Revista Veja

Ricardo Noblat: O capitão e seu aprendizado

A Constituição e a Bíblia

Louvado seja o esforço do presidente eleito Jair Bolsonaro em reescrever o que possa ter dito de pior, de mais chocante, de mais bárbaro ao longo dos últimos anos – e, especialmente, nos meses mais recentes. Tudo para que o desafio de governar um país dividido se torne menos incerto do que será para ele. Compreensível.

Foi assim com o discurso que lhe deram para ler no domingo à noite tão logo acabou a apuração dos votos. E novamente foi assim na série de entrevistas que concedeu ontem a diversas emissoras de televisão. Na Record, ele pareceu em casa. Disse o que quis sem se preocupar em ouvir o que não desejaria. Esteve menos à vontade na Globo.

Notável o esforço de William Bonner e de Renata Vasconcelos no Jornal Nacional em tentar “normalizar” Bolsonaro. Trataram-no com o devido respeito a um presidente da República. E deram-lhe todas as chances para retificar o que quisesse e sair-se da melhor maneira possível. Bolsonaro desperdiçou algumas. Ou não quis aproveitá-las.

Insistiu com a fake news do kit gay, por exemplo, e ameaçou cortar as verbas de publicidade do governo destinadas ao jornal Folha de S. Paulo. O kit gay foi a sacada que teve e que mais o beneficiou durante a campanha. A sacada não foi dele. Bolsonaro ouviu falar a respeito há mais de um ano em uma escola de Copacabana. Gostou.

Por nada neste mundo abrirá mão de repeti-la sempre que achar conveniente. Quanto à sua mágoa com a Folha, ela poderá ser reduzida a depender da cobertura que o jornal faça do seu governo. Como a maioria dos políticos, Bolsonaro defende a liberdade de imprensa desde que não seja alvo dela.

Lula disse um dia que gostava de publicidade, de notícia não. Publicidade é sempre a favor de quem a contrata. Notícia é quase tudo que os poderosos gostariam de esconder. Liberdade de imprensa não é um direito dos jornalistas, mas da sociedade, que sem informações livres e honestas não tem como tomar decisões justas.

Até janeiro, Bolsonaro terá tempo para aprender que um presidente pode muito, mas não pode tudo, e que a Constituição não é apenas mais um livro que se exibe em meio a outros, mesmo quando um deles é a Bíblia. O Estado brasileiro é laico. Ninguém é obrigado a ler a Bíblia. Mas todos são obrigados a respeitar a Constituição.

A queda da fortaleza do PT
Uma surra para jamais ser esquecida

Caiu a fortaleza do PT que por 20 anos pareceu inexpugnável – o Acre dos irmãos Viana. Foi ali que Bolsonaro teve seu melhor desempenho nas eleições do último domingo – 77% dos votos válidos.

O PP elegeu o governador com quase 54% dos votos contra 34,5% do candidato do PT. Os dois senadores eleitos são do PSD e MDB. Juntos somaram 54% dos votos. Os dois candidatos do PT, pouco menos de 30%.

Dos 8 deputados federais eleitos, nenhum foi do PT. O PC do B e o PDT elegeram dois dos 8. Dos 24 deputados estaduais, o PT elegeu somente 2.


Ricardo Noblat: Em cena, o Bolsonaro democrata

Todo cuidado com o outro é pouco

O que você prefere – seja para conviver, exaltar ou se opor? O Bolsonaro que no último domingo dia 21 dizia que os “vermelhos” seriam varridos do país para a cadeia ou o exílio?

Ou o Bolsonaro que sete dias depois, uma vez eleito presidente da República, jurou invocando Deus que será um defensor incondicional da Constituição, da democracia e da liberdade?

Essa pergunta não deve ser feita a um bolsonarista da gema. Primeiro porque ele só tem tempo para celebrar a vitória. Segundo porque continua disposto a justificar tudo o que o Mito faça ou diga.

E assim será até que as ações do futuro governante comecem a afetar sua vida para o mal em nome do bem futuro. Finalmente cairá a ficha. E o coração cederá a vez ao bolso.

Bolsonaro fez dois discursos depois de eleito. O primeiro por meio das redes sociais para os acostumados a vê-lo ali. O segundo transmitido por redes de emissoras de rádio e de televisão.

Foi de improviso o primeiro. O segundo foi lido. Importa o segundo. Ele marca a migração do Bolsonaro extremista velho conhecido para o Bolsonaro democrático novinho em folha que agora se apresenta.

De um total de 955 palavras distribuídas em 36 parágrafos, Bolsonaro usou 14 delas para referir-se diretamente à liberdade e seus derivativos. E mais 6 à democracia. E mais 2 à Constituição.

Os dois parágrafos a seguir resumem sua mensagem e não deixam de ser o inverso do que ele sempre disse, sugeriu ou insinuou:

“Liberdade é um princípio fundamental. Liberdade de ir e vir, andar nas ruas, em todos os lugares deste país. Liberdade de empreender. Liberdade política e religiosa. Liberdade de informar e ter opinião. Liberdade de fazer escolhas e ser respeitado por elas.

Este é um país de todos nós, brasileiros natos ou de coração. Um Brasil de diversas opiniões, cores e orientações.”

Estamos a um passo – quem sabe? – de sermos obrigados a reconhecer que Bolsonaro é um democrata de berço. Ou de admitirmos que se fantasiou de ditador tão somente para se eleger.

A verdade talvez esteja no meio. Numa democracia, um autocrata pode vencer, mas só governa se aplicar um golpe ou se acomodar-se às regras do jogo. Adiante, poderá até tentar mudá-las.

Seja bem-vindo, pois, o Bolsonaro recém-convertido à democracia. Quanto ao outro, em vias de ser apagado, recomenda-se cuidado e eterna vigilância.


Ricardo Noblat: À espera da fumaça branca

O PT já está no lucro

Existem chances, sim, de uma virada que por gigantesca e surpreendente seria chamada de histórica. Mas o mais provável ainda é que ela não aconteça, e que Jair Bolsonaro (PSL) vá dormir esta noite na condição de eleito presidente da República do Brasil.

Se o segundo turno não fosse hoje, talvez daqui a uma semana – quem sabe? Ou se Lula tivesse liberado mais cedo Fernando Haddad (PT) para concorrer no seu lugar… Se o louco de Juiz de Fora não tivesse esfaqueado Bolsonaro… Ou se, se, se…

O país sairá rachado desta eleição, mas isso não será nenhuma novidade, ora. Saiu rachado da eleição presidencial de 2014 quando Dilma Rousseff, que se negou a abdicar em favor de Lula, por pouco não foi derrotada por Aécio Neves (PSDB).

Não foi por isso que ela caiu. O racha poderá ser bom ou ruim a depender do comportamento futuro do vencedor. Em 2002, depois de três derrotas consecutivas, Lua ganhou com 62% dos votos. Ninguém superou a marca desde então.

Poderia ter se valido da expressiva vitória para tentar impor todas as suas vontades, mas não o fez. Jogou o jogo, até mesmo no que o jogo sempre teve de mais sórdido e reprovável. Reelegeu-se. Elegeu Dilma e a ajudou a se reeleger.

O temor, que a essa altura parece dissipado, era de Bolsonaro se eleger com grande folga, estabelecer um novo recorde de votos e imaginar que o país acabara lhe dando um cheque em branco para pôr em prática todas as loucuras com as quais acenara.

Por natureza, formação e retórica autoritárias, Bolsonaro assusta, assusta muito o país que o rejeita e que continuará a rejeitá-lo. Ganhar de menos não fará dele um cordeiro. Nem operará o milagre de transformá-lo em um estadista. Mas poderá pôr freios nele.

Dada as circunstâncias adversas, Haddad já foi longe demais, e perigosamente longe para o próprio PT que jamais acreditou em sua vitória e nem a desejou. A levar-se em conta que seu candidato de fato está preso, o desempenho do PT superou as expectativas.

Por 5 milhões de votos
O tamanho da virada

A levar-se em conta as pesquisas Ibope e Datafolha divulgadas ontem à noite, Fernando Haddad (PT) precisará tomar de Jair Bolsonaro (PSL) ao longo do dia de hoje algo como 5 milhões de votos para se eleger presidente. Que tal?

Tudo indica que Bolsonaro já atingiu seu teto, e Haddad não. Mas um só poderá crescer se o outro cair. De todo modo, uma eleição que parecia terminada ainda não terminou.


Ricardo Noblat: O dia que só mal começou

A toga repressora

A sexta-feira 26 de outubro de 2018 poderá passar à história como o dia em que o Brasil, escandalizado, descobriu que a Justiça criara uma nova arma de repressão à liberdade – a Polícia do Pensamento Acadêmico (PPA).

A nova sigla poderá juntar-se a outras de triste memória – entre elas, DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), SNI (Serviço Nacional de Informações) e DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social).

Sem falar de siglas horrendas e criminosas como DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) e CENIMAR (Centro de Informações da Marinha).

Entre quinta-feira e ontem, a polícia bateu às portas das universidades e não foi para estudar. Mais de 40 delas foram alvo de operações da Justiça Eleitoral e da Polícia a pretexto de impedir atos políticos a favor de candidatos.

Desde o fim da ditadura militar de 64 nada de parecido jamais se vira. Na Universidade Federal da Paraíba, por exemplo, foi apreendida uma faixa onde estava escrito simplesmente: “Mais livros, menos armas”.

O prédio da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) amanheceu com uma faixa em que se lia “Censurado”. Ali, até a véspera, havia uma bandeira com as inscrições “Direito UFF” e “Antifascista”.

A bandeira havia sido retirada a mando do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Rio de Janeiro que ameaçara prender o reitor se sua ordem fosse desrespeitada. Estudantes protestaram diante do prédio do tribunal.

“Não é permitida a propaganda eleitoral partidária em bens de uso comum”, disse o tribunal em nota. Por que, diabos, uma bandeira contra o fascismo, sem alusão a candidato algum, pode ser considerada propaganda?

“A Justiça está consagrando o entendimento de que há uma candidatura fascista e de que quem é contra o fascismo está praticando algum tipo de desobediência”, comentou Wilson Machado, diretor da faculdade.

Uma nota oficial da Universidade Federal de São João Del-Rei “a favor dos princípios democráticos” foi proibida pela Justiça Eleitoral de Minas Gerais. Ela também não mencionava nomes de candidatos.

Tão absurdo quanto essas coisas foi a notificação pelo Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco ao bispo auxiliar de Olinda e Recife, dom Limacêdo, para que não falasse de política em missas que celebre hoje ou amanhã.

Há exatos 50 anos, a casa de dom Hélder Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife, foi metralhada e pichada com os dizeres “Comando de Caça aos Comunistas”. Por nove anos, a imprensa não pôde falar sobre dom Hélder.

Quem a Justiça Eleitoral pretendeu beneficiar com suas incursões policiais às universidades? Onde está escrito que o debate político foi interditado dentro das universidades e fora delas, antes ou depois de eleições?

Um Juiz de Petrópolis, Rio de Janeiro, mandou apreender a lista de estudantes inscritos para participar naquela cidade de um congresso sobre Direito. Por que ele quis conhecer os nomes dos inscritos? Para fazer o quê depois?

A maior fake news destas eleições não foi produzida por ninguém, mas pela Justiça quando somente em cima de hora decidiu que Lula não poderia ser candidato a presidente porque fora condenado e estava preso.

Lula foi condenado em segunda instância em janeiro último. E preso em abril. Desde então, ministros dos tribunais superiores diziam que ele não poderia ser candidato porque se tornara um ficha suja e a lei quanto a isso era clara.

Mas só na madrugada de 1º de setembro foi que a Justiça recusou o pedido de registro da candidatura de Lula. Tamanha demora prejudicou os demais candidatos, confundiu os eleitores e afetou o destino das eleições.

Quando se imaginou que a Justiça poderia ter aprendido alguma coisa com seus próprios erros, resta provado que não. Seu alforje de erros é inesgotável, e os próximos turbulentos anos se encarregarão de demonstrar.


Ricardo Noblat: PT vira-casaca

Salve a delação premiada

O que dizia o PT quando um dos seus membros ou parceiros era preso por suspeita de corrupção e poderia delatar?

Que a prisão fora feita justamente para isso – para que delatasse, comprometendo o partido. E que por isso era absurda.

Quando a delação se consumava, o PT dizia que era mentirosa, que fora negociada em troca de menos tempo na cadeia.

A considerar-se que Fernando Haddad, pelo menos até o domingo dia 28, fala pelo partido, o PT mudou de ideia.

Sobre a suspeita de que empresários financiaram campanha via WhatsApp para favorecer Jair Bolsonaro, ensinou Haddad

– Se você prender um empresário desses, ele vai fazer delação premiada. Basta prender um que vai ter delação premiada e vão entregar a quadrilha toda.

Alô! Alô! Mudou Haddad ou mudou o PT? Mudaram os dois? E não explicarão por que mudaram? Ainda dá tempo.

Prisão só é admissível depois que se investiga, recolhem-se provas mínimas e se monta uma base que a justifique.

E não se faz isso às pressas. Há ritos a serem respeitados. Prazos que não se pode atropelar. Todo cuidado é pouco.

De todo modo, é bom saber que o PT avançou e já não desqualifica mais as prisões que possam resultar na confissão de crimes.


Ricardo Noblat: Torcida contra Doria

E a favor de França

Entre deputados e senadores que frequentaram Brasília nas últimas 48 horas, há uma forte torcida suprapartidária para que João Doria, candidato do PSDB ao governo de São Paulo, seja derrotado por Márcio França (PSB).

Políticos em geral desprezam os que julgam traidores. E Doria é visto por muitos como um traidor de Geraldo Alckmin, que o acolheu no PSDB e o ajudou a se eleger prefeito de São Paulo.

Caso Marielle Franco ficará para Bolsonaro resolver
A ideologização do crime

Michel Temer pretendia passar a faixa presidencial ao seu sucessor com o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) esclarecido: quem matou, quem mandou matar e por que. Mas isso parece cada vez mais distante.

O provável é que o desfecho do caso fique para a próxima administração – ao que tudo indica a de Jair Bolsonaro (PSL). Há muitos indícios e até provas de como tudo ocorreu, menos uma confissão. É aqui que mora o perigo.

Generais da reserva que assessoram Bolsonaro enxergam a morte de Marielle por outro ângulo. Admitem que foram milicianos que a mataram, sim, mas por conta da quebra de um suposto acordo tácito que haveria entre eles e o PSOL.

O acordo: o partido poderia correr atrás de votos em áreas controladas pelas milícias, mas não atrapalhar depois os seus negócios. Marielle tornou-se um incômodo com sua pregação em defesa dos favelados e, por isso, acabou eliminada.


Revista Veja: Madame antifascista

A ex-secretária de Estado Madeleine Albright diz que os países estão aprofundando o fosso entre ricos e pobres e precisam repudiar a violência política

Por Duda Teixeira, da Revista Veja

Aos 81 anos, Madeleine Albright segue dando aulas de diplomacia na Universidade Georgetown, em Wa¬sh¬ington. Em paralelo, mantém uma consultoria de estratégia empresarial, a Albright Stonebridge Group, com clientes em mais de 110 países. Entre 1997 e 2001, ela exerceu a função de secretária de Estado no governo de Bill Clinton e ganhou a alcunha de Ma-dam Secretary. Foi a primeira mulher a ocupar o cargo. Seu novo livro, Fascismo, um Alerta (Crítica), acaba de ser lançado no Brasil. Por telefone, Madeleine conversou com VEJA.

Por que escrever um livro sobre fascismo?
Nasci na Checoslováquia, a atual República Checa, e tive de deixar meu país duas vezes. Na primeira, em 1939, foi por causa do fascismo. Na segunda, em 1948, fugi do comunismo. Devido a essas experiências, sempre tive interesse em saber como as instituições nacionais reagiram diante dessas ameaças e quais eram as causas desses fenômenos. Além disso, fico incomodada olhando a situação atual em vários países.

O que a incomoda?
As divisões sociais entre ricos e pobres têm aumentado e a tecnologia tem feito com que muitos percam o emprego. Vários líderes têm tentado emendar essas fissuras sociais, mas acabaram fazendo com que elas se aprofundassem ainda mais. Não buscaram encontrar um denominador comum, unir as pessoas. O que procurei fazer foi recuperar a história e detectar as tendências, para evitar que as sociedades repitam os erros do passado. Senti que era preciso fazer um alerta. Alguns criticam meu livro dizendo que é uma obra alarmista. Mas era exatamente essa a intenção.

Como a senhora define o fascismo?
É um método para ganhar e para manter o poder. Não é uma ideologia. No fascismo, um governante se identifica como o representante de uma etnia, de uma nacionalidade ou de uma tribo. Então, em detrimento de outro grupo, cria uma regra para a maioria e não dá nenhum direito às minorias. Em vez de encontrar pontos em comum entre os diferentes grupos, o fascista aprofunda as divisões. Além disso, ele usa a violência para subir ao poder e aferrar-se a ele.

Em seu livro, o ditador coreano Kim Jong-un é considerado “um verdadeiro fascista”. Como ele tem se aproximado da Coreia do Sul e dos Estados Unidos, a senhora diria que ele está deixando de ser fascista?
Os fascistas geralmente acabam sendo enforcados ou cometendo suicídio. Mas acredito que estamos vivendo uma era diferente e que vale a pena tentar a diplomacia e as sanções econômicas. Temos de fazer todo o possível para que não haja um confronto nuclear entre a Coreia do Norte e qualquer outro país. Além do mais, a diplomacia serve para que a gente possa falar com monstros. Kim tem utilizado uma violência ina¬creditável contra seu povo. Mantém pessoas em campos de concentração e acha que seus cidadãos só lhe devem obediência. Ele tem prometido parar com isso ou aquilo. Falou em fechar instalações do programa nuclear. Não acho que alguém confie nele, mas é preciso manter um canal de comunicação. É esse o trabalho de quem faz relações exteriores. Um diplomata deve conversar mais com quem discorda dele do que com quem concorda com ele.

Como a senhora define o presidente Donald Trump?
Ele não é um fascista, e o principal motivo é que não tem usado a violência contra seu povo. Ele também não tem dado passos indicando que pretende controlar tudo. Mas estou preocupada. A principal citação do meu livro é do italiano Benito Mussolini. Para concentrar o poder, Il Duce dizia que cai bem, ao depenar um frango, tirar uma pena de cada vez, de forma que cada guincho seja ouvido à parte dos outros e todo o processo ocorra da maneira mais discreta possível. Trump também tem tirado penas da galinha, mas ainda restam muitas nas suas asas.

Por que a senhora chama Trump de “o presidente mais antidemocrático na história moderna dos EUA”?
Somos a democracia mais antiga do mundo e dependemos do respeito à Constituição e às instituições. Mas Trump não as respeita. Uma das instituições que mais ataca é a Justiça. Ele faz muitas piadas sobre os juízes. Não é respeitoso. É também nocivo para a imprensa, que é uma das bases da democracia. Ele diz que os jornalistas são “inimigos do povo”. Considera-se acima da lei. Ultimamente, tem dito que o secretário de Justiça (refere-se a Jeff Sessions) não está fazendo nada. Mas essa é a autoridade responsável por fazer que a Constituição seja seguida. Richard Nixon (1913-1994) também cometeu vários crimes, mas Trump é muito mais desrespeitoso que Nixon em relação às nossas instituições.

Democracias jovens são mais suscetíveis a novas formas de fascismo?
A democracia é baseada no que chamamos de “contrato social”, em que as pessoas abrem mão de uma parte de sua liberdade individual em troca da proteção do Estado. Ambas as partes têm de cumprir suas responsabilidades. O Estado recolhe impostos para construir estradas, oferecer educação e saúde. Os cidadãos têm a responsabilidade de estudar o que o governo está fazendo, de informar-se sobre como uma democracia funciona e de votar. O problema é que tudo demora um pouco para se consolidar. Uma democracia mais nova sempre está mais sujeita ao aparecimento de um demagogo com soluções fáceis. É por isso que as democracias precisam ajudar-se umas às outras. Nós poderíamos criar uma comunidade das democracias para compartilhar experiências e tentar oferecer de modo mais eficiente aquilo de que a população precisa.

Qual é sua opinião sobre o slogan “América em primeiro lugar”, de Trump?
É terrível. Essa frase lembra os anos 1930, quando os Estados Unidos eram um país isolado e não se importavam com o que acontecia na Europa. É óbvio que todo líder, em qualquer lugar, é eleito para se preocupar com os interesses de seu país. A questão, no entanto, é outra: não seria de maior ajuda aos interesses nacionais haver uma cooperação com outras nações? O presidente Clinton e eu costumávamos dizer que os Estados Unidos são uma nação indispensável. Para nós dois, nosso país está melhor quando tem bons parceiros. O slogan “América em primeiro lugar” é uma afirmação totalmente antiamericana. E tem induzido à busca por bodes expiatórios, à busca por grupos nos quais pôr a culpa dos problemas gerais. Era o que fazia Mussolini, era o que fazia Hitler, que escolheu os judeus como alvo. Hoje, esse papel foi destinado aos imigrantes e estrangeiros. Considero cruéis as políticas migratórias do governo americano.

Trump é um estímulo para líderes autoritários no resto do mundo?
Os Estados Unidos, até onde eu sei, foram um modelo em termos de como as instituições democráticas funcionam, de como o governo respeita o desejo do povo, de imprensa livre, de tudo isso. Mas Trump não atua de acordo com nossos valores morais. Quando ele ataca os jornalistas, por exemplo, tranquiliza líderes autoritários que também fazem isso. Se o presidente do país mais poderoso do mundo age assim, não haveria motivo para eles deixarem de realizar algo semelhante.

A senhora escreveu em seu livro que, “dentro de cada um de nós, há um desejo inexorável de liberdade”. O anseio por uma ditadura nunca supera o amor pela democracia?
Em tempos de crise, as pessoas tendem a prestigiar quem promete resolver tudo de um jeito simples e rápido. Fascistas como Mussolini e Hitler tiveram apoio amplo na sociedade e chegaram ao poder por vias constitucionais. Eles se aproveitaram de momentos de depressão econômica e insatisfação com o governo. Mas também tenho a crença de que, com o tempo, sob um regime ditatorial, essas mesmas pessoas ficam insatisfeitas quando percebem que o governo não as deixa fazer o que elas desejam. Em geral, os cidadãos querem poder tomar decisões sobre a própria vida. Mas a parte difícil é que, infelizmente, eles precisam viver a experiência de um governo autoritário para valorizar a liberdade de novo. Querem escolher onde vão morar, que língua ensinarão aos filhos e em qual escola eles estudarão. Para isso acontecer, é preciso poder tomar decisões sobre como a cidade e o estado são governados. O capítulo realmente triste, que acontece no Brasil, é que neste momento não há confiança nas instituições. Os brasileiros, assim como os americanos, estão desapontados. É nesse contexto que muitos pensam em optar por uma solução diferente, um atalho. Depois que perdem a liberdade e a independência, eles passam a almejar esses princípios novamente.

A senhora está acompanhando as eleições brasileiras?
Sei que há uma decepção com as instituições. Houve muita corrupção. A economia não vai bem. Para os brasileiros, esta é a hora de fazer as perguntas certas e entender o que aconteceu com outros países que enfrentaram problemas similares. Pela história, sabemos que os líderes que mais tarde se revelaram autoritários foram os que prometeram resolver os problemas de um jeito simples com sua sabedoria invejável. Mussolini chamava a si mesmo de gênio. Ele achava que tinha todas as respostas. Outra necessidade é verificar se os candidatos apelam para que as pessoas sejam preconceituosas e desrespeitem indivíduos de outros grupos, etnias, raças, credos ou partidos. Há uma série de perguntas a ser feitas.

Que perguntas?
Os candidatos querem canalizar nossa raiva para cidadãos que, segundo eles, nos fizeram algum mal? Eles nos encorajam a ter desprezo por uma instituição governamental, pela imprensa livre ou pelos tribunais? Quando falam de maneira mais descontraída — e constantemente machista — sobre usar a violência como solução para eliminar os inimigos, essas ideias são aplaudidas? Eles ecoam aquilo que dizia Mussolini, para quem a multidão não precisava entender das coisas, apenas acreditar e se submeter?

Devemos nos preocupar mais com a extrema direita ou com a extrema esquerda?
De certo modo, o comunismo da antiga União Soviética e o da China atual também são fascistas. Mas os extremos de ambos os espectros ideológicos têm exatamente o mesmo efeito, porque ditam como as pessoas devem se comportar. A China é controlada por um único líder, Xi Jinping, e pelo Partido Comunista. Mas, como não vejo diferenças no desejo de moradores de vários países, acho que todos querem um sistema que responda às próprias necessidades, e não às de um partido ou de um ditador.


Ricardo Noblat: Tudo pode acontecer, inclusive nada

Faltam 17 dias para o segundo turno da eleição presidencial. A campanha sequer recomeçou. Dez dias antes da eleição em primeiro turno, quem seria capaz de prever mesmo com base nas pesquisas de intenção de voto que um tsunami político varreria o país como de fato varreu no último domingo?

Dilma Rousseff (PT) era tratada como a provável senadora mais votada em Minas Gerais. No Rio, o juiz Wilson Witzel (PSL) corria atrás de Eduardo Paes (DEM) e de Romário (PSB). Paulo Skaf (PMDB) e João Doria (PSDB) apareciam empatados na disputa pelo governo paulista. E Fernando Haddad (PT) temia ser atropelado por Ciro Gomes (PDT).

Dilma ficou em quarto lugar. Despediu-se de Minas. Witzel deixou Paes comendo poeira e agora ameaça prendê-lo se for alvo de notícias falsas que afetem sua honra. Skaf anunciou apoio a Márcio França (PSB) que enfrentará Doria na condição de favorito. E caberá a Haddad enfrentar Bolsonaro com o apoio de Ciro, mas sem sua presença na televisão.

Bolsonaro derrotou Haddad no primeiro turno com 17 pontos percentuais na soma dos votos válidos, descontados os nulos e brancos. Na primeira pesquisa Datafolha de intenção de votos no segundo turno, 16 pontos percentuais separam Bolsonaro de Haddad. Eleição acaba quando acaba, ensinam os sábios. Mas não será fácil para Haddad virar esta a seu favor.

No primeiro turno, ele teve 29,28% dos votos válidos. Bolsonaro, 46,03%. Os demais candidatos, 53,77%. Para se eleger, Haddad, hoje, não poderia perder um só voto dos que teve e atrair todos os votos que tiveram Ciro, Geraldo Alckmin (PSDB), Amoedo (PARTIDO NOVO) e Cabo Daciolo (PATRIOTA). E Bolsonaro não poderia ganhar um único voto a mais.

Nas duas primeiras pesquisas de intenção de voto do Datafolha no segundo turno da eleição de 2014, Aécio Neves saiu na frente de Dilma que tentava se reeleger e que tivera mais votos do que ele no primeiro turno. Foi só nos últimos dez dias de campanha que Dilma ultrapassou Aécio nas pesquisas. Elegeu-se com 51,6% dos votos na eleição mais apertada desde o fim da ditadura militar de 64.

Haddad imaginava reduzir a vantagem de Bolsonaro por meio dos debates já marcados entre os candidatos, mas debates não haverá tão cedo. Bolsonaro alega que ainda não foi liberado para tal pelos médicos. E mesmo que seja liberado, ainda avaliará se os debates poderão ajudá-lo ou não. Se concluir o contrário, não irá a nenhum. A facada que levou é o álibi perfeito para fugir ao confronto.

Só quem perde com o cancelamento dos debates é Haddad.

Haddad não é mais Lula
Movimento tardio

Onde antes você lia: “Haddad é Lula e Lula é Haddad”; agora leia: “Presidente Haddad, vice Manuela”. Onde antes havia vermelho, agora há azul, amarelo e verde. Lula sumiu.

A mudança no visual das peças de campanha de Fernando Haddad (PT) poderá não lhe garantir mais votos, mas é possível que diminua a resistência ao seu nome.

O candidato do PT quer se transformar no candidato de uma frente democrática onde caberá quem queira entrar. A mudança chega tarde quando são mínimas as condições de ele se dar bem.


Ricardo Noblat: A conversão de Bolsonaro à democracia

O que a barbárie produz

Jair Bolsonaro (PSL) prometeu respeitar a Constituição caso se eleja presidente da República. Fernando Haddad (PT), também.

O vice de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão, disse que uma nova Constituição poderia ser escrita por um grupo de sábios.

Consta do programa de governo do PT a convocação de uma Assembleia Constituinte para a redação de uma nova Constituição.

Bolsonaro desautorizou Mourão. “Ele é general, eu sou o capitão, mas eu sou o presidente”, afirmou. O capitão bateu duro no general.

Haddad anunciou que o PT desistiu da ideia de reformar a Constituição por meio de uma assembleia. O Congresso será o único meio.

Vez por outra o PT vê-se tentado a conspirar contra a democracia tal qual a conhecemos, mas nunca de fato cedeu à tentação. Sempre segurou seus radicais.

Bolsonaro conspira contra a democracia desde que trocou a farda de capitão pelo terno de deputado Seu vice a paisano parece uma dama se comparado a ele.

Não basta a Bolsonaro dar por não dito o que sempre disse. Seu discurso belicoso despertou os instintos primitivos de muita gente que votou nele e que votará.

Se quer que se acredite em sua conversão recente à democracia poderia começar ensinando aos seus que não se trata adversários como inimigos fossem.

Sequer a campanha eleitoral foi reiniciada e já se multiplicam os episódios de agressões de partidários de Bolsonaro aos que não pensam como eles.

Barbárie só produz barbárie.


Ricardo Noblat: Toffoli faltou à aula

De volta aos bancos escolares

Se tem cara de gato, pelos de gato, mia como um gato e bebe leite como um gato, pode apostar sem receio: gato é.

Ditadura é um regime onde todos os poderes do Estado estão concentrados em um indivíduo, um grupo ou um partido.

Ditadura militar é uma forma de governo onde o poder é controlado por militares. Aqui existiu uma entre 1964 e 1985.

O ministro José Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, nasceu em novembro de 1967. Completará 51 anos.

Tinha apenas 18 quando a ditadura acabou. Não deve ter sofrido na pele as marcas brutais deixadas por ela em muita gente.

Talvez não soubesse que a ditadura torturou e matou adversários do regime e que nos seus estertores ainda quis manter-se de pé.

Mas isso está longe de explicar por que preferiu referir-se a ela tanto tempo depois apenas como “movimento”.

É de supor que o jovem Toffoli tenha lido alguma coisa antes de se formar em Direito. De fato, jamais foi um aluno brilhante.

Empregado do PT, assessorou o ex-ministro José Dirceu de Oliveira no primeiro governo Lula. Alguma coisa aprendeu.

Uma vez Advogado Geral da União foi nomeado ministro da mais alta Corte de Justiça do país.

Carecia de melhor currículo para a função, mas dispunha de amigos influentes e poderosos. Deu-se bem.

A explicação oferecida para chamar de “movimento” o que foi uma ditadura é rasa como um pires e revela grande ignorância.

“Se algum erro os militares cometeram foi que resolveram ficar [no governo”], disse Toffoli, ontem, em aula sobre a Constituição de 1988. Se algum erro?

Quer dizer: os militares não erraram ao rasgar a Constituição da época e depor um presidente legítimo, eleito pelo voto.

Também não erraram ao instituir um Estado de Exceção que durou tristes e duros 21 anos, e produziu tantas vítimas.

Em que país mesmo viveu Toffoli durante todos esses anos?

Em que país é possível a um ministro encarregado de zelar pela boa aplicação da lei desconhecer o mínimo de História?

O dono da conta
Debite-se na conta do PT uma eventual eleição do deputado Jair Bolsonaro (PSL). Se ela ocorrer se deverá ao que o PT fez ou deixou de fazer em quase 14 anos de governos.


Ricardo Noblat: Eleição só acaba quando acaba

Emoção na veia

De amanhã até domingo, o Instituto Datafolha divulgará o resultado de novas pesquisas de intenção de voto para presidente da República. O Ibope também.

O último debate entre os candidatos será travado na quinta-feira e transmitido pela TV Globo. Candidato à reeleição em 2006, Lula faltou ao debate e os demais candidatos ganharam com isso.

Se respeitar a recomendação médica, Jair Bolsonaro (PSL) não irá ao debate, embora diga que irá ou que pretende ir. Se não for, estará presente na memória e nas palavras dos seus adversários.

Bolsonaro só tem duas opções: apanhar e responder ao vivo, ou apanhar e responder nas redes sociais como fez nesta madrugada ao fim do debate promovido pela TV Record.

Com ele ou sem, o script será o mesmo: todos contra Bolsonaro e o PT. E Ciro Gomes (PDT), Geraldo Alckmin (PSDB) e Marina Silva (REDE) com mais chances do que os outros.

A encruzilhada de Alckmin
Qual teria sido a melhor escolha de Geraldo Alckmin (PSDB) para credenciar-se a disputar o segundo turno?

Esperar que o cenário ficasse mais claro? Logo de saída, bater em Bolsonaro para evitar que ele crescesse? Ou bater no PT?

Alckmin escolheu bater em Bolsonaro que lhe tomava votos. Só recentemente deu-se conta de que seu adversário era o PT.

Ganha eleição quem comete menos erros. Foi sempre assim, e sempre será.


Ricardo Noblat: Bolsonaro e o PT

Feitos um para o outro

Feche os olhos e imagine a eleição presidencial sem candidato do PT. De fato, para ser coerente o partido não deveria ter lançado candidato. Não dizia que eleição sem Lula seria fraude?
Muito bem. Haveria Jair Bolsonaro (PSL) com chances de se eleger presidente se não existisse Fernando Haddad ou outro nome qualquer como candidato do PT?

Bolsonaro não teria votos sequer para se eleger governador do Rio, quanto mais presidente. Só tem porque enxergou a tempo o sentimento contra o PT da maioria dos brasileiros.

De acordo até aqui? Adiante, pois. Se na próxima semana Haddad assumir a liderança nas pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro poderá perder parte do apoio que tem hoje. Certo?

(Já não estamos de acordo, imagino.)

Cabe a pergunta: a ser assim, em quem votariam os eleitores perdidos por Bolsonaro? Não sei. Só sei que iriam para quem pudesse derrotar Haddad.

Eleição só acaba quando acaba. A história está repleta de surpresas que escaparam aos faros mais sensíveis dos institutos de pesquisa. Até lá, pois!

Por quem bate o coração de ACM Neto
A deputados do seu partido, o presidente do DEM, ACM Neto, prefeito de Salvador, admite viver um dilema: a quem apoiar no segundo turno se Geraldo Alckmin (PSDB) ficar de fora dele?

– Não posso ser oposição aqui e oposição em Brasília – repete ele.

Na Bahia, ACM Neto se opõe ao governador Rui Costa (PT) que deverá se reeleger no primeiro turno. Em Brasília, apoia discretamente o presidente Michel Temer (PMDB).

Mas se Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) se enfrentarem no segundo turno, o que fazer? Por ele, não apoiaria nenhum dos dois. Apoiaria Ciro Gomes (PDT) sem pestanejar.