seu “Manifesto do Milênio”:
“O comunismo e o poder dos soviéticos não fizeram da Rússia um país próspero, com uma sociedade em desenvolvimento dinâmico e um povo livre. O comunismo demonstrou vividamente a sua inaptidão para um autodesenvolvimento sólido, condenando o nosso país a um atraso constante em relação aos países economicamente avançados. Foi um caminho para um beco sem saída, que está longe da corrente dominante da civilização”.
Ou seja, fica claro aqui o rechaço de Putin à experiência soviética porque esta afastou a Rússia da “corrente dominante da civilização” – a civilização dos países desenvolvidos do Ocidente que, àquela época, estava na sua mente como modelo a ser seguido.
Não menos intrigante é a conversa que teve lugar em 2015, entre o cineasta norte-americano Oliver Stone e Putin, em que este revelou que “décadas atrás”, em uma das visitas de Bill Clinton a Moscou, teria dito “meio a sério, meio como piada” que “provavelmente a Rússia deveria pensar em se juntar à OTAN”. Piada ou não, o fato é que já havia sido assinado, em 1997, o “Ato Fundador OTAN-Rússia”, acordo com o intuito de aproximar a Rússia e o bloco militar em assuntos envolvendo segurança mútua. E em 2002, já com Putin ocupando o Kremlin, formou-se um “Conselho OTAN-Rússia” no qual o país chegou até a ganhar um assento permanente na sede do Bloco, em Bruxelas.
Mas na medida em que consolidava seu poder, Putin foi percebendo os ventos nacionalistas que sopravam na Rússia, e incentivou-os ainda mais, esquecendo sua antiga consideração com a civilização ocidental. Para essa empreitada, recorreu à Igreja ortodoxa russa, que se tornou a maior propagadora dos “valores tradicionais russos”. É da boca do Patriarca de Moscou, Kiril I, seu fiel aliado, que saem os mais veementes ataques à cultura e ao modo de vida ocidentais. O influente filósofo e nacionalista russo Aleksandr Dugin, considerado por muitos como o “guru de Putin”, também contribuiu para a disseminação de ideais antiocidentais, pregando a fundação de um “império euroasiático” com Rússia e China, para se opor à hegemonia do mundo ocidental.
Como era de se esperar, a defesa dos “valores tradicionais” da Rússia por Putin veio pari passu com o aumento de sua disposição autocrática. Ele modificou a constituição do país para se perpetuar no poder, alternando os cargos de presidente e primeiro-ministro, controlou os governadores e a mídia, e reprimiu a oposição liberal, prendendo, exilando ou envenenando seus desafetos e opositores. Por outro lado, a frustração de boa parte da sociedade com o que era percebido como tentativas dos EUA e seus aliados europeus de diminuir e humilhar a Rússia fez Putin endurecer ainda mais sua política externa. Uma série de acontecimentos deteriorou a relação entre a Rússia e o Ocidente, especialmente na área de segurança. A já mencionada expansão da OTAN foi um deles. Dos anos 90 em diante, a OTAN foi aceitando novos membros, sendo quatorze deles, em um total de trinta, ex-repúblicas soviéticas e países na órbita de influência da antiga URSS.
É preciso considerar, entretanto, que aqueles países não entraram na OTAN à força, mas procuraram o bloco militar justamente pela percepção de que a Rússia poderia ameaçar sua segurança. Contribuíram para isso a guerra que o governo russo moveu contra a Chechênia e seu apoio a favor de separatistas pró-Rússia na Geórgia. Por outro lado, o bombardeio da Sérvia – tradicional aliado da Rússia – pela OTAN em 1999, durante a guerra civil na ex-Iugoslávia, assim como a invasão do Iraque pelos EUA e Reino Unido, em 2003, acirraram a desconfiança no Ocidente por parte da Rússia.
Nenhum fator, contudo, perturbou mais a Rússia do que a situação na Ucrânia. Tornando-se um Estado independente após o colapso da URSS, a Ucrânia procurou inicialmente resolver suas pendências com Moscou. A desnuclearização do país foi uma dessas controvérsias, já que Kiev herdou grandes estoques de armas atômicas da URSS, mas um acordo com a Rússia, em 1992, possibilitou a devolução das ogivas nucleares aos militares russos. Outra disputa surgiu em torno das bases da Frota russa do Mar Negro, mas esse problema também foi superado, pelo menos temporariamente, com as negociações que levaram, em 1997, ao Tratado de Partição, que permitiu à Rússia arrendar as bases navais em Sebastopol, ao mesmo tempo em que era reconhecida pelos dois lados a inviolabilidade das fronteiras existentes. Outros tratados resolveram disputas relacionadas com o fornecimento de energia por oleodutos e gasodutos através do território ucraniano, dívidas de Kiev com Moscou, e outros problemas menores. A entrada da Ucrânia na Comunidade de Estados Independentes, nos anos 1990, possibilitou parcerias comerciais entre os dois países e as relações entre a Ucrânia e a Rússia melhoraram.
Na medida, contudo, em que o sentimento antiocidental foi crescendo na Rússia, o governo de Putin passou a exercer pressão, inclusive militar, sobre qualquer orientação pró-ocidental na área de seu “exterior próximo”, como o mencionado apoio militar da Rússia aos separatistas de certas regiões da Geórgia, em 2008, como castigo pela inclinação pró-europeia do governo daquele país. Os ucranianos passaram a se perguntar se o mesmo não poderia ocorrer com a Ucrânia, se a Rússia resolvesse apoiar o movimento separatista de russos étnicos na região ucraniana do Donbass. A Ucrânia, que já havia pedido entrada na OTAN, em janeiro daquele ano, passou a mostrar uma gradual inclinação ao ocidente, apesar de o presidente à época, Victor Yushchenko (2005-2010), ter assegurado a Putin que o pedido de entrada de seu país no bloco militar ocidental não era uma atitude contra a Rússia. Os russos desconfiavam de Yushchenko, a quem consideravam muito pró-ocidental, mas, de qualquer forma, França e Alemanha se opuseram à entrada da Ucrânia no bloco, porque isso seria cruzar uma linha vermelha com a Rússia, e o fato é que, desde 2008, a Ucrânia está esperando sua admissão, a qual até nossos dias nunca entrou na pauta da OTAN, mesmo após a invasão do país pelas forças russas.
Apesar dos altos e baixos que marcaram as relações entre Rússia e Ucrânia desde o fim da URSS, os problemas foram contornados até 2014, quando uma revolta popular derrubou Viktor Yanukovitch (2010-2014), que havia sido eleito em 2010 e era considerado o presidente mais pró-russo que a Ucrânia teve desde sua independência. Com as promessas de não-adesão do país à OTAN e a adoção do russo como um dos idiomas oficiais da Ucrânia, Yanukovitch granjeou simpatias no Kremlin, o que teve como consequência uma significativa melhora nas relações entre os dois países. Mas o presidente ucraniano, pragmático, não deixava de enxergar as vantagens econômicas que uma aproximação com a União Europeia poderia trazer, e passou a elaborar planos para um tratado de livre comércio com o bloco europeu, o que irritou o governo russo. Moscou passou a ameaçar adotar sanções econômicas contra a Ucrânia, e a pressão russa acabou por fazer Yanukovitch desistir do acordo com a União Europeia. O cancelamento do tratado, porém, levou a uma revolta popular que fez o presidente renunciar e se exilar em Moscou.
A Rússia retaliou anexando a Crimeia, em fevereiro de 2014, e passou a apoiar militarmente os separatistas de etnia russa da região do Donbass, que formaram as autodeclaradas repúblicas de Donetsk e Luhansk, dando início a um conflito com o exército ucraniano que perdura até hoje. No dia 1º de março daquele mesmo ano, o parlamento russo autorizou Putin a usar força militar na Ucrânia. As negociações entre Rússia, Ucrânia e as repúblicas autônomas, que tiveram lugar em Minsk, em 2014 e 2015, não lograram um cessar-fogo nem um desenho institucional que mantivesse as repúblicas separatistas, com certa autonomia, dentro da Ucrânia.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, seguida em setembro do mesmo ano pela anexação de Donetsk, Luhansk, Zaporozhye e Kherson, regiões do leste do país povoadas por russos étnicos, deteriorou de vez a relação com o Ocidente. É possível que uma causa mais imediata da agressão russa tenha sido o declínio da economia do país, nos últimos anos, que vinha abalando a popularidade de Putin. É muito comum líderes políticos insuflarem aventuras externas para desviar a atenção de problemas internos e recuperar apoio popular. Ainda assim, é difícil imaginar uma ação dessa magnitude sem um forte sentimento antiocidental na Rússia.
É preciso destacar, entretanto, certas características específicas do nacionalismo russo atual que podem ter acirrado o conflito. Ao contrário do que alguns analistas apressados têm argumentado, Putin não está almejando reconstruir o império soviético, apesar de ter classificado o colapso da URSS como “a maior catástrofe do século XX”. O nacionalismo que ele incentiva, e a restauração da Rússia que almeja, possuem na verdade mais em comum com o antigo império czarista do que com os tempos soviéticos. Na antiga URSS, o Ocidente era percebido como sinônimo de capitalismo, e as divergências entre ambos se baseavam fundamentalmente em sistemas econômicos diferentes. Atualmente, Ocidente significa aos olhos russos uma civilização com valores antagônicos à própria identidade e tradição russas. Além disso, o nacionalismo russo camuflado da época socialista não possuía o caráter étnico e grão-russo chauvinista da época atual, que era característico do império czarista, denominado por Lenin de “prisão dos povos”.
Em artigo divulgado sete meses antes da agressão à Ucrânia, Putin revela esse nacionalismo étnico grão-russo. Ele relembra a origem comum dos povos da Ucrânia, Rússia e Belarus, que se remonta à Rússia de Kiev (Rus de Kiev) do século IX, para argumentar que as tribos eslavas eram unidas pela mesma língua, tradições culturais, laços econômicos e fé ortodoxa. A seguir, descreve como, a partir de 1654, o território ucraniano passou a fazer parte da Coroa russa em troca de proteção aos seus habitantes. Putin, entretanto, esconde outras influências que partes substantivas da Ucrânia sofreram, e que deixaram suas marcas na identidade ucraniana moderna.
A história da Ucrânia mostra que até 1648 a grande maioria dos ucranianos vivia sob jurisdição da Comunidade Polonesa-Lituana, e que a influência social e cultural da nobreza polonesa perdurou no país até à Revolução de 1917. A região da Transcarpátia ucraniana foi parte da Hungria, da Idade Média até 1919, e a Crimeia, conquistada dos turcos otomanos pelo império russo, na época de Catarina II, possui forte tradição islâmica e comunidades tártaras até à época atual. Ignorando o desenvolvimento da identidade ucraniana, Putin alega que a Ucrânia moderna foi produto da era soviética, uma espécie de entidade artificial, fruto da “generosidade” dos bolcheviques, esquecendo-se que a questão nacional era tratada por Lenin segundo os princípios da autodeterminação dos povos, e não por razões de bondade. Putin acusa ainda a Ucrânia de querer reescrever sua história desvinculando-a da Rússia, e isso devido a pressões dos Estados Unidos e da União Europeia. E arremata que “a verdadeira soberania do Estado ucraniano só é possível em parceria com a Rússia”. Putin, dessa forma, trata a Ucrânia como se o país ainda fosse a “pequena Rússia” da periferia do antigo império czarista.
O que Moscou realmente reativou da era soviética foi a escola stalinista de falsificação. Para justificar uma invasão tão transparente, o Kremlin lembrou a relação da Ucrânia com a OTAN, como se aquele país estivesse prestes a ser aceito no bloco; exagerou a importância de grupos ucranianos de extrema-direita, afirmando que a invasão militar tinha também como propósito “desnazificar” um país que é governado por um presidente de ascendência judaica; e muito na lógica usada por Hitler para ocupar em 1938 a região germanizada dos Sudetos, pertencente à antiga Tchecoslováquia, Moscou alegou que a intervenção era necessária igualmente para defender os russos étnicos da região do Donbass, que estariam sofrendo uma política de extermínio por parte do governo do atual presidente Volodymyr Zelensky.
Como um jogador compulsivo de pôquer, Putin apostou todas as fichas em um perigoso jogo geopolítico que pode voltar-se contra ele. O plano inicial de tomar Kiev e derrubar o governo ucraniano falhou, e a Rússia viu-se isolada política e diplomaticamente do mundo desenvolvido, além de sofrer severas sanções econômicas. Sua aproximação com a China, para contrabalançar o isolamento internacional, tem certa limitação, pois o governo chinês, embora tenha criticado as sanções ocidentais, não endossou a invasão da Ucrânia, preferindo abster-se nas votações sobre a guerra na ONU. Pior ainda, se a intenção era evitar a expansão da OTAN, o tiro saiu pela culatra, pois Suécia e Finlândia, países com tradição de neutralidade, solicitaram admissão no bloco militar.
Confira, a seguir, galeria:
A atual estratégia de Moscou parece se limitar a salvar as aparências e declarar que o objetivo da “ação militar especial”, como o alto comando militar russo denomina a invasão da Ucrânia, foi alcançado com a anexação das regiões do Donbass. Mas a julgar pela contraofensiva ucraniana em curso, a guerra vai continuar por tempo indeterminado, solapando os recursos da Rússia e obrigando Moscou a convocar centenas de militares de reservistas, o que pode minar a popularidade de Putin. Sem encontrar saída para o problema que criou, o governo russo faz constantes ameaças de usar o armamento nuclear do país, aumentando desta forma a escalada do conflito com o Ocidente.
O isolamento do país deve acentuar ainda mais o nacionalismo antiocidental na sociedade russa, assim como a guerra afasta a Ucrânia de sua tradicional ligação com a Rússia, empurrando os ucranianos para uma identidade cada vez maior com a Europa ocidental. Se fizermos um paralelo histórico com a situação do Japão e da Alemanha, podemos constatar que, após o fracasso desses países em expandir seu poder através de guerras e ocupações territoriais, ambos se reinventaram e se tornaram nações prósperas, respeitadas e influentes no mundo. A Rússia, ao contrário, continua a agonizar sobre a perda do status imperial e os rumos de sua identidade nacional. Catarina II, ao afirmar que seu império só seria mantido através da expansão, parece ter lançado uma maldição que continua assombrando o país.
Sobre os autores
Paulo César Nascimento é cientista político, formado pela Universidade de Brasília (UnB).
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
*Leone Campos de Sousa é socióloga, graduada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Cláudio de Oliveira: Julius Martov e a Revolução Russa
Julius Martov (na foto, sentado, à direita) foi uma das mais proeminentes personagens da Revolução Russa de 1917. Líder dos internacionalistas, facção de esquerda dos mencheviques, ele se opôs à participação dos socialistas nos governos provisórios após a Revolução de Março e a abdicação do czar Nicolau II [1]. Foi também contrário à permanência da Rússia na I Guerra Mundial. A continuidade no conflito agravou a crise econômica do país e a insatisfação popular abriu caminho para a Revolução de Novembro, quando então os bolcheviques tomaram o poder, liderados por Vladimir Lenin [2].
No dia 8 de novembro, dia seguinte à insurreição, durante o 2º Congresso dos Sovietes — os conselhos de representantes de operários, camponeses, soldados e marinheiros — Martov propôs a formação de um governo de união de todas as correntes do socialismo russo para evitar que o país mergulhasse no caos. Para desespero de Martov, a maioria dos mencheviques e socialistas revolucionários se retirou do encontro em protesto contra o levante. O gesto dificultou a negociação apoiada por líderes bolcheviques como Grigori Zinoviev e Lev Kamenev. No entanto, a resposta da maioria bolchevique à proposta veio de Leon Trotski:
As massas populares seguiram nosso estandarte e nossa insurreição é vitoriosa. E agora nos dizem: Renunciem à vitória, façam concessões, cedam. A quem? Eu pergunto: a estes grupos deploráveis que nos abandonaram ou a quem apresenta tal proposta? [...] Ninguém na Rússia continua ao lado deles. Um acordo só pode ser firmado entre partes iguais [...]. Mas aqui não há acordo possível. Àqueles que nos deixaram e àqueles que nos aconselham a transigir, respondemos: Vocês são corruptos miseráveis, sua função acabou; vão para onde devem ir — para a lata de lixo da história.
Martov então se concentrou nas eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas no final daquele mês. Porém, os mencheviques obtiveram uma votação de apenas 3%. Contrariando a arrogância e o sectarismo de Trotski, os vencedores foram os socialistas revolucionários, com 40% dos votos, ao suplantarem os 24% dados aos bolcheviques [3]. Os liberais do Partido Constitucional Democrata obtiveram 5% dos votos. Em minoria e com ajuda de soldados que participaram da insurreição, os bolcheviques fecharam a Constituinte.
Iniciada a guerra civil, Martov apoiou o Exército Vermelho contra a intervenção estrangeira e o Exército Branco, comandado por generais monarquistas. Apesar do apoio ao governo soviético no combate à contrarrevolução, o líder menchevique foi um crítico contundente da repressão generalizada, opondo-se ao fechamento de jornais liberais e às perseguições aos partidos que faziam oposição pacífica. As posições de Martov indicavam a possibilidade de uma alternativa democrática e socialista tanto ao último governo provisório — liderado pelo trudovique Alexander Kerensky —, quanto à ditadura comunista que se seguiu [4]. A bibliografia sobre Martov em português é quase inexistente. Após o fim da União Soviética, em 1991, foram publicados vários livros revalorizando o papel de Martov na Revolução Russa. Porém, a obra fundamental sobre ele foi publicada ainda em 1967 pela Editora da Universidade de Cambridge, do Reino Unido, em coedição com a Universidade de Melbourne, da Austrália. Intitulada Martov – A Political Biography of a Russian Social Democrat, é de autoria de Israel Getzler (1920-2012), professor da Universidade de Jerusalém, e continua inédita no Brasil.
A questão democrática
A obra de Getzler traz as polêmicas entre Martov e Lenin, como a de 1903, durante o 2º Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), sobre a organização do partido: se dirigido por um comitê centralizado, mas aberto à filiação de todos os que aderissem ao seu programa, como defendido por Martov, ou se por um círculo composto exclusivamente de revolucionários profissionais, como queria Lenin. A proposta vencedora foi a de Martov. O livro relata a ação posterior de Lenin para alcançar a maioria, pois, mesmo vencendo no Congresso, Martov e seus partidários ficaram em minoria no Comitê Central, o que causou a divisão do POSDR em duas alas: mencheviques (partidários da minoria, em russo) e bolcheviques (partidários da maioria).
A discussão sobre a forma de organização partidária revelava duas questões de fundo que marcarão todas as divergências entre Martov e Lenin: a avaliação que faziam do nível de desenvolvimento econômico da Rússia e a concepção de cada um sobre o Estado e a democracia. Lenin acreditava que o capitalismo estava suficientemente desenvolvido para uma revolução socialista e defendia um governo forte e centralizado — a ditadura do proletariado. Martov avaliava que o país não estava suficientemente industrializado, possuía um operariado pequeno e uma grande massa de camponeses analfabetos. Propunha uma estratégia democrática e reformista, como já praticada por socialistas franceses e alemães.
Tais diferenças ficarão profundamente marcadas com a chegada dos bolcheviques ao poder, quando os conceitos de democracia e ditadura do proletariado serão alvos de controvérsias entre Lenin, Martov e Karl Kautsky, influente teórico do Partido Social-Democrata Alemão. Para estes dois últimos, a democracia era um valor intrínseco ao ideário socialista. Para Lenin, apenas uma formalidade. A visão leninista justificou a dissolução da Constituinte e a repressão a todos os adversários, dos liberais aos socialistas, como Martov.
Outra polêmica se estabeleceu a partir de 1914, com o início da I Guerra Mundial e o colapso da II Internacional, a organização que congregava os partidos socialistas europeus, dissolvida em 1916. Vários daqueles partidos tomaram posições nacionalistas em apoio ao esforço de guerra de seus respectivos países, enquanto outros se opuseram ao conflito. O mais influente de todos eles, o Partido Social-Democrata Alemão, votou pelos créditos de guerra, alegando que o Império Alemão se defendia das agressões do Império Russo. Mencheviques como Georgi Plekhanov, um dos introdutores do marxismo na Rússia, também tomaram posição nacionalista, acreditando que a derrota da Alemanha seria a vitória da Inglaterra e da França e, assim, dos valores democráticos.
No entanto, Martov formou uma ala do POSDR contra a guerra, passando a sua facção a ser denominada de internacionalista. Dessa vez, Martov e Lenin ficaram ao mesmo lado, ao considerarem o conflito uma disputa entre as potências europeias, estranha aos interesses dos trabalhadores. Mas havia uma diferença: enquanto Lenin propunha transformar a guerra imperialista em guerra civil do operariado contra as classes dominantes, Martov defendia uma proposta pacifista de armistício imediato, sem anexações e reparações.
A aproximação entre mencheviques e bolcheviques levou a uma tentativa de reunificação do POSDR, desejada por Martov. Afinal, ele havia iniciado sua militância ao lado de Lenin, ambos com pouco mais de 20 anos de idade, quando juntos fundaram, em 1895, a Liga de Luta pela Emancipação da Classe Operária de São Petersburgo, iniciando uma amizade e admiração mútua. A Liga criou as bases para que ambos participassem da organização do POSDR, em 1898. Estiveram juntos na redação do Iskra (centelha), o jornal do partido, e compartilharam o exílio na Sibéria e em vários países da Europa ocidental. Mas a união entre as duas alas não prosperou, para desapontamento de Martov, retratado na biografia como sentimental, indeciso, incapaz de deslealdades: o oposto de Lenin. De moral e ética rígidas para os padrões bolcheviques, Martov pediu a expulsão de militantes envolvidos em roubos a bancos para financiar a atividade partidária. Em 1918, denunciou publicamente Josef Stalin pela participação em um assalto, em 1907, na capital da Geórgia, Tbilisi, em ação desastrosa que teria deixado vários mortos.
Depois da Revolução de Novembro, Martov conquistou a maioria no Comitê Central do POSDR, em oposição à ala direita do partido, representada por Fyodor Dan, Pavel Akselrod e Irakli Tsereteli. Em 1919, os mencheviques haviam resolvido aceitar o governo soviético, adiar a batalha pela convocação da Constituinte, protestar contra o esvaziamento dos poderes dos sovietes e lutar para transformá-los em órgão de poder democrático e parlamentar. Apesar de então se opor à contrarrevolução, o partido menchevique sofreu a repressão dos bolcheviques, alternando momentos de legalidade, proscrição e semiclandestinidade, até ser definitivamente banido em 1921, ao defender as reivindicações da revolta dos marinheiros bolcheviques do Kronstadt. O jornal menchevique Avante foi fechado várias vezes. O próprio Martov ficou em prisão domiciliar por cinco dias, e só teria escapado da repressão da Tcheka, a polícia secreta que antecedeu a KGB, por proteção de Lenin. Na ocasião da proscrição do POSDR, Martov estava na Alemanha para tratamento de saúde.
Inspiração para a NEP
Com a desilusão de muitos operários após o fracasso econômico do comunismo de guerra, período no qual todos os setores da economia foram estatizados e o Estado monopolizou a compra da produção agrícola e impôs baixos preços aos produtores, causando desabastecimento e fome, os mencheviques conseguiram alguns êxitos nas eleições dos sovietes locais. No início de 1920, apresentaram o nome de Martov para a eleição ao soviete de Moscou, e, para confrontar o líder menchevique, os bolcheviques apresentaram a candidatura de Lenin. Durante uma votação entre operários em uma fábrica de produtos químicos, Martov obteve 76 votos contra oito dados a Lenin.
A ação de Martov e de seus partidários não foi apenas crítica, como também propositiva. Em julho de 1919, em meio à guerra civil e à grave crise econômica, os mencheviques apresentaram um programa econômico alternativo ao comunismo de guerra. Defenderam um regime de economia mista, no qual o setor estatal deveria conviver com o setor privado. Segundo o programa, somente setores fundamentais da grande indústria deveriam ser nacionalizados. Defenderam que os camponeses deveriam decidir livremente sobre produção e preços e o Estado deveria negociar acordos com cooperativas para o abastecimento das cidades, entre outras medidas. Geztler sugere que tal programa serviu de base para que Lenin formulasse, em fevereiro de 1921, a Nova Política Econômica, a NEP, em substituição ao comunismo de guerra, então motivo de greves e protestos.
Com a NEP, várias proposições dos mencheviques foram adotadas e medidas de mercado foram introduzidas na combalida economia soviética, inclusive a permissão ao investimento estrangeiro. Apesar da oposição da esquerda bolchevique, encabeçada por Trotski, Lenin conseguiu aprovar a NEP e a defendeu como um capitalismo de Estado, necessário para recuperar a economia e fazer uma transição ao socialismo. O plano começou a tirar o país da crise e teve o apoio de Nikolai Bukharin, um economista bolchevique que gradualmente passou de posições políticas radicais para moderadas. Após o afastamento de Lenin por motivo de saúde, na segunda metade de 1921, Bukharin se tornou o principal defensor da NEP e fez oposição ao plano de industrialização acelerada e coletivização forçada lançado por Stalin em 1928. Bukharin foi fuzilado nos expurgos na década de 1930.
A terceira via
Em 1920, Martov foi autorizado a deixar a Rússia para tratamento de saúde na Alemanha e participar da convenção do Partido Independente Social-Democrata Alemão (cuja sigla em alemão era USPD), na cidade de Halle. Naquele ano, o USPD havia sido o segundo partido mais votado, com 17,9% dos votos, abaixo apenas do governante Partido Social-Democrata, o SPD, que conquistara 21,7%. Martov fora convidado pelos moderados do USPD para convencer os socialistas alemães a não aderirem à Internacional Comunista (IC), a III Internacional, criada em 1919 por Lenin, e que estimulou os radicais dos partidos socialistas a fundarem os partidos comunistas. Para fazer o contraditório com Martov, a ala esquerda do USPD convidou o presidente da IC, Grigori Zinoviev. Com a saúde abalada e a voz fraca, Martov não conseguiu terminar o seu discurso, lido então por um dos presentes. A proposta de adesão à IC ganhou o apoio de 236 contra 150 dos convencionais e a ala esquerda aderiu ao PC alemão. Porém, três quartos da bancada de 81 deputados permaneceram no USPD.
Como resultado da intervenção de Martov, o USPD se articulou com o Partido Social-Democrata Operário da Áustria e outros para fundarem, em janeiro de 1921, a União de Partidos Socialistas para a Ação Internacional, conhecida também como a Internacional de Viena ou a Internacional Dois e Meio, que buscou uma via intermediária entre o comunismo da III Internacional e a social-democracia da II Internacional. Martov fez parte da direção da Internacional de Viena ao lado de líderes social-democratas da Áustria, como Otto Bauer. Chamados de austromarxistas, o programa de reformas sociais e econômicas dos social-democratas austríacos influenciará posteriormente na constituição do Estado do Bem-Estar Social nos países escandinavos. E também inspirará, na década de 1970, Enrico Berlinguer, secretário-geral do PC italiano, a formular o eurocomunismo, com o qual reconhece a democracia como valor universal e oficializa o rompimento dos comunistas italianos com o modelo soviético. A Internacional de Viena existiu até 1923, quando se fundiu à II Internacional, reorganizada em 1920, para criar a Internacional Operária e Socialista.
Martov morreu na Alemanha em abril de 1923, meses antes de completar 50 anos de idade, vítima de tuberculose. Em 1922, Lenin havia sofrido um primeiro acidente vascular cerebral. Afastado do poder, agora sob o mando de Stalin, paralisado do lado esquerdo e com dificuldades de falar, Lenin teria tentado se reconciliar com Martov. Em cadeira de rodas, costumava apontar para livros de Martov em sua estante e pedia que um motorista o levasse até ele. Geztler cita Reminiscências de Lenin, livro de memórias de Nadezhda Krupskaya, mulher do fundador da União Soviética, para descrever o abatimento dele ao receber a notícia da gravidade da doença do antigo amigo e camarada: “Vladimir Ilyich estava seriamente doente quando me falou certa vez com muita tristeza: ‘Dizem que Martov está morrendo também’”. Lenin morreu em janeiro de 1924 aos 53 anos, menos de um ano depois de Martov.
No Brasil, a inexistência de obras de e sobre Martov contrasta com a profusão de biografias e de livros de autoria de Lenin, sustentando a persistência da influência do leninismo em parcelas expressivas da esquerda brasileira. Num momento em que setores esquerdistas na América Latina flertam com soluções autoritárias, o resgate de Martov e de suas ideias democráticas talvez fosse útil ao debate público.
* Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista.
Notas
[1] Mencheviques — ala moderada do Partido Operário Social-Democrata Russo, banido em 1921.
[2] Bolcheviques — ala radical do Partido Operário Social-Democrata Russo, que a partir de 1918 denominou-se Partido Comunista.
[3] Partido Socialista Revolucionário — banido durante a guerra civil. A ala direita foi acusada de apoiar o Exército Branco. A ala esquerda, inicialmente participou do governo soviético, porém foi excluída ao se opor ao Tratado de Brest-Litovsky, de paz com a Alemanha.
[4] Trudovique — membro do Partido Trabalhista, dissidência do Partido Socialista Revolucionário, surgido em 1905 e desintegrado após a Revolução de Novembro.
Bibliografia consultada
FIGES, Orlando. A tragédia de um povo. A Revolução Russa 1891-1924. Rio de Janeiro: Record, 1999.
Getzler, Israel. Martov – A Political Biography of a Russian Social Democrat. Cambridge Univesity Press/ Melbourne University Press, 2003.