república oligárquica
Vladimir Safatle: A república oligárquica precisa morrer
O processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador
Os resultados das eleições do último domingo evidenciaram duas linhas principais de confronto a animar a política brasileira. Não seria mero exercício retórico afirmar que nosso destino a curto e médio prazo depende do desdobrar de tais linhas.
A primeira delas indica a resiliência da República oligárquica brasileira. Os números mostram com clareza a hegemonia eleitoral de uma constelação na qual encontramos representantes tradicionais do aparato econômico e da chamada “direita de sobrenome”, ou seja, esse setor da elite política que tem relações históricas e familiares com o poder, espalhado em múltiplos níveis regionais e locais. Tal grupo há muito conseguiu se consolidar como verdadeira “casta” política e é marcado por práticas políticas conhecidas, nas quais se misturam brutalidade policial e racista, guerra contra pobres, ausência de qualquer formulação de fortalecimento do espaço comum, assim como submissão aos múltiplos interesses imobiliários e concentracionistas em operação em nossas cidades.
Esse grupo conseguiu se vender, ironia maior do Brasil contemporâneo, como “anteparo de racionalidade” contra o “extremismo” do Governo federal, como retorno da “política” contra o “populismo”. Na verdade, essa foi sua estratégia para reconstituir a balança do poder diante da ascensão de outro grupo, a saber, uma extrema direita popular, composta por setores que eram normalmente sócios menores e subalternos dos consórcios do poder. Setores compostos por: milicianos, representantes do aparato repressivo policial, agitadores midiáticos de extrema direita e pastores. Normalmente, eles eram servidores da direita oligárquica que conseguiram, nesses últimos anos, subir ao primeiro time, amparado pela força histórica das tendências fascistas na sociedade brasileira.
Esta direita oligárquica, que comunga com a extrema direita o mesmo projeto econômico de espoliação e concentração, a mesma brutalidade social e indiferença no uso da violência de Estado, mas que sabe usar melhor planilhas de CEO, conceitos acadêmicos e sabe onde fica a Avenue Foch, viu-se em meados deste ano a ponto de ser definitivamente afastada do poder dentro de uma escalada pré-golpe. Como a arte da sobrevivência lhe é um traço inerente, ela soube reordenar suas forças, capitanear chamados a “frente ampla e redentora contra o fascismo e em prol da defesa da democracia” para simplesmente repactuar uma divisão provisória de poder. Agora, ela soube se vender nas eleições como uma espécie de “volta à normalidade”, mesmo que essa normalidade seja o verdadeiro nome da catástrofe brasileira.
Ela tentará agora colocar em circulação estratégias aprendidas observando o comportamento de sua matriz, a saber, a direita oligárquica norte-americana encarnada no Partido Democrata. Nas últimas décadas, o Partido Democrata em seu eixo Clinton-Obama procurou compensar a aliança incondicional com políticas militaristas e de preservação do capitalismo financeiro de Wall Street com um “rosto mais humano” expresso na tentativa de integração de representantes dos setores mais sistematicamente violentados da população (pretos, LGBT’s , mulheres), sem mexer em praticamente nada nas engrenagens de espoliação, de precarização e sujeição socioeconômica que lhes afetam mais diretamente. Afinal, não é possível nomear Timothy Geithner (representante maior dos interesses dos sistema financeiro) secretário do Tesouro na administração Obama e fingir que se está a lutar pela transformação estrutural contra as múltiplas formas de sujeição social. A pobreza é a matriz das piores violências.
Mas há um problema que faz essa equação não fechar muito bem. A revolta vinda desses setores é potente, explosiva, assim como é real seu desejo de transformação. As tentativas de vampirizar sua força pela direita oligárquica equivalem a tentar domar, com velhos truques de mágica, processos com verdadeiro potencial de mudança. Ou seja, a tendência de que esse arranjo se quebre é grande e chegará uma hora que o espantalho de “todxs contra o trumpismo” não funcionará mais. De toda forma, o trabalho do Partido Democrata é relativamente facilitado porque eles não têm, por enquanto, nenhuma força à sua esquerda com quem se confrontar. Esse não é, felizmente, o caso do Brasil.
É nesse ponto que encontramos a segunda linha principal de confronto que emerge do primeiro turno das eleições. Se a primeira se resume às estratégias de preservação das oligarquias locais contra a extrema direita de matriz integralista, sob fundo de concordância geral, a segunda diz respeito à paulatina incorporação de novos processos coletivos de exercício do poder popular. Por isto, essas eleições foram também o início de um novo embate que começa, não por acaso, no centro econômico e financeiro do país: São Paulo.
São Paulo é uma das representações mais bem acabadas do poder das oligarquias. O Estado é governado de forma ininterrupta, há quase quarenta anos, pelo mesmo grupo e suas divisões internas. De Montoro a Doria, a linha é reta e constante. Diante de tanta continuidade há de se imaginar que São Paulo deva ostentar resultados robustos de políticas inovadoras nas áreas de saúde, educação, transporte, habitação, saneamento ou qualquer outra área. Mas a mediocridade dos resultados das políticas públicas do Estado só é ofuscada pela tranquilidade olímpica com que sua oligarquia dirigente se vê exercendo algo como um direito divino de mando entregue por deus em pessoa desde a época dos cafezais e dos bandeirantes caçadores de homens.
Há de se admirar os representantes dessa casta a falar, sem tremer, da “experiência” que porventura teriam na arte de “ser gestores”. Alguém poderia, nesses momentos, perguntar: experiência exatamente em relação a o quê? A como tentar despoluir um rio por 30 anos, como o Tietê, sem sucesso gastando 1,7 bilhão de reais só nos últimos noves anos? A como tentar passar ração humana como merenda escolar? A como implantar políticas de combate a pandemia enquanto obrigava mais de 2 milhões de pobres a pegarem transporte público lotado? A construir Rodoanéis que nunca terminam e eivados de processos por corrupção que, milagrosamente, caem no esquecimento? Talvez haja um dialeto ainda não identificado nessas terras onde “experiência” significa algo oposto ao seu sentido trivial em português castiço.
Contra isto, novas forças lutam por mostrar que “governar” pode significar abrir os processos decisórios e deliberativos à inteligência coletiva dos movimentos sociais e profissionais, à inteligência coletiva dos artistas, à inteligência coletiva das universidades. É isto que se está a defender em São Paulo, contra a falácia de um saber tecnocrata que sempre foi apenas a gestão em nome da preservação dos interesses oligárquicos de sempre. Esse processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador. Diferente dos norte-americanos, esses setores não precisam lidar aqui com as travas impostas pela realidade política bipartidária. Por isso, eles têm campo para declinar sua potência de transformação no espaço estendido dos embates econômicos, políticos e sociais, como vimos ocorrer na sublevação popular do Chile, com seus resultados surpreendentes. Se bem sucedido entre nós, esse processo pode ser o início de uma abertura do campo político à energia de tudo aquilo que a oligarquia temeu e procurou apagar.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo