Revista Será
Sérgio C. Buarque: A milícia do presidente
O presidente Jair Bolsonaro parece inspirar-se no seu grande desafeto ideológico, o populista autoritário presidente Nicolás Maduro (que sucedeu o falecido coronel Hugo Chavez) na missão muito bem sucedida de destruição da Venezuela. Os dois decretos assinados por Bolsonaro, facilitando a posse de armas de fogo pela população, é um instrumento a mais de formação de grupos armados, que pode levar à escalada de violência e intimidação na política brasileira.
A simplificação do acesso a volumes mais amplos de armas, fora do controle das Forças Armadas, facilita o armamentismo dos grupos criminosos que atuam e controlam amplas áreas das cidades brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro (narcotraficantes e milicianos), e permite a formação das milícias bolsonaristas com os fanáticos seguidores do presidente. Esta é a intenção de Bolsonaro. “Eu quero todo mundo armado!”, disse ele mais de uma vez. Quando diz isso, Bolsonaro sabe quem vai comprar armas e organizar pequenos arsenais: os caçadores e atiradores (autorizados a comprar até 60 armas sem necessidade de autorização do Exército), numa fachada para todo tipo de criminoso e fanatismo político.
O governo autoritário da Venezuela, segundo declaração recente de Maduro, já conta com “3,3 milhões de milicianos organizados, treinados, armados e dispostos a defender a união da Venezuela”. O dado é exagerado, segundo especialistas, mas esta Milicia Nacional Bolivariana supera em muito os 123 mil homens do contingente das Forças Armadas. Este é o povo armado dos sonhos de Bolsonaro, milicianos bolsonaristas, para copiar, no Brasil, o modelo bolivariano de intimidação e violência política contra os adversários, que mantém o governo no poder, apesar da devastadora crise econômica, social e política.
Mas o presidente brasileiro diz que pretende armar o povo brasileiro porque não quer uma ditadura. Logo ele, que não cansa de defender e louvar a ditadura militar brasileira, e que afirmou, lá atrás (1999), que o Brasil só iria mudar “quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil!”
Raul Jungmann tem razão quando adverte, em carta aberta aos ministros do STF-Supremo Tribunal Federal, que os decretos de Bolsonaro que facilitam o acesso a armas estimulam uma guerra civil no país. “Ao longo da história, diz ele, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão”.
O povo armado nunca serviu à democracia. Muito pelo contrário, empurra a política para o terreno pantanoso da violência, substitui os argumentos e a negociação política pela disputa armada, quebra o monopólio da força pelo Estado, e permite a formação de milícias e exércitos partidarizados. Tem sido assim na Venezuela de Chavez e Maduro. Pode vir a ser assim também no Brasil, se Bolsonaro continuar com seu projeto de armar o “seu” povo para o enfrentamento político que se avizinha com as eleições de 2022, lembrando que, seguindo o exemplo de Donald Trump, ele já antecipou que podem vir a ser fraudadas, se ele não for reeleito.
O mais absurdo e chocante desta iniciativa armamentista de Bolsonaro é o seu lançamento num momento em que morrem cerca de mil brasileiros por dia por Covid-19, em grande parte por conta de sua irresponsabilidade na condução (ou ausência de condução) da política sanitária do Brasil. Já são mais de 250 mil mortos, que se somam às 60 mil vítimas anuais de homicídios, quase sempre por arma de fogo. O presidente Jair Bolsonaro é o senhor das armas, e parece ter um desprezo especial pela vida dos brasileiros.
*Economista com mestrado em sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? É membro do Movimento Ética e Democracia.
Elimar Pinheiro do Nascimento: O governo Bolsonaro terminou. Será?
Na grande imprensa, nas redes sociais e em alguns meios políticos e intelectuais, reina um clima de que o governo acabou. Sérgio Abranches, analista político da rádio CBN, fala do último suspiro do Bolsonarismo. Marcio Coimbra, conhecido defensor da política externa brasileira, aventa a possibilidade do Bolsonaro não chegar ao segundo turno. O conhecido cientista político Marco Aurélio Nogueira propugna que a Nação necessita de um impeachment, tema que chegou às ruas no dia 23 de janeiro, depois de estar nas redes com o chamado “Fora Bolsonaro”. Chegou de forma fraca e dividida. Meus colegas, analistas políticos, dizem que, com a retirada do benefício emergencial, o apoio do Presidente na opinião pública despencará. Enfim, o fim do governo Bolsonaro estaria apenas começando.
A necessidade moral e cívica de retirar tal figura do poder é inquestionável. E muitos têm se pronunciado a respeito. Contudo, para retirar alguém do poder não basta o sentimento de indignação de alguns, mesmo se eles são muitos. É necessário preencher várias condições políticas. Queria que meus colegas tivessem razão, mas desconfio que não.
Sem dúvida que há indícios de fragilidade do governo. As pesquisas de opinião da Exame/Ideia indicam que seu governo era apoiado, em dezembro, por 35% da população, subiu para 37% em meados de janeiro e agora (20/21 de janeiro) despencou para 26%. As pesquisas do DataFolha vão no mesmo sentido. Em dezembro, 32% achavam seu governo péssimo ou ruim, agora são 40%. Por sua vez, os que achavam que o governo era ótimo ou bom caiu de 37% para 31%.
Como fatores dessa mudança soma-se à retirada dos benefícios, ainda não plenamente sentida, o escândalo de Manaus e a péssima gestão da pandemia. Mesmo o início da vacinação deixou o governo em maus lençóis. Ele foi obrigado a começar com a vacina que o presidente disse que não compraria. Começou depois, e graças ao governador de São Paulo. Na quebra de braço entre João Dória e Bolsonaro aquele venceu por 7 a 1. Mas, essa foi uma batalha, a guerra ainda terá muitas.
Também no âmbito das FFAA seu prestígio parece em declínio, assim como entre os grandes empresários. Finalmente, seu grande apoio internacional, Trump, se foi. Não apenas derrotado, mas repudiado por grande parte da opinião pública americana e internacional, pelo incentivo e financiamento do assalto ao Capitólio.
Todos os indícios supracitados são reais e consistentes. Porém, há indícios contrários. Não há possibilidade de impeachment a um presidente que tenha o apoio de um quinto ou um quarto da população (dificilmente Bolsonaro contará com menos de 20% de apoio na opinião pública). Aliás, um apoio dessa natureza a um governo tão desastroso é um enigma. Por outro lado, 53% da população brasileira, segundo o DataFolha de 23/01, são contra o impeachment do Presidente. Menos da metade é a favor (42%).
Ademais, o Presidente ainda tem alguns recursos importantes. Caso seja vitorioso (quase certo) na Câmara dos Deputados, os pedidos de impeachment, que já somam mais de 60, permanecerão na gaveta do presidente da Câmara. Por enquanto, salvo surpresas - na medida em que a votação é secreta - o seu candidato, deputado Artur Lira, líder do PP, e parlamentar com vários processos nas costas, será eleito. No Senado, sua aliança com o PT e o PSDB, aparentemente, já assegura a vitória ao seu candidato. Assim, ganhará força no Congresso. Pelo menos por enquanto. O que poderá lhe custar caro no futuro.
Congresso, aliás, que contribuiu decisivamente para a melhoria da imagem de Bolsonaro junto à população, mesmo os opositores, na medida em que elevou para 600 reais o valor do benefício emergencial, criado em função da pandemia (1). Ora, o candidato do Presidente no Senado, Rodrigo Pacheco (DEM/MG) defende a permanência desses benefícios, pois a pandemia perdura. Caso esta proposta seja vitoriosa, haverá milhões de beneficiados apoiando o Presidente. Claro que isso irá repercutir negativamente na economia, criando obstáculos à sua recuperação, com possibilidades de aumentar o desprestígio nascente no seio do empresariado e provocar cisões no Ministério da Economia.
Outra arma do presidente será a reforma ministerial, incluindo lideranças do Centrão no governo. Fala-se que serão oferecidos aos velhos políticos seis ministérios. Iniciativa que provavelmente consolidará sua base na Câmara dos Deputados. Com isso, as chances de impeachment chegam perto de zero. Salvo, se sua aprovação cair abaixo de 20%, levando os oportunistas do Centrão a retirarem seu apoio, como comenta Luiz Carlos Azedo, no Correio Braziliense (24/01/2021). Hipótese quase inviável. Alguns comentaristas inclusive perguntam, para que impeachment? Para colocar o general Mourão no poder, com risco, diz Lavareda, de ser reeleito presidente em 2022?
Pode-se argumentar que estas iniciativas quebram as principais promessas de campanha: combater a corrupção e renovar a política. Isso significará que sua base se vá? Não necessariamente. Uma parte de sua base já se foi com a saída de Moro e a péssima gestão da pandemia, além da aproximação com o Centrão. Mas, a parte majoritária permanece fiel, assim como a força nas redes sociais, somadas ao ganho de uma parte da mídia tradicional (Record, SBT).
Portanto, os indícios de que o governo esteja em seus estertores não são nada consistentes. Infelizmente. O bom disso tudo é que parte da sociedade civil organizada ou esclarecida começa a se movimentar. Ora, ocupar as ruas, as redes e os meios de comunicação é fundamental para desgastar o Presidente, e vencê-lo eleitoralmente. Sabendo que, nesse caso, haverá confrontos, inclusive armado. Por isso, desgastá-lo junto às mais diversas instituições, sobretudo junto às FFAA, é essencial.
*Elimar Pinheiro do Nascimento,sociólogo político e socioambiental, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília e do Programa de Pós-Graduação Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas
(1)O que não significa que se deveria ter recusado o benefício. Este é o dilema: trata-se de uma medida humanitária, indispensável, que beneficia aquele que ameaça a democracia. E no presente caso de prolongamento, destroça a economia nacional por de vez.
Luiz Sérgio Henriques: Entre o centro e o centrão
O Exército de Brancaleone.
Um governo como o de Jair Bolsonaro tem o caráter de desafio imprevisível e continuado. As provações a que submete a institucionalidade democrática se sucedem umas às outras, como num alucinante trem fantasma que não parece chegar nunca mais à estação terminal. Seria um tanto ofensivo invocar o cineasta Mario Monicelli, um convicto homem de esquerda, mas o fato é que a atual equipe dirigente lembra quase automaticamente a armata Brancaleone, com a arregimentação desregrada de militares, a trazer acentuadas preocupações sobre o papel das Forças Armadas, e a ação de um autoproclamado “núcleo ideológico” em guerra permanente contra a modernidade, praticamente confundida com o “comunismo”. A estes dois grupos, de resto conflagrados entre si, se acrescenta a cota bem nutrida dos incompetentes, ainda que, nisso tudo, as linhas de separação sejam muito difíceis de traçar.
Os otimistas sublinham a resiliência das instituições: elas não se submeteram ao assalto aberto, às manifestações subversivas, à tropelia das milícias reais ou digitais. O próprio presidente, num dado momento, sem abandonar a truculência verbal e as decisões irracionais, como na triste guerra das vacinas em que ora empenha seus generais e sua armata, passou a valer-se de modo mais regular dos poderes convencionais do Executivo. Passou a usar, em suma, a tal “caneta” cheia de tinta, não a Montblanc de antes, mas uma Bic incomparavelmente mais perigosa. No STF ainda não tomou assento o ministro “terrivelmente evangélico”, mas o primeiro voto importante do recém-empossado jurista conservador, confeccionado sob medida para aplainar o caminho do presidente do Senado e barrar o da Câmara, não deixa dúvida sobre o que se pode esperar.
O centrão amorfo, expressão consumada da “velha política”, reaparece com nobres e altas funções. Longe de ser exorcizado pelo refrão do samba de Bezerra da Silva, como se queria nos tempos “heroicos” da campanha eleitoral, agora está metamorfoseado na frente parlamentar que já funciona como dique contra qualquer impeachment e possivelmente, a partir de fevereiro de 2021, funcionará como suporte da agenda reacionária do governo, se derem certo os cálculos do estado-maior da armata. Dali para a frente, quem gritar “pega ladrão” irá encontrar, vai-se lá saber, uma pequena multidão de ministros e dirigentes acotovelados em secretarias e estatais, a cumprir ritos e preceitos franciscanos – não os do inquieto Papa argentino, mas os que, pondo de lado o disfarce das boas intenções, pavimentam o caminho de negócios e transações, muitas das quais tenebrosas, a julgar pelos precedentes.
Um ponto específico deve ser aqui mencionado. O ressurgimento em grande estilo do centrão, tal como desenhado nas pranchetas da batalha, implicará abrir brechas de demorada reversão nas fileiras de um centro parlamentar ordenadas a duras penas por gente como o deputado Rodrigo Maia. Nestas fileiras confluíram mais estavelmente, nos dois primeiros anos da legislatura, partidos como o DEM, o PSDB e o MDB, além de siglas menores, mas simbólicas, como o Cidadania. Vez por outra, uma boa surpresa: víamos parlamentares de outros partidos da centro-direita, relativamente desconhecidos, a opinar com lucidez sobre leis e medidas provisórias, demonstrando apreço pelo interesse público. De particularíssimo relevo, além disso, os variados canais de comunicação mantidos pela presidência da Câmara com a esquerda “pura e dura”, cuja representação, evidentemente, não é lícito ignorar.
A resultante de todo este esforço foi claramente, no primeiro biênio legislativo, uma Câmara e um Congresso capazes de tomar iniciativas, como no caso da reforma previdenciária e do auxílio emergencial, mas também, efundamentalmente, capazes de mostrar que seus destacamentos mais relevantes estavam firmemente postados nas trincheiras da institucionalidade. Em outras palavras, a construção de um centro parlamentar ativo, um valor em si mesmo, tornou possível algum contato produtivo com a(s) esquerda(s), garantindo o protagonismo do legislativo em certos casos e, em outros, o veto a nefastas proposições governamentais. Um resultado nada desprezível, se considerarmos o contexto de divisões, conflitos e até rancores que envenenaram a política e a nação nos últimos (muitos) anos.
Na renovação das mesas diretoras, em particular da Câmara dos Deputados, uma parte das esquerdas poderá escolher o caminho da candidatura própria, autodispensando-se de negociações e apregoando farisaicamente a própria nobreza de intenções. Conseguirá, assim, meia dúzia de votos e proclamará à sua maneira um lema de inspiração brancaleônica: pocos, pero sectarios. Outra parte poderá embarcar na atração fatal do carro governista – pois, nesta altura, pouca dúvida há de que, com a rearticulação congressual do centrão, volta a se animar a virulenta agenda destrutiva dos tais “conservadores cristãos” que constituem a alma populista deste governo. E não se trata de firulas ou pruridos: ninguém pode ignorar os pesados reflexos que teria sobre o cotidiano da população a aprovação de medidas que reduzam o âmbito e o escopo dos direitos humanos ou facilitem a disseminação ainda mais acentuada de armas e balas, para nada falar da tragédia ambiental em andamento.
Tudo isso pode estar certo, mas – dirão ainda – o centro parlamentar representado por Maia tem um lado negativo que impede alianças. É que ele também se fez protagonista de reformas liberais, e estas, na visão de uma certa esquerda, nunca são razoáveis nem passíveis de reparos legislativos que pelo menos atenuem a perda de direitos ou até ajudem a vislumbrar, e quem sabe afirmar, outros direitos de novíssima geração. Neste caso se afirmaria à esquerda uma posição de mera recusa, radical mas impotente. Uma impotência que se agravaria com o tempo, pois é certo que, além da agenda regressiva de valores, a troca do centro pelo centrão tornaria bem mais viável o liberalismo à la Guedes, por sinal um ingrediente bizarro que seria tremendamente injusto esquecer se de armata Brancaleone falamos.
Luiz Sérgio Henriques: Derrotar Trump, desconstruir o trumpismo
Não há possibilidade de escrever nem mesmo uma linha sobre política que não carregue consigo a alta tensão elétrica que nos rodeia e angustia. A atmosfera pesada em que temos vivido não se dissipará com o provável resultado favorável a Joe Biden nas eleições norte-americanas, e não só por causa do arsenal de chicanas que são o elemento vital de personagens como Donald Trump. Mais do que isso, a direita subversiva no poder – não podemos esquecer nunca que há outras modalidades de direita, que aderem aos valores constitucionais e, por isso, são participantes com todos os títulos do jogo democrático – sempre deixa como herança um terreno deliberadamente minado; e, como se sabe, minas explodem muito tempo depois de terem sido enterradas, estropiando e matando aleatoriamente. Continuaremos, por isso, a conviver com o perigo por tempo indeterminado.
O caso norte-americano é, na prática, um exemplo de manual, pronto para ser aplicado, ou reiterado ainda mais fanaticamente, em várias partes do mundo. Por mais que Trump e o Partido Republicano, remodelado ao seu feitio, tenham obtido resultados não previstos pela generalidade das pesquisas, o fato é que essencialmente lidamos com um líder e um agrupamento de vocação “minoritária”. Maiorias eleitorais, se e quando acontecerem, serão conquistadas a golpes publicitários, manipulação nas redes sociais, difusão organizada de fake news, tudo voltado para a exploração de medos e paranoias coletivas. Não se faz nenhum segredo quanto a isso.
Nunca é muito difícil achar bodes expiatórios contra os quais mobilizar artificialmente eventuais maiorias: a partir do judeu, o “outro” do Ocidente por excelência, podem-se inventar variados inimigos da raça superior ou da pátria excepcional. Houve um tempo, por exemplo, em que judeus e bolcheviques se misturavam e viravam alvo deste tipo doentio de imaginação; mesmo hoje, por trás dos tais “comunoglobalistas”, pode-se entrever a cauda repugnante do velho antissemitismo. E, como estamos no terreno resvaladiço do engodo, também não é complicado canalizar o ódio e o desprezo para outros portadores de estigma – para o imigrante, por exemplo, inclusive o de origem islâmica. Não se peça coerência e racionalidade ao moderno populismo de extrema direita: a linguagem do ódio é o seu meio, o objeto dela pode variar amplamente ao sabor do acaso.
Empregada como método, esta linguagem tem como resultado a regressão intelectual de amplas camadas da população e a consequente degradação da esfera pública. O que se busca é romper o nexo virtuoso entre participação e conhecimento, democracia e ciência, política e cultura. Seitas como QAnon, especializadas em caçar supostos pedófilos entre opositores políticos e até líderes religiosos, aparecem ruidosamente em cena, reivindicando voz e representação parlamentar. Para não falar, ainda no caso norte-americano, de milícias tão fortemente armadas que tornaram há quase duas décadas o “terrorismo doméstico” uma ameaça muito mais real e presente do que o extremismo jihadista ou qualquer outro extremismo.
Não é possível nos determos aqui nas vertiginosas mudanças “estruturais” que abalam as sociedades modernas e que, “em última análise”, como talvez ainda se possa dizer, condicionam fenômenos como os brevemente apontados. É inteiramente certo, porém, que estes últimos obedecem a uma dinâmica própria e gozam de ampla autonomia. É no contexto deles que vastas parcelas da população se mobilizam, muitas conjunturas eleitorais se definem, dificuldades econômicas e medos existenciais encontram uma explicação qualquer, por mais torta ou equívoca que seja.
O conservadorismo revolucionário – valha-nos o oxímoro – explora e aprofunda tais dificuldades; por definição, não pretende governar democraticamente os conflitos ou buscar alguma forma de recomposição social, mas sim afirmar um poder autocrático por sobre sociedades profundamente divididas ou mesmo dilaceradas em razão de situações agudamente críticas. Sequer uma circunstância pandêmica, como a que vivemos, “comove” este tipo de poder. A máquina econômica tem de seguir adiante inapelavelmente, como se não houvesse nada ao redor, e isso é tudo.
Se há algum consolo no drama que nos afeta, é que, pelo menos num plano mais imediato, não há maiores dúvidas para o diagnóstico: a crise do nosso tempo está toda contida na oposição entre democracia política e subversão de direita (bem entendido, a “direita revolucionária”). Neste sentido, os democratas americanos, até o momento, agiram magnificamente em meio às dificuldades sabidas. Bem verdade que, dado o bipartidarismo vigente naquele país, a montagem da amplíssima frente necessária para barrar a reeleição de Trump constituiu um assunto interno dos próprios democratas, o que em tese terá facilitado suas ações ao longo da campanha pré-eleitoral.
O resultado alcançado diz muito: Joe Biden e Kamala Harris não são um mero biombo atrás do qual se escondem perigosos socialistas e comunistas, mas, antes, a expressão de um centro forte e pragmático, capaz de atrair os republicanos tradicionais que não se submeteram a Trump. E desta vez, ao contrário de 2016, a própria esquerda partidária, representada entre outros por Bernie Sanders, parece ter entendido a dimensão da aposta em jogo: sem ocupar o centro político, só pode haver proposições virulentas e minoritárias, cujo método de ação é o caos, a demagogia, a manipulação. Em suma, só pode haver, e nos seja perdoada nova expressão paradoxal, leninismos de esquerda e de direita, todos os dois muito aquém dos requisitos da política contemporânea e portadores de soluções autoritárias.
Vencer eleitoralmente é, pois, a tarefa imediata rumo à recuperação de um mínimo de equilíbrio e sanidade. Desarmar as minas retardatárias do trumpismo e seus avatares mundo afora é outra história, muito mais complexa, que nos ocupará por muito tempo nos Estados Unidos e nos outros países do Ocidente político, o que inclui obviamente o Brasil.
*Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, foi um dos responsáveis pela mais recente edição das “Obras” de A. Gramsci (Civilização Brasileira), em 10 volumes. Preparou, em particular, as Cartas do cárcere. Em colaboração com Giuseppe Vacca, coordenou o livro Gramsci no seu tempo (Fundação Astrojildo Pereira, 2019, em segunda edição). Dirige, nesta Fundação, a coleção Brasil & Itália, com duas dezenas de livros publicados. Sua atividade de tradutor tem como eixo difundir a cultura democrática e socialista italiana. Há 10 anos é colaborador regular de O Estado de S. Paulo, uma colaboração de que resultou o volume Reformismo de esquerda e democracia política (Verbena & FAP, 2018).
Sérgio C. Buarque: Decrescimento? O que é isso?
Durante o lockdown da China, no início deste ano, fotografias da Nasa mostravam a purificação do ar nas grandes cidades chinesas poupadas da emissão de poluentes, evidenciando a relação direta entre o nível de atividade econômica e a degradação do meio ambiente. Apesar da bela e inspiradora foto, o mundo torcia pela recuperação da economia chinesa, pelos negócios que gera e pelos milhões de empregos que dependem do crescimento econômico da China. Dados os atuais níveis de produção e consumo, a estrutura produtiva e o padrão tecnológico dominante, o aumento do PIB provoca uma elevação proporcional da pressão sobre o meio ambiente. A desejada recuperação da economia chinesa vai continuar degradando a natureza e emitindo gases de efeito estufa, embora o governo chinês esteja fazendo um esforço sério de recuperação e moderação das pressões antrópicas no país.
Os padrões produtivos e tecnológicos não são constantes e estão mesmo atravessando, neste século, mudanças profundas que, no geral, tendem a reduzir o impacto ambiental, ou pelo menos, conter a marcha desesperada para o abismo. Ainda muito insuficiente, é verdade, mas está em curso uma transição energética para novas fontes renováveis, inclusive na China, emergindo novas alternativas de uma economia verde e atividades de baixo carbono, acelerando inovações tecnológicas que amortecem as pressões antrópicas, e aumentando a participação na estrutura produtiva do setor Serviços de baixo impacto ambiental. Tudo isso reflete o aumento da consciência ambiental no mundo e o debate técnico e político alimentado por diferentes proposições e negociações.
Desde a década de 90, quando as Nações Unidas lançaram a proposta de desenvolvimento sustentável e, mais recentemente, com as pesquisas e o debate em torno das mudanças climáticas, vem crescendo a preocupação mundial com a degradação do meio ambiente e, ao mesmo tempo, com a pobreza e a exclusão social no planeta[1]. O conceito de desenvolvimento sustentável parte da compreensão de que o modelo econômico atual está destruindo a natureza e de que são necessárias reorientações profundas na produção, no consumo, na tecnologia. A proposta se sustenta na correlação e busca do equilíbrio dos pilares equidade social, conservação ambiental e crescimento econômico, mesmo sabendo que existem tensões entre eles e que, por último, dependem de escolhas políticas.
Excetuando o troglodita que preside a maior economia do mundo, que tem uma das mais altas emissões de gases de efeito estufa, o mundo está tomando consciência da necessidade de reestruturação da economia e geração de inovações tecnológicas que permitam evitar uma catástrofe. O Acordo de Paris, com compromissos de quase todos os países do mundo com metas de redução das emissões, não é modesto, embora ainda apenas parcialmente efetivado. O cumprimento das metas de redução da emissão dos gases de efeito estufa deve levar mais à redefinição da estrutura produtiva e inovações tecnológicas, na direção de uma economia verde, que, propriamente, à redução do PIB dos países de mais alta renda. Na União Europeia, vanguarda mundial por uma economia limpa, mostra resultados excepcionais: entre 1990 e 2018, o PIB europeu cresceu 61%, enquanto as suas emissões de gases de efeito estufa diminuíram em 23%.
O problema é político porque, em última instância, as boas propostas, inclusive a ideia de desenvolvimento sustentável, dependem da sua cristalização em decisões que se incorporam nas ações de Estado. O mesmo cidadão que defende o meio ambiente não aceita mudar seu estilo de vida, diferentes grupos de interesse não aceitam mudar os padrões de produção e de consumo, impedindo decisões políticas transformadoras.
Recentemente, tem surgido na literatura um outro conceito – decrescimento – pretendendo superar a proposta de desenvolvimento sustentável, que destaca a impossibilidade de crescimento da economia diante dos limites da natureza. De acordo com Elimar Nascimento, decrescimento “consiste em nos libertarmos da ideologia do crescimento contínuo, que funda a irracionalidade da degradação ambiental promovida pelo modelo econômico vigente” [2]. Como está explícito no conceito (ou slogan?), trata-se de promover um decrescimento do PIB-Produto Interno Bruto mundial, já que o “modelo econômico vigente” é irracional e degrada o meio ambiente. A ideia de desenvolvimento sustentável do decrescimento, ao contrário, não rejeita, em princípio, o crescimento econômico, definindo, contudo, que este deve ser condicionado ao propósito maior de equidade social e conservação do meio ambiente. Neste sentido, aponta para uma mudança do “modelo vigente” e não para um decrescimento da economia que caberia no modelo que parece inabalável. O reducionismo do decrescimento parece dizer: “reduzam o crescimento que o planeta aguenta este modelo predatório”.
Rigorosamente, não existe um determinismo nem uma correlação rígida entre crescimento econômico e degradação ambiental. A segunda lei da termodinâmica que define o processo de entropia (dissipação de energia e desorganização da matéria), citada por Elimar, pode ser compensada em sistemas complexos e não lineares, como o planeta e a biosfera, pelo que Edgard Morin chamou de “tendência para a organização, para a complexidade crescente, isto é, para a neguentropia”[3]. Ou, como diz Capra, “o universo vivo evolui da desordem para a ordem, em direção a estados de complexidade crescentes”[4]. Claro que existem limites, mas nada que se possa considerar como um dado definitivo, atemporal e irredutível, como define a lei da termodinâmica.
Entendendo o planeta como um ser vivo e dinâmico, os “limites físicos” dependem de múltiplos fatores econômicos, sociais, tecnológicos e políticos. Os limites do crescimento analisados pelo Clube de Roma no final dos anos 60 (The Limits to growth) eram bem diferentes dos atuais limites físicos da natureza, mais amplos, em alguns aspectos, e até mais estreitos em outros, considerando inclusive o que já foi degradado. Nada disso significa que a natureza aguenta e se recupera de qualquer pressão antrópica. Significa que o planejamento do desenvolvimento sustentável tem que compreender o comportamento dinâmico da natureza e regular a economia, estimular a inovação e organizar a sociedade para a conservação do meio ambiente, sem a qual, a própria capacidade da economia entra em colapso.
A China tirou 800 milhões da pobreza por conta de um acelerado crescimento econômico às custas de forte degradação ambiental. O resultado social foi espetacular, mas o custo excessivamente elevado, comprometendo a qualidade de vida dos chineses e mesmo a capacidade de permanência da dinâmica econômica. A escolha política é questionável, mas não se pode ignorar que o resultado foi possível apenas por conta do crescimento da economia e, portanto, elevação da renda. Claro que nos países de alta renda não existe “necessidade” de crescimento da renda para assegurar qualidade de vida e mesmo equidade social. E, na verdade, a maioria desses países já tem taxas de crescimento muito baixas por razões econômicas e demográficas. Entretanto, para tirar dois bilhões de excluídos da pobreza no mundo com os atuais padrões de produção, matriz energética, tecnologia dominante e nível de consumo será previsível um dramático impacto de degradação da natureza. E como é eticamente inaceitável que o mundo continue convivendo com tamanha exclusão, é necessário perseguir um novo estilo de desenvolvimento que permita elevar a renda (distribuindo, evidentemente, nos países de baixa renda) sem degradar o meio ambiente e sem manter ou ampliar as desigualdades sociais. Para isso, é necessário um Estado com capacidade de regulação da economia e com volume de recursos suficientes para o provimento de serviços públicos de qualidade para a população. E como a questão é global – tanto o meio ambiente quanto a desigualdade de renda – é necessário intensificar as negociações entre as nações e fortalecer as instituições multilaterais que lidam com a questão do desenvolvimento sustentável.
O slogan de decrescimento (é assim que definem, segundo Elimar) não agrega nada ao conceito de desenvolvimento sustentável e ainda confunde a opinião pública, na medida em que tenta disputar os espaços de debate de ideias com visão sustentada pela redução da economia. Em um modelo de desenvolvimento com o Estado orientando a produção, estimulando a inovação e influenciando nos padrões de consumo é possível haver crescimento do PIB com equilíbrio social e sem degradação do meio ambiente. Vale lembrar, por outro lado, que um Estado com poder regulador e com capacidade de investimento no provimento de serviços públicos depende do desempenho da economia para a elevação da receita pública.
Quando propõe “planejar um decrescimento que nos conduza a outro estilo de vida”, o conceito de decrescimento parte do econômico e assume, de partida, a redução da produção econômica e, claro, da renda, para conduzir a outro estilo de vida. É reducionista e poderia levar ao contrário: já que reduzimos a pressão antrópica pela redução do PIB, é possível conservar o estilo de vida. O inverso é mais abrangente e transformador: definição de uma estratégia de construção de outro modelo de desenvolvimento que seja capaz de harmonizar equidade social (ideia que não aparece no conceito de decrescimento) e crescimento econômico dentro dos limites da conservação ambiental.
Finalmente, de acordo ainda com Elimar, os formuladores da ideia de decrescimento têm a “ousadia (…) de propor superar a economia de mercado e o capitalismo”. Superar a economia de mercado significa, em termos concretos, a estatização dos meios de produção, o planejamento centralizado e o controle do Estado sobre a rede de comercialização. As experiências “ousadas” de superação do mercado têm sido acompanhadas de dramáticas consequências econômicas, sociais e, particularmente, ambientais, como a degradação de enormes proporções do meio ambiente na União Soviética.
O mundo não precisa de novos conceitos, menos ainda desta ideia reducionista de decrescimento, que confunde o debate e a definição de políticas e acordos globais. O conceito de desenvolvimento ainda é o grande referencial para construção do futuro, e ganha amplitude e convencimento quando incorpora o compromisso com a sustentabilidade e articula os objetivos de equidade social, conservação ambiental e crescimento econômico.
Notas
[1] Mesmo antes, nos anos setenta do século passado, Ignacy Sachs defendia um novo modelo de desenvolvimento que chamou de ecodesenvolvimento, que consistia na mesma busca de uma economia contida pela capacidade de reprodução da natureza.
[2] A análise a seguir está baseada na interpretação do conceito de decrescimento apresentada por Elimar Nascimento no Ensaio “Algumas notas sobre a origem do Decrescimento” publicado na Revista Será? de 2 de outubro de 2020.
[3] Morin, Edgard. O paradigma perdido: a natureza humana, 3ª ed., Lisboa, Publicações Europa-América, s. d. (Biblioteca Universitária) – citado em Buarque, Sérgio C. Construindo o desenvolvimento local sustentável – metodologia de planejamento. 3ª Edição, Editora Garamond, Rio de Janeiro, 2006.
[4] Capra, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos”, São Paulo: Cultrix/Amana-key, 1996 – citado em Buarque, Sérgio C. Construindo o desenvolvimento local sustentável – metodologia de planejamento. 3ª Edição, Editora Garamond, Rio de Janeiro, 2006.
*Sérgio C. Buarque, economista com mestrado em sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? É membro do Movimento Ética e Democracia.
Luiz Sérgio Henriques: O erro histórico de Fernando Henrique Cardoso
Pode-se divergir, e muito, do político Fernando Henrique, especialmente quando no exercício da presidência viu-se às voltas, como qualquer eleito, com os desafios normais da governança que não poupam ninguém de erros, falhas e fracassos. Dificilmente, porém, se poderá desconsiderá-lo na sua atividade posterior: concluídos os dois mandatos presidenciais, continuaria a ser figura influente sem que insinuasse uma volta extemporânea ao cargo, como se o País dele, e de mais ninguém, dependesse para “se salvar”. Caso raro, pois, de ex-presidente que se impôs como referência, passível obviamente de críticas e observações polêmicas – até mesmo aquelas que o tornaram uma espécie de encarnação do “neoliberalismo” na simplificada, mas eleitoralmente rendosa, versão petista.
Seu artigo “Reeleição e crises” (O Globo/Estadão), publicado na véspera do dia da Independência, mereceu mais do que a habitual atenção. Nele, FHC faz um inédito “mea culpa” sobre a emenda da reeleição, “historicamente um erro”. Reafirma a insuficiência dos mandatos executivos de quatro anos e propõe um mandato único de cinco, sem direito a recondução, possivelmente associado a reformas de outro tipo nos demais mecanismos eleitorais (o voto distritalizado). O pressuposto de fundo está contido na frase: “Imaginar que os presidentes [qualquer presidente, não só Bolsonaro – LSH] não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade”. E a expectativa é que, confortados com a duração maior dos mandatos, os mandatários procurariam nela acomodar as pretensões de entrar para a História pátria, diminuindo o empenho demagógico que hoje empregam para obter um segundo termo.
Reformas constitucionais são um tema que nos convida a pensar intensamente sobre nossas relações com os governantes e as instituições. No caso brasileiro, a sucessão de PECs tem um lado inevitável, dado o caráter analítico do texto constitucional. Um defeito fruto do tempo, provavelmente, mas não insanável. Feitas com zelo, longe das armadilhas do casuísmo, podem até ter o condão de aproximar a população do texto magno, fazendo compreender cada vez mais sua relevância na vida de todos. E neste ponto, a nosso ver, reside o pecado de nascença da reforma reeleitoral de 1997, que à época pareceu ter sido feita sob medida para beneficiar o incumbente e espantar o fantasma da candidatura Lula.
Às reformas desse tipo aplica-se o que se diz da mulher de César. Não podem estar a serviço de ninguém nem parecer que estão. Deixando de lado a questão da “compra de votos”, que o ex-presidente repele com serenidade, o fato é que em 1997 agiu-se de modo apressado e insuficiente, o que sempre constitui terreno fértil para hipóteses mais ou menos mal-intencionadas. Fernando Henrique escreve ter tido em mente o que acontece nos Estados Unidos, onde notoriamente o ciclo presidencial bem-sucedido compreende, em princípio, dois mandatos de quatro anos, articulado com mandatos legislativos de dois (para os deputados) e quatro anos (para os senadores). Um ciclo que se repete exitosamente há mais de dois séculos com uma só exceção, a saber, o caso singularíssimo de um grande presidente, F.D. Roosevelt. Colhido pela morte no início do quarto mandato, Roosevelt representou uma mudança na regra não escrita de uma só reeleição, mudança que o legislador expressamente proibiria a partir de uma das raras emendas feitas à Constituição de 1787.
Apressada e insuficiente, a emenda de 1997 esqueceu-se de prever este limite precioso: a impossibilidade de o presidente, cumpridos os dois termos, voltar a candidatar-se para um cargo eletivo, um limite que a nosso ver traz uma contribuição, ainda que não suficiente, para renovar as elites políticas e, muito especialmente, para atenuar as pretensões salvíficas com que se embriagaram, e se embriagam, tantos personagens da nossa História. Repúblicas presidencialistas, como se sabe, inspiram-se em última análise em figuras monárquicas, só que com prazo de validade, mas há quem, no exercício da presidência, julgue-se coroado com mais e maior pompa do que no tempo dos reis…
Um último argumento – o de que incumbentes dilapidam as arcas do Tesouro para obter o segundo mandato – não pode ser descartado sem comentário. Argumento forte, que se baseia na ideia de que nem todos os presidentes se comportam como estadistas; ao contrário, muitos deles têm uma visão medíocre e convencional, mesmo que tenham sido referendados pelas urnas. Um governante medíocre, de fato, sempre será capaz de mudar de rumo e de prosa, contrariar convicções antigas (se é que as tinha de verdade) para renovar o cargo e manter-se no poder. Tudo o mais é instrumental. Seria desta natureza, segundo FHC, a relação entre o atual presidente e o seu ministro da Economia, cujo liberalismo, originalmente rançoso e carunchado, viu-se em seguida atropelado pelos fatos e pelas circunstâncias, limitando-se hoje a viabilizar intenções reeleitorais.
Cabe observar que, na falta daquela cláusula contra as pretensões salvíficas e os respectivos salvadores da pátria, o mesmíssimo assalto ao Tesouro pode acontecer sob mudada aparência. Não custa lembrar que a década perdida – efetivamente perdida – que se inicia em 2011 teve logo antes de si um ano de superaquecimento econômico deliberada e artificialmente induzido, para favorecer não um projeto pessoal de reeleição, mas um mandato-tampão que prepararia – tanto quanto se podia prever à época – o retorno triunfal, em 2014, do “melhor presidente que este país já teve”. Logo, medidas de contenção do uso e abuso do poder de Estado nas conjunturas eleitorais devem ser pensadas em todas as direções, não só naquela indicada pela recandidatura do incumbente.
Depois da mencionada campanha de 2010, arrebentadas as contas fiscais, exaurida a capacidade de coordenação e planejamento público, o que se seguiria é a tragédia que ainda transcorre sob nossos olhos, com o advento de um messias inacreditável, uma economia em frangalhos e uma sociedade atormentada por níveis inéditos de barbárie. Tudo isso condimentado com a possibilidade, aberta pela reforma de 1997, da reiteração de atores, enredos e desfechos no iminente encontro marcado de 2020 e, mais ainda, no de 2022.
*Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, foi um dos responsáveis pela mais recente edição das “Obras” de A. Gramsci (Civilização Brasileira), em 10 volumes. Preparou, em particular, as Cartas do cárcere. Em colaboração com Giuseppe Vacca, coordenou o livro Gramsci no seu tempo (Fundação Astrojildo Pereira, 2019, em segunda edição).
Marco Aurélio Nogueira: Reposicionamento e impasse
O ministério da Economia divulgou em 24 de agosto três programas básicos voltados para a área social: Renda Brasil, Carteira Verde Amarela, Minha Casa Verde Amarela. A convicção é que eles impulsionarão a retomada do crescimento, via monetização da assistência, criação de empregos e financiamento habitacional.
O governo tenta se reposicionar no mercado. Os programas já existem com outras designações e não estão claras as alterações a serem feitas, nem de onde virão os recursos para custear a nova versão. Há o teto de gastos e ainda está para ser equacionada a questão do auxílio emergencial (pago em decorrência da pandemia), que hoje beneficia 64 milhões de pessoas. Não se sabe como se chegará ao Renda Brasil, que terá caráter mais permanente. A equipe econômica fala em extinguir programas sociais e suprimir o abono salarial para obter receita e o presidente diz que não quer “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.
O impasse desgasta, em vez de fortalecer. Aprofundou-se uma rota de colisão que a rigor estava desenhada ainda na campanha de 2018, quando o ultraliberal Paulo Guedes aliou-se a Jair Bolsonaro. A convivência foi mantida enquanto não entrou no radar a disposição eleitoral do presidente, que resolveu antecipar a tentativa de reeleição em 2022. Como observou com precisão o cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, o disparo do radar mostrou que “Guedes quer entregar resultados ao mercado econômico-financeiro e Bolsonaro quer ofertar mercadorias no mercado político-eleitoral”.
Uma pacificação que deixe o barco singrar mansamente até 2022 parece pouco provável, mesmo que os bombeiros entrem em ação e apaguem as labaredas que ardem no relacionamento do presidente com seu ministro. De novo Paulo Fábio: “Se se deseja esse avanço será preciso apelar à inteligência artificial da política. Se o processo correr solto, deixado aos apetites naturais, bolsonarismo político e liberalismo econômico precisarão se separar para viverem suas vidas em liberdade. Cada qual buscando novo par no repertório já testado no campo que lhe é mais estranho”.
Bolsonaro deu um xeque em Paulo Guedes. Suspendeu a criação do Renda Brasil e exigiu que uma nova proposta fosse apresentada a toque de caixa. Chamuscado, o ministro se fingiu de morto e retrucou: “As coisas são assim mesmo: a economia é o cara que faz o papel de mau, e a política é o cara que faz o papel do bom”.
A bagunça fez a tensão crescer no Planalto.
O governo não tem de onde tirar dinheiro, mas quer usar os programas sociais para politizar a relação com a população mais dependente de assistência. De olho nas eleições de 2022, Bolsonaro cobiça o eleitorado do Norte e Nordeste, tido como estratégico. Não pode, por isso, aumentar impostos ao bel-prazer da equipe econômica. Sabe que precisa conter a sangria de votos da classe média, que já é acentuada, ao mesmo tempo em que precisa fidelizar a população mais pobre, o que tem tentado com o auxílio emergencial e os acenos para a repaginação do Bolsa Família. Em ambos os caso, o ultraliberalismo de Guedes é dissonante e não tem serventia.
A trombada do presidente com a equipe econômica deixou mais evidente a ausência de consensos e articulação.
O quadro é agravado pela inconsistência das propostas cozinhadas no Ministério da Economia, que não se apoiam num planejamento estratégico básico e reiteram uma opção fiscalista que colide com a já pesada carga tributária, hoje na casa dos 33% do PIB, além de atritar os planos eleitorais do presidente.
No cenário atual, qualquer proposta do Executivo que chegar à Câmara será modificada e não obedecerá à cartilha governamental. Como disse a deputada Tabata Amaral (PDT-SP), “não haverá adesão” a nenhum programa: “Tenho uma preocupação muito grande de que a criação de um projeto de renda básica não signifique nenhuma perda de direito para a população”. Vindas com as digitais de Paulo Guedes, as propostas encontrarão dificuldades.
Além da conhecida falta de visão social, o ministro da Economia não tem qualidade para atuar como negociador. É um criador de problemas, se não mesmo o próprio problema. Sugere fechar a Farmácia Popular, eliminar deduções do Imposto de Renda, recriar a CPMF e criar novos tributos. Fala muito, mas executa pouco.
O fator Guedes
Paulo Guedes é conhecido na praça. Não foi por acaso que chegou ao governo Bolsonaro. Seu radicalismo neoliberal compôs-se sem dificuldade com o autoritarismo do presidente. O “Posto Ipiranga” deu a Bolsonaro um programa mínimo com que caminhar para além da guerra cultural contra a democracia, os liberais e as esquerdas. Esta contribuição um dia será cobrada, pois não há indícios sólidos de que a política de Guedes fará o País crescer a taxas suficientes para a vida melhorar como um todo. A pandemia é um agravante, mas não explica o fracasso.
O programa de Guedes apoia-se numa visão tosca de mercado e livre concorrência. É hostil aos trabalhadores e a políticas sociais de proteção e distribuição de renda. Caminha de costas para os temas ambientais e não está nem aí para o desmatamento amazônico. É uma forma de autoritarismo econômico, combinado com egoísmo e darwinismo social. Não tem, por isso, dificuldade de conviver com o bolsonarismo.
Tudo isso implica um custo social elevado. Quem pagará a conta das “maldades” antissociais e da inação governamental? Paulo Guedes enviou ao Congresso uma proposta de reforma tributária sugerindo 12% de impostos para os serviços, 6% para os bancos. Igrejas, partidos e fundações — que em tese não exercem atividade econômica – ficariam isentos. Por baixo do pano, para piorar, a ideia é recriar a CPMF, agora com novo nome e voltada taxar “transações eletrônicas”, típicas da vida digital.
Pode-se admitir que as propostas do ministério da Economia carregam no remédio com o propósito de abrir negociação. Depois serão suavizadas. Faz parte do jogo, mas chama atenção a crueldade que está nela embutida. Drenar recursos dos mais pobres e poupar os mais ricos, com a desculpa de transferir recursos para os pobríssimos, via uma rebatizada Bolsa Família, é uma perspectiva perversa e pouco lógica. Os economistas do governo acenam, também, com uma perspectiva de “desoneração da folha”, que já foi vetada pelo presidente meses atrás. Ninguém sabe bem como ficará.
Guedes é desses casos perdidos na política nacional. Não é economista brilhante, fez carreira como operador financeiro e sempre manifestou desprezo pela economia do setor público. Seus olhos brilham quando se apresenta como guardião do mercado. Sua competência, porém, nunca foi verdadeiramente posta à prova. Desde que passou a integrar o governo fala muito em reforma, mas não entregou nada até agora. É um péssimo negociador, mercurial e sem estofo político.
Em busca do eleitor
O governo trata como assentado que a população mais carente está à disposição dos governantes de plantão. Esse tem sido um caminho trilhado por governos anteriores. A “ocupação” político-eleitoral feita pelo PT no Nordeste, por exemplo, não evitou o impeachment de Dilma, nem garantiu sobrevida sólida ao petismo. No caso de Bolsonaro, pode ser ainda mais complicado, levando-se em conta que ele não dispõe de estrutura partidária e se move por meios de redes, que nem sempre são acessíveis à população de menor renda.
O governo deseja disputar o eleitorado nordestino, que pode de fato estar novamente disponível depois da crise do PT. Mas não há certeza de que conseguirá isso, em parte porque o eleitorado pode não ser tão “cativo” quanto se imagina, e em parte porque os estados do Nordeste são, na maioria, governados por partidos que se opõem a Bolsonaro.
As propostas anunciadas pelo ministério da Economia repõem o conflito entre o fiscalismo de Paulo Guedes e o desenvolvimentismo, bandeira ora desfraldada por Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional, que saiu do PSDB e migrou de mala e cuia para o governo Bolsonaro. Colidem também com a movimentação eleitoral do presidente. O Estado está mal das pernas, a tentação de cortar gastos é enorme e a tesoura de Guedes é seletiva e particularmente hostil à situação da maioria da população. O bolsonarismo, e em especial o presidente, não tem um programa claro nem uma “teoria” sobre o País que deseja governar. O impasse, portanto, é gritante.
Precisamente por isso, Bolsonaro tenta se equilibrar em duas canoas, dando sinais contraditórios e sem saber qual estrada seguirá até 2022. Não é propriamente uma demonstração de força. E ele sabe disso.
E a oposição?
Em um ambiente de crise externa e de tensão interna ao governo, seria o caso de dar como certo que as oposições crescerão em protagonismo. Não é, porém, o que se tem.
O jogo não está sob controle delas. Os interesses reunidos no bloco que sustenta Bolsonaro seguem pautando a política. O extremismo ideológico do presidente parece a cada dia mais incomodado com o ultraliberalismo de Guedes, mas algum arranjo poderá acalmar a situação. Pesquisas de opinião, favoráveis ao governo, fornecem oxigênio adicional para o continuísmo. A paralisia domina as forças do centro e da esquerda, com exceção do DEM, graças ao ativismo institucional de Rodrigo Maia. O PT reitera sua permanente disposição de fazer carreira-solo e os demais partidos somente praticam o jogo miúdo. Há pouco esforço de agregação e articulação que comece a pavimentar a pista para 2022.
Não é difícil compreender que, mantidas a disputa e a dispersão no terreno do centro e da esquerda, sem a interpelação da sociedade civil e sem a incorporação dos dissidentes bolsonaristas, 2022 será uma repetição, corrigida aqui e ali, do que houve em 2018.
O diagnóstico de Paulo Fábio Dantas Neto vai ao ponto: “DEM e PT podem delimitar (não centralizar) um campo democrático de grande política. Precisam entender-se sem demora e de modo objetivo, na direção de adubar terreno para futura aliança no segundo turno de um 2022 que há um mês parecia longínquo e hoje já se impõe às agendas dos atores. Esse entendimento entre pontas pode envolver pactos de não agressão e mesmo de cooperação, sem a obsessão paralisante da frente única a qualquer preço. Mesmo que em cada um dos dois eixos o processo se afunile para uma unidade do respectivo campo – e mesmo que esse afunilamento transborde, como é desejável, para abarcar atores outsiders positivos e se conectar a uma nova sociedade civil – sem um realismo programático orientado a uma grande política ainda mais aberta, o horizonte de eventuais candidaturas relevantes tende a ser a disputa para chegar ao segundo turno e ter a primazia de perder por último”.
Esse é o nervo da questão política atual. E é para ele que precisam convergir as atenções e energias dos democratas.
*Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista-UNESP.
Cristovam Buarque: Água, livros e votos
Ainda não inventamos um sistema melhor do que a democracia para servir aos interesses do povo de uma nação, mas ela confunde as necessidades do povo no futuro com a soma dos interesses dos eleitores no presente: metade mais um dos indivíduos de hoje representando o todo no amanhã. Embora a democracia ainda seja o melhor dos sistemas, há momentos em que a soma dos indivíduos não representa, necessariamente, o conjunto deles, como nação. A democracia é o neoliberalismo na política. Um exemplo é a fala do Ministro da Economia dizendo que os livros são bens de consumo dos ricos e, portanto, é justo e democrático taxar os livros: cobrar dos ricos para que eles leiam e paguem para que os pobres tenham água para beber. Ele tem razão na lógica democrática e na justiça imediata: temos pobres sem água em casa e temos ricos lendo enquanto bebem água fresca. Ele tem razão na medíocre visão do neoliberalismo político, do imediato e dos indivíduos.
Nesta lógica, leitura é para ricos, água para os pobres, hoje e sempre, por isto ele não analisa a justiça de ensinar o povo, desde criança, a ler e gostar de ler. Na visão da política democrática neoliberal do eleitor individual e o contribuinte atual, não há justificativa para o eleitor pobre pagar para que o rico se embriague no vício da leitura, nem o rico pagar para o pobre virar leitor. Porque para ele, não existe o conceito de povo leitor, nem isto é visto como indicador de riqueza e progresso. Por isto ele se sente um paladino da justiça e do progresso ao defender o que nos parece absurdo, impostos mais altos para livros.
Mas muitos leitores, escritores, editores, são contra este aumento de imposto, sem defender e lutar para que a leitura deixe de ser um privilégio. Na visão do povo-leitor, não apenas eleitores e ricos, deveria lutar por programas de rápida erradicação do analfabetismo. Por uma estratégia para transformar o Brasil em um país de leitores, todos lendo, graças a uma escola com a máxima qualidade e igual para todos. Para implantação de uma rede de bibliotecas, inclusive domésticas, financiadas com recursos públicos e com acervo de um bilhão de livros.
Desde quando, para calar a boca do ministro, lutam para que a leitura não seja um consumo, alguns consideram um vício, de rico, como tomar uísque? No máximo defende-se pequenas políticas positivas em prática há décadas para minúsculos, sem o salto para termos uma escola de qualidade entre as melhores do mundo e a qualidade igual para todos: independente da renda e do endereço. Com resultados concretos na formação de uma sociedade leitora, ávida por livros. Deixa assim ao ministro a chance de dizer, com lógica, o absurdo que ele disse: “ler é um privilégio de quem lê”.
Com a lógica da democracia neoliberal do eleitor, sem considerar o povo e sem ver o país adiante. O neoliberalismo econômico vê o livro como bem de consumo, não a leitura como vetor de riqueza estética, de ampliação da eficiência econômica e do horizonte de liberdade. Lógica também dos que se opõem à medida do ministro, mas querem livros baratos para os mesmos que já leem, sem propor a construção de um povo de leitura.
A imbecilidade do ministro tem lógica e não é só ele que pratica esta lógica: a democracia vista como o governo a serviço de cada indivíduo, não a serviço da nação, e sem uma liga com o futuro. Não temos uma liga moral com os não leitores e nem com a lógica econômica, não percebermos que o custo do livro não é só imposto, é também o resultado das tiragens baixas em um idioma de raros leitores.
A imbecilidade do ministro está na moral, ele não vê a importância da leitura nem tem sentimento de povo e de transcendência histórica que vai além do imediato. Mas também lhe falta inteligência contábil para saber que são tão poucos os leitores, que aumentar imposto sobre livro empobrece o país e não ajuda a equilibrar as contas públicas. Estamos divididos entre pobres que não leem e leitores que não veem. Não percebem que os pobres não leem por falta de dinheiro, mas sobretudo por falta de alfabetização e educação de base que promova o gosto e a capacidade de ler. Se todos lessem, os livros ficariam baratos e as bibliotecas seriam como bolsões de oxigênio cultural.
Temos que enfrentar o neoliberalismo anti-leitores de Guedes, mas distinto do neoliberalismo social de manter os benefícios apenas para os poucos leitores que temos. Precisamos barrar livros, este imposto contra a riqueza cultural, lembrando que Guedes é um detalhe grotesco de uma política anti-leitura de séculos no Brasil. Devemos aceitar impostos sobre os leitores ricos, mas não sobre a leitura, penalizar os bens de luxo que eles compram, mas não tratar livros como luxo… salvo talvez alguns que o ministro leu. São estes impostos sobre os bens de luxo, que não são livros, serem usados para baratear os livros, até também com menos impostos sobre eles, mas sobretudo com melhores escolas para todos, inclusive os filhos de ricos que também estão deixando de ler.
Mas o Guedes não é o primeiro a querer propor esta troca: por décadas, decidiu-se enfrentar a desigualdade regional levando água, não leitura, para o Nordeste. Certo que água é mais urgente para a sobrevivência, mas não transforma a sociedade. Porque a água, como impostos sobre livros, pode dar votos, mas não enriquece o povo, não ensina a votar, nem faz perene o fluxo de água e demais bens e serviços que o povo precisa, inclusive sua liberdade.
*Cristovam Buarque, ex-senador (Cidadania-DF), professor Emérito da Universidade de Brasilia (UnB)
Marco Aurélio Nogueira: O vírus, a era global e a oportunidade que se abre
Se conseguirmos suportar o impacto da doença e não formos muito atrapalhados por governantes inescrupulosos, o vírus será controlado. A pandemia, porém, deixará marcas profundas
Pandemias já houve muitas na história. Todas produziram abalos e levaram a grandes transformações. Mas nenhuma foi como está sendo a do novo coronavírus.
A gripe espanhola (1917-1918), “a mãe de todas as pandemias”, foi uma variante mutante do vírus Influenza. Os cálculos sugerem que de 30 a 40% da população mundial foram infectados, com cerca de 50 milhões de mortes. Só no Brasil morreram 35 mil pessoas. Os números são imprecisos, mas indicam bem a letalidade da doença.
Antes dela houve a epidemia da cólera (1817-1824), que matou milhares de pessoas em praticamente todos os continentes. Causada por uma bactéria intestinal, a doença continua produzindo estragos pelo mundo, especialmente onde faltam condições básicas de saneamento básico e higiene.
A “peste negra”, a peste bubônica, causada por uma bactéria presente em ratos pretos assolou o norte da Europa e atingiu a China, o Oriente Médio e a Rússia, entre 1347 e 1352. Calcula-se que provocou mais de 25 milhões de mortes, ou seja, cerca de 1/3 da população europeia à época.
Depois da gripe espanhola, o mundo foi periodicamente sacudido por doenças pandêmicas. Quanto mais o mundo se integrou e manteve acesas as turbinas do produtivismo, mais os problemas se tornaram comuns a todos. Em 1957 houve a Gripe Asiática (2 milhões de mortos), dez anos depois a Gripe de Hong Kong (H3N2), que matou 1 milhão de pessoas, em 2009 foi a Gripe Suina (H1N1), que chegou a 187 países e provocou cerca de 300 mil mortes. De 1980 em diante, mais de 20 milhões de pessoas morreram devido a complicações da AIDS, causada pelo vírus do HIV, transmitido sexualmente. Uma epidemia trágica, ainda sem cura ou vacina.
O que há de diferente na pandemia do novo coronavírus?
Primeiro de tudo, ela é a primeira pandemia de uma época categoricamente global. Coincide com a expansão dos mercados, a porosidade das fronteiras nacionais, o desenvolvimentismo produtivista e antiecológico, a alta mobilidade e a circulação intensa das pessoas. Tudo isso facilita enormemente a que o vírus se espalhe. A própria estrutura complexa da vida atual, com seus componentes de fragmentação e individualização, contribui para que tudo reverbere com intensidade e meio fora de controle. Há risco, insegurança, incertezas, que se integram à experiência da vida cotidiana e fazem, entre outras coisas, com que todas as decisões se tornem dilemáticas. Ao mesmo tempo, vamo-nos dando conta do que há de intolerável e inadmissível no modo como vivemos: a desigualdade, o racismo, a miséria, a falta de condições dignas de existência, o desperdício, à agressão ao meio ambiente.
A época também é de crise da política e da democracia representativa. Isso abre buracos complicados entre os cidadãos, os legisladores e os governantes, dificultando a que as decisões tomadas no vértice estatal repercutam positivamente na vida comunitária. Os cidadãos desconfiam de seus governos e tendem a problematizar tudo o que parte deles. Recusam-se a obedecer, em nome de suas verdades e da convicção de que os governantes nada mais são do que “politiqueiros”. Sem uma dose mínima de “obediência”, uma pandemia como a do COVID torna-se quase impossível de ser debelada.
Como lembrou Byung-Chul Han, filósofo coreano que vive em Berlim, uma das vantagens dos asiáticos é que eles aceitam com facilidade a autoridade do Estado e suas ordens. Estariam mais predispostos a aceitar um Estado autoritário, que procede por tecnologia da informação e controles digitais. É um recurso de sobrevivência, mas também pode ser a porta de entrada de formas ditatoriais e não democráticas de organização da comunidade política, com controles permanentes sobre tudo e todos.
Em segundo lugar, a pandemia atual convive com redes e trocas frenéticas de informação. Isso, por um lado, é excelente, pois facilita a comunicação e a cooperação entre médicos, pesquisadores e cientistas. Ter dados disponíveis e acessíveis é uma poderosa ferramenta de conhecimento e gestão. A malha digital e a inteligência artificial são preciosas seja para monitorar ameaças, seja para debelá-las.
Por outro lado, porém, essa nova estrutura de informação e comunicação promove a produção incessante e a disseminação de notícias falsas, boatos e mentiras, que geram confusão e dificultam a gestão do problema. É o que a OMS chamou de “massivo infodêmico”, algo como um vírus que espalha desinformação e ideologias regressivas, anticientíficas e irracionais. No caso concreto do COVID-19, ativistas desse tipo – humanos e robôs, sistemas programados para disparar mensagens – estão na dianteira do “negacionismo” obscurantista (recusando-se a reconhecer a pandemia, o aquecimento global e até a curvatura da Terra) e da pregação de saídas nacionalistas hostis ao entendimento entre os Estados.
O COVID-19 irrompeu num momento de exuberância científica, de conhecimento ampliado, de reconhecimento do valor da ciência e de suas aplicações na área médica e sanitária.
Se os humanos conseguirem suportar o impacto inicial da doença (o confinamento) e não forem prejudicados por governantes inescrupulosos, que manipulam politicamente o problema e duvidam de sua gravidade, é de esperar que o vírus seja controlado. A vida, porém, não será mais a mesma. A pandemia deixará marcas profundas na experiência humana individual e coletiva, afetando a economia, o modo como se trabalha, os relacionamentos, a política.
O sistema produtivo conhecerá crise profunda, agravando ainda mais o mundo do trabalho, muita coisa nova surgirá, os desafios serão grandiosos. Será difícil que o neoliberalismo se reponha e uma nova versão do Estado social baterá às portas. Em meio a dor e medo, poderá se abrir uma oportunidade para que se comece a por em xeque o desenvolvimentismo produtivista, com sua cegueira ecológica, climática, ambiental, sua voracidade predatória. Poderá ser um bom momento para que se recupere a ideia, tão mal aproveitada antes, de “sustentabilidade”.
O problema é que falta uma alavanca que faça a roda reformadora girar: política democrática, programas de ação, agentes organizados que unifiquem os cidadãos e pautem os governos. Há um “vazio” existencial e político que impede a materialização de propostas democráticas consistentes. Caso não se reverta essa situação, a pandemia causará um efeito negativo adicional: levará à acomodação dos interesses dominantes e à reprodução (modificada em maior ou menor grau) do desenvolvimentismo prevalecente, com sua voracidade destruidora.
Poderá até ser pior. Em vez de reformas para frente, a pandemia poderá impulsionar o ressurgimento do “nacionalismo”, das pulsões “patrióticas”, em detrimento dos esforços de articulação internacional, a imposição do unilateralismo no lugar do multilateralismo. O que levará de roldão a democracia e parte importante do que há de humanismo, fraternidade e liberdade na experiência moderna.
*É professor titular de Teoria Política da Unesp
Revista Será?: Interdição por insanidade
Se ninguém notou ainda, vai uma informação importante: o Brasil não tem presidente. Com o poder equivalente a um chefe de Estado, temos uma biruta desorientada e autoritária, que resiste até a acompanhar o movimento dos ventos, quando muito, imita os movimentos transloucados do homem mais arrogante e poderoso do mundo. A Constituição prevê impedimento do Presidente da República em caso de crime de responsabilidade, mas os constituintes não poderiam imaginar que alguém chegasse à presidência da República com visível quadro de insanidade mental e demência crescente.
Quando confunde a opinião pública com medidas e discursos desencontrados, em direta contradição com a competente atuação do Ministro da Saúde, e mesmo com a definição de iniciativas na área econômica, quando minimiza a gravidade da pandemia, com desprezo pelos que, não sendo atletas como ele, podem ser sacrificados para manter a economia (apenas dois dias depois de decretar calamidade pública), Jair Bolsonaro está cometendo um crime de responsabilidade.
A discussão sobre a melhor alternativa para combater o Covid-19 – contenção ou mitigação – pode ser válida. Mas um governo tem que decidir o caminho que vai seguir, e não pode apostar no confronto solitário do chefe de Estado com seus ministros e com todos os governadores estaduais. Rigorosamente, ele poderia ser enquadrado no inciso VI do Artigo 85 da Constituição, que explicita como crime de responsabilidade atentar contra a “segurança interna do País”.
Mas, embora não esteja previsto na Constituição, o caso de Bolsonaro é mais psiquiátrico que político, mesmo assim de dramáticas consequências sociais, econômicas e políticas. A melhor solução para os desatinos de Jair Bolsonaro é a convocação de uma junta médica qualificada que, seguramente, atestaria sua incapacidade mental (para não falar da grave deficiência intelectual) para exercer o poder máximo de chefe de Estado do Brasil. Certo, a Constituicão não prevê a interdicão por insanidade mental. Mas estamos diante de uma emergência. E a maior calamidade nacional chama-se Jair Bolsonaro.
João Rego: Que Democracia é esta?
Vejo, com frequência, pessoas duvidando de que estamos em um regime democrático, com um olhar crítico e cético sobre os partidos políticos, onde um grupo de caciques, quase todos com relações promiscuas com o grande capital – principalmente em períodos pré-eleitorais – dominam o jogo político. Como é possível confiar em tais mecanismos de representatividade, diante de tanto descalabro? Ou então lançam dúvidas sobre o poder judiciário: “Ah! Esse STF, sempre tomando decisões ao sabor de interesses inacessíveis para nós, pobres mortais!” Isto, sem falar na brutal desigualdade social que, impermeável ao tempo, singra em nossa história, qual uma nave dos insensatos, parindo, geração após geração, uma população de desassistidos, com destino já selado pela inacessibilidade ao ensino de qualidade, principal mecanismo para romper os grilhões da vulnerabilidade social.
Democracia, um valor universal – principalmente após a queda do Muro de Berlim – é o legado cultural de uma nação. O nosso é um legado de valores políticos, marcado por regimes autoritários, capitalismo de compadrio, que vê o Estado como mais um património para suas estratégias empresariais, onde a corrupção é a palavra-chave para implementá-las, cavando, de forma profunda, a perversa vala das desigualdades.
E nós, cidadãos comuns, com seu cotidiano ocupado pelo trabalho, os impostos e a família, qual é o nosso papel nesse negócio chamado democracia? Ironicamente, somos sujeito – quando damos forma à classe política, por meio do voto – e objeto, ou vítima, se preferirem, quando temos nossas vidas – do nascimento até a morte – afetadas por decisões dessa elite política que escolhemos para nos governar. E por que países como Noruega, Suécia e outros, como as grandes democracias europeias, nos parecem funcionar tão bem? A resposta, se é possível resumir em uma variável, vem da formação da cultura política de seu povo, forjada a ferro e fogo, tendo o cidadão no centro do processo decisório, e o Estado menos vulnerável ao acossamento das elites. Isso não cai do céu, é uma conquista permanente!
Com as manifestações de rua de junho de 2013, algo de muito importante começou a acontecer. Setores da sociedade civil foram às ruas marcar, de forma violenta, sua insatisfação contra o status quo. Depois, na esteira da Operação Lava Jato, vieram as manifestações em favor do impeachment de Dilma, dando, de quebra, espaço a extrema direita. O bolsonarismo é uma onda antidemocrática que, surfando nas ondas do antipetismo, chega ao poder com o que há de mais abjeto em um sistema político: a intolerância à diversidade humana e o uso da violência contra tudo aquilo que lhes é diferente. Estes dois atributos são seus principais “recursos intelectuais”.
A este fenômeno – a guinada abrupta do eleitorado saltando de um petismo corrupto para uma direita neomedieval-, dei o nome de “o pêndulo da irracionalidade”.
Foram nossas escolhas que moldaram este cenário de extrema dificuldade para o ambiente democrático. As instituições estão sendo testadas no limite, e caberá a nós, eleitores, fazermos as escolhas que ajudem a quebrar essa danosa polarização entre lulistas e bolsonaristas, substituindo a paixão irracional que dividiu o país pela racionalidade – fazendo uso da razão para distinguir onde estamos sendo capturados pela falsas narrativas ideológicas – elevando a qualidade das nossas escolhas nas próximas eleições.
Sim, vivemos em plena democracia, nossa democracia, brasileira como a feijoada e a jabuticaba, com todas as severas limitações de eleitores e líderes, e um Estado oneroso, ineficiente e corporativista, os quais, em conjunto a fazem funcionar. E será com ela que teremos de seguir nossa história, pois sem ela instala-se o caos e a barbárie do autoritarismo, já experimentado por nós, décadas atrás. No autoritarismo, fenecem os valores civilizatórios, os partidos e a sociedade civil são esmagados pelo peso da bestialidade humana, concentrada na mão do tirano.
Luiz Otavio Cavalcanti: Fim do Brasil
O Brasil findou. Ou melhor, um certo Brasil. O Brasil de Covas, Ulysses, Pedro Simon, Marina Silva, Tancredo Neves, José Guilherme Merquior, Celso Furtado, Darcy Ribeiro. A árvore, que produziu esses frutos, chamava-se pau-brasil. Foi trabalhado por Mario de Andrade, Manuel Bandeira e Tarsila do Amaral. Deu também outro tipo de frutos: Sérgio Cabral, Garotinho, Eduardo Cunha, Aécio Neves, José Dirceu. E Marcelo Odebrecht.
Um Brasil desigual. Mas um Brasil com uma cultura específica, impregnada de respeito a dois valores universais e tropicais: diversidade e liberdade. Valores humanísticos, brasileiros, telúricos e vinculados a nossos desvarios.
A diversidade acolhendo alegremente a arte de Grande Otelo, o som de Pixinguinha e o senso social de Zeca Pagodinho. A liberdade exercida em duas direções construtivas: a direção de Juscelino Kubitschek, do poder para as corporações. Anistiando generosamente os revoltosos de Jacareacanga e Aragarças. E a direção da dupla Ulysses / Tancredo, da coragem contra o poder, dueto tático enfrentando as botas cansadas de regime fragilizado em si próprio.
Era bela costura. Apesar da inflação obscena de dez por cento ao mês. Só extinta pelo talento de economistas brasileiros. No Plano Real. Apoiado por um presidente correto, irrequieto, Itamar Franco. Depois, veio a frustrada proposta ética do PT. Na vertente necessária de uma social democracia tropical. Acalentada no berço acadêmico da USP com os tucanos. E na simbiose síndico-católica de metalúrgicos e padres.
A história do pau-brasil pode ter sido escrita com níveis variados de consciência cívica. Na inspiração de movimentos políticos e sociais que se antagonizavam. Mas obedeciam, desde a geologia dos tupinambás, a uma concepção humanista de estrelas em céu aberto: consolidar nação democrática nas veias estancadas da América Latina. E afirmar projeto cultural moreno ao Sul do Equador. Mesclado de resiliente criatividade. E de sedutor requebro vindo de percussivo sol africano.
Apesar de desvios e da corrupção, esse perfil político apoiava quatro objetivos contemporâneos. Que colocavam o Brasil na soleira da modernidade: primeiro, a sustentabilidade ambiental na defesa da Amazônia; segundo objetivo, a escola de Anísio Teixeira isenta de cultos para confirmar o Estado laico; terceiro objetivo, a valorização da Constituição como única saída viável para resolver impasses políticos; e, quarto, a liberdade de imprensa como pilar da democracia.
Este era o quarteto do pau-brasil que se assumia moderno no pensar e no agir: sustentabilidade, Estado laico, respeito à Constituição e imprensa livre.
Mas, eis que somos intimados a uma angustiante viagem ao atraso. Num imprevisto processo de autodesconstrução. Pela ordem:
1. O governo subtrai estruturas fiscalizadoras em unidades administrativas que impediriam queimadas na floresta;
2. O governo queda-se inerte, perdido, sem ter definido, a esta altura de novembro, o planejamento estratégico da educação brasileira. Como está assentado no relatório dos deputados Rigoni e Tabata.
3. Um representante do clã oficial anuncia a restauração do AI 5 recuperando calunioso atentado à racionalidade institucional;
4. O presidente da República ameaça rede de comunicação com a revogação da concessão por causa de uma reportagem que contrariou o príncipe.
A capacidade de resistir do pau-brasil é histórica. Sobreviveu nos silêncios do patriarca, José Bonifácio. Reinaugurou-se em 32 com a bravura dos paulistas. Foi reiterada em 45 com o livrinho do general Eurico Dutra. E, em 1985, com adágio a várias mãos, civis e militares, passando por estremecido leito do Hospital de Base, em Brasília.
A alma do Brasil traz esperança esperta. Imprevisível. Tecida no gênio de brasileiros que nos lembram do tamanho intelectual do país: de Oscar Niemeyer a Cícero Dias; de Machado de Assis a Glauber Rocha; de Gilberto Freyre a Florestan Fernandes; de Tom Jobim a Nelson Freire.
Quando o destempero dos insensatos quiser abalar nossa crença no pau-brasil, lembremos o recurso que não nos faltará: o talento dos brasileiros.