Revista Veja
Saiu na Veja | Rede descoberta
Por José Casado, publicado na revista Veja
“Eu sou Victor Muller Ferreira, nasci o 04 de abril de 1989 no Riode-Janeiro, em Niteroi” — dizia o documento encontrado num dos dispositivos eletrônicos apreendidos com o passageiro deportado da Holanda para o Brasil, em março do ano passado.
Descontados os erros na escrita, não sobrava uma única verdade nas dezesseis palavras iniciais de um roteiro tosco sobre um homem que nunca existiu, mas morou em Niterói, Brasília, São Paulo e Baltimore (EUA) nos últimos onze anos.
Victor era Sergey na vida real. Jamais foi Muller Ferreira, como identificado no passaporte brasileiro. Erab Vladimirovich Cherkasov, informavam certidões russas. Nascera trinta e sete anos atrás em Kaliningrado, antiga Königsberg do filósofo Immanuel Kant. É um enclave do tamanho do Recife, entre a Polônia e a Lituânia, base naval da Rússia no Mar Báltico.
Detido no aeroporto de Guarulhos por identidade falsa, Cherkasov está preso em Brasília. Semana passada começou a ser processado nos Estados Unidos como agente de espionagem do Estado-Maior das Forças Armadas da Rússia. Ele nega. O governo de Vladimir Putin pediu sua extradição, qualificando-o como um mafioso moscovita.
Cherkasov é caso exemplar das dificuldades dos espiões do século XXI para criar histórias de vida coerentes no mundo digital e burlar sistemas de vigilância biométrica nas fronteiras.
Já era complicado na Europa de oito décadas atrás, quando Leopold Trepper vestiu a pele do industrial canadense Adam Milker e começou a montar a Orquestra Vermelha, a maior rede de espionagem soviética durante a II Guerra Mundial.
No fim de 1939, conta Trepper no livro O Grande Jogo (Fundação Astrojildo Pereira), chegaram à Bélgica quatro agentes russos que deveria infiltrar nos Estados Unidos. Todos estavam com passaportes uruguaios, confeccionados num birô moscovita de falsificações — a “sapataria”, no jargão da época. Para entrar nos Estados Unidos como cidadãos sul-americanos, precisavam de endosso do consulado de seu país em Bruxelas. O problema era que, dos quatro “uruguaios”, só um falava espanhol e sabia alguma coisa sobre o Uruguai.
Falhas em Moscou expõem espiões no Brasil, na Argentina e na Europa
A Orquestra Vermelha tornou-se lenda da espionagem soviética pelos êxitos. Um deles foi no outono de 1941, quando Hitler reuniu seus generais para decidir a ofensiva contra Moscou. Não levou muito tempo para o Kremlin conhecer, em detalhes, a opção pelo cerco à capital soviética — o estenógrafo do Estado-Maior da Wehrmacht na reunião era um dos “músicos” de Trepper.
Nas sombras da guerra de Putin na Ucrânia, os serviços secretos da Rússia agora parecem sitiados por falhas de informação e de segurança. Desde a invasão, dezenas de agentes russos mantidos sob cobertura diplomática foram expulsos por governos europeus. Estão perdendo, também, agentes treinados e custeados na vida encoberta no exterior.
Nos últimos doze meses foram descobertos três deles com identidades e residências no Brasil e dois na Argentina. As ações antiespionagem foram públicas, com indícios de coordenação entre treze governos.
Sergey Cherkasov foi identificado como oficial da inteligência militar russa e barrado na Holanda, em março do ano passado, depois de uma temporada na Universidade Johns Hopkins (EUA), onde viabilizara seu grande jogo: um estágio no Tribunal Penal de Haia, que investigava crimes de guerra na Ucrânia.
Deportado e preso em São Paulo, foi mapeado até nos locais onde escondia arquivos eletrônicos para coleta por outros agentes. Um deles numa ruína no mato, no quilômetro 34 da Rodovia Raposo Tavares, em Cotia (SP).
Na época da prisão de Cherkasov, a Grécia identificou a agente russa Irina Alexandrovna Smireva. Ela é casada com outro agente que vivia no Brasil na pele do empresário carioca Gerhard Daniel Campos Wittich.
Seis meses depois, em outubro, a Noruega prendeu o coronel russo Mikhail Valeriyevich Mikushin, o José Assis Giammaria no passaporte brasileiro, infiltrado num grupo de pesquisas no Ártico. Às vésperas do Natal, a Eslovênia deteve um casal de espiões, com passaportes argentinos em nome de María Rosa Mayer Muñoz e Ludwig Gisch.
Essa inusitada fragilidade na rede de agentes de Moscou com vidas falsas construídas no Brasil e na Argentina foi tema do vice-diretor da CIA, David Cohen, em visita aos governos do Mercosul na semana passada.
Fonte: Artigo publicado na Veja.
Alon Feuerwerker: Nunca subestime a política
Aplicação de doses de reforço espalha-se pelo planeta. Ou melhor, pela parte rica do planeta
Alon Feuerwerker / Análise Política
Pergunte a qualquer especialista digno do nome se a pandemia acabou. E se chegou a hora do liberou geral. Duvido que algum responda “sim” e “sim”. E por que não se nota uma grita generalizada contra a reabertura ampla, geral e irrestrita das atividades? Pois o patamar de mortes/dia por Covid-19 ainda bate as centenas.
A explicação está mais no âmbito da ciência política que da infectologia, da imunologia ou da epidemiologia. O liberou geral decorre da crescente péssima relação custo/benefício, para os políticos, de continuar tentando impor as antes celebradas medidas de distanciamento social para reduzir a circulação do SARS-CoV-2.
A real é que o pessoal se cansou e decidiu virar a página. E os políticos, de olho nas urnas do ano que vem, resolveram que não é o caso de dar murro em ponta de faca. Fim.
Poderiam, pelo menos, reforçar a necessidade do uso de máscaras quando a circulação volta ao normal. Mas nem isso.
É verdade que chegamos a bons níveis de vacinação e estamos rondando o número mágico de 60% de vacinados com duas doses, ou única. Mas outros países bem vacinados vêm assistindo a repiques de casos e mortes por novas variantes, e o conceito de “completamente vacinado” sofre mutações em velocidade viral.
A aplicação de doses de reforço espalha-se pelo planeta. Ou melhor, pela parte rica do planeta. Os países pobres continuam comendo poeira. Não chega a ser novidade.
Sim, não parece, mas o Brasil ainda convive com milhares de casos e centenas de mortes no registro diário. Uma atenuante, dirão, é os números estarem declinando já faz algum tempo. Eles vêm caindo desde março/abril, quando a taxa de vacinados ainda era pequena. Eis outro “por quê?” à espera de resposta.
E outra: se estamos abrindo agora porque os números estão caindo, por que não abrimos antes?
Uma boa hipótese para o declínio de casos e mortes desde março/abril é a variante Gama (“de Manaus”) ter “vacinado” em massa a população brasileira, mas isso ainda aguarda comprovação.
Outra hipótese a pesquisar é se vacinas de vírus inativado não seriam mesmo mais eficazes contra variantes. Mas não tem sido elegante tocar nessa possibilidade em certos círculos, dado que a CoronaVac é chinesa.
Mudando de assunto, os Estados Unidos reabrem o turismo a vacinados, inclusive com as vacinas chinesas da Sinovac (nossa CoronaVac) e Sinopharm. E Israel, pioneira na vacinação em massa, aceita, além dessas, também a russa Sputnik V, apesar de o imunizante não estar chancelado pela Organização Mundial da Saúde.
E no Brasil? Por que a CoronaVac ainda não tem aqui o registro definitivo e a Sputnik V continua bloqueada?
As respostas deveriam estar sendo cobradas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas esta corre em raia mais ou menos livre desde que conseguiu transmitir a impressão de não ser alinhada a Jair Messias Bolsonaro. Parece ter recebido, por causa disso, um amplo passe livre.
Nunca subestime a política, mesmo quando ela se esconde atrás da moral ou da ciência.
Alon Feuerwerke é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado na revista Veja de 27 de outubro de 2023, edição nº 2.763
Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/11/nunca-subestime-politica.html
Fernando Schüler: A polarização como vício
Para um bom número de pessoas, ajudar a pôr fogo no circo se tornou um bom negócio. Mas um certo cansaço da gritaria já começa a se fazer sentir
Fernando Schüler / Revista Veja
A polarização está em toda parte. Os grupos de WhatsApp se tornaram uma empreitada difícil. Você entra em um grupo para discutir a obra de Santo Agostinho e uma semana depois passa a receber, de hora em hora, figurinhas, vídeos e “alertas” sobre Lula ou Bolsonaro. Nada contra, é um direito das pessoas. De certo modo, direito ao trivial. As coxas do Lula, o fumacê dos tanques em Brasília, o último golpe dado por não sei quem, tudo isso que parece divertir nosso cotidiano político, mas talvez não devesse.
Há um lado mais complicado nisso tudo. Além de explodir amizades e partidos (o Novo está aí para mostrar), a polarização obsessiva traz um problema à governabilidade do país. Gera um clima de incerteza que desestimula investimentos, prejudica a formação de consensos mínimos para reformas e, o mais importante, afeta o funcionamento das instituições, gerando incentivos para que seus titulares entrem em um tipo de jogo que jamais deveriam entrar. Nem aí para essas coisas, nos preparamos para assistir a mais dois dias de comícios, um “em defesa das liberdades” e outro “contra o fascismo”, num exercício de grandiloquência a gosto pela toxina política poucas vezes visto por estas bandas.
A polarização atende a um tipo de mercado. Diante do avanço dos meios digitais, parte da mídia abre mão do distanciamento jornalístico e passa a atender nichos de opinião que lhe garantam uma audiência fiel. Ganha espaço o jornalista-militante, o blogueiro, o youtuber, em múltiplas plataformas digitais. A regra é simples, como li por esses dias: “se você não causar”, se não for capaz de atiçar os instintos de uma tribo política, “não terá audiência”. Vale o mesmo para políticos, em busca de repercussão fácil. E em menor escala para magistrados, policiais ou promotores, alçados a líderes de opinião. Criou-se uma economia da polarização. Para um bom número de pessoas, ajudar a pôr fogo no circo se tornou um bom negócio.
Algumas coisas já sabemos sobre a hiperpolarização. Uma delas é que ela sempre transborda, fazendo com que a lógica da política inunde as demais áreas da vida. As salas de aula, exposições de arte, o mercado de trabalho. E as amizades, por óbvio, que começam a balançar porque o João vai à Paulista no dia 7 e a Catarina, no dia 12. Vem daí o traço do exagero. O debate feito à moda do espantalho. A ideia de que o outro lado é “inadmissível” e nós somos a “própria democracia”, como ouvi, curiosamente, de dois tipos, um governista, outro antigovernista, e ambos bastante autoconfiantes, dias atrás.
Outra coisa que sabemos é que a polarização aguda está longe de ser um fenômeno da base da sociedade. Seu ecossistema é o da minoria barulhenta, que dá o tom do debate público, em especial na internet. A democracia digital se tornou um gigantesco mecanismo de seleção adversa. Em vez de selecionar gente ponderada para liderar, disposta a gerar consensos e resolver problemas (pasmem: é para isso que a política foi inventada), ela tende a premiar o bufão ou o “grande moralista”. O senador que lacra na CPI, o deputado que bomba detonando o STF (supondo que não irá preso), e assim por diante.
O resultado disso é a mediocrização do debate público. A maioria dos temas importantes da vida pública não se encaixa na lógica do tudo ou nada, e só ao pequeno mundo político interessa ir contra ou a favor de alguma coisa apenas porque ajuda ou atrapalha o governo. Há, em regra, boas razões a favor e contra qualquer política relevante. Há ajustes a fazer e gente diferente a ser escutada. É uma perfeita bobagem tratar essas coisas como religião. Havia, pasmem, prós e contras no tema do voto impresso, tanto quanto há na ideia da renda básica de cidadania. A polarização doentia expulsa a sutileza e a atenção a efeitos adversos de qualquer decisão. E de quebra torna boa parte da imprensa acrítica, ao confundir senso crítico com a adoção de uma agenda política, que em geral se resume a variações sem fim dos mesmos xingamentos.
A polarização obsessiva tenciona as instituições, mas é essencialmente um tema da cultura política de nossas democracias. Vivemos em paz, mas é a estética da guerra que parece dar o tom de nosso mundo político. Daí o interesse renovado pela obra de Carl Schmitt. Suas construções sombrias, feitas nos anos difíceis que assistiram ao fim da República de Weimar, parecem pairar sobre a política atual. A ideia de que a vida política “é a vida essencial”, a descrença na suavidade e nas abstrações da democracia liberal. E a partir daí a ideia de que é a inimizade, e não o diálogo, que define o sentido da política. Nada das palavras doces de Joe Biden sobre converter inimigos em adversários. O elemento natural da política é a relação amigo-inimigo. Nos definimos, como comunidade política, precisamente sabendo quem é nosso “outro”, e o limite disso tudo é a guerra, não o direito.
“Há uma cultura que joga pelo ralo valores da tradição liberal”
A democracia liberal, nessa visão, com seu respeito ao pluralismo, direitos individuais e toda a parafernália de freios e contrapesos, se torna algo como uma fantasia. É evidente que não estamos nesse ponto, entre outras razões porque não estamos na Alemanha dos anos 30. Mas há nuvens no horizonte. Andamos namorando com uma cultura que joga pelo ralo valores importantes da tradição liberal.
Meio século depois da adesão de Schmitt ao nazismo, Norberto Bobbio fazia uma conferência em Milão sobre a Mitezza. A serenidade ou “moderação” como a virtude desejável na democracia. Bobbio era o sábio europeu. Ao menos eu o via assim em minha juventude. Havia passado por tudo, pelo fascismo, pela reconstrução, e ninguém fez mais do que ele pela cultura da democracia, naquele quase fim de século. Seu argumento, depois transformado em livro, prefaciava um tempo em que não há mais tiroteios pelas ruas, mas os modos da guerra, seus jeitos e sua intolerância, pareciam sobreviver. E isso não era bom.
Daí sua pregação algo utópica sobre a Mitezza. A virtude das pessoas simples que não desejam o poder pelo poder. A virtude horizontal, das pessoas que se miram na altura dos olhos, como iguais em legitimidade e direitos. A virtude “fraca”, diz Bobbio, por definição “impolítica”, novamente contrastando com Schmitt, nos lembrando que a política não é tudo, que ela tem limites e que o poder não pertence aos homens, mas ao direito. E, por fim, uma virtude estética: a suavidade ao invés da arrogância. A Mitezza não exclui a crítica, o contraditório, mas aprecia dizer as coisas no subjuntivo, como um dia escutei de Richard Sennett, oferecendo espaço para a aproximação com o outro. Não como o inimigo que me define, mas como a possibilidade de um encontro sempre renovado.
Andamos longe disso, e nada indica que o suave liberalismo de Bobbio, no ambiente turvo de nossas democracias polarizadas, vai vencer a sombra implacável de Carl Schmitt. De qualquer modo, não trato de uma batalha de curto prazo. Um certo cansaço da gritaria já começa a se fazer sentir. Escuto vozes falando em moderação e bom senso. A infração a direitos, praticada por instituições de Estado, começa a gerar algum desconforto. Cada um pode escolher como agir, e fazer alguma diferença. De todo modo as lições da história estão aí, ao nosso dispor, e não tenho dúvidas de que, devagar, vamos aprendendo.
*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754
Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/blog/fernando-schuler/a-polarizacao-como-vicio/
Murillo de Aragão: O alto custo da instabilidade política
Setores radicais estão querendo tornar pior o que já não está bom
Murillo de Aragão / Revista Veja
O semestre parecia positivo ao país. A vacinação seguia derrubando os índices de óbitos pela Covid-19 nos estados. A economia caminhava bem, e o câmbio em queda sinalizava que o cenário poderia se configurar para melhor. A arrecadação estava em alta e a dívida pública, em baixa. O Brasil, porém, é o Brasil. E, quando tudo poderia melhorar em meio à tragédia da pandemia, uma tormenta de tolices, equívocos e disputas frívolas arruinou a expectativa quando mais precisávamos dela.
Ainda que o Brasil seja melhor do que parece, setores radicais estão querendo que o que não está bom fique pior. Mesmo diante do risco de nova onda de Covid-19 e de uma crise hídrica que pode ser terrível, em especial em ambiente de inflação em alta e desemprego em nível assustador, há quem queira incendiar o parque institucional.
A instabilidade política trabalha contra o país. E quem a está incentivando não percebe isso. Cabe às instituições, inclusive o governo, conter os ânimos. Há tempos afirmei que o presidente Jair Bolsonaro tem em seus aliados mais radicais os seus principais adversários. Ao ser complacente com os delírios de seus apoiadores, para dizer o mínimo, Bolsonaro pode estar inviabilizando tanto o seu governo quanto o seu desejo de se reeleger.
“Não há caminho para rupturas no país sem que isso provoque imensos transtornos aos brasileiros”
As consequências são óbvias: Lula foi “ressuscitado” politicamente e o centro, que parecia pouco competitivo, pode se transformar em uma alternativa viável. No establishment econômico há um misto de enfado, desânimo e estupefação com a incapacidade do governo de capitalizar o que faz de bom. E, por outro lado, com a sua capacidade de se meter em querelas inúteis. Seu histórico é digno de uma república de bananas podres: ofensas pessoais, ameaças de invasão a órgãos públicos, paralisações, acusações sem prova, ameaças de agressões e não aceitação das regras democráticas, além de meteoros fiscais e propostas tributárias polêmicas.
Temos o privilégio de ser uma nação com poucos problemas gerados no exterior. Nossos problemas são 100% brasileiros. Mas estamos exagerando. Ao programarmos protestos contra instituições, passamos uma péssima imagem para os investidores. Como se estivéssemos, enquanto país, brincando de roleta-russa com um revólver carregado de balas.
Setores radicais que apoiam o governo querem forçá-lo a praticar haraquiri institucional. Só não percebem que o resto do país não quer isso. Por mais que o povo desconfie das instituições, somos um país cujo nível de reformismo é de baixo impacto. Acreditamos que mudanças cumulativas podem trazer bons resultados, e as reformas feitas nos últimos cinco anos mostram justamente que estávamos avançando.
Não há caminho nem clima para rupturas institucionais sem provocar imensos transtornos aos brasileiros, sobretudo aos que estão à margem do sistema. O direito de manifestação é livre e assegurado pela Constituição. E deve ser respeitado. Contudo, isso não significa que os manifestantes, sejam de qualquer espectro político, tenham passe livre para atacar instituições, vandalizar prédios e afetar o direto de ir e vir. É hora de termos mais juízo como nação e começar a pensar no elevado custo da instabilidade institucional.
Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753
Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/o-alto-custo-da-instabilidade/
Raul Jungmann: 'Não vai ter golpe'
Titular da pasta da Defesa e da Segurança Pública no governo Temer, o ex-ministro descarta ruptura democrática, mas diz haver riscos de conflitos em 2022
Victor Irajá / Revista Veja
Ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública durante o governo de Michel Temer, Raul Jungmann tornou-se uma das principais vozes nas questões mais candentes às Forças Armadas. No comando do ministério entre maio de 2016 e janeiro de 2019, ele defende a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que limita a atuação de militares da ativa no Executivo, assunto que volta à tona com a polêmica participação de oficiais de alta patente no governo de Jair Bolsonaro. Jungmann externa preocupação com a presença de coronéis e generais à frente de cargos importantes para os quais não foram preparados, como o de ministro da Saúde, em plena pandemia.
Familiarizado com os bastidores do Exército, Marinha e Aeronáutica, ele refuta a possibilidade de militares embarcarem em uma potencial aventura golpista do presidente Jair Bolsonaro. Mas, nesta entrevista concedida a VEJA, não descarta um cenário de ameaçadora instabilidade para o ano que vem e conta uma versão bastante preocupante para a saída dos comandantes das Forças Armadas em março.
Qual o impacto da crise institucional entre o presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal do ponto de vista das Forças Armadas?
Infelizmente, existe no alto oficialato uma visão bastante crítica a respeito do STF, algo que remonta à decisão do ministro Edson Fachin de zerar as ações contra o ex-presidente Lula. Os militares têm uma leitura de que o STF não está deixando o presidente Bolsonaro governar, algo do que obviamente discordo. A Corte, na maioria de suas decisões, tem contido o presidente em seus limites constitucionais. Mas algumas decisões polêmicas embasaram essa imagem que se formou nas Forças Armadas. Existe também a leitura equivocada de que o Supremo teria destruído a Operação Lava-Jato. É algo preocupante.
Mas cabe aos militares esse tipo de posicionamento sobre o STF?
Como instituição, as Forças Armadas não se pronunciam e não têm posição a esse respeito. Refiro-me a militares como indivíduos. Essa visão é, sobretudo, presente entre os oficiais da reserva, mais do que entre militares da ativa. Tenho conversado com ministros do Supremo sobre isso e chegou-se a se cogitar uma conversa entre dois ou três deles com os comandantes das três Forças, mas com essa última crise isso não aconteceu. É importante que esses esclarecimentos sejam feitos.
O desfile de blindados da Marinha no última dia 10 foi algo inédito. Como avaliou a parada?
Desfile de tropas e blindados nas cercanias dos poderes só é aceitável em datas comemorativas nacionais. Fora disso, é ameaça real ou simbólica — e algo inaceitável. Simbolicamente, dá sequência à série de atos de constrangimento do presidente da República aos demais poderes. Em termos de balanço, o desfile revelou-se uma ópera-bufa. O efeito foi extremamente negativo e, ainda, ocorreu a derrota do voto impresso.
Virou piada a situação dos blindados durante o desfile. Os armamentos brasileiros estão de fato sucateados?
O Exército brasileiro tem um conjunto de tanques de alta qualidade, aproximadamente 250 deles estacionados em Santa Maria (RS). Já a Marinha, obviamente, tem seu melhor equipamento nos navios. Aquilo não reflete a realidade das Forças Armadas. Se outros materiais fossem levados a Brasília, a impressão seria outra.
“Em 1964, existia apoio de setores da imprensa, de igrejas, do empresariado, fora uma situação internacional que favorecia um golpe de Estado. Hoje, não há ambiente para isso”
O senhor é um firme defensor da Proposta de Emenda Constitucional que limita a atuação de militares da ativa no governo. Como se daria esse controle?
Em democracias consolidadas é o Congresso Nacional que faz a supervisão e a fiscalização das Forças Armadas e fixa o rumo da Defesa nacional, definindo quais políticas o país necessita. No Brasil, o Congresso Nacional se alienou desse papel. Os militares precisam ser liderados pelo poder político representativo. Os civis, por sua vez, não apresentaram nenhum projeto para os militares.
Pelo seu raciocínio, os militares ocupam um vazio deixado pelos civis. Mas não há interesse exacerbado dos generais por cargos na administração pública?
Por que o militar recusaria convite para ganhar mais? Eles não são os culpados por quererem ganhar mais. Por isso acredito que quem deve limitar essa atuação é o Congresso, para que não haja politização das Forças Armadas.
Quais cargos são legítimos de ser ocupados por militares?
Órgãos como o Gabinete de Segurança Institucional, o Ministério da Defesa, cargos em áreas nuclear e espacial, que são áreas afins às atividades deles. Hoje, existe uma situação de acusações mútuas. A PEC sai das discussões vazias e traz constitucionalidade para o debate, deixando claro quais os limites da atuação no governo.
Como avalia a não punição do ex-ministro Eduardo Pazuello por participar de uma manifestação governista?
A decisão de não puni-lo foi indefensável. Assim como a manifestação tosca do chefe da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, de que “homem armado não ameaça”. Até então, eu vinha defendendo os generais em cargo político e na reserva. Os comandantes militares estavam mantendo-se enquadrados pelas linhas constitucionais. O que o Baptista fez é muito grave. São dois casos de punição, e foi um erro não puni-los.
O presidente Jair Bolsonaro repete o termo “meu Exército”. Como vê essa reiteração contínua de sua ascendência sobre as Forças Armadas?
Existe uma constante atuação de constrangimento por parte do presidente da República, para forçar as Forças Armadas a endossar os atos e as falas dele. Foi por não endossar os achaques ao Supremo Tribunal Federal, ao Congresso Nacional e aos governadores, pelas políticas engendradas na pandemia, que, pela primeira vez, os chefes da Aeronáutica, Marinha e Exército foram demitidos. Eles não se dobraram. Os três foram demitidos porque se recusaram a envolver as Forças Armadas nas declarações e nos atos do presidente da República. Toda vez que ele se sente ameaçado, sobe o tom e desrespeita os outros poderes, constrangendo as Forças Armadas a endossar esse discurso.
A saída dos três comandantes das Forças Armadas, em março, foi, de fato, algo inédito. O que motivou a demissão?
O respeito à Constituição. Ele chamou um comandante militar e perguntou se os jatos Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som para estourar os vidros do prédio. Bolsonaro mandou fazer isso, tenho um depoimento em relação a isso. Ao confrontá-lo com o absurdo de ações desse tipo, eles foram demitidos.
Há risco de ruptura democrática nas eleições de 2022?
As Forças Armadas não estão disponíveis para nenhuma aventura ou golpe. Em 1964, existia apoio de setores da imprensa, da Igreja, do empresariado, fora uma situação internacional que favorecia um golpe de Estado. Hoje, não há ambiente para um golpe de Estado. Não tem nenhuma força política a favor disso, muito pelo contrário. Seria um raio em céu azul.
Mas o próprio presidente trata de manifestar sua intenção de não aceitar o resultado das eleições sem o voto impresso. Não é preocupante?
Existem riscos. A campanha de Bolsonaro para desmoralizar o voto eletrônico envolve, no fundo, retirar credibilidade do Tribunal Superior Eleitoral, sem apresentar nenhuma prova.
Quais os riscos dessa campanha, já que as Forças Armadas não endossariam uma possível tentativa de golpe?
Bolsonaro corteja as polícias e afrouxa o controle das armas. Ele é o único presidente da República que vai a cerimônias de formação de policiais. Quando propõe que o povo se arme, ele quebra o monopólio da violência legal por parte do Estado. É grave. Só o Estado tem a prerrogativa legal para o uso da força. Ele propõe jogar brasileiros contra brasileiros. No limite, isso tem o nome de guerra civil. Vamos ter problemas em 2022, não sei em qual nível. Quando o presidente diz que não teremos eleições se não forem eleições limpas, ele prepara o terreno para que vivamos o que os Estados Unidos passaram na invasão do Capitólio, só que de maneira ampliada.
Como?
A situação que mais me preocupa é esta: imagine um cenário de motins policiais no ano que vem e suponha que um governador peça ao presidente da República a presença das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem e ele não o faça. Este governador, então, recorre ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso Nacional. Chegamos a um impasse institucional. Só o presidente da República pode colocar tropas nas ruas, mais ninguém. Nunca vivemos isso. Ele é o comandante em chefe.
Qual o impacto para as Forças Armadas do envolvimento de coronéis na suposta corrupção na compra de vacinas?
É preciso que seja investigado. Sendo militar ou civil, incorrendo em crime, tem de ser punido. Não faz sentido em um país com sanitaristas de renome internacional e qualidade comprovada em políticas sanitárias ter militares ocupando cargos no Ministério da Saúde. Cria-se um desgaste de imagem, embora eles não representem as Forças Armadas. A gestão do Eduardo Pazuello não teria acontecido se houvesse limites à atuação de militares em cargos políticos.
“Ele chamou um comandante e perguntou se os jatos Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som”
Mais de 74% dos gastos militares são com pessoal e pensões. Trata-se de um gasto sustentável?
O Orçamento do Brasil com Defesa está abaixo da média global, não é exorbitante, mas o gasto com pessoal é demasiado. Desde o Império, adotamos uma estratégia de ocupação de território. As Forças Armadas de países desenvolvidos têm estratégias diferentes, com investimento tecnológico e profissionalização das tropas. Uma grande quantidade de recursos humanos pressiona o Orçamento, que comprime os aportes essenciais. Precisamos de uma Força com alta capacidade de mobilidade e letalidade, tecnológica.
A saída do general Luiz Eduardo Ramos representa uma perda de influência dos militares no governo?
É uma disputa por espaço. O Centrão deseja mais cargos, alguns detidos por militares. Até aqui, a batalha tem sido vencida pelo Centrão. Esse governo é frágil e precisa, desesperadamente, de uma blindagem. Bolsonaro viu crescer o risco de um remoto impedimento com as falhas no combate à pandemia e recorreu ao velho presidencialismo de coalização.
Numa possível vitória do ex-presidente Lula, como o senhor acha que o Exército se comportará?
Cumprirá a Constituição e baterá continência para o comandante em chefe das Forças Armadas.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752
Confira a publicação original da Revista Veja:
Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/raul-jungmann-nao-vai-ter-golpe/
Novos acordos políticos não resolvem o problema da reeleição
Alon Feuerwerker / Revista Veja
Suponhamos, por exercício intelectual, um Brasil sem a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 no Senado. O cenário para o governo estaria razoável. Os números da vacinação avançam e são expressivos, e as curvas de casos e mortes vêm caindo faz algum tempo. E todas as projeções são de recuperação robusta do produto interno bruto este ano, compensando com alguma margem a retração do ano passado.
Mas há a outra face da realidade. Iluminar o lado escuro da lua mostrará que os casos e mortes pelo novo coronavírus ainda vão em patamares altos. E o sofrimento social nascido do desemprego e da pobreza não dá sinal de arrefecer. Apesar disso, todas as pesquisas demonstram que vetores positivos começam a superar os negativos na resultante de percepção popular.
Falando nela, a política, a avaliação do presidente da República anda algo estacionada. Verdade que o ótimo+bom das pesquisas deslizou para em torno de um quarto do eleitorado, mas o número retorna ao resiliente um terço se juntarmos o “regular positivo”. Um terço que, aliás, tem sido o patamar da aprovação de Jair Bolsonaro e também a intenção de voto nele no segundo turno. Ou seja, o presidente parece ter chegado a um certo piso.
“Sinal de acerto de Bolsonaro é a escolha de Ciro Nogueira ter sido bombardeada pelos adversários”
O “parece” aqui é recurso de prudência, porque a política gosta de trazer elementos que desestabilizam cenários. Entretanto, como já repetido tantas vezes, o imprevisível é muito difícil de prever. O fim do filme só saberemos em outubro de 2022, mas o retrato agora projeta disputa acirradíssima na urna eletrônica daqui a pouco mais de catorze meses. Entre um candidato à esquerda (hoje seria Lula) e um à direita (hoje seria Bolsonaro).
E as alternativas? Outro dado trazido pelas últimas pesquisas: se houvesse um único nome da terceira via, ou “centro”, ele (ou ela) partiria de algo em torno de 15% a 20%. Um número bastante razoável. E aí o desafio seria lipoaspirar o candidato à reeleição em uns pontinhos, passar ao segundo turno e tentar ganhar a disputa surfando na rejeição a Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT. À luz de hoje é difícil, mas não impossível.
Os aspectos objetivos da realidade (contenção da pandemia e aceleração da economia) tendem a favorecer Bolsonaro na resistência contra a ofensiva do centrismo para tirar o incumbente do segundo turno. Mas há os aspectos subjetivos. Até que ponto as confusões e polêmicas que tanto ajudam o presidente a manter agrupado o núcleo duro da base dele vão gerar efeitos centrífugos prejudiciais, e assim facilitar o trabalho de quem disputa com ele o eleitorado à direita?
Bolsonaro fez o movimento by the book ao trazer o senador Ciro Nogueira (PP-PI) para a Casa Civil. Um sinal do acerto é a escolha ter sido bombardeada pelos adversários hoje mais renhidos do presidente. Mas é preciso saber se, como diz o clichê, Bolsonaro vai ajudar Nogueira a ajudá-lo. Pois a operação político-parlamentar avança bem na solução do desafio imediato de não ser derrubado, mas é insuficiente para resolver outro: a reeleição.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749
Fonte:
Revista Veja
"Me ajude a te ajudar"
https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/me-ajuda-a-te-ajudar/
Dora Kramer: Vai ser diferente
A próxima eleição presidencial terá desafios que Bolsonaro não enfrentou naquela que passou
Muito mais importante que o resultado do segundo turno das eleições municipais deste domingo para definir posições e articulações preparatórias ao embate nacional de 2022 é a escolha dos presidentes da Câmara e do Senado.
Na verdade, o mundo político considera importante mesmo a escolha dos deputados, porque em fevereiro eles definirão quem será a pessoa com poder de vida ou de morte sobre pedidos de impeachment contra o presidente da República.
Um presidente da Câmara fidelíssimo ao Palácio do Planalto tende a arquivar os pedidos, enquanto outro não alinhado se inclina a deixar essas solicitações na prateleira, ou “sentar em cima”, no jargão algo vulgar corrente no Parlamento. Assim fez Rodrigo Maia, em cuja gaveta se acumulam mais de cinquenta contra Jair Bolsonaro. Já Lula e FH contaram com aliados para levar semelhantes intenções e ideias ao arquivo.
Essa é a chave do início da corrida. Não porque haja no horizonte dos opositores do atual presidente uma intenção real e premente de lhe interromper o mandato. A ideia é muito mais manter ativa a espada de Dâmocles.
Isso além do controle da pauta de votações e da liderança sobre o andamento das relações entre Executivo e Legislativo, fundamental para um cenário de estabilidade ou de instabilidade política no desenrolar do processo eleitoral. O mandato dos comandantes do Legislativo eleitos em fevereiro de 2021 vai até fevereiro de 2023.
Nada ou muito pouco disso interessa ou interfere na decisão do eleitor. É fato. Contados os votos de domingo 29 de novembro, para partidos e políticos começa o processo de montagem de estruturas e estratégias que não inclui o eleitorado, embora tenha como finalidade mobilizá-lo para outubro de 2022 com dois objetivos opostos: Jair Bolsonaro tentando se reeleger e seus adversários querendo tirá-lo do poder.
Do lado do presidente ainda não é possível enxergar movimentos além do empenho de eleger o presidente da Câmara, num plano até então concentrado na figura do deputado Arthur Lira, agora dificultado pela formação de maioria para mantê-lo como réu na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em denúncia de corrupção passiva.
Já os oponentes se movimentam com mais nitidez, não obstante o façam em ritmo de compasso de espera para ver como fica o equilíbrio de forças entre Planalto e Congresso. Tanto na esquerda quanto ao centro e à direita agora desgarrada de Bolsonaro há dois tipos de consenso: a necessidade de aglutinação dos competidores e as diferenças entre as eleições de 2018 e 2022.
Por aglutinação não se entenda uma frente tão ampla a ponto de juntar campos ideológicos opostos. É inexequível. Há que levar em conta afinidades e respeitar as visões de mundo a fim de não termos sacos de gatos no lugar de chapas com projetos de país minimamente coerentes naquilo que apresentarão ao eleitorado.
A tentativa será evitar a fragmentação absoluta. Na base do cada um por si, todos concordam (em tese), o resultado será a reeleição de Bolsonaro. A divisão considerada ideal é esquerda e área de influência de um lado e centro de outro atraindo aquela direita dita civilizada. União de conveniência, só no segundo turno.
O essencial, também há concordância geral (na teoria), é não começar a discussão impondo vetos a nomes. Se o pré-requisito for pautado pela intolerância, não haverá entendimento. E por isso mesmo a escolha de candidaturas deve ser uma etapa posterior à do acerto de convergências sobre os programas de governo. Tudo muito bonito no universo das ideias a ser submetido ao crivo do mundo real.
Mais exatamente à nova realidade, muito diferente daquela vivida em 2018. O desafio da oposição é se organizar, coisa que não fez dois anos atrás e acabou transformando a eleição num embate de ressentimentos. Já Bolsonaro terá de superar obstáculos que não enfrentou na ocasião: agora não há a descrença quanto à sua vitória como havia; ele não é mais uma hipótese a ser confrontada com os fatos; terá de responder a cobranças por resultados de governo, estando sob um escrutínio que não esteve; não contará com o contraponto do PT para amedrontar o eleitor.
Sobra ainda a questão dos militares. Estarão com ele, abraçarão outra candidatura ou vão se recolher ao silêncio? Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa e interlocutor constante de oficiais da ativa e da reserva, se tivesse de apostar, cravaria a terceira opção. Por quê? “Acabou o encantamento.”
Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715
Alon Feuerwerker: E o que vem depois da eleição?
O dado óbvio a olhar daqui por diante, definido o quadro municipal, serão as pesquisas de popularidade do presidente da República. Não há como imaginar a sucessão de 2022 sem esse eixo de organização do pensamento. E sem base orgânica, o chefe do governo depende disso mais do que o normal. A outra variável? Como os partidos resolverão o dilema entre a necessidade de fazer bancadas de deputados e a vontade de ter candidaturas à Presidência.
O sistema partidário brasileiro funciona de modo peculiar. Talvez seja caso único no mundo em que uma constelação de legendas, nenhuma com massa crítica para construir sua hegemonia, migra da órbita de um personagem político para outro, e sempre submetidas à força gravitacional do poder. E depois das eleições submetem o poder à força gravitacional delas quando se reúnem no Congresso Nacional.
No campo governista, dos partidos que concordam no essencial com a agenda do Palácio do Planalto, é razoável supor que se Jair Bolsonaro chegar a 2022 competitivo nas simulações eleitorais terá uma possibilidade bem razoável de atrair boa parte das agremiações que se deram bem nacionalmente nesta eleição municipal, também e principalmente pelo acesso privilegiado de seus parlamentares ao Orçamento Geral da União.
Aliás, mesmo que o presidente esteja enfraquecido, essas legendas poderão aliar-se a ele para garantir as posições na máquina durante o período eleitoral, e conforme o andar da carruagem cristianizá-lo na campanha. Não chegaria a ser novidade. Esse poder de barganha dos partidos anda meio relativizado desde que o horário eleitoral no rádio e tv não se mostra tão vital assim, mas continua sendo uma variável a considerar com seriedade.
Inclusive porque cada partido que você atrai é menos um para engrossar as fileiras da concorrência.
A principal luta de Jair Bolsonaro nos ensaios para 2022, sabe-se, deve ser contra os que o apoiaram em 2018 mas preferem uma alternativa própria. E os segundos turnos municipais mostram que essa facção tem uma vantagem na disputa da pole-position antibolsonarista. Tem mais facilidade para receber o voto maciço da esquerda do que quando precisa retribuir.
Para a esquerda, a equação apresenta mais variáveis em aberto. Ao contrário da miríade das legendas da direita, ela precisa se preocupar seriamente com o atingimento da cláusula de desempenho na eleição para a Câmara dos Deputados. E, também ao contrário do campo oposto, chegará a 2022 sem o controle da máquina federal e desidratada de máquinas na maior parte do país. Qual será então a melhor fórmula para ela?
Uma possibilidade é buscar desde logo a convergência para lançar candidaturas majoritárias competitivas e ancorar os diversos partidos nesses projetos mais robustos. Ou vai ser o cada um por si, como foi na maioria das disputas municipais? É uma dúvida cruel. E os números finais deste novembro eleitoral precisarão ser analisados com lupa por quem, daqui a dois anos, terá como principal desafio não cair para a Série B da política.
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado originalmente na revista Veja edição 2.715 de 2 de dezembro de 2020
Alon Feuerwerker: Um adversário de cada vez
O centro erra ao combater ao mesmo tempo a esquerda e a direita
O movimento do presidente Jair Bolsonaro no sentido de uma composição com o chamado Centrão parlamentar tem algo, sim, de moderação. Mas já foi bem diagnosticado como uma guinada para a preservação do poder. Ele soube detectar de onde vêm as maiores ameaças: daqueles que o ajudaram na eleição, mas a contragosto.
A flexão tática bolsonarista ao dito centro trouxe um efeito colateral interessante, um fenômeno ainda por medir e observar. Um “novo centro” que, paradoxalmente, radicaliza pela direita. Uma reação de parte do bolsonarismo puro e deixado para trás, agora já um quase ex-bolsonarismo, e que tem tudo para se agrupar em torno do ex-ministro Sergio Moro.
Aliás, como era previsível, e foi previsto, ele desponta firme para se viabilizar no arco-íris do autodeclarado centrismo.
Aconteceu algo semelhante com Luiz Inácio Lula da Silva quando precisou se dobrar à realidade da política. Mas com uma diferença. O que espirrou para fora do barco (o PSOL) não tinha então musculatura nem lideranças capazes de fazer o PT sofrer de verdade a curto prazo.
Se juntar Luciano Huck, Sergio Moro e João Doria, algum jogo pode dar. Há a natural dificuldade de fazer dois dos três abrir mão. Até porque o prêmio parece apetitoso: assumir a Presidência da República com o apoio maciço do establishment e do que Roberto Campos chamava de “a opinião publicada”. Algum membro do trio aceitará ser vice? Vai saber…
“Se juntar Huck, Moro e Doria, algum jogo pode dar, mas será difícil fazer dois deles abrir mão”
Um desafio? O Brasil não chegará a 2022 em situação econômica brilhante. Haverá provavelmente, e inclusive em decorrência da Covid-19, mais pobres e quase tantos desempregados quanto havia quando Dilma Rousseff foi removida do Planalto. Se não mais.
Por que a referência é o ocaso de Dilma? Porque ao fim de 2022 já terão se passado longos mais de seis anos desde que foi apeada. E de lá para cá as políticas econômicas vêm seguindo uma linha de continuidade. E sempre com o apoio do antibolsonarismo dito de centro. É razoável, portanto, que o debate em 2022 volte a girar em torno da economia. O resultado das escolhas feitas. Isso se a oposição for esperta.
Um debate político centrado na economia não será muito confortável para o chamado centro, em seus diversos matizes, pois terá de explicar por que depois de mais de seis anos as coisas continuam, na essência, do jeito que estavam antes. E como encarnar o anseio de mudança propondo mais do mesmo? Não será trivial.
E tem ainda aquele outro problema, já detectado em 2018. A insistência em querer combater simultaneamente a esquerda e a direita que se assume como tal. É a história do gato que persegue dois ratos ao mesmo tempo. O mais provável, quase certo, é não capturar nenhum. Aliás, a experiência de 2018 já deveria ter servido para alguma coisa.
Poderiam aprender também com Joe Biden. Não dá para antever que o democrata vai ganhar, mas, por enquanto, ele mostrou ter absorvido uma lição fundamental na política. Procure sempre acertar na definição do adversário principal, que a cada momento é apenas um. O custo de errar nisso costuma ser muito alto.
*Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709
Ricardo Noblat: Fantasma de uma derrota acachapante nas eleições assombra o PT
2020 pode ser pior do que 2016
O fantasma das eleições municipais de 2016 volta a assombrar o PT e seu principal líder, Lula. Em 2012, o partido elegeu 11,4% do total de prefeitos do país. Foi um desempenho considerado de razoável para bom. Quatro anos depois, deu-se o desastre: o partido elegeu apenas 4,6% dos prefeitos. E nenhum nas capitais.
Nas eleições de novembro, o desempenho do PT ainda poderá ser pior. Centenas de pesquisas de intenção de voto já foram registradas até esta semana no Tribunal Superior Eleitoral. Sabe em quantas delas candidatos do PT a prefeito aparecem na condição de líder? Em uma. No Recife com Marília Arraes.
Neta de Miguel Arraes que governou Pernambuco três vezes, prima de Eduardo Campos que governou duas vezes, Marília lidera as pesquisas de intenção de voto aplicadas até aqui. No segundo lugar, alternam-se o deputado João Campos (PSB), o filho mais velho de Eduardo, e o ex-ministro Mendonça Filho (DEM).
A Bahia é vista como uma fortaleza do PT desde que o atual senador Jaques Wagner se elegeu e se reelegeu governador e foi sucedido por Rui Costa, que se elegeu e se reelegeu também. O PT lançou para disputar a prefeitura de Salvador uma policial militar, famosa pelo trabalho que fez na defesa da Lei Maria da Penha.
Quem tem mais chances de se eleger prefeito de Salvador até agora é o atual vice-prefeito da cidade, apoiado por ACM Neto, o prefeito e presidente nacional do DEM. Tem um pastor evangélico por lá, dono de uma creche, que aparece nas pesquisas com índice maior de intenção de voto do que a candidata do PT.
Mas não é só em Salvador que o PT vai mal das pernas. Em São Paulo, onde o partido nasceu, seu candidato a prefeito da capital está com pinta de que ficará de fora do segundo turno. Jilmar Tatto, ex-deputado federal, vem sendo pouco a pouco abandonado pelos petistas que preferem apoiar Guilherme Boulos (PSOL).
O Rio Grande do Sul é, digamos, o segundo berço do PT que mais de uma vez governou o Estado e Porto Alegre. Ali, o partido emplacou o vice de Manuela D’Ávila (PC do B), candidata a prefeita. No Rio, Benedita Silva (PT), ex-governadora e em ministra de Lula, está em quarto lugar nas pesquisas.
Ricardo Noblat: A barbárie do extremismo religioso contra a criança estuprada
O Estado brasileiro é laico. O que significa: ele não permite a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem privilegia uma ou algumas religiões sobre as demais. Garante e protege a liberdade religiosa de cada cidadão, mas evita que grupos religiosos exerçam interferência em questões políticas.
“Os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais”, disse o ministro Marco Aurélio Mello em 2012 quando o Supremo Tribunal Federal, por oito votos contra dois, decidiu que grávidas de fetos sem cérebro podem interromper a gravidez com assistência médica prestada pelo Estado.
Em mais duas situações, o aborto é plenamente legal no Brasil: quando a continuação da gravidez importa em risco à vida da mãe e em caso de estupro. Foi o que aconteceu com a menina de 10 anos de idade, estuprada desde os seis anos por um tio no Espírito Santo, levada às pressas para abortar no Recife.
Em Vitória, um hospital negou-se a respeitar a ordem judicial de fazer a cirurgia na menina, conforme sua vontade reiteradamente manifestada em diversas ocasiões. A gravidez decorreu de um crime, tipificado em lei. Para a menina, suportá-la e dar a luz equivalia a um processo de tortura. Tortura é outro crime.
O que pretenderam os militantes cristãos, comandados por políticos da direita e da extrema direita, que na noite do último domingo cercaram o hospital no Recife onde a menina estava sendo esperada para submeter-se à cirurgia? Na prática, tornar a Constituição letra morta, ignorando o que ela prescreve.
Lava Jato ganha sobrevida com decisões de Fux e de Celso de Mello
Por ora, a sangria continua
Ainda não foi desta vez. Dava-se como certo nos meios jurídicos de Brasília que o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força tarefa da Lava Jato em Curitiba, seria condenado pelo Conselho Nacional do Ministério Público em dois procedimentos disciplinares a que responde por abuso de poder.
Prestes a assumir por dois anos a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux, à tarde, suspendeu os efeitos de uma advertência imposta em novembro a Dallagnol, o que tornava mais distante seu afastamento da chefia da Lava Jato. À noite, Celso suspendeu o julgamento marcado para hoje.
Fux fez por merecer a fama que tem de amigo número um da Lava Jato. Em 2016, logo após a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma, depois de uma conversa que teve com Fux, Dallagnol contou a um grupo de procuradores o que ouvira dele: “Disse para contarmos com ele para o que precisarmos”.
Ao que o então juiz Sergio Moro, informado sobre a conversa, comentou por escrito: “Excelente. In Fux we trust” (Em Fux nós confiamos”). Moro poderia acrescentar que também em Celso ele e a Lava Jato podem confiar pelo menos até novembro, quando o ministro, ao atingir os 75 anos de idade, deixará o tribunal.
No seu despacho, Celso afirmou que é “inaceitável a proibição ao regular exercício do direito à liberdade de expressão” de membros do Ministério Público e afirma que limitar esse direito “revela-se em colidência com a atuação independente e autônoma garantida ao Ministério Público pela Constituição”.
Ricardo Noblat: Bolsonaro faz barba, cabelo e bigode na nova pesquisa Datafolha
Os efeitos do dinheiro no bolso
O que aconteceu entre a última semana de junho passado quando o Datafolha foi a campo para saber a opinião dos brasileiros sobre o governo de Jair Bolsonaro, e esta quando repetiu a dose?
Fabrício Queiroz foi preso na casa do advogado do presidente Bolsonaro e do seu filho Flávio, senador. E, no último sábado, o Brasil atingiu a triste marca dos 100 mil mortos pelo coronavírus.
A devastação da Amazônia seguiu em frente e até cresceu. O Ministério da Saúde completou 3 meses sob o comando de um general. E mal tomou posse, o 4º ministro da Educação adoeceu.
O que explica então que a aprovação de Bolsonaro tenha aumentado e a rejeição caído segundo a nova pesquisa Datafolha? Duas poderosas coisinhas, pela ordem de importância.
A primeira: o auxílio emergencial de 600 reais pago a pelo menos 42% da população para que ela enfrentasse os efeitos da pandemia. A segunda: a mudança de comportamento de Bolsonaro.
O índice dos que acham o governo ótimo ou bom subiu de 32% para 37%. Caiu de 44% para 34% o índice dos que o acham ruim ou péssimo. É a melhor avaliação desde que o governo começou.
Dos 5 pontos de crescimento da taxa de avaliação positiva, pelo menos três vêm dos trabalhadores informais ou desempregados que têm renda familiar de até três salários mínimos.
Entre os que receberam o auxílio, a taxa dos que consideram Bolsonaro um presidente ótimo ou bom é seis pontos superior à observada entre os que não pediram o benefício.
A popularidade do presidente no Nordeste, a região mais pobre do país, cresceu seis pontos. Bolsonaro no modo bonzinho reduziu sua desaprovação entre os brasileiros de maior renda no Sudeste.
Fique, portanto, Bolsonaro à vontade para criticar governadores e prefeitos que decretaram medidas de isolamento social, defender a volta ao trabalho e prescrever cloroquina aos doentes.
Tudo isso lhe será perdoado. Só não pare de pagar o auxílio emergencial, ou qualquer outro nome que se lhe dê. Nem o reduza. Se reduzir será lembrado como aquele que deu e depois tomou.
A mesma mão que hoje afaga, amanhã apedreja.
O Supremo Tribunal Federal tenta exorcizar o fantasma do SNI
Arapongas sob freios
O fantasma do Serviço Nacional de Informações (SNI) fez o governo Bolsonaro colher mais uma derrota no Supremo Tribunal Federal. Criado depois do golpe militar de 64 para supervisionar e coordenar as atividades de informações e contrainformações no Brasil e exterior, e extinto em 1990 pelo presidente Fernando Collor, o SNI foi o órgão repressor mais eficiente da ditadura.
“Eu criei um monstro”, reconheceu o general Golbery do Couto e Silva, seu fundador, e ex-ministro dos governos Ernesto Geisel e João Figueiredo. Foi para evitar que algo parecido possa ressurgir que o Supremo decidiu impor limites à atuação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Ela só poderá pedir informações a outros órgãos se “ficar evidenciado o interesse público”.
São 42 os órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) – entre eles a Polícia Federal, a Receita Federal, o Banco Central e a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça. O Supremo também barrou o envio à Abin de dados como quebra de sigilo e escutas telefônicas, que somente podem ser obtidos com prévia autorização judicial.
“Arapongagem não é direito, é crime. Praticado pelo estado, é ilícito gravíssimo”, disse a ministra Carmen Lúcia, relatora do caso. “Qualquer fornecimento de informação que não cumpra rigores formais do direito contraria a finalidade legítima posta na lei da Abin. […] Não é possível ter como automática a requisição sem que se saiba por que e para quê”.
Os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luix Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli acompanharam o voto da ministra. Celso de Mello ausentou-se e Marco Aurélio Mello votou contra. Fachin foi direto ao ponto: “O modelo adotado pelo SNI durante a ditadura não pode, sob nenhuma hipótese ser o mesmo da Abin”.
A Abin é comandada pelo delegado Alexandre Ramagem que cuidou da segurança de Bolsonaro depois da facada em Juiz de Fora. Bolsonaro o nomeou diretor-geral da Polícia Federal. Sua posse acabou suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes. Por pouco, o episódio não provocou uma crise institucional. Bolsonaro chegou a anunciar que fecharia o Supremo. Recuou depois.