retórica
Eliane Cantanhêde: Bolsonaro, agora 'Capitão Gotinha', muda a retórica, assume as vacinas e vai abrir as torneiras
O Brasil vai assistir a uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com Lula ressentido e disposto a tudo e Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos
À deriva, à mercê do coronavírus e exportando novas cepas para o mundo, o Brasil vai assistir – e sofrer – uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com o camarada Lula ressentido e disposto a tudo e o capitão Jair Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos. Acaba de surgir o "Capitão Gotinha", o maior defensor da vacina no planeta. Acredita quem quer. E o pior é que tantos acreditam em qualquer coisa.
Os dois lados estão armados até os dentes e só nos resta torcer para que a imagem de retórica não vire realidade na era de um presidente com delírios autoritários e fetiche por armas. Depois de papai Jair combater incansavelmente as vacinas, a família presidencial assume um slogan oposto: "Nossa arma agora é vacina". Mas deixaram rastro, fantasiando o doce Zé Gotinha de miliciano, com um fuzil em forma de seringa. Argh!
E a deputada Carla Zambelli (PSL-SP)? Ao assumir a emblemática Comissão de Meio Ambiente da Câmara, a bolsonarista posou para o Estadão com cara de brava e... uma pistola 380. Não, não é contra desmatadores, traficantes, invasores de terras indígenas e criminosos em geral. Seus alvos são as ONGs!
Tudo isso num ambiente contaminado pelos recados velados e ameaças explícitas de Bolsonaro após a entrada de Lula no campo de batalha. Nervoso, o presidente deu um salto triplo carpado a favor das vacinas e atacou, além de Lula, governadores inimigos, como João Doria (SP), e amigos, com Ibaneis Rocha (DF). E acenou com insurreição, saques em supermercados... Eu, hein?! É convocação? Guerra civil?
Lula calibrou milimetricamente o confronto com Bolsonaro e a bandeira branca para o resto, enquanto Bolsonaro perdeu as estribeiras. Mas, afora táticas e estratégias, a polarização vai mostrar o quanto os extremos se aproximam, se parecem e se alimentam mutuamente, inclusive com métodos semelhantes de destruição de adversários, tratados como inimigos, e causas surpreendentemente comuns, camufladas pela ideologia.
PT e Bolsonaro, unha e carne no cerco a Sérgio Moro e à Lava Jato, trabalharam pelo mesmo candidato à presidência do Senado e estavam muito mais próximos na disputa na Câmara do que parecia à luz do dia. Agora, esquartejam a Lei das Improbidades – não para proteger os probos. Na campanha, sítio, triplex, rachadinhas e mansões milionárias farão a festa em palanques e na internet. Pior para Lula, que carrega os fardos do mensalão e do petrolão.
Na economia, PT e bolsonarismo caminham de mãos dadas no "nacionalismo" anacrônico, estatizante e corporativista. As corporações petistas estão na educação, cultura, ambientalismo, sindicatos. As bolsonaristas são mais "hard": militares, policiais, reinos universais, quartéis e cultos. (Lula, lembre-se, jamais teve arroubos contra a democracia, ao contrário de seu oponente, com esse exército.)
Os dois lados douram a pílula para atrair o capital, mas gostam mesmo da boa e velha mão pesada em Petrobrás, BNDES, BB, Caixa, Eletrobrás e Correios. Nada como manipular preços politicamente, alardear a "função social" das estatais e ter o Centrão a bordo. Mas, quando entra o "social", a balança pesa a favor de Lula. Além de correr desesperado atrás de vacinas, Bolsonaro será obrigado a mudar a retórica, acampar no Nordeste e abrir as torneiras.
Se o centro é uma incógnita, o Centrão (ou direitão) é fácil. Quem está com Bolsonaro e já esteve com Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer irá para onde os ventos soprarem. Como define um expert em Centrão, eles são garçons diligentes e cuidam bem da louça suja, não estão nem aí se o menu é comida chinesa ou pizza napolitana. Querem boa remuneração e nacos de poder, que Lula, Bolsonaro e centro dão de bandeja. Quem dá mais?
Caetano Araújo: Duas Américas
Com exceção dos enclaves francófonos e holandeses, nosso continente é culturalmente bipartido e as metades ibérica e anglófona se encontram na fronteira entre México e Estados Unidos. Daí a importância simbólica do primeiro encontro entre os presidentes Biden e Lopez Obrador, por meio de videoconferência, em primeiro de março passado.
Ficou claro, de início, a diferença da posição americana em relação ao governo anterior. A retórica agressiva, bem como a abordagem do problema migratório como caso de polícia, foi descartada pelo governo democrata que se inicia e substituída pela intenção declarada de construir e acumular consensos em todos os pontos de divergência e conflito da agenda bilateral.
Mas as mudanças percebidas foram além do tom e da linguagem empregada no diálogo. O conteúdo da agenda é novo também. Três foram os grandes temas assinalados: mudança climática, ou seja, proteção ao meio ambiente e transição para fontes de energia limpa; o combate à pandemia; e a cooperação no trabalho de regularizar o movimento de migrantes em direção ao norte, com a prevenção consequente da migração ilegal.
Claro que essa agenda não se restringe, na perspectiva americana, às relações com o México, mas devem ser replicados no diálogo a ser travado com todos os países da região, contempladas as especificidades de cada caso. Ou seja, é possível antever o tamanho das dificuldades que se avizinham para países descuidados com a questão ambiental e omissos no combate à pandemia.
Importa também tentar discernir os desdobramentos possíveis dessa agenda, no caso de um diálogo continuado e produtivo em torno dessas questões. No caso da mudança climática, ações coordenadas de contenção e, num enfoque otimista, reversão do processo, demandarão a construção de um conjunto de regras e objetivos comuns, a valer no âmbito do continente.
O mesmo ocorre no caso do combate à pandemia. Parece claro que a fábrica de doenças, por mudanças ambientais e da sociabilidade humana, está funcionando a pleno vapor, de modo que o simples controle da ameaça atual não é bastante. Precisamos transitar para uma política de segurança sanitária continental, na qual a Organização Panamericana de Saúde deve ganhar novas atribuições.
Finalmente, a questão da migração exige o equacionamento comum de questões espinhosas como uma nova estratégia de controle e prevenção do consumo de narcóticos; a restrição progressiva da produção e circulação de armas de fogo; o combate ao crime organizado; e a reconstrução econômica dos países da América Central, origem hoje das principais caravanas de migrantes em direção ao norte.
Hélio Schwartsman: Explorando as ambiguidades
Declarações da campanha de Bolsonaro apresentam característica da retórica populista
Jair Bolsonaro conseguiu a façanha de ser eleito presidente sem ter dito o que pretende fazer depois de 1º de janeiro. Ou melhor, sua campanha soltou tantas e tão contraditórias declarações que qualquer proposta que o governo venha a apresentar será compatível com alguma das sinalizações emitidas.
Podemos tanto esperar uma reforma da Previdência vigorosa, quanto uma versão ultra-aguada daquela que foi proposta na gestão Temer. Para os que gostam de marcar “nenhuma das anteriores”, outra possibilidade é a mudança do regime de repartição para um de capitalização, que a maioria dos técnicos considera pouco viável.
Também não sabemos se veremos um programa de privatizações tão ousado que inclua praias e parques nacionais —seria a única forma de chegar ao R$ 1 trilhão desejado por Paulo Guedes—, ou um tão tímido que deixe de fora estatais “estratégicas” como Petrobras, BB, CEF e Eletrobras, que são as que valem dinheiro grosso. Em algum momento, tudo isso foi vocalizado ou ao menos insinuado por algum membro do núcleo duro bolsonariano.
Tal ambiguidade não chega a ser uma surpresa; ao contrário, é uma característica da retórica populista, que evita definições que possam alijar eleitores ou converter-se em cobranças no futuro. O próprio discurso da vitória de Bolsonaro teve uma versão mais institucional para o grande público, que não foi ruim, e outra, com mais provocações, para a turma das redes sociais.
É interessante notar que mesmo as falas mais veementes e ultrajantes do clã Bolsonaro costumam depois, caso provoquem comoção, ser relativizadas como se não passassem de brincadeira ou tivessem sido descontextualizadas. É uma forma de tentar normalizar a intimidação.
O problema com a ambiguidade é que ela funciona melhor na campanha do que no governo. Para fazer as coisas acontecerem, Bolsonaro precisará tomar decisões, isto é, arbitrar perdedores.