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Revista online | Muito além da Selic
Henrique Mendes Dau*, economista, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição)
A recente animosidade entre o presidente Lula e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, despertou um velho e mal resolvido debate na sociedade brasileira: o papel da taxa de juros. As principais instituições de excelência e os mais renomados economistas entendem que a política monetária tem efeito neutro sobre a economia no longo prazo. Ainda assim, há um ruidoso debate sobre o assunto. O objetivo deste artigo não é fazer uma defesa de qualquer uma das duas posições defendidas, nem mesmo opinar sobre as decisões de política monetária que observamos no Brasil de hoje. O intuito é chamar atenção para o fato de que esta discussão sobre política monetária é desnecessariamente barulhenta e estamos negligenciando discussões muito mais urgentes.
Essencialmente, a riqueza de um país é a soma da produtividade de cada indivíduo. A produtividade é uma função de muitas variáveis, como regras tributárias, qualificação da mão de obra e investimentos. A discussão sobre a taxa de juros é ambígua, pois juros menores estimulam investimentos, mas tendem a desvalorizar o câmbio e prejudicar a importação de bens intermediários, fundamentais para o desenvolvimento das atividades econômicas domésticas. Nos países desenvolvidos, observamos juros baixíssimos. Seria esse um argumento contra a elevação da Selic? Não, pois o fato de que os países ricos tendem a ter juros baixos não implica que sejam ricos por esse motivo. O Brasil tem inflação alta, e a elevação da Selic é o principal instrumento de contenção das pressões inflacionárias, que, dentre outros males, agrava a desigualdade e gera estagnação econômica. Entretanto, a apreciação cambial subsequente pode reduzir a competitividade das exportações nacionais.
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Fica evidente que todos os caminhos possíveis apresentam pesos e contrapesos, explicitando a complexidade do assunto. É claro que os bancos centrais utilizam sofisticados modelos econômicos para estimar os efeitos da política monetária e tomar decisões ótimas. Ainda assim, não é um exercício trivial e está sujeito a muitas imprecisões, além de envolver preferências subjetivas que podem gerar conflitos políticos. Diante das ambiguidades inerentes à política monetária, devemos nos concentrar em soluções estruturais para elevar a produtividade e combater a inflação. Como dito antes, a produtividade depende de fatores que vão além da taxa de juros. Precisamos lembrar que a economia é formada por indivíduos, os quais dedicam tempo para trabalhar. Se pagar impostos for uma tarefa árdua, tempo e energia que poderiam ser ocupados com atividades produtivas são desperdiçados com tarefas que não geram riqueza. Da mesma maneira, se a educação vai mal, os indivíduos produzem menos e assim por diante. Além disso, se a elevação da taxa de juros é um instrumento de combate à inflação, devemos buscar entender os motivos para que o país padeça desse mal e como resolvê-lo.
Os problemas econômicos do Brasil são de natureza estrutural e exigem reformas profundas em diversas áreas. Segundo dados do Banco Mundial, o Brasil é um dos países com maior complexidade tributária do mundo, o que além de desperdiçar tempo e recursos, leva à distorção dos preços relativos. Tornou-se corriqueiro para o Estado conceder benefícios tributários a grupos de interesse sob o pretexto de contribuir para o desenvolvimento de um determinado setor. Nesse processo, cria-se a sensação de que a atividade desonerada é mais atraente do que de fato é, induzindo os agentes a empreenderem de forma ineficiente e tornando o país mais pobre no longo prazo.
A complexidade tributária também é responsável pelo oceano de contencioso tributário e infindáveis disputas judiciais entre empresas e governo sobre a interpretação dos valores devidos, algo que afeta substancialmente a segurança jurídica brasileira. Com relação à educação, o Brasil não vai nada bem. Segundo dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), o país ocupa a 63ª posição em leitura, a 66ª em matemática e a 59ª em ciências, em um ranking com 77 países. Como consequência desse cenário, enquanto um trabalhador americano produz 74 dólares por hora trabalhada e um francês, 66 dólares, em 2020, a produtividade brasileira foi de 28 dólares. A irresponsabilidade fiscal agrava esse cenário. Gastos excessivos e medidas inconsequentes, como a PEC dos Precatórios, contribuem tanto para a elevação artificial da demanda, como para a desvalorização cambial, ambos causadores de inflação. Até mesmo políticas sociais mal calibradas podem prejudicar justamente os mais pobres, como é o caso do Auxílio Emergencial, cujo elevado valor levou a aumentos de preços nos locais onde havia maior concentração de beneficiários.
A explicação para que os países desenvolvidos gozem de baixas taxas de juros está relacionada à instituições fortes, que não cedem a pressões de grupos de interesse, e à qualificação da mão de obra. Isso proporciona um ambiente fértil para a alocação eficiente de recursos em atividades econômicas altamente produtivas, exercidas por indivíduos qualificados. Além disso, o controle fiscal garante que não haja inflação, evitando a necessidade de taxas de juros que atrapalhem o surgimento de novos investimentos no país. O Brasil precisa de reformas em questões como a tributária, a fiscal e a educacional. Essas são as discussões que deveriam tomar as capas dos jornais e o debate público, em vez do excessivo debate sobre política monetária, que embora seja importante, certamente não é a solução para os nossos desafios.
Saiba mais sobre o autor
*Henrique Mendes Dau é economista pelo Insper, diretor executivo da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro de 2023 (52ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da revista.
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Revista online | E agora, Darcy?
Cristovam Buarque*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
Quando Darcy nasceu, o Brasil acabara de criar sua primeira universidade, a população ainda era quase toda analfabeta, fazia apenas 34 anos da abolição, raros brasileiros estavam na escola, quase nenhum terminava a educação de base. Darcy dedicou sua vida para mudar isto, como professor e político. No seu centenário, o Brasil tem 50 milhões de crianças matriculadas em 200 mil escolas, 8 milhões de estudantes universitários, 150 mil deles em cursos de pós-graduação. Foi um longo caminho, mas ainda temos 3 milhões que não se matricularam, 10 milhões de analfabetos, apenas metade de nossos jovens terminaram o ensino médio, poucos deles com o conhecimento necessário para o mundo contemporâneo. Avançamos, aumentando as brechas educacionais entre os ricos e os pobres e entre o que ensinamos e o que o mundo atual exige que uma pessoa saiba para estar plenamente integrada nele.
Confira, a seguir, galeria de imagens:
Se estivesse vivo, Darcy teria como tarefa ajudar o Brasil a garantir a alfabetização de todos os brasileiros para o mundo contemporâneo e eliminar a desigualdade que divide nosso sistema educacional em “escolas casa grande” e “escolas senzala”. Transformar o sistema com qualidade média entre os piores do mundo, e provavelmente o mais desigual, conforme a renda e o endereço da criança. Deveria lutar para colocar nossa educação entre as melhores do mundo, adaptada à realidade destes tempos, e para quebrar esta desigualdade: construir um sistema no qual o filho da mais pobre família tenha acesso a uma escola com a mesma qualidade que o filho da família mais rica. Que se diferenciassem depois pelo talento, persistência e vocação, mas não conforme a renda dos pais ou a sorte de uma rara escola pública, em geral federal.
Todos concluindo o ensino médio sabendo falar, ler e escrever muito bem nosso idioma; sendo fluente em pelo menos um idioma estrangeiro; conhecendo as bases da geografia, história, filosofia, ciências, matemática; informado sobre os problemas da atualidade; capazes de usar as modernas técnicas digitais e lidar com a inteligência artificial; tendo consciência solidária com a humanidade e a natureza; dispondo de um ofício profissional que lhe assegure as ferramentas para ter emprego e renda e mudar nosso país e o mundo, fazendo-os melhores e mais belos.
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Para tanto, Darcy, que foi o relator da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), deveria ir além desta e de outras leis homeopáticas e ajudar a criar um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base. Levaria o Brasil a tratar a educação de suas crianças como uma questão nacional, não mais municipal; criar um ministério próprio para a educação de base, uma carreira federal para os professores, com os maiores salários do setor público, bem formados e avaliados regularmente; construir prédios escolares com a máxima qualidade entre as edificações governamentais; equipar as escolas com os mais modernos instrumentos pedagógicos; adotar horário integral em todas as escolas, assegurando que todo aluno concluirá o curso médio com um ofício profissionalizante.
Ele nos deixou sua inspiração e desafio. Para levarmos adiante esta “Missão Darcy”, o governo federal precisa definir uma estratégia durante a qual federalizaria paulatinamente os sistemas municipais. Ao ritmo de 100 a 200 cidades por ano, em 25 a 30 anos, comemoraríamos os 130 anos de Darcy Ribeiro com todo o Brasil dispondo de um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base, com todas as escolas de mesma qualidade, não importando a renda ou o endereço do aluno, cada uma com a mesma qualidade das melhores do mundo.
Sobre o autor
*Cristovam Buarque foi reitor da Universidade de Brasília (UnB) de 1985 a 1989. Foi governador do Distrito Federal de 1995 a 1998 e eleito senador pelo DF em 2002. Atuou como ministro da Educação de 2003 a 2004, no primeiro mandato de Lula. Foi reeleito em 2010 para o Senado pelo DF, com mandato até 2018.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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Revista online | Veja lista de autores da edição 46 (agosto/2022)
*Edmar Bacha é o entrevistado especial da revista de agosto (edição 46). Ele é sócio fundador e membro do conselho diretor do Instituto de Estudos em Política Econômica/Casa das Garças. Membro das Academias Brasileiras de Ciências e de Letras. Em 1993/94, foi membro da equipe econômica do governo, responsável pelo Plano Real.
*A Fundação Astrojildo Pereira detém os direitos da reportagem especial da edição 46: Monkeypox reacende alertas sobre estigma e homofobia.
*Lilia Lustosa é autora do artigo Elvis eterno. É crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
*Renata Costa é autora do artigo Por que as políticas públicas de leitura são fundamentais. É ex-secretária do Plano Nacional do Livro Leitura (PNLL), gestora do projeto Palavralida e conselheira de Estado de Cultura do Rio de Janeiro
*Kennedy Vasconcelos Júnior é autor do artigo Representatividade negra na política. É coordenador do Igualdade23 de Minas Gerais. Primeiro Secretário na empresa Conselho Municipal de Cultura de Juiz de Fora – Concult-JF.
*Arlindo Fernandes de Oliveira é autor do artigo A Câmara dos Deputados nas eleições de 2022. É consultor legislativo do Senado Federal e especialista em direito constitucional e eleitoral.
*Delmo Arguelhes é autor do artigo A tópica anticomunista na linguagem fascista. É doutor em história das ideias (UnB, 2008), com estágio pós doutoral em estudos estratégicos (UFF, 2020. Coordenador do Grupo Geopolítica e Governança Oceânica do CEDEPEM (UFF/UFPel). Autor do livro Sob o céu das Valquírias: as concepções de honra e heroísmo dos pilotos de caça na Grande Guerra (1914-18).
*Henrique Brandão é autor do artigo 2013: ecos que reverberam até hoje. É jornalista e escritor.
*Mayra Goulart é autora do artigo Ressentimento e reação conservadora: sobre eleição histórica. É professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCS/UFRRJ). É, ainda, coordenadora do Laboratório de Partidos Eleições e Política Comparada (LAPPCOM).
*Benito Salomão é autor do artigo Artificialismos econômicos. É economista-chefe da Gladius Research e doutor em Economia pelo Programa de Pós-Graduação em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia (PPGE-UFU).
*A Fundação Astrojildo Pereira detém os direito do editorial da revista de agosto (edição 46): A presença da sociedade civil
*Marcelo S. Tognozzi é o autor do artigo Pobreza sem fronteiras. É jornalista e consultor independente. Fez MBA em gerenciamento de campanhas políticas na Graduate School Of Political Management - The George Washington University e pós-graduação em Inteligência Econômica na Universidad de Comillas, em Madri.
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Revista online | Artificialismos econômicos
Benito Salomão*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
Com a proximidade das eleições e a flagrante e persistente desvantagem de Bolsonaro nas pesquisas, o governo se mexeu para produzir um “pacote de bondades” com vistas a tentar atenuar, pelo menos a curto prazo, o sofrimento em curso no Brasil. As medidas, no entanto, já conhecidas pelo eleitor brasileiro, são artificiais e tendem a produzir uma meia melhora em curtíssimo prazo na economia brasileira, a custa de desequilíbrios macroeconômicos futuros.
A atividade econômica prevista para o ano de 2022 está melhorando. As projeções do Boletim Focus do Banco Central indicam que o crescimento do PIB deve ser acima de 2%. A ser confirmado, tal resultado indicaria uma atividade melhor do que o ocorrido na última década, cuja média de crescimento do PIB foi próxima de 0%. Entretanto, um crescimento de 2% é extremamente baixo para um país de renda média como o Brasil e deve ser limitado ao ano de 2022, o que desperta a atenção para a insustentabilidade do nosso padrão de crescimento do tipo “voos de galinha”.
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A realidade social do Brasil não será transformada, nos próximos 20 anos, se o crescimento econômico não for capaz de sustentar uma taxa média de 4% ao ano neste período. Ou seja, a taxa atual de crescimento prevista pelo Focus, ainda que melhor do que as previsões feitas no início de 2022, continua sendo medíocre e incapaz de proporcionar expansão do bem-estar social no país. Um crescimento do PIB médio de 1% ou 2%, virá acompanhado da manutenção de níveis elevados de desemprego, desalento, pobreza e fome. Ou seja, trata-se da perpetuação do contexto econômico atual.
Alívio semelhante está ocorrendo no lado nominal da economia. A inflação de 2022 não será de 9%, como as previsões apontavam antes da aprovação da PEC dos combustíveis. Agora, diante desse novo cenário do ICMS, a inflação será próxima a 7%, quase o dobro da meta prevista para o ano. Nem de longe um IPCA de 7%, caso ocorra, indica uma inflação baixa e, ainda assim, está se dando à custa de um nível de preços maior em 2023.
Existe um elevado teor de artificialismo na queda da inflação em curso no Brasil. Parte da elevação de preços decorrente neste ano se deu devido a choques de oferta clássicos sobre os preços de petróleo e energia. Tais choques, no entanto, são apenas temporários e tendem a se dissipar ao longo do tempo. O governo combateu um choque temporário de preços do petróleo com uma mudança permanente no ICMS dos combustíveis que trará inúmeras consequências indesejáveis.
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A limitação da capacidade de arrecadar dos Estados desorganiza o equilíbrio federativo no Brasil, pois o ICMS é uma das principais fontes de receitas próprias dos governos estaduais. Isso tende a repercutir negativamente no caixa dos municípios, particularmente os de médio e grande porte, que, por determinação constitucional, recebem parte (25%) da arrecadação do ICMS dos Estados. Oferecer subsídios tributários a combustíveis fósseis tem efeitos ambientais e climáticos que vão na contramão da mudança do padrão energético global, que caminha para a ruptura com a dependência do carbono.
Também há efeitos concentradores nessa estratégia de subsidiar combustíveis via ICMS. Isso porque estados e municípios são responsáveis, segundo a Constituição, pela prestação na ponta de um conjunto amplo de bens e serviços públicos. Os Estados garantem educação média, segurança pública e atendimento de saúde de média complexidade, além de infraestrutura interurbana. Já os municípios ofertam educação básica, atendimento de saúde primário, infraestrutura urbana, transporte, entre outros serviços públicos utilizados principalmente pelas populações de baixa renda. Enquanto isso, carros movidos a combustíveis fósseis são bens privados utilizados pelas classes média e alta.
Na prática, a PEC do ICMS concentra renda, desorganiza o equilíbrio federativo nacional, estimula a demanda por energia com elevado impacto climático e não soluciona o problema da inflação. Apenas leva pontos de inflação deste ano para 2023. Do ponto de vista político, no entanto, devido às resistências dos beneficiados e aos interesses difusos dos prejudicados pela PEC, isso não deve ser revisado por um próximo governo.
Sobre o autor
*Benito Salomão é economista-chefe da Gladius Research e doutor em Economia pelo Programa de Pós-Graduação em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia (PPGE-UFU).
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto/2022 (46ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Revista online | 2013: ecos que reverberam até hoje
Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
Desde o início de agosto, encontra-se disponível na Globoplay o documentário Ecos de Junho. Dirigido pelo jornalista Paulo Markun e pela socióloga Angela Alonso, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), o filme busca mostrar como as gigantescas manifestações de 2013 reverberam, ainda hoje, na vida institucional e política dos brasileiros, quase dez anos depois de terem tomado de assalto as ruas das principais cidades do país.
Na época, as manifestações surgiram em torno do Movimento Passe Livre, que propunha tarifa zero para os ônibus, no momento em que a Prefeitura de São Paulo anunciou o reajuste de R$ 0,20 no preço das passagens.
A passeata inicial foi convocada por fora dos partidos tradicionais da esquerda. À essa convocação se juntaram, de forma difusa, vários outros movimentos, até então sem qualquer representação, que se organizavam por meio das redes sociais. O resultado foi uma manifestação com um perfil diferente do que até então se conhecia: não havia “comando” do ato, as palavras de ordem eram criadas na hora, e as faixas tradicionais foram substituídas por cartazes feitos à mão e trazidos de casa. Surgia, ali, a primeira manifestação de massa convocada pelas redes sociais.
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Se o mote era o reajuste das passagens, os motivos que levaram as pessoas às ruas eram muitos, como ficou evidente nos cartazes improvisados. Os partidos da esquerda socialista foram surpreendidos pelo tamanho da manifestação. Talvez enferrujados pela ausência de reivindicações de rua durante os governos Lula e Dilma, foram tomados pela paralisia decorrente da perplexidade.
O fato é que as manifestações ganharam corpo, não apenas pelo caráter “novidadeiro” da convocação: a atuação desastrada da polícia e sua desmedida repressão, com bombas, farta distribuição de cassetadas e tiros de borracha – uma repórter fotográfica que cobria os atos foi atingida no olho por uma bala de borracha – acrescentaram o fator “solidariedade” às manifestações. A partir daí, os atos ganharam mais força e repercussão nacional, com manifestações se multiplicando por várias cidades do Brasil.
O documentário mostra muito bem os diversos grupos políticos que se uniram em torno das manifestações. Se começou com uma pauta articulada por um grupo de esquerda a favor do passe livre, rapidamente outros de formação diversa aderiram aos protestos. O que havia de comum, e "Ecos de Junho" indica com clareza, era uma insatisfação com o poder público, dirigida aos políticos, em geral, e aos governos do PT, em particular.
Veja, abaixo, galeria de imagens do documentário:
Direita, esquerda, movimento anarquista, grupos identitários, todos foram para as ruas, num movimento variado, onde a reivindicação por passe livre acabou se diluindo em meio à profusão de palavras de ordem. “Não são só 20 centavos”, dizia um cartaz que sintetizou, de maneira emblemática, o espírito dos manifestantes, jovens em sua maioria.
O documentário traz imagens e depoimentos de diversas pessoas envolvidas naqueles acontecimentos. Mostra, por exemplo, como grupos de direita nasceram ou cresceram de algum modo vinculados aos eventos de 2013. São esses grupos que, dois anos depois, deram sustentação, nas ruas, ao impeachment de Dilma Rousseff, apoio político às reformas de Michel Temer e, em 2018, ajudaram a eleger Jair Bolsonaro. Nada disso aconteceria sem a incubadora de 2013.
Independentemente da bandeira política de cada um, o filme tem enorme valor por trazer depoimentos de quem esteve lá no calor da hora e, hoje, uma década depois, pode rever, com certo distanciamento, sua participação nos acontecimentos.
Mas “os ecos de junho” não terminaram. Os choques de posição continuam em jogo. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, Angela Alonso, codiretora do filme, afirmou: "Essa disputa, de certa maneira, ainda não acabou. Tem muito de junho de 2013 na atual disputa eleitoral".
Sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista e escritor.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto/2022 (46ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Revista online | A Câmara dos Deputados nas eleições de 2022
Arlindo Fernandes de Oliveira*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
As eleições de 2022 compreendem, no plano nacional, além do pleito presidencial e das disputas pelos governos dos estados e do Distrito Federal, a renovação de um terço do Senado Federal e da totalidade da Câmara dos Deputados. Interessa-nos aqui as eleições para a Câmara, porque é nelas que serão aplicadas regras eleitorais novas.
A proibição de coligações é o maior exemplo: pela primeira vez será aplicada ao processo de escolha de deputado federal, embora não seja uma inovação absoluta, porque aplicada ao pleito de 2020 nas eleições municipais, para o cargo de vereador.
A segunda inovação legislativa, esta de fato inaugural em 2022, consiste na permissão para o estabelecimento de federações entre partidos políticos, uma articulação entre essas formações que substitui, em outros termos, a nosso ver mais avançados, as antigas coligações, não mais admitidas nas eleições para os cargos proporcionais.
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Sistema Eleitoral e suas mudanças
Temos, claro, ao lado disso, o tradicional sistema eleitoral proporcional de listas abertas, utilizado no Brasil desde o fim da Segunda Guerra, com pequenas alterações pontuais, em alguns pleitos. Esse sistema eleitoral compreende o voto uninominal (vota-se em uma pessoa, não em um partido, como em outros países) e a definição dos candidatos eleitos a partir de dois cálculos, o quociente eleitoral e o quociente partidário.
O quociente eleitoral define o número de votos necessários para eleger um deputado, e o quociente partidário, quantos deputados cada formação, partido ou federação elegerá. Depois disso, se sobrarem vagas, faz-se um novo cálculo, que define os últimos eleitos pelo chamado critério das maiores médias.
Nesse segundo momento, o do cálculo das sobras, o Código Eleitoral sofreu outra alteração, que será aplicada em 2022 pela primeira vez. Somente participam do rateio das vagas remanescentes, as ditas sobras, os partidos que alcançarem 80% do quociente eleitoral. No pleito passado, de 2020, para vereador, todos os partidos puderam participar do chamado rateio das sobras, solução legislativa que melhor aplica o princípio da verdade eleitoral, ou seja, que o resultado da eleição revele e expresse melhor a vontade do eleitor.
Confira, a seguir, galeria de imagens:
O quociente eleitoral individual
Exige-se também, neste pleito, tal como no anterior, o que se chama de quociente eleitoral individual, à falta de melhor definição. Por ele, o candidato para ser eleito deputado federal deve receber votação equivalente a 10% do quociente eleitoral. Essa medida foi adotada para limitar o efeito de um candidato com muitos votos “puxar” a eleições de outros de seu partido, mesmo com votação pouco expressiva, fenômeno conhecido como Efeito Enéas.
Para que se tenha uma ideia do impacto dessa regra, tomemos como exemplo o Estado de São Paulo, onde o quociente eleitoral na eleição de 2018 ficou em 300 mil votos. Nesse caso, somente pôde ser beneficiado pela votação de candidatos “puxadores” o candidato que obteve ao menos 30 mil votos.
Nessa matéria, foi incorporada no Código Eleitoral uma segunda inovação, que reputamos desprovida de qualquer sentido. O candidato do partido que não alcançou o quociente eleitoral, ao contrário de todos os demais concorrentes, deve obter 20% do quociente eleitoral, e não apenas 10%, para obter uma das cadeiras em jogo. Essa regra legal, ao exigir que um candidato tenha o dobro dos votos de outro para alcançar a mesma cadeira, contém flagrante violação ao princípio constitucional da isonomia, além violar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Mas isso talvez somente seja visualizado por partidos e candidatos quando os resultados das eleições estiverem em mãos, no dia 2 de outubro.
A cláusula de barreira
Neste certame de 2022, exige-se de cada partido, para alcançar o direito de funcionar plenamente na Câmara dos Deputados, bem como ter acesso aos recursos do Fundo Partidário e à propaganda partidária na TV, que obtenha 2% dos votos válidos nas eleições para a Câmara federal. Não é pouca coisa porque, como temos 156 milhões de eleitores, a abstenção oscila em torno de 20% e os votos brancos e nulos atingem cerca de 10% do total, teríamos um desempenho mínimo partidário para superar a cláusula de barreira ou de desempenho em torno dos 2 milhões de votos. O caminho alternativo, mais difícil, é eleger 11 deputados federais em 9 estados diferentes.
Votos “desperdiçados”
Diz-se “desperdiçado”, nessa acepção, não o voto dado a um mau candidato, mas aquele que, além de não eleger o seu candidato, não ajuda a outro candidato do mesmo partido ou federação a se eleger. Dada a vedação às coligações, o número de partidos ou federações que não alcançarão o quociente eleitoral deve aumentar, caso em que os votos dados aos seus candidatos não elegem nem ajudam a eleger. Em que formações partidárias devem se concentrar os votos “desperdiçados”? A resposta a essa questão pode ser decisiva para a futura composição da Câmara dos Deputados.
E os resultados?
Adotadas essas regras, que Câmara dos Deputados teremos para a nova legislatura, entre 2023 e 2026? É muito difícil avaliar. Entretanto, conhecendo os resultados de eleições anteriores, a história do desempenho das coligações em face dos partidos isolados e considerando a federação partidária como uma modalidade de coligação, é possível estimar que os partidos reunidos em federação poderão ter alguma vantagem em face dos isolados na definição dos candidatos eleitos. A extensão desse efeito somente os eleitores de outubro poderão dizer.
Sobre o autor
*Arlindo Fernandes de Oliveira é consultor legislativo do Senado Federal e especialista em direito constitucional e eleitoral.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto de 2022 (46ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Revista online | Por que as políticas públicas de livro e leitura são fundamentais
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Revista online | Por que as políticas públicas de leitura são fundamentais
Renata Costa*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
“É preciso que a leitura seja um ato de amor”
- Paulo Freire
Imagine se o nosso país fosse um país leitor? Imaginou? E que imagem, palavra ou expressão vem à sua cabeça? Na minha, por exemplo, vem sempre empatia, pensamento crítico, consciência social. Sim, é isso mesmo.
Acredito que a leitura é a maior forma de um ser humano absorver empatia, qualidade rara em nossa sociedade. O motivo é bastante simples: a leitura nos desloca para outra realidade, nos coloca obrigatoriamente em vivências de outras pessoas (personagens) e, em função disso, somos inseridos na empatia, de maneira intrínseca.
Em relação ao pensamento crítico, acredito firmemente no poder da leitura na absorção dessa qualidade. Começamos a pensar, a refletir a partir de realidades externas. Nosso cérebro recebe outras vivências de forma direta e com isso passamos a questionar mais e aceitar menos o que chamamos de senso comum. E isso nos leva à consciência social. Por isso, a leitura é a base de todas as artes, da cultura e da educação.
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A provocação do texto Ler devia ser proibido, da filósofa e escritora brasileira Guiomar de Grammont, é certeira:
“Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzindo a crer que tudo pode ser de outra forma. (...) Pais, não leiam para seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente.”
Segundo a pesquisa Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), “três em cada 10 brasileiros na faixa de 15 a 64 anos são considerados analfabetos funcionais – ou seja, apresentam limitações para fazer uso da leitura, da escrita e da matemática em atividades cotidianas.” Estamos falando de pessoas que possuem baixo letramento e daqueles com formação superior. Repare que nos referimos apenas a pessoas alfabetizadas, não as que não possuem o código da língua.
Confira, a seguir, galeria de fotos:
E o que isso tem a ver com as políticas públicas do livro e leitura? Tudo. Recentemente, profissionais da área e entidades do livro de todo o Brasil construíram uma carta-manifesto a todos os pré-candidatos deste ano de 2022, ao Legislativo e ao Executivo, solicitando que fossem inseridas em suas plataformas de governo dez ações voltadas à pauta.
Os pedidos são inúmeros, desde acompanhar o Executivo na regulamentação e implementação, nos primeiros dias do novo governo, da Lei 13.696/2018, que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE) até apresentar programas e projetos para estimular, ampliar e fomentar a formação de mediadores(as) e promotores de leitura em plataformas digitais e fortalecer ações de estímulo à leitura e às tradições orais e de oralitura, passando por desenvolver medidas de incentivo e regulação do mercado editorial e regularização de pareceristas nas decisões sobre conteúdos editoriais.
Esta carta aberta já possui quase 13.000 assinaturas em um curto espaço de tempo, o que nos mostra a força do que chamamos de “o povo do livro”. A abrangência dessa política é o que a torna grande. Falamos de três cadeias fundamentais que a cerca: a cadeia criativa, que reúne escritores, poetas, ilustradores, cordelistas; a cadeia produtiva, que envolve todos os atores do mercado livreiro e editorial, desde os próprios editores aos diagramadores, revisores, profissionais do comercial, entre outros; até chegarmos à cadeia mediadora, que engloba professores e educadores, bibliotecários, mediadores de leitura, profissionais de bibliotecas públicas e comunitárias e os próprios leitores.
O Brasil está acordando para a importância da leitura e para o entendimento de que, de fato, ler é um ato político. Aliás, o professor Darcy Ribeiro já sabia disso há tempos, quando disse que “a crise na educação não é uma crise, é um projeto”. Não há interesse político na leitura e, por isso, existir um partido que hoje abrace uma Bancada do Livro é fundamental e inovador.
Recentemente, tivemos declaração do atual presidente da República “ameaçando” seus eleitores, dizendo que haverá bibliotecas no lugar dos clubes de tiro, caso não ganhe as próximas eleições. Isso diz muito sobre o “projeto” ao qual se referia Darcy Ribeiro. Diz muito, também, sobre a importância que a leitura tem para uma sociedade democrática de fato.
É urgente que o país absorva e entenda que o livro, a leitura e as bibliotecas de acesso público, sejam públicas ou comunitárias, são o âmago de pautas não só de cultura e educação, mas, também, de direitos humanos, saúde, segurança, meio ambiente, dentre tantas outras.
Muitas bibliotecas comunitárias, por exemplo, trabalham o livro em locais de alta violência e vulnerabilidade social. Entendem que é necessário incidir em políticas públicas para democratizar o acesso ao livro e diminuir a violência em seus territórios. É a expressão “mais livros, menos armas” sendo feita na prática. É necessário abraçarmos essa causa e darmos visibilidade a esses espaços, que são, majoritariamente, geridos por mulheres que percebem a leitura nesse lugar fundamental.
São as mulheres que estão no topo da pirâmide ao se tratar de leitura, que, por sinal, é um substantivo feminino. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil aponta que “um em cada três leitores têm lembranças da mãe lendo algum livro, e 49% deles têm na mãe sua grande incentivadora no processo de ler por prazer”. Preciso dizer mais alguma coisa?
No Estado do Rio de Janeiro, há um exemplo vivo do que as bibliotecas comunitárias são capazes. Na cidade de Nova Iguaçu, região da Baixada Fluminense, um coletivo chamado Baixada Literária trabalha há anos na construção de políticas leitoras para o município. Segundo informação da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), “a Baixada Literária vem desempenhando papel significativo na descentralização da cultura literária e na formação de leitores nas comunidades em que atua. São bibliotecas vivas, dinâmicas e aconchegantes, com acervo de qualidade disponível a todos”.
Além disso, foram elas as responsáveis por conseguir, em parceria com o poder público local, transformar o Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas de Nova Iguaçu em lei (4.439 de 19 de novembro), sancionada desde 2014. Hoje a cidade é referência na construção de políticas públicas para o setor em todo o Brasil e as bibliotecas que compõem a Baixada Literária, as maiores personagens desse livro.
Exposto tudo isso, respondemos, acredito, à pergunta feita no título deste artigo: Por que as políticas públicas de livro e leitura são fundamentais para uma sociedade mais democrática?
Sobre a autora
Renata Costa: ex-secretária do Plano Nacional do Livro Leitura (PNLL), gestora do projeto Palavralida e conselheira de Estado de Cultura do Rio de Janeiro
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto de 2022 (46ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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*Título editado.
Revista online | Elvis eterno
Lilia Lustosa*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
O famoso bordão “Elvis não morreu” parece mais atual do que nunca, já que o biopic sobre o “rei do rock”, lançado no Brasil em julho, vem fazendo enorme sucesso por onde passa, colocando o nome do artista novamente na agenda mundial.
Até o início de agosto, Elvis (2022), superprodução da gigante Warner Bros, dirigido por Baz Luhrmann, já havia arrecadado mais de R$ 18 milhões em bilheteria só no Brasil. No resto do mundo, esse número já ultrapassa a barreira dos 234 milhões de dólares.
A razão de tanto sucesso? Imagino que não seja a atuação de Tom Hanks, que, apesar de seu enorme talento e dos dois Oscares na bagagem, entrega desta feita uma performance caricata em um filme que não se pretende paródia e que, portanto, não pede esse estilo de encenação. O ator encarna o empresário e descobridor de Elvis Presley, o imigrante Tom Parker ou simplesmente “Coronel”. Um homem visionário e ambicioso, de passado desconhecido, dono de um sotaque não identificável.
Talvez, a boa repercussão dos recentes Bohemian Rhapsody (2018) e Rocketman (2019), respectivamente sobre Fred Mercury e Elton John, tenha ajudado. Sem falar, claro, no excelente desempenho de Austin Butler que, de maneira impressionantemente convincente, dá vida a Elvis. Isso somado à adoração que tantos espectadores de todos os cantos do mundo têm por esse artista americano que, sem nunca ter saído dos Estados Unidos, tornou-se um fenômeno de vendas, antes de partir prematuramente, aos 42 anos de idade.
Veja, a seguir, galeria de imagens:
Mas, fora as músicas e a esposa Priscilla Presley, o que sabemos de fato sobre sua origem e seu mundo? O longa de Luhrmann preenche parte dessa lacuna, apresentando vários fatos da carreira e da vida pessoal de Elvis, embalados, claro, por uma bela trilha, que, diga-se de passagem, não é o ponto mais forte do longa, já que o filme se concentra mais na vida do artista do que em sua música.
O diretor australiano, conhecido por sucessos como The Great Getsby (2013), Moulin Rouge! (2001) e Romeu + Julieta (1996), escolheu contar a história do astro por meio de um longo flashback que nos transporta para sua infância pobre, vivida em um bairro negro em Memphis, Tennessee. O narrador é o tal Coronel, personagem fundamental na vida de Elvis, mas nem sempre retratado com o devido destaque em obras anteriores.
Composto por uma montagem sofisticada, Elvis tem as primeiras sequências carregadas de split screens que nos mergulham nos anos 60, época de proliferação dessa técnica e, ao mesmo tempo, de grande sucesso da carreira de Elvis. Pena que Luhrmann se empolga demais com as telas partidas, agregando-lhes vinhetas gráficas, que dão um certo ar de Marvel à obra, o que poderia até ser um caminho estético, desde que sustentado até o fim. Mas não é o que acontece.
Depois de um início um tanto paroxístico, o filme acaba por abandonar os excessos, encontrando um tom mais equilibrado que mostra, de forma caleidoscópica, a vida desse artista. Um homem que soube desde cedo antropofagizar os cantos e as danças dos negros, misturando-os ao pop e ao country, criando um estilo original e inusitado, causador de muita polêmica, rendendo-lhe inclusive o apelido de “Elvis, o pélvis”. Estilo que serve até hoje de inspiração para muita gente, mas que segue suscitando controvérsias, sobretudo, com relação à questão da apropriação cultural.
Vendo com olhos de hoje, concluímos que Elvis se apropriou mesmo dos ritmos ouvidos nos cultos e nas festas de seus vizinhos de Lauderdale Courts: o gospel, o blues… Mas como poderia ser diferente se foi ali que ele cresceu? Menino branco no meio de crianças negras, ouvindo as mesmas músicas, vendo os mesmos cultos, dançando as mesmas danças! Jovem que frequentava a Beale Street, rua em que conheceu um certo B. B. King, nascido em seu mesmo Mississippi natal e que acabou por se tornar um parceiro de música e de vida. O “rei do blues” chegou a afirmar, em 2010, em uma entrevista ao San Antonio Examiner, que ele e Elvis compartilhavam a ideia de que a música era uma propriedade de todo o universo, e não uma exclusividade do negro, do branco ou de qualquer outra cor. Além de ser algo compartilhado “em e por” as almas de todas as pessoas.
Seria correto afirmar, então, que Elvis “roubou” isso da cultura negra? Seria justo impedi-lo de usar ritmos e costumes que fizeram parte de sua vida e que o levaram consequentemente à militância pela integração racial?
Não sou expert em Elvis, mas o que Luhrmann faz nas 2 horas e 40 minutos que dura o filme é justamente exaltar essa influência, dando o devido crédito a quem o merece. Seu Elvis, além de ser uma ótima distração, é uma produção de alta categoria que faz jus ao retratado e que ainda nos presenteia com um show de atuação de Butler, fazendo-nos até duvidar se Elvis, de fato, morreu.
Sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto de 2022 (46ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Revista online | Veja lista de autores da edição 44 (junho/2022)
*Carlos Melo é o entrevistado especial da edição 44 da revista Política Democrática online. Cientista político e professor senior fellow do Insper.
*Paolo Soldini é o autor do artigo O que nos dizem aquelas tatuagens nazistas do batalhão Azov. Jornalista do histórico L’Unità e, também, de Il Riformista e da Radio Tre Rai.
*Luiz Sérgio Henriques é o tradutor do artigo O que nos dizem aquelas tatuagens nazistas do batalhão Azov. Tradutor e ensaísta, ele escreve mensalmente na seção Espaço Aberto.
*Benito Salomão é autor do artigo Voltaremos a Crescer? Economista chefe da Gladius Research e doutor em Economia pelo Programa de Pós-graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia (PPGE-UFU).
*Rodrigo Augusto Prando é autor do artigo Cenário eleitoral e guerras de narrativas. Professor e pesquisador. Graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
*Maria Auxiliadora Lopes é autora do artigo As implicações da educação domiciliar. Pedagoga, ex-consultora da Unesco e ex-diretora do Departamento de Desenvolvimento dos Sistemas de Ensino, da Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação (MEC). Também foi coordenadora da Coordenação Geral de Diversidade e Inclusão Educacional do Departamento de Educação para Diversidade e Cidadania da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC.
*Priscilla Kitty Lima da Costa Pinto, conhecida como Kitty Lima, é autora do artigo Apoie mulheres. Natural de Aracaju (SE). Vegetariana desde os 5 anos e protetora dos animais desde então, fundou a ONG Anjos, há 10 anos, com o objetivo de salvar vidas de animais em sofrimento.
Em 2016, quase sem recursos, foi eleita vereadora de Aracaju com 4925 votos. Em sua atuação, chamou atenção da sociedade sergipana ao levantar pela primeira vez na história o debate do direito animal em Sergipe. Este fato a levou a ser eleita deputada estadual, em 2018, mantendo sua atuação imperativa em defesa dos animais e dos direitos da mulher e das minorias.
*Cácia Pimentel é autora do artigo O que o Brasil pode ganhar com o novo mercado de carbono. Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pesquisadora de Direito e Sustentabilidade na Columbia University e mestre em Direito pela Cornell University.
*Ana Pimentel Ferreira é autora do artigo O que o Brasil pode ganhar com o novo mercado de carbono. Mestranda em Economia Ambiental e graduada em Ciência e Tecnologia do Meio Ambiente pela Universidade do Porto, Portugal.
*Marcus Pestana é o autor do artigo A reinvenção da democracia brasileira e as eleições de 2022. Foi deputado federal (2011-2018) e secretário estadual de planejamento (1995-1998) e saúde (2003-2010) de Minas Gerais.
*Felipe Barbosa é autor do artigo Guerra às drogas e a insistência no fracasso. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás desde 2013, titular da 2ª Vara Criminal de Águas Lindas de Goiás (GO). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008). Pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (2011). Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).
*Vercilene Francisco Dias é autora do artigo Povos quilombolas: invisibilidade, resistência e luta por direitos. Quilombola do Quilombo Kalunga, advogada, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 2019, tornou-se a primeira mulher quilombola com mestrado em Direito no Brasil. Graduou-se no mesmo curso pela UFG, três anos antes. É coordenadora do Jurídico da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ela também foi eleita pela revista Forbes como uma das 20 mulheres de sucesso de 2022.
*Lilia Lustosa é autora do artigo Top Gun: Maverick – um voo de nostalgia. Crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
* A Fundação Astrojildo Pereira detém os direitos da reportagem especial da edição 44: Mesmo sob ataques, urna eletrônica mantém segurança do voto
Editorial revista online | O quadro eleitoral
A pouco mais de um mês do início das campanhas eleitorais e a menos de cem dias das eleições de outubro, é tempo de tentar um balanço da situação atual do pleito, a partir do conjunto de informações disponíveis.
Conforme pesquisas recentes, a disputa nas eleições presidenciais não mostra alteração aparente significativa. Lula lidera nas intenções de voto, com larga margem sobre o presidente da República. O terceiro colocado permanece imóvel na sua posição, enquanto a candidata do campo chamado de terceira via não logrou ainda, ao que tudo indica, decolar junto ao eleitorado.
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A persistência dos mesmos resultados por meses seguidos, contudo, não é suficiente para assegurar sua continuidade até o dia do pleito. Como bem sabemos, eventos imprevistos, com grande impacto potencial sobre os eleitores, podem ocorrer até o último dia de campanha, com exposição pública em tempo real.
Mesmo na ausência de eventos dessa ordem, duas linhas de mudança possível são detectáveis nesse quadro. Em primeiro lugar, o candidato do governo atingiu, ao que tudo indica, seu teto de intenções de voto, enquanto crescem as pressões no sentido da perda de sua popularidade. Escândalos novos vêm à tona nos altos escalões do governo, reforçando um cenário que combina incompetência com ilegalidades de toda ordem. O caso da vez é a investigação sobre os dutos da corrupção presentes no Ministério da Educação que já resultaram na prisão do ex-ministro e na suspeita de vazamento de informação sigilosa por parte do próprio presidente da República.
A apuração dos fatos aos olhos do público, por meio de Comissão Parlamentar de Inquérito, teria efeito desastroso na corrente de opinião a ele favorável, repelindo os apoiadores ocasionais, motivados pela rejeição aos demais candidatos, e isolando, por consequência, o núcleo radical, imune a qualquer evidência empírica capaz de desqualificar seu líder.
Em segundo lugar, parece haver espaço para o crescimento da candidata do campo denominado terceira via, espaço que precisa, contudo, ser ocupado de imediato, sob pena de estreitar-se progressivamente até às vésperas da eleição. De acordo com um ator experiente da política, que reivindica a classificação de direita democrática, o primeiro passo para a ocupação desse campo deveria ser a recuperação dos eleitores tradicionais do centro, que engrossam hoje as fileiras da candidatura Lula por rejeição ao candidato governista, percebido, corretamente, como um nome da extrema direita no país, com viés autoritário explícito. Esses eleitores que pousaram provisoriamente na esfera eleitoral do candidato Lula só se afastarão dela em benefício de um candidato que afirme, sem ambiguidade, sua crítica ao governo e seu pertencimento ao campo das forças democráticas.
A situação não favorece a reeleição, como demonstrado pelas tentativas de abrir caminho, por meio de seguidas declarações, para a insubordinação, a desordem e a deslegitimação de eventuais resultados eleitorais desfavoráveis. Cabe às forças democráticas, contudo, redobrar a vigilância e levar a outro patamar o necessário diálogo entre seus representantes.
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Revista online | Povos quilombolas: invisibilidade, resistência e luta por direitos
Vercilene Francisco Dias*, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)
A sociedade brasileira pouco sabe sobre a história e resistência negra quilombola no Brasil. Isso é fruto da invisibilidade da luta e resistência negra por direitos. Durante a colonização do país, milhares de pessoas negras foram trazidas da África para serem escravizadas aqui, tratadas como objetos, desumanizadas e submetidas a todos os tipos de maus-tratos. O povo negro resistiu. Uma das maiores formas de resistência, mas não a única, foram as formações dos quilombos, para manter e reproduzir seu modo de vida característico em um determinado lugar, com identidade cultural, espiritualidade e liberdade para a produção e reprodução de práticas inspiradas na ancestralidade.
Os quilombos ou remanescentes das comunidades dos quilombos são grupos sociais remanescentes de pessoas afrodescendentes com identidade étnica própria, ou seja, uma ancestralidade comum e formas de organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais que os singulariza, distinguindo do restante da sociedade (Decreto nº 4887/2003). Trata-se de um processo histórico de luta e resistência negra do qual pouco se ouve falar, tampouco é ensinado nas escolas.
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Com o fim formal da escravidão, pouco se mudou na realidade do povo negro aquilombado. Esquecidos, muitos negros se juntaram aos quilombos existentes. Outros foram trabalhar nas fazendas onde eram escravizados, pois o Estado brasileiro não se preocupou em implementar políticas que inserisse os negros na sociedade enquanto sujeitos de direitos. Ao contrário, leis foram criadas para perseguir a população afrodescendente e criminalizar nossa cultura.
Somente após um século de esquecimento, os quilombolas foram lembrados na Constituição de 1988, devido às lutas do povo quilombola junto ao movimento negro urbano. A Carta Magna assegura, por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), aos povos quilombolas, o direito ao título de suas terras. No entanto, passados mais de 33 anos de sua promulgação, esse direito ainda está pendente de efetivação.
Segundo dados oficiais preliminares para o censo quilombola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em abril de 2020, existem no Brasil 5.972 localidades quilombolas, dispersas por 25 unidades da Federação, em 1.672 municípios, o que representa 30% das cidades brasileiras. O levantamento por região evidencia que a maior quantidade de localidades quilombolas está no nordeste, concentrando 53,09% do total destas localidades. A porcentagem de localidades quilombolas é de 14,61%, no norte; de 22,75%, no sudeste; de 5,34%, no sul; e de 4,18%, no centro-oeste.
Apesar da garantia constitucional do direito às suas terras tituladas, o levantamento do IBGE mostra que, das 5.972 localidades quilombolas, 4.859 (81,36%) estão fora de territórios “oficialmente delimitados” e de qualquer etapa do processo administrativo de reconhecimento, delimitação e titulação considerados pelo instituto. São dados alarmantes da realidade quilombola sobre esse primeiro levantamento oficial, tendo em vista que, hoje, segundo a Fundação Cultural Palmares, existem 3.495 comunidades com certidão expedida.
Porém, quando se olha os dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela política de titulação dos territórios quilombolas, a realidade é pior. De 1995 até o ano de 2022, apenas 295 títulos foram emitidos, em 195 territórios. A maioria é formada por títulos parciais, ou seja, o órgão emite o título de uma gleba ou áreas específicas dentro do território, o que não é a titulação de todo o território da comunidade.
Desses 295 títulos, grande parte foi emitida por órgão de regularização estadual ou em parceria com o Inca. São números ínfimos diante da quantidade de comunidades levantadas hoje no Brasil. A maior parte delas está em situação de insegurança territorial, o que acirra ainda mais os conflitos dentro dos territórios quilombolas e tem comprometido a segurança e ceifado a vida de várias de suas lideranças.
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Em decorrência dessa demora em cumprir o mandamento constitucional, os povos quilombolas vem pagando a conta por violações dos seus próprios direitos e garantias fundamentais. Essas violações prejudicam, de forma sensível, o desenvolvimento digno desse povo fundador da identidade nacional. A titulação do território quilombola é passo fundamental para a efetivação de outros direitos e garantias fundamentais, a exemplo de políticas públicas de saneamento básico, saúde, educação, trabalho, acesso a crédito e produção agrícola.
A Constituição é nítida ao estabelecer o dever do Estado de agir para assegurar a reprodução física, social e cultural das comunidades quilombolas. Porém, para esse Estado, somos invisíveis, não bastando a garantia do direito, a obrigação do ente e o destinatário desse direito. Por isso, é necessário que os quilombolas travem disputas todos os dias para que seus direitos sejam respeitados e que suas vidas não sejam ceifadas, em decorrência de um Estado negligente e violento com seu povo.
Para se ter um mínimo de respostas e tentar assegurar a vida do povo quilombola nesse contexto de pandemia da covid-19, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) buscou o Poder Judiciário para denunciar e fazer cessar violações e omissões do governo ao não garantir a vida desse povo, no contexto de crise sanitária global, diante da realidade de violência estrutural enfrentada pelas comunidades.
Por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Quilombola 742, proposta em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a vulnerabilidade estrutural dessa população e determinou à União que implementasse, no prazo de 30 dias, um Plano Nacional de Enfrentamento aos efeitos da pandemia nos quilombos, devendo, para tanto, constituir um grupo de trabalho paritário em 72 horas, para construção, discussão, implementação e monitoramento das ações determinadas.
A decisão do STF, no entanto, não foi o bastante. Para que a União cumpra seu dever constitucional, todos os dias é necessário que os quilombolas cobrem a implementação das determinações do Supremo, que, após mais de dois anos de pandemia, foram cumpridas apenas parcialmente. Nesse cenário, somos barrados a todo momento, devido a diversos empecilhos impostos pelo governo, para tentar justificar o não cumprimento da determinação, como a alegação da inexistência de orçamento para implementação da política quilombola.
Como bem ressalta Selma dos Santos Dealdina, no Livro Mulheres Quilombolas: Territórios de Existências Negras Femininas, não existe boa vontade política do Estado brasileiro, que se comporta como se estivesse fazendo um favor a nós, quilombolas. É como se fosse preciso bondade ou voluntarismo para cumprir nossos direitos constitucionalmente assegurados. Enquanto isso, o racismo estrutural, que se ramifica nas instituições públicas, formatando o Estado e a sociedade brasileira, faz com que o exercício do direito seja vivido enquanto conflito e violência imediatos.
Sobre a autora
*Vercilene Francisco Dias é quilombola do Quilombo Kalunga, advogada, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 2019, tornou-se a primeira mulher quilombola com mestrado em Direito no Brasil. Graduou-se no mesmo curso pela UFG, três anos antes. É coordenadora do Jurídico da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ela também foi eleita pela revista Forbes como uma das 20 mulheres de sucesso de 2022.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Senadora Eliziane Gama analisa participação feminina no Congresso
Em entrevista à Revista Política Democrática Online, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) fala sobre a participação das mulheres no Parlamento.
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