revista política democrática #49
PD #49 - Marco Aurélio Nogueira: O centro, a esquerda democrática e o novo como fetiche
Faltando um ano para as eleições de 2018, ainda é cedo para prognósticos certeiros. O palco está repleto de candidatos e pré-candidatos, pesquisas são feitas para avaliar o poder de fogo de cada um deles, mas o que prevalece mesmo são a dúvida e o vazio propositivo. Estão confusos os políticos e os formadores de opinião, perplexos e desconfiados os cidadãos, ninguém parece contar com um estoque de ideias para fazer o país avançar.
A campanha vai indo para as ruas, naquela fase de balões de ensaio, declarações genéricas e olho atento nas pesquisas. Mas não há como prever o que acontecerá nos próximos meses.
Não dá para saber nem sequer se os que lideram as sondagens serão candidatos ou conseguirão manter o pique nos meses subsequentes. Lula e Bolsonaro têm seus problemas e dificulda- des, mas vão fazendo de conta que não ligam. São os que mais investem em caravanas e comícios, porque serão os que mais perderão se não puderem concorrer ou se murcharem quando estiverem perto da praia.
Uma boa prova do cenário embaçado em que se vive são as escaramuças e a bateção de cabeças dos partidos frente ao governo Temer. Ora juntam-se contra ele, atiçados por redes e mídias, ora o elogiam como “campeão das reformas”. Não esca- pam dessa flutuação nem sequer os partidos que lhe dão sustentação, como o PMDB e o PSDB, este último principalmente.
O “centrão”, com isso, se fortalece, embora não possa ser tido como um vetor que organize o que quer que seja.
O PT fica fora dessa constatação. Mas não escapa da esquizofrenia geral. Está na muda, como se diz, mastigando suas próprias contradições e sendo pautado por Lula e pelo lulismo. Agora, deu para admitir que o “golpe” contra Dilma contou com o apoio da maioria da população e se dispõe a fazer alianças com “golpistas” para tentar recuperar os votos perdidos. Vai assim, dando uma no cravo, outra na ferradura, soltando névoa sobre o futuro.
O fato é que não há um partido, ou uma coligação, que lidere e coordene, ainda que os maiores pretendam estar na direção. Em consequência, Temer apanha de todo lado, se recolhe, se finge de morto, mas segue no posto. Dentro de seu governo, porém, reina o inferno. Num dia, um ministro boquirroto fala uma bobagem, em outro uma ministra pisa na bola de forma grotesca, no terceiro dia há declarações desprovidas de sentido. Chega a ser difícil dizer que se tem um governo, ainda que se tenha muita oposição.
A disputa pela sucessão de Temer não só está aberta, como espalha veneno e toxinas na vida política. Como há pouca coorde- nação e como os democratas parecem perdidos em meio ao tiro- teio geral, ficam todos com a sensação de que está tudo dominado e pouco pode ser feito, com o que o carro segue em marcha iner- cial, a população aprofunda sua indiferença e a política vai-se embriagando com seus próprios dejetos.
É um cenário estranho, porque embaixo, no mundo da vida real, as coisas parecem “normais”, como se as coisas “lá de cima” não atrapalhassem. Há muita raiva e decepção, mas pouca disposição de luta, seja essa luta o protesto mais contundente, seja ela a preocupação em se preparar melhor para a disputa que se avizinha.
Passam-se os dias, os escândalos se sucedem, Temer segue na defensiva, o marasmo geral ganha corpo, mas não surge uma iniciativa que se disponha a botar os pingos nos iis e iluminar a estrada.
Os novos e os outsiders
Com a campanha eleitoral encorpando e começando a se fixar no horizonte das ruas e dos palácios, tudo pode ganhar outra qualidade. No momento, porém, o que há mesmo é muito fogo amigo e fumaça. Ninguém tem como prever o que acontecerá nos próximos meses.
Prova do momento de indefinições e jogos de cena é a sofreguidão com que se sai em busca de um nome que simbolize o “novo” em política. Dia sim dia não há quem procure fabricar um nome ad hoc. O campeão do segundo semestre de 2017 foi Luciano Huck, cortejado por muitos. É o novo que parece caído do céu, confortável, mas que levanta mais suspeitas que adesões entusiasmadas. Ele, ao menos, no artigo em que no final de novembro declarou não pretender ser candidato, mostrou cautela suficiente e consistência, contribuindo para manter viva a ideia da articulação democrática e da renovação política. Pode ser que volte a ser cogitado, mas por enquanto está na posição de colaborador.
João Dória também tentou ocupar esse espaço, impulsionado pela vitória nas eleições municipais do ano passado, mas recuou depois de ter sua gestão mal avaliada pelos paulistanos e de ter recebido mais vaias que aplausos em sua peregrinação nacional. Há Meireles, claro, correndo por fora, mas com apetite. Sem falar de Joaquim Barbosa, ou de João Amoêdo. Até Marina Silva trafega por essa pista.
Há também o novo, representado por Jair Bolsonaro, que exibe certo fôlego mas tem muitíssimos flancos desguarnecidos. É novo porque vocaliza a raiva social contra tudo o que está aí, a come- çar dos políticos, porque oferece a “autoridade” que vários grupos acreditam faltar no país, porque vende a “firmeza” e a “convicção” tão apreciadas pela direita extremada, não democrática, porque se apresenta como não tendo vínculos, laços e compromissos com a classe política. Mas Bolsonaro é um novo velho, chamuscado pelos seguidos mandatos parlamentares e pela mesma inoperân- cia parlamentar que ele acusa nos demais. É um novo que oferece comida requentada, que ele até agora tem conseguido esconder. O mais provável é que desidrate quando a corrida eleitoral come- çar para valer. Mas nunca se sabe.
Muitos dos que incentivam candidaturas desse tipo agem como se acreditassem na existência de um fulano “puro” ou de alguém com maturidade inata e densidade suficiente para conquistar o povo, assumir o governo federal e fazer algo “diferente”. Nenhuma das figuras que jogam e se jogam na mesa passaria pelo crivo da política tal como ela é, com seus defeitos e suas virtudes, ou seja, com suas características próprias. Candi- datos não são inventados a bel-prazer, e quando o são (Dilma, por exemplo) o resultado quase nunca é bom.
Candidatos inventados são como ilusões óticas. Mostram coisas que não vemos, que não existem ou estão distorcidas. Criam mil sensações, derivadas da “astúcia” das imagens, e em algum ponto da curva se desfazem.
Dirão os estrategistas que algo precisa ser feito para chamar os cidadãos de volta para a política, para, em suma, compensar a perda brutal de legitimidade dos políticos e da própria política como tal. Parecem acreditar na improvisação e na força magnética que teria uma celebridade, uma estrela oculta, uma lua nova criada às pressas nas pranchetas dos marqueteiros. O pior é que, com seus inventos, vão sugestionando os caciques partidários e dando a eles a ilusão de que algo pode ser entronizado de dentro para fora na política prática.
Oferecem, como facilitadora, a ideia de que é necessário encontrar o mais perfeito “antiLula”, ou o “antiBolsonaro”, demônios que precisam ser excomungados. Querem que o “novo” seja um elemento de polarização. Os mais radicais vibram com a perspectiva de que o ex-presidente seja preso ou impedido de disputar as eleições. Pintam-no como um “populista” irresponsável, mas não conseguem vislumbrar como enfrentá-lo numa disputa eleitoral, que é onde os políticos devem ser julgados. O mote é dado pela perspectiva de se encontrar um quadro no qual um “nós” impre- ciso seja erguido como um dique contra Lula. É uma simplificação grosseira, que só faz aumentar o prestígio dele.
O fator Lula, por sua vez, ajuda a que se forjem polarizações a partir do outro lado da praça, que também tem seus artesãos e seus bruxos de plantão. A ideia é criar um cenário em que Lula ocuparia o espaço principal, ora impulsionando uma dinâmica Lula contra “eles”, ora apresentando o ex-presidente como “vítima” e o “único que pode salvar o país”. Torce-se para que as múltiplas pequenas polarizações artificiais desaguem numa grande polari- zação Lula x Bolsonaro, com a qual se imagina acomodar toda a complexa sociedade brasileira. Os esquemas maniqueístas simplórios tentam crescer mobilizando a seu favor a aparência retórica do “radicalismo”.
É um quadro trágico, que ergue uma interrogação diante de 2018 e em nada ajuda a que se pense o país com olhos generosos. Ao se afastar tanto assim das condições de possibilidade de uma competi- ção eleitoral que honre o nome da democracia, os políticos só fazem aumentar o descrédito de que gozam na sociedade. Não percebem isso, porque sua arrogância os cega. Mas é o que acontece.
A ideia do novo em política é sempre controvertida e está sujeita a muitas ponderações. Novo ou novidade? Algo novo, em política, não se apoia em currículo, fama ou visibilidade, mas em ideias, propostas e articulação, de modo inclusive a que se façam as devidas ligações com o que há de “velho” na vida.
Os outsiders sofrem vetos generalizados e, em geral, têm vida curta. Dificilmente dão certo, até porque não se caracterizam por possuir dotes organizadores expressivos, conhecimento dos ritmos da vida pública e paciência para contornar obstáculos, estender-se em negociações demoradas, engolir sapos e cascáveis. Ou seja, são estranhos no ninho e tendem a ser forçados a um aprendizado longo. A ideia de carreira política cabe aqui: não se começa por cima, mas por baixo e pelas margens. Não é preciso ter sido vereador ou deputado para postular uma candidatura presidencial, mas o manual do bom-senso diz que tal experiência funciona como uma espécie de vestibular, de preparatório, um recurso que ajudará mais à frente.
Outsiders dificilmente entram de forma triunfal no primeiro plano da política. Há exceções, claro. Lula não fez carreira e era um outsider quando enfrentou Collor, em 1989, outro que só não era um estranho no ninho porque vinha de família entranhada na política. Lula talvez tenha perdido justamente por ser um outsider. Tentou ser deputado, foi eleito mas nada fez com o mandato, foi um fiasco. Seu vestibular foi a vida sindical. Dilma foi inventada por Lula, mas não era uma estranha no ninho. Não tinha talentos especiais, nem sequer currículo ou visibilidade, mas esteve sempre nas proximidades do poder, conhecia alguns dos caminhos.
Ah, mas há Emmanuel Macron! Nada disso. Ele pisou num longo terreno antes de se lançar candidato. Foi ministro, conviveu com políticos e governos, aprendeu um monte de coisas. Venceu não porque era “novo”, mas porque soube perceber certos sinais emitidos pela vida social francesa e os incorporou a uma lingua- gem política adequada, desconstruindo os grandes partidos e ligando-se aos jovens e aos bolsões de novidade socioeconômica que passaram a pulsar com mais força nas últimas décadas.
Os “novos” são um fetiche recorrente. Encantam e iludem. Mantêm o público enfeitiçado, mas quando falham desencadeiam uma imensa frustração, que faz com que sejam rapidamente abandonados. A política prática é mais forte do que eles.
Uma “nova política” só tem como se viabilizar se estiver de algum modo articulada com o que existe de “política tradicional”. Ela é que poderá dar aos que chegam agora o projeto, o arco de forças, o potencial de crescimento. As pontes.
Hoje, no Brasil, são muitos os que estão sinceramente em busca de alguma opção que tenha brilho e força suficientes para furar essa verdadeira muralha da China que converteu a política nacional em um recinto blindado que protege suspeitos, investi- gados, gente pouco qualificada, mas que tem o mapa nas mãos. É um recinto que tritura, enquadra e pasteuriza tudo o que nele respira. Estamos mesmos necessitados de uma articulação que impulsione a renovação política e um programa mais ousado de governo nacional. Implodir essa muralha é sonho de muitos brasileiros, cansados de ver sempre os mesmos fazer sempre as mesmas coisas, indiferentes seja ao clamor da massa pobre e excluída, seja às expectativas políticas, morais e culturais dos setores mais “modernos”.
Erguer pontes que tragam a “nova sociedade” para a política é uma tarefa essencial nos dias atuais. Afinal, o Brasil tornou-se um arquipélago composto por ilhas que vão sendo multiplicadas pela “vida líquida”. Há muitas multidões em ação, à procura de opções, interessadas em limpar Brasília dos “maus elementos”, da corrupção, da indiferença social. É preciso dar um norte político a essas multidões.
Este Brasil real cansou de polarizações vazias de substância e dedicadas tão somente a disputas de poder. A rigor, ninguém se mostra interessado nas rixas entre PT e PSDB. Muitos ainda serão levados por elas, que organizaram a política nas últimas décadas e se converteram num vício difícil de largar. Mas a maioria – e seguramente os habitantes dos nichos de vida líquida que crescem sem parar – querem algo mais: querem uma nova proposta, uma nova filosofia política e um novo campo democrático que possa funcionar de fato como um polo generoso, refratário a regressões, aberto a todos, plural e dinâmico.
Novos e outsiders não podem ser tidos como fatores capazes de viabilizar a articulação democrática de que o país necessita. Devem ser bem-vindos, mas precisam descer ao chão duro da política. Ou farão parte da articulação necessária ou pouco significarão. Poderão ajudar muito, desde que emprestem sua visibilidade, suas ideias e seus movimentos ao difícil trabalho de construção da fuselagem de um campo político que se converta num efetivo polo de poder democrático.
Suicídio em banho-maria
No interior dos partidos brasileiros atuais, de vários deles, a bateção de cabeças funciona como estacas espetadas no coração: ferem e enfraquecem as organizações, em vez de revigorá-las.
Travadas sem densidade programática e ideológica, as lutas internas não produzem valor ou melhores agregações. O que deveria ser um choque de arejamento e diversificação, ao final do qual se atingiria uma unidade de melhor qualidade, acaba por se reduzir a meras brigas de correntes. Lutas por poder, pura e simples- mente. Em vez de se purificarem internamente, as organizações são contaminadas por venenos e toxinas que as debilitam.
O PSDB é o caso exemplar. O partido, que já foi um dos grandes artífices da democratização brasileira, mergulhou na escuridão profunda. Encontra-se sem rumos, entregue a caciques e a lideranças despreocupadas com o futuro da própria legenda. Os muitos caciques pelejam entre si e deixam de lado o funda- mental, comprometendo seriamente a imagem e a mitologia parti- dária. O PSDB engasga, sufoca e ameaça se dissolver.
Por erros acumulados, pela falta de uma direção empreende- dora, pelo ônus derivado das estripulias de Aécio Neves (sobretudo a partir das denúncias dos irmãos Batista), o partido ingres- sou na pior luta interna de sua história, fase na qual ele vai se inviabilizando politicamente. Agora, ficou difícil que os tucanos continuem a se apresentar como alternativa ao PT e ao PMDB. Se nada for feito de vigoroso para promover o reencontro do partido com suas tradições e seu perfil socialdemocrata, não haverá força que impulsione o tucanato. Ele será deslocado para as margens.
Sem o PSDB em boas condições, e com os demais partidos enfraquecidos como estão, diminuem as chances de que se possa ter, em 2018, um polo democrático que impulsione um bom e amplo debate e articule uma saída mais razoável para o país. Uma megapolarização entre o “novo” e o “velho” poderá ganhar contornos catastróficos.
Com a degradação do PSDB, perdem sobretudo os tucanos. Mas perde também a democracia como um todo. Sistemas políticos que assistem à decomposição de seus entes estruturadores ficam mais fracos e com menor capacidade de articulação. O país fica sem eixo e de certo modo menos democrático. Passa-se o mesmo com o enfraquecimento do PT.
O PSDB tem uma história. Como toda história, teve seus altos e baixos mas, vista em bloco, foi até aqui mais positiva que negativa. O partido definiu uma identidade e acumulou alguns trunfos importantes, o que fornece um patrimônio que poderá ajudá-lo a recuperar o fôlego e a sensatez, expurgando o que deve ser expurgado e formulando uma nova e mais substantiva agenda.
Polarizações destrutivas
PSDB em crise, PT recolhido, PMDB às voltas com as dificuldades de Temer, partidos em geral excitados com a proximidade de 2018. Todos começam a fazer cálculos, tendo em mente a conquista dos eleitores. O troca-troca de legendas combina-se com a abertura da temporada de caça aos “melhores nomes” e a busca da posição ideal para apoiar esse ou aquele candidato.
O estoque de artefatos polarizadores é grande: avanço ou retrocesso, reforma ou conservação, progresso ou reação, populismo ou responsabilidade, desenvolvimentismo ou neoliberalismo. Não faltam, evidentemente, os conhecidos esquerda x direita e PT x PSDB, ora em versões repaginadas ora no formato anquilosado de sempre.
A pergunta que ninguém faz é: a quem interessa a reposição dessas polarizações? Qual delas pode expressar os dilemas atuais do país e organizar os interesses fundamentais dos cidadãos?
O ponto comum dessas construções é a recusa ao diálogo, a reiteração de divisões improdutivas, a falta de uma articulação política que ofereça uma perspectiva de futuro para os brasileiros e modernize o país. Para dar vida a isso, criam-se campos ideoló- gicos antípodas, soltos no ar, alimentados por frases de efeito e sem pé na realidade. Parte-se de uma visão de que a sociedade é mais dividida do que se vê, e com isso criam-se divisões por sobre divisões, agravando ainda mais o quadro.
Polarizações não devem ser temidas. São intrínsecas ao jogo político e ganham peso quanto mais a situação social é complexa, quanto mais a agenda nacional é difícil e desafiadora, quanto mais o poder se mostra disponível.
Se não há consenso sobre quase nada, por que na política os polos não cresceriam? Se os próprios partidos não conseguem preservar seu molejo democrático e sua capacidade de alcançar uma autêntica “unidade dos distintos”, que autoridade teriam para condenar as polarizações?
O problema surge quando as polarizações fogem do controle e se artificializam, traduzindo-se em tensões insuperáveis, rupturas e intolerância. Podem assim se tornar crônicas, levando ao infinito a dialética amigo-inimigo e corroendo as bases mesmas de um consenso mínimo. Com isso, o que poderia haver de virtude nas polarizações se traduz por inteiro em seu contrário. Todos perdem.
Com mais polarizações, aumenta a tentação de enquadrar tudo em esquemas binários tipo esquerda x direita. Com isso, pela própria dinâmica da luta ideológica radicalizada, deixa-se de lado o diagnóstico em benefício da agressividade verbal, do ardor retórico, do exagero performático. Para que tenha efeito, tudo é simplificado ao extremo, vira coisa plana, rasteira.
Vai-se assim num crescendo. No topo da escalada, o convite à boçalização cívica, o empobrecimento político, o desprezo pelos adversários ou pelos que pensam diferente, tudo devidamente empacotado por convicções e propagandas que simulam soluções rápidas e radicais, facilidades e biografias heroicas. Mentiras, invencionices e mistificações ganham livre curso.
É uma “guerra” complicada, pois não são se limita aos entrechoques ideológicos. Entram na liça também as opiniões – sempre mais desenfreadas – e as identidades, que se afirmam por sobre classes, grupos de referência e partidos. Tudo devidamente turbinado pelas redes, onde as propostas para que se criem conexões e “pontes” (bridging) são fuziladas como se estivessem a priori comprometidas com concessões inadmissíveis. É nas redes, aliás, que melhor se expressa a tendência a que se hipervalorize o próprio gueto ou tribo e se menospreze tudo o que respira fora dele.
A consequência disso é a dificuldade para que se formem maiorias razoáveis, reflexivas, sem as quais não há como se ter avanços em propostas reformadoras ou lutas por direitos. Viver a vida como se fosse uma batalha permanente pela afirmação de identidades particulares, por exemplo, pode ser o caminho mais curto para que os preconceitos se reproduzam. O eixo virtuoso – o combate sem trégua ao preconceito explícito ou subentendido – cede, por falta da capacidade de produzir apoio e persuasão.
Ao se engalfinharem em confrontos artificiais ou secundários, os “guerreiros” perdem de vista aquilo a que se deve dar prioridade. Vão ajudando a produzir quantidades absurdas de informa- ção de má qualidade, saturando a agenda de proposições excludentes que nada acrescentam à construção democrática ou ao reformismo de que se necessita.
Esta modalidade inconsciente de burrice não é privilégio de nenhuma corrente política ou ideológica. É comum a todas.
Ela se mostra, à esquerda, pelas lentes do maniqueísmo e do esquematismo, que anunciam um “novo mundo” que estaria ao alcance da mão, bastando tão somente uma boa dose de intransi- gência, de espírito contestador e de “vontade política”.
O bestialógico mais à direita é seguramente muito pior. Agrega gente que não se envergonha de praticar o reacionarismo mais tosco, burilando-o com frases de efeito e justificativas pífias. São pessoas que exibem publicamente sua simplicidade argumentativa, que falam de “marxismo cultural” sem saber do que estão falando, que manipulam descaradamente alguns gigantes do pensamento crítico (Marx, Benjamin, Gramsci, Marcuse) e são incapazes de reconhecer as sutilezas da política e do debate de ideias.
Para gente desse último tipo, tudo que questiona o que está errado, tudo que canta um futuro mais justo, tudo que divulga sonhos e esperanças cabe em uma única caixinha: “comunistas”, que não somente comem criancinhas como querem infernizar a vida de todos e envenenar a alma dos viventes.
Seja qual for o ângulo a partir do qual se olhe, o fato é que aquilo que tem sido chamado de “velha política” estrebucha, mas nos seus estertores mostra força para bloquear o surgimento de uma “nova política”.
Um centro inclinado à esquerda
A agenda complexa, a falta de clareza intelectual, a excitação ideológica e a fragmentação política funcionam entre nós como engrenagens que movimentam uma máquina polarizadora.
Pouco se faz para enfrentar esse quadro desagregador, que se vai naturalizando. Fala-se muito em “centro democrático” mas ele não se materializa, com o que não se introduz mais racionalidade na competição política nem se oferecem ideias e propostas substantivas claras aos cidadãos.
A democracia alimenta-se do conflito. Polarizações não somente são inevitáveis, como ajudam a manter a temperatura política no limite do suportável e a explicitar diferenças que pulsam no terreno social.
Acontece que uma multiplicidade de polos não é uma virtude. Pode mesmo funcionar para impedir a plena manifestação dos polos “verdadeiros”, aqueles que carregam no ventre os interesses fundamentais da sociedade, as contradições principais. Divisões artificiais e pouca disposição para o diálogo terminam por criar campos ideológicos antípodas, soltos no ar, sem pé na realidade. Parte-se da ideia de que a sociedade é mais dividida do que se vê, e com isso criam-se divisões por sobre divisões. A intolerância cresce, as tensões tornam-se insuperáveis e provocam rupturas. Esfuma-se assim o que poderia haver de virtude nas polariza- ções. O antagonismo criador esfria, sendo substituído por atritos sem perspectiva de consenso.
O Brasil dos últimos anos esteve condicionado pela polariza- ção PT vs. PSDB. Tamanha foi sua força que a sociedade se deixou encantar com o que se anunciou como sendo duas matrizes de governança e de projeto nacional. Nem petistas, nem tucanos, porém, conseguiram se firmar como forças dotadas de densidade programática e vocação hegemônica. Foram se desconstruindo ao longo do tempo, e chegaram hoje ao ponto mais baixo de sua trajetória. A sociedade, por sua vez, foi-se saturando com a reite- ração daquela polarização, roubando-lhe chances de reposição.
Polarizações podem funcionar como fatores de organização, nos quais o antagonismo qualifica o quadro geral. Nem sempre os polos estão fechados para entendimentos e composições. Podem conviver no interior de polos maiores e convergir para um patamar comum. É o segredo da unidade democrática, que é feita de soldagens dialó- gicas, e não impositivas, entre correntes distintas.
A política sofre quando não dispõe de patamares unificadores, que possibilitem o diálogo entre campos distintos. Afasta-se dos cidadãos, assiste à apresentação de propostas diversionistas e ao surgimento de candidaturas voluntaristas ou regressistas.
No Brasil atual, as forças democráticas enfrentam dificuldades para romper os círculos que estreitam sua movimentação e impedem sua reposição vigorosa na cena nacional. Precisam recusar o papel subalterno a que foram relegadas. Devem contestar os ataques da direita jurássica, confrontar a ingenuidade social e problematizar a ideia de que a solução passaria por um condottiere acima do bem e do mal, apresentando em contrapartida uma renovada ideia de país e uma agenda nacional inclusiva.
A esquerda democrática cumpre um papel nessa operação. Um “centro” sem ela terá reduzida potência reformadora e tenderá a ser hegemonizado pelo conservadorismo. Um centro democrático inteligentemente inclinado para a esquerda, por sua vez, poderá organizar uma agenda com sensibilidade social e disputar as multidões.
Uma esquerda democrática não é “inimiga do mercado”: seu anticapitalismo é realista, respeita a correlação de forças e apoia- se numa teoria social que se dedica a compreender as novas formas do capitalismo, da luta de classes, do modo de vida, do mundo do trabalho e do emprego. Seu eixo é a regulação política do sistema econômico, de modo a que se reduzam suas incon- gruências e sua capacidade de produzir desigualdades.
Mas esta esquerda aprendeu que também é preciso regular e controlar o Estado, de modo a fazê-lo atuar em consonância com as expectativas de crescimento econômico e de justiça social, sem se comprometer com políticas de gasto público desprovidas de “responsabilidade fiscal”. Incorporou os valores do liberalismo político e da democracia progressiva, com os quais defende a necessidade de um reformismo gradual aberto para a justiça social, os direitos e a modificação das estruturas sociais que produzem desigualdade.
Um centro que se componha a partir do liberalismo político precisa assimilar a generosidade democrática e social da esquerda. Num país como o Brasil, aliás, somente assim poderá cumprir uma função progressista e preparar a pista para que o país derrote seus piores inimigos – a desigualdade, a injustiça, o crescimento não sustentável, a corrupção sistêmica, o desres- peito, as discriminações que vitimizam pobres, negros, pardos, índios, homoafetivos e mulheres.
Concebido como plataforma suprapartidária integrada por diferentes formas de pensar – um permanente compósito de conflito e consenso, não um arranjo de acomodação e conciliação –, tal centro poderia organizar a parte mais ativa da sociedade, hoje afastada da política mas interessada em fiscalizar os governos e que necessita, por isso mesmo, das práticas e dos valores que a esquerda democrática cultua.
A construção dessa plataforma requer habilidades artesanais raras, foco no fundamental, respeito à diversidade, tolerância e sabedoria política para administrar interesses e modular o tempo. Necessita de lideranças, mas não de um líder todo-poderoso. Precisa contar com o desprendimento dos partidos, especialmente dos maiores, que costumam olhar as eleições como uma “oportuni- dade de negócios”, não como uma oportunidade política, organiza- cional. Nessa toada, movidos por suas lógicas internas, os partidos complicam a gestação de uma unidade que seria vantajosa para o país. Por isso, será preciso haver engajamento e pressão cívica, social, algo que, de resto, também precisa ser construído.
Um ataque bem concatenado terá de ser desferido contra os males e as inconsistências que afetam o país e bloqueiam seu futuro. Este deveria ser o objetivo principal dos democratas brasileiros. Se conseguirem reduzir a competição interna que os tem prejudicado e, por extensão, prejudicado a sociedade, poderão ser o aríete que derrubará as muralhas que nos atrasam e nos separam de um futuro melhor. O “centro democrático” não cairá do céu. Depende de muito empenho e determinação. Mas precisa ser martelado desde logo, para ter chances de produzir a indispensável convicção política e social.