Revista Será
Elimar Pinheiro do Nascimento: Cidadania
Na semana retrasada, 23/03, o País viu nascer mais um partido. Não deveria ser evento para comemorações, tal a quantidade de partidos hoje existente, e vários sem finalidade maior do que a de arrecadar fundos para alguns pelegos ou servir de guarda-chuva para políticos sem ideologia nem bandeiras. Verdadeiros balcões de negócios. Mas não se trata de mais um partido, nem um partido convencional. O PPS, antigo PCB, decidiu mudar de nome como um primeiro passo para criar uma agremiação política de novo estilo. À mudança de nome deverá seguir-se uma mudança de estrutura e bandeiras para, em sintonia com os novos tempos, acolher forças políticas dispersas que podem reunir-se em torno de uma plataforma mais moderna e antenada com as mudanças técnicas, políticas e econômicas mundialmente em curso.
Cidadania é o novo nome do partido. Nem melhor nem pior do que outros como Rede Sustentabilidade, Podemos, Avante, Solidariedade, Democratas e tantos outros. Alguns destes decidiram mudar o nome para não mudar o conteúdo, nos passos do velho Lampeduza, que o mineiro Antônio Carlos atualizou para nossos trópicos com a frase – Façamos a revolução antes que o povo a faça. Rede é uma exceção e, sem dúvida, a melhor e mais diferenciada das proposições, pois tinha um substrato ideológico e uma líder nacional e de reconhecimento internacional. Porém não vingou. A forte polarização das eleições do ano passado a esmagou, antes que assumisse um corpo visível.
Cidadania parece distinto. Tem uma história importante no País, uma postura de acolhimento do novo, e um espírito democrático começa a ventilarlhe as entranhas. Sua intenção, com a mudança do nome, é a de acolher agremiações partidárias ameaçadas pela nova legislação eleitoral, que impede as coligações em candidaturas proporcionais, ao mesmo tempo que requer um quorummínimo de votos, para ter acesso ao fundo partidário e à propaganda eleitoral nos meios de comunicação, fora dos períodos eleitorais. Nessa situação, ou os partidos pequenos se fundem ou desaparecem. Claro que podem tentar mudar a legislação. Nenhuma novidade para um País que tem uma legislação distinta para cada pleito eleitoral, há mais de 30 anos. Porém, as condições não são favoráveis. Assim, ou se fundem ou morrem.
A intenção da agremiação renovada vai mais além, na tentativa de acolher membros dos novos movimentos nascidos da conjuntura de 2013/2014 e que ganharam visibilidade em várias partes do País: Livres, Acredito, Agora etc.
Contudo, para vingar será necessário que o Cidadania mude sua arcaica estrutura, assumindo feições mais horizontais do que verticais. Estruturas mais transparentes e participativas, com uso das novas tecnologias. Com um novo estilo de direção, de transparência e rotatividade, em que seus dirigentes sejam definidos por períodos de dois anos, renováveis apenas uma vez. Como já é a sua Fundação Astrojildo Pereira. Uma direção mais efetivamente coletiva e democrática, mais horizontal e menos vertical, com valores como a comunicação não violenta e o estímulo à participação efetiva das mulheres, dos jovens e de pessoas de todas as regiões do País.
O nome tem um apelo. Cidadania vem de cidade, que se desdobrou na denominação de seus habitantes, como cidadãos, o que significa hoje indivíduos revestidos de direito. Habitantes de um espaço que participam da gestão pública. Não há democracia, nem sociedade moderna, sem cidadania, sem que os habitantes do país tenham as mesmas chances de estudar, desenvolver-se e participar da vida pública.
Cidadania, portanto, tem um grande desafio. Contribuir para tornar este país uma sociedade de cidadãos. Uma sociedade sem exclusões sociais. Uma sociedade que ofereca aos seus membros o mesmo acesso a uma educação de qualidade, sejam eles pobres ou ricos. Educação é o caminho hoje do desenvolvimento, não é a indústria, nem o agronegócio, mas o conhecimento, com o qual as pessoas, dominando a ciência e a tecnologia modernas, inovam e prosperam, respeitando o meio ambiente. Com educação de qualidade para todos pode-se caminhar para se desfazer as desigualdades que marcam nossa sociedade e fazem do Brasil o décimo país mais desigual do mundo. Um País sem República plena, com semiescravos. Um País que tem tudo para ser rico e saudável, mas as velhas estruturas e uma elite atrasada, como dizia Manuel Bomfim, não o permitem.
Assim, uma forte agenda de reformas deverá erguer a nova agremiação, se quiser, de fato, jogar um papel importante na criação de uma sociedade mais democrática, menos injusta e mais próspera. Reformas que nem o PSDB nem o PT conseguiram realizar. Reformas que destruam as mordomias e as desigualdades gritantes que impedem o nosso avanço para o século XXI, excrecências que se acumulam desde o século XVI, no período colonial. Reformas que destruam esse Estado cartorial e burocrático, e o transformem em uma máquina de serviços efetivamente voltados para os interesses públicos (não confundir com estatais), com mais e melhores serviços e menos intervenção na economia. Reformas que favoreçam a criação de expressões políticas sólidas, e uma governabilidade ancorada nas proposições partidárias, e não no “toma lá, dá cá”. Reformas que estimulem a economia, desonerem a produção, tornando-a de fato eficiente, com o uso racional dos recursos naturais. Condição sine qua nonpara que os brasileiros tenham seus direitos assegurados. Não há justiça social sem economia eficiente. Não há futuro sem economia que respeite a natureza.
Enfim, desafios que demandarão de seus membros, sobretudo, ousadia, muita ousadia nos objetivos e, sobretudo, na forma de alcançá-los. Mais do mesmo ninguém suporta. Organização vertical e autoritária, a cidadão nenhum interessa. Será o suicídio.
Alberto Aggio: Impasse nas eleições italianas
Em meio às nossas turbulências paroquiais, acompanhamos desde o Brasil as eleições para o Parlamento italiano a serem realizadas no próximo domingo, 04 de março. São eleições gerais para a recomposição do Parlamento e indicar um novo governo para o país. Contudo, pelas últimas pesquisas, não é certo que se consiga indicar um novo Primeiro Ministro e formar um novo governo. A divisão em três blocos políticos assume feições irreconciliáveis, impedindo a formação de uma maioria. Isso faz parte da lógica do Parlamentarismo que os italianos conhecem muito bem.
As eleições de domingo não mexem com a Presidência da República, hoje exercida por Sérgio Mattarella. A mudança, se houver, atingirá o Primeiro Ministro, Paolo Gentiloni, que governa com o apoio de uma coalisão que tem no Partido Democrático (PD), de centro-esquerda, sua maior força.
Apesar dos anos de crise e austeridade, a Itália vem saindo da recessão e a economia vem evidenciando um crescimento significativo para padrões europeus. Dessa forma, é equivocado imaginar que a retomada econômica não tenha sido resultado de programas e ações governamentais, como alguns imaginam. As eleições não se realizam, portanto, em meio a um cenário de fracasso irreversível do governo de turno. E, mesmo com as divisões políticas, com as quais os italianos convivem há décadas, não se pode dizer que a população espera que o melhor é não haver governo algum. Esse é um raciocínio hipócrita e calcado numa visão estereotipada dos italianos de que, em seu momento, Mussolini se aproveitou, ao afirmar que “governar os italianos não era impossível, era inútil”.
Estas eleições se realizam num cenário novo do ponto de vista institucional em razão da nova lei eleitoral que reintroduziu a proporcionalidade no sistema eleitoral. Isso pode dar ensejo a uma alteração no perfil da democracia italiana, que passaria a ser uma “democracia de partidos” e não apenas de líderes, ainda que haja necessariamente uma combinação entre essas duas dimensões. Com essa mudança aumentou a fragmentação partidária e a competição eleitoral, com a necessidade da formação de coalizões relativamente autônomas com vistas à formação do futuro governo.
Em função dessas mudanças e de outras que já estavam em curso, houve um significativo realinhamento de forças políticas. A maior novidade foi a consolidação do Movimento 5 Estrelas (M5S), criado pelo cômico Beppe Grillo, em 2009, e que hoje se afirma como o maior partido isoladamente, com aproximadamente 28% do eleitorado, de acordo com as pesquisas. Trata-se de um partido-movimento que nasce na vaga da antipolítica que vicejou nos últimos anos na Europa e no mundo. A contestação e o antagonismo a todo sistema político acabaram por fixar no M5S uma política antialiancista que pode inviabilizá-lo como força política capaz de formar governo. A não ser que cometa um “estelionato eleitoral” e se proponha a governar com algum partido de extrema-direita, como a Liga Norte, que compartilha das mesmas críticas maximalistas contra o sistema político.
Sem ter um partido que ultrapasse o percentual de 20% do eleitorado, a centro-direita italiana pode alcançar mais de 37% dos votos e se credenciar para a formação do novo governo. Compõem a centro-direita a Forza Italia, de Silvio Berlusconi mais a extrema-direita representada tanto pela Liga Norte quanto pelos Fratelli di Italia, expressões do renascimento do fascismo na Itália de hoje. A centro-direita parece ser uma união de fachada, sem organicidade programática e muito flutuante. Se a marca de neoliberista, de eficiência, empreendedorismo, elitismo, mais europeísmo são características fortes de Berlusconi, esses temas tocam pouco aos extremistas de direita que buscam empurrá-lo para temas anti-imigração e um nacionalismo fora de contexto. Com suas divisões reais, a centro-direita também terá dificuldades em formar governo depois das eleições, mesmo porque não atingirá o quórum necessário para não precisar do apoio de mais nenhum outro partido.
Por fim, a centro-esquerda comandada pelo PD. Não há dúvida que o PD passa por momentos muito difíceis eleitoralmente. É fiador de um governo relativamente exitoso, mas que não se envolveu diretamente na campanha em favor do partido (há que se considerar que a votação na Itália é tanto por partido quanto por lista e nomes). Desta forma, a identificação entre os êxitos do governo e o PD ficou rarefeita. Nas pesquisas, a sua votação se fixa em torno de 22%, disputando com o M5S o lugar de primeiro partido. No entanto, o PD conseguiu formar uma coalizão com pequenos partidos e movimentos que, segundo as previsões, deve elevar a votação da centro-esquerda a 27 ou 28%. Não fosse a fratura sofrida pelo partido, com a saída de líderes pós-comunistas, como Massimo D’Alema, Bersani, dentre outros, para formarem uma coalisão denominada Liberi e Uguali, que deve atingir por volta de 5 a 6%, a esquerda italiana estaria disputando a liderança da eleição com a direita.
Dividida em três polos, as forças políticas da Itália muito dificilmente terão condições para formar um novo governo nascido das eleições de 04 de março. O líder do PD, Matteo Renzi, afirma que jamais formará um governo com M5S e/ou Berlusconi. Este, por sua vez, não pode assumir o posto de Primeiro Ministro, por questões jurídicas: ainda está cumprindo pena de exclusão da vida pública. Terá problemas se indicar Matteo Salvini, da Liga Norte, para o comando do governo, na medida que não poderá controla-lo. Luigi Di Maio, líder do M5S anuncia na imprensa os ministros de seu possível governo, mas não diz como conseguirá a assunção ao poder.
Tudo isso significa que não há a mínima possibilidade de se propor qualquer transversalidade programática entre as principais forças políticas na Itália ou pelo menos entre algumas delas. O resultado será a indefinição e uma nova convocação ao eleitorado.
Mas, há hipóteses em circulação. Uma delas, de difícil realização: uma possível aliança entre o PD de Renzi e Forza Italia de Berlusconi, para um governo de transição visando novas eleições daqui a um ano. Outra hipótese, mais plausível, é a de um novo período para Paolo Gentiloni, ainda indefinido, com consentimento tácito do Parlamento, na medida em que o atual Primeiro ministro pode figurar acima dos impasses eleitorais e compor um novo gabinete que pode continuar dando respostas efetivas à população. Uma saída que é também um paradoxo: Gentiloni não disputou as eleições, mas as venceria. É útil ficar atento à política italiana. Ao menos nos estimula a tentar compreender a complexidade.
http://revistasera.ne10.uol.com.br/impasse-nas-eleicoes-italianas-alberto-aggio/
Alberto Aggio: Gambiarra no centro do mundo
Os Jogos Olímpicos realizados no Rio de Janeiro, ao contrário de alguns prognósticos, não arrastaram para nossas terras o flagelo do terrorismo. Talvez seja a confirmação da suposição de que o Brasil está mesmo fora da tenebrosa rota que o terrorismo vem traçando em várias partes do mundo ou que as medidas tomadas no plano da segurança, antes e durante a realização dos Jogos, revelaram-se eficazes. Ao que parece, nesse quesito fomos tão vitoriosos quanto os melhores atletas que por aqui desfilaram, e, ao final, respiramos aliviados. O fato é que as Olimpíadas nos colocaram no centro do mundo e, nessa posição, integrados a sistemas de segurança globalizados, conseguiu-se afastar a terrível ameaça que ronda o início do século XXI.
Em termos esportivos, o Brasil marcou sua posição: não somos potência olímpica, mas também não somos residuais. Como sempre, para além do talento individual, tivemos vitórias inesperadas de atletas emergentes, a confirmação do favoritismo em alguns esportes e o fracasso, até inesperado, em outros. No final, foram atestadas as nossas deficiências de financiamento e apoio técnico, sem os quais é impossível avançar para a elite do esporte mundial. A conquista da inédita medalha de ouro no futebol masculino é um êxito a ser comemorado, mas não há razões para ilusões. São resultados que denotam mais uma vez a anemia da nossa política esportiva.
Depois das confusões iniciais, correções na organização do megaevento parecem ter contentado o público presente. Mas os custos das inúmeras construções bem como o seu custeio posterior permanecerão como um passivo de não pouca monta. A renovação urbanística do centro do Rio de Janeiro reafirmou a opção por transformar o Rio numa cidade turística global. As mudanças em termos de mobilidade urbana e de segurança foram bem recebidas por turistas e cariocas, embora, no primeiro caso, haja dúvidas quanto à manutenção da sua eficiência e, no segundo, já se sabe, infelizmente, o que esperar depois da retirada das forças nacionais de segurança. Por tudo isso, tem razão Fernando Gabeira quando afirma que “a Olimpíada foi produto de um delírio do passado, realizado com os pés no chão da aspereza do presente”.
O espetáculo de abertura dos Jogos causou certo frisson na opinião pública e entre os intelectuais. Qual Brasil deveria ser apresentado ao mundo e aos próprios brasileiros? Diante de distintas e sempre inconclusas interpretações do Brasil, que elementos essenciais e significativos deveriam orientar a coreografia de imagens, canções, sons e danças daquela abertura? A competência dos criadores produziu um resultado visualmente vibrante e surpreendentemente consensual. Tudo foi muito bem projetado, ensaiado e executado. Um espetáculo de entretenimento, com muito boa técnica e, dizem, parcos recursos por conta da crise.
O toque destoante foi a qualificação dada por seus criadores à concepção que orientou o espetáculo. Sua síntese norteadora estava na palavra “gambiarra”: o Brasil seria então um “país-gambiarra”. Na encenação, foram valorizadas as transformações ocorridas na sociedade brasileira a partir de uma leitura acomodada da nossa trajetória moderna, mas que vem em boa hora. Contudo, mesmo que o espetáculo não tivesse sido projetado para exercitar a reflexão, essa louvação ao “jeitinho brasileiro” como prática e método reiterável, esse elogio ao paliativo, ao remendo, não é apenas um exagero, trata-se de um desserviço. Uma louvação extremamente perigosa, especialmente nessa hora em que o país necessita ser reinventado e não glorificado por meio de uma interpretação mítica sobre ele. Onde há glorificação não há pensamento crítico. Afinal não é isso que se quer para as nossas escolas?
As críticas pontuais feitas ao espetáculo de abertura evitaram enfrentar a nossa crise atual em toda sua profundidade. Não conseguiram abarcar as razões pelas quais a nossa modernidade está hoje empacada pela ineficiência do Estado diante das demandas da Nação, sem mencionar a hemorragia que a corrupção impõe aos recursos públicos. Em meio à encenação se poderia bradar, com satisfação: “Yes, nós (ainda) temos modernismo”. Mas não será um “tropicalismo revisitado” que terá o condão de nos dar a chave para o futuro, retomando os velhos temas da “questão nacional”, que hoje já não é o essencial para nós, uma sociedade imersa nos desafios de uma nova era histórica, marcada pela globalização, com seu cosmopolitismo, suas interdependências e sua irrefreável mudança tecnológica. Efetivamente, nenhuma gambiarra nos serve nessa hora; nenhuma gambiarra deve salvar um governo corrupto que arrasou a economia do país e impôs sacrifícios imensos a trabalhadores e insegurança total a empreendedores.
Uma parte da encenação é bastante significativa. Nela, um menino, isolado e reflexivo, singelamente se senta ao lado de uma muda de árvore, indicando que devemos, com urgência, salvar a natureza. Ele não traz consigo um livro ou um computador, ou os dois. Foi uma oportunidade estética perdida, num país que, nos últimos anos, viu crescer o analfabetismo em algumas das suas regiões. Para os brasileiros fora do Maracanã, aquele “pouquinho de Brasil” (“que canta e é feliz”), que estava lá dentro, não satisfaz. É preciso que definitivamente deixemos de ser conservadores: nossa política, se quiser ser democrática, deve superar o recado contido na estética da abertura dos Jogos.
Ao invés da consagração de “utopias retóricas” – perdoem-me a redundância –, seria mais produtivo um reencontro com a realidade. A história é mundial há séculos e a globalização cristalizou essa tendência, sem que haja possibilidade de retorno. Nosso tempo é este e nele estão as possibilidades do país e não em uma imagem edulcorada de si mesmo, projetando uma especialização passiva e fugaz diante do mundo. (Revista Será – 09/09/2016)
Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp
Fonte: pps.org.br