renda mínima
Sergio Lamucci: O cenário negativo para a renda dos mais pobres
O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados, mais afetados pela pandemia
O cenário para a renda dos brasileiros mais pobres em 2021 é bastante negativo. Com a piora da pandemia da covid-19 e o avanço lento da vacinação, a atividade econômica foi prejudicada no primeiro semestre, resultando na continuidade da fraqueza do mercado de trabalho, num ano em que o auxílio emergencial será bem menor do que em 2020. A desigualdade de renda, nesse quadro, voltará a crescer.
Um estudo da Tendências Consultoria Integrada estima que haverá neste ano um aumento de 1,2 milhão de domicílios nas classes D e E, definidas como as que têm rendimento mensal domiciliar de até R$ 2,6 mil. Com isso, essas faixas de renda deverão passar a responder por 54,7% do total de residências no país.
“O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados”, aponta o trabalho, ressaltando que “o caráter regressivo da pandemia permanece desproporcional” para as pessoas de menor nível de escolaridade.
“A piora do balanço de riscos para a atividade econômica deve restringir o ímpeto de contratações, sobretudo no segmento de serviços, cuja tendência de crescimento deve ser interrompida, à vista do recrudescimento do isolamento social em diversas localidades do Brasil.” A consultoria revisou recentemente a estimativa para a expansão do PIB em 2021 de 2,9% para 2,7%. Ainda que a nova versão do programa que permite a suspensão do contrato de trabalho ou a redução de jornada e de salários (o BEm, a ser reeditado em breve) deva contribuir para sustentar o emprego formal, a renovação do auxílio emergencial não deverá conter a alta dos desempregados, avalia a Tendências.
O auxílio emergencial atingiu um valor total de R$ 293 bilhões em 2020, o equivalente a 4% do PIB. De abril a agosto, o valor médio foi de R$ 600; de setembro a dezembro, de R$ 300. Em alguns meses, alcançou 67,9 milhões de pessoas, equivalente a um terço da população. Neste ano, o Congresso aprovou R$ 44 bilhões para o benefício fora do teto de gastos, a ser pago em quatro parcelas, com um valor médio de R$ 250. Se o benefício em 2020 foi amplo demais, neste ano pode haver o problema oposto - o valor é mais baixo, atenderá a menos pessoas e valerá por um prazo mais curto.
“Diante do menor auxílio emergencial e da perspectiva de recuperação moderada do mercado de trabalho, a massa total de renda deve recuar 3,8% em 2021”, impedindo a manutenção no mesmo nível de 2020, diz a Tendências. Essa é a variação prevista em termos reais, já descontada a inflação. No conceito da consultoria, a massa total considera o rendimento de todos os trabalhos, o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC, voltado para idosos de baixa renda e pessoas com deficiência), os benefícios previdenciários e outras fontes de renda. No ano passado, o indicador cresceu 5,2%, fortemente impulsionado pelo auxílio emergencial. Neste ano, haverá uma ressaca mais intensa da massa de renda no Norte e Nordeste, após o enxugamento dos repasses emergenciais, aponta a Tendências.
A expectativa dos analistas é que a retomada da economia ocorrerá no segundo semestre. Com o avanço da vacinação, as medidas de restrição à mobilidade tendem a ser relaxadas. Na visão da Tendências, a economia brasileira deve manter trajetória de gradual recuperação em 2021, sem uma melhora plena do mercado de trabalho, devido a fatores como “o agravamento da pandemia, os recentes sinais de fraqueza de grandes setores, a redução do arsenal de políticas anticíclicas e as incertezas da agenda de política econômica”.
Num primeiro momento, a retomada da atividade deve favorecer as classes sociais mais altas, segundo a Tendências. “A elite do funcionalismo público sente menos os efeitos da crise, já que a dinâmica econômica pouco interfere em seus salários e planos de carreira”, aponta o estudo, observando também que a maior concentração de empregadores no topo da pirâmide social propicia um rápido reequilíbrio financeiro das famílias. “Com rendimento atrelado aos ganhos de suas empresas, os donos de negócio buscam recuperar o padrão histórico de lucro, antes de reajustar salários de empregados e recontratar”, diz a Tendências.
Para as classes D e E, as perspectivas são desanimadoras. “A mobilidade social das classes D e E deve ser reduzida nos próximos anos, acompanhando um fenômeno típico de países com alta desigualdade de renda”, avalia a consultoria. “O maior entrave ao crescimento da renda dos estratos sociais mais pobres é a educação não revertida em produtividade. O ingresso no mercado de trabalho é o principal meio de redução da pobreza, mas não é condição suficiente para superá-la.”
A Tendências observa que o mercado de trabalho brasileiro é fortemente caracterizado por baixas remunerações, elevadas desigualdades entre grupos de população ocupada, altas taxas de informalidade e marcante heterogeneidade entre os setores produtivos. “O alto nível de desemprego, a falta de ganho real no salário mínimo, o elevado grau de informalidade e a subutilização dos trabalhadores devem impedir ganhos elevados de renda nas classes D e E.” Nas projeções da Tendências, depois de crescer 23,4% em 2020 em termos reais, na esteira do auxílio emergencial, a massa de renda das classes D e E deve cair 14,4% em 2021, crescendo a uma média de apenas 0,85% de 2022 a 2025, em estimativas que já descontam a inflação. Já a massa de rendimentos da classe A, que subiu 1% em 2020, vai ter aumento real de 2,8% neste ano e de 5,6% no ano que vem, com um avanço próximo a 4,5% nos três anos seguintes, estima a consultoria.
Para escapar desse cenário negativo para a renda, é fundamental primeiro acelerar a vacinação. Isso permitirá afrouxar as medidas de restrição à mobilidade social, beneficiando em especial a recuperação do setor de serviços, o maior empregador da economia. Também é essencial a renovação imediata dos programas de empréstimos a micro e pequenas empresas e de proteção ao emprego, para dar fôlego às companhias de pequeno porte. Se a recuperação da atividade continuar a patinar, uma nova extensão do auxílio emergencial deverá ser necessária, o que será um desafio num quadro de penúria das contas públicas.
José Roberto Mendonça de Barros: Vamos bater no muro?
A percepção de que a situação fiscal se deteriorou muito é agora universal
Do ponto de vista econômico, a resposta brasileira ao coronavírus foi muito robusta, pois algo como 12% do PIB foi transferido para mais de 65 milhões de pessoas, um valor bastante concentrado a partir de junho. Isso provocou um grande salto na demanda das famílias, que ativou parte do comércio e da indústria. Como resultado, a queda do PIB deste ano será menor do que se projetava, ficando entre -4% e -5%.
Entretanto, boa parte do setor de serviços não viveu essa melhora. Falo aqui de viagens, de toda a cadeia de hospitalidade, da economia criativa e de tudo o que depende de aglomeração. Essa situação não mudará de forma substancial, uma vez que o número de novas mortes e de novos casos vem caindo de forma muito lenta, sem falar no risco de uma segunda onda, como a que ocorre atualmente na Europa.
Em consequência, o mercado de trabalho vem se recuperando com certa lentidão, até porque muitas empresas quebraram ou encolheram, reduzindo a oferta de empregos permanentes. Mais ainda: já dá para perceber que o grande salto do processo de digitalização e da automação que resulta da pandemia também está reduzindo o número de empregos permanentes, processo que se verifica no mundo inteiro. Isso mostra a dificuldade de uma recuperação em “V”. Para citar um único exemplo: pense em quantas agências bancárias se tornaram desnecessárias como resultado do inacreditável avanço do “home banking” e da digitalização dos meios de pagamento – isso sem falar no sucesso que fará o Pix. O mesmo raciocínio se aplica para inúmeros outros serviços, como venda de carros, assistência técnica, ensino etc.
Por outro lado, a demanda de consumo deverá se reduzir no início do próximo ano. O fim do programa do coronavoucher deprimirá a renda disponível de muitas famílias, mesmo que a desejada expansão do Bolsa Família consiga ser operacionalizada, porque cairá drasticamente o número de beneficiários. Essa queda de renda, como já argumentado, não será compensada pela criação de novos empregos permanentes. Além disso, a forte elevação do custo da alimentação, que segue crescendo acima de 10%, reduz o poder de compra de muita gente. Apenas a entrada de uma nova safra, em 2021, reverterá essa tendência.
Em paralelo, não há atualmente qualquer indicação de elevação dos investimentos públicos ou privados. Ao contrário, continuamos a ver uma queda nos investimentos estrangeiros. Alguma surpresa? Basta pensar nos reveses sofridos pelo ambiente regulatório (como no caso da Linha Amarela, no Rio de Janeiro), nos atrasos em projetos que estão no Congresso (Lei do Gás) e nas privatizações que simplesmente não existem…
Tudo indica que o crescimento de 2021 ficará pouco acima de 2% e que a inflação será maior que a deste ano. Além da pressão no preço de alimentos, existem fortes altas em matérias-primas industriais básicas, químicas e metálicas, cujo repasse aguarda apenas alguma recuperação da demanda. Por baixo dessas pressões está a desvalorização do real que, dadas as incertezas atuais, tem pouca chance de ser revertida. A taxa de juros será elevada no próximo ano, ou mesmo antes.
A percepção de que a situação fiscal se deteriorou muito é agora universal. Isso mesmo sem os gastos adicionais que o Executivo e o chamado Centrão querem incluir na proposta orçamentária para o próximo ano. Como resultado, a rolagem da dívida pública agora se faz apenas com papéis mais curtos e as taxas mais longas já subiram no mercado quando comparadas a algumas semanas atrás.
Temos assim um impasse. De um lado, a situação fiscal exige uma resposta: apontar qual a trajetória que se objetiva uma vez passada a emergência do combate ao vírus. De outro, Brasília segue em festa como nos bons tempos, com óbvio apetite por elevar os gastos – e não falo apenas do Executivo, mas também de boa parte do Legislativo e do Judiciário (alguém aí pensou do novo Tribunal Regional Federal em Minas Gerais?).
No meio disso tudo, o Ministério da Economia, cada vez menor e sem rumo.
Daí a pergunta título: se o embate crescer, vamos bater no muro?
*Economista e sócio da MB Associados
Bruno Boghossian: Bolsonaro toca a vida como se Guedes não estivesse mais ali
Nem os pilares da equipe econômica têm sido levados muito a sério dentro do governo
Paulo Guedes pode até completar mais uma semana no cargo, mas o governo já deixou o ministro no chão. Nas últimas 24 horas, Jair Bolsonaro e seus aliados tocaram a vida como se o chefe da equipe econômica nem estivesse mais por ali.
Pela manhã, o presidente embarcou para o Nordeste pela sétima vez desde junho. A agenda era parte de uma turnê pela reeleição coordenada pelo ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional). Ele se tornou o antípoda de Guedes no governo ao formar uma aliança a favor do aumento de gastos com obras.
Os dois ministros já se estranharam em reuniões fechadas e trocaram hostilidades em público. Interessado em extrair ganhos políticos da máquina do governo, o chefe da dupla se mostra inclinado a escolher o lado de um deles.
No sertão de Pernambuco, Bolsonaro prometeu entregar “cada vez mais obras” na região e disse que seus aliados lutam por dinheiro “para que o ministério do Marinho possa realmente trabalhar”. Guedes, como se sabe, já negou mais de uma vez os pedidos do colega para aumentar despesas com esses investimentos.
A turma política também parece disposta a atropelar o ministro nas caóticas discussões sobre o novo programa social de Bolsonaro. Nesta quinta (1º), aliados do presidente chegaram a anunciar em público a criação do benefício, embora Guedes ainda não tenha conseguido encontrar o dinheiro para bancá-lo.
Ao lado de Bolsonaro, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, disse que o Planalto entregaria “o maior programa de solidariedade social da história desse país”. Depois, o parlamentar ganhou uma citação elogiosa do presidente.
Nem os pilares da equipe econômica têm sido levados muito a sério. Ainda que Guedes precise mandar recados semanais a investidores em sentido contrário, o vice-presidente Hamilton Mourão sugeriu a execução de uma manobra “fora do teto de gastos” para financiar o novo Bolsa Família. Cada vez menos gente quer saber da cartilha do ministro.
Vinicius Torres Freire: Pedalada de Bolsonaro acelera a piora das condições financeira do país
Não foi um bom mês em mercados financeiros relevantes do mundo, mas aqui foi pior
A Bolsa de São Paulo subia pouco antes de o governo anunciar seu projeto ciclístico, na segunda-feira. Desde que se soube da pedalada Bolsonaro-Guedes, a virada do Ibovespa foi de mais 5%. Desde o pico recente de 29 de julho, o principal índice de ações da bolsa perdeu mais de 11%.
E daí? O preço das ações depende também das taxas de juros, em alta desde inícios de setembro e que deram um salto desde o anúncio da pedalada do Renda Cidadã (a moratória dos precatórios e a mão grande no dinheiro do Fundeb). Deram um salto e continuam penduradas no galho. Até as taxas de prazos mais curtos, de um ano, ficaram salgadas.
Em geral, o preço das ações em baixa é um desestímulo para empresas que pensam em vender mais ações ou abrir capital (grosso modo, ninguém quer partilhar sua expectativa de lucros a preço de banana). É a manifestação de um sintoma mais extenso de cautela ou de retranca mesmo. Capital mais caro, é óbvio, desestimula investimentos, expansão dos negócios.
Claro que esses indicadores podem mudar em minutos, para baixo ou para cima. Um dia ou uma semana de remelexos ou mesmo de paniquitos do mercado financeiro não dizem grande coisa. No entanto, uns dois ou três meses de aperto das condições financeiras bastam para começar a engrossar o caldo da economia. “Condições financeiras”: juros, Bolsa, dólar, risco país etc.
Faz um mês que a situação anda malparada. Não foi um bom mês em mercados financeiros relevantes do mundo, mas aqui foi pior. Quanto mais durar o passeio ciclístico da dívida proposto pelo governismo, mais o caldo engrossa. Como se não bastasse a pedalada, o governo também criou encrenca na reforma tributária. Talvez se desperdice o resto escasso de tempo parlamentar deste ano, que será encurtado em um mês pela eleição, em novembro.
Até a noite desta terça-feira, o governismo (Bolsonaro, Guedes e centrão) estava decidido a tocar a ideia de financiar o Renda Cidadã com a moratória de precatórios, embora já tentassem inventar algum outro malabarismo, o que põe mais lenha no fogão. Dada a rejeição da CPMF de Paulo Guedes, Bolsonaro resolveu melar o jogo da reforma tributária até praticamente dezembro (embora, decidido e organizado como seja, possa mudar de ideia amanhã).
A pedalada e a cera na reforma tributária criaram e criarão mais conflitos na Câmara, que é a única entidade que toca de fato as “reformas”.
É evidente, portanto, o risco de que tenhamos mais dois meses de tensão ou paralisia decisória, se não coisa pior. No que diz respeito às “condições financeiras” tanto faz se a gente é adepta ou adversária das “reformas”. Esse rebuliço ignaro do governo sempre lasca algum crescimento econômico.
As reviravoltas políticas e inépcias do governo em geral balançam excessivamente o barco. O preço do dólar depende um bom tanto de jogatina ou de especulações, mas a tensão das peripécias birutas contribui para a volatilidade. O dólar foi a quase R$ 5,90 em maio, baixou a R$ 4,82 no início de junho e está de volta à casa dos R$ 5,60, variações próximas da ordem de 20% em semanas. Isso não presta.
Taxas de juros de longo prazo mais altas prejudicam o financiamento da dívida do governo, que tem de pagar mais o encurtar o prazo, o que está acontecendo de modo preocupante. Pode até parecer que não esteja acontecendo algo de especialmente grave, para as pessoas normais, que não se ocupam disso no dia a dia. Mas esses problemas são veneno em dose pequena e constante: em um certo momento, iremos para o hospital.
Cristovam Buarque: Renda inclusiva
Renda mínima merece apoio mas não tem consequência emancipadora da pobreza real
A crise social e econômica pela Covid-19 criou unanimidade na defesa da Renda Básica da Cidadania Universal. Este apoio à generosidade de uma renda para os pobres é natural, mas é incorreto passar a ideia de que ela promove inclusão social. Deve-se apoiar a ideia da renda mínima, alertando para o fato de que se trata de um gesto sem consequência emancipadora da pobreza real. Uma ferramenta positiva para reduzir a penúria, sem superar a realidade da pobreza.
Quando a ideia da Bolsa Escola foi divulgada, em 1987, no livro “A revolução nas prioridades”, seu nome era Renda Mínima Vinculada à Educação. Reconhecia o papel inspirador de Eduardo Suplicy, mas explicitava a diferença estratégica com a Renda Mínima. A adoção posterior do nome Bolsa Escola teve como propósito deixar claro que no lugar da renda era a educação que faria a inclusão, a bolsa era um salário à mãe para que seus filhos não faltassem às aulas.
A Renda Mínima parte do conceito de que a pobreza pode ser atendida pelo aporte de dinheiro à família para ela comprar o que precisa no mercado. Distribui uma pequena renda, sem distribuir patrimônio. A Renda Vinculada parte do conceito de que a pobreza decorre da falta de acesso a uma cesta essencial, composta por, no mínimo: comida; endereço com água potável, coleta de lixo e esgoto; educação de base com qualidade; atendimento ambulatorial e hospitalar; transporte público.
Parte da cesta essencial exige renda e compra no mercado, parte exige acesso a bens e serviços públicos. A Renda Vinculada à Inclusão funciona como um incentivo monetário que assegura renda para o beneficiário pagar pela comida e transporte público, e induz seu trabalho na produção de serviços de que sua família precisa para completar a cesta essencial: educação, saneamento, moradia. Além disso, diferentemente da distribuição mínima de renda, distribui também o patrimônio produzido.
A Bolsa Escola é um exemplo. Transfere renda para enfrentar as necessidades imediatas, mas, ao exigir que as crianças frequentem a escola até o final do ensino médio, promove a inclusão social. A bolsa atende à possibilidade de sobrevivência, a escola induz a sair da pobreza. O mesmo conceito se aplica aos outros incentivos sociais que atuam como rendas emancipadoras, tais como: pagamento condicionado a melhorar a própria moradia do beneficiado; renda vinculada à plantação de árvores no bairro, à construção ou cuidado de parques infantis, pintura de escolas; bolsa para analfabetos aprenderem a ler; renda para jovens fazerem serviço militar-civil ou para obterem um ofício; um salário para pessoas se submeterem a treinamento e depois cuidarem de crianças sem vaga em creche; emprego em obras de saneamento; pagamento de renda para promover desmigração de quem desejar sair de grandes cidades e voltar à sua cidade de origem.
O beneficiado que recebe uma renda mínima sem vinculação necessita ser rentista para sempre, sem sair da pobreza; aquele que recebe uma renda inclusiva, com vinculação, ao final de um prazo, tem o patrimônio que ele produziu: a casa ampliada, rebocada, pintada, com saneamento; os velhos alfabetizados e os filhos educados. A renda atende às necessidades imediatas, seu condicionamento promove a ascensão social, graças ao que será produzido.
O custo financeiro de um programa de Renda Inclusiva pela Vinculação seria o mesmo de um programa de Renda Básica da Cidadania; requer, entretanto, esforço gerencial do Estado na sua execução. Por isso, a simplicidade da ideia da renda mínima sem condicionamento sensibiliza os defensores da estratégia do “neoliberalismo social”, com o Estado mínimo, limitado a uma rede de agências bancárias, como está sendo feito com o Auxílio Emergencial.
*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília
Adriana Fernandes: Diálogo da Renda Básica
O tema amadureceu diante do aumento da pobreza e dos milhões de ‘invisíveis’ do País
Ninguém segura mais o debate sobre o fortalecimento dos programas sociais na direção de uma renda básica no Brasil após o fim do auxílio emergencial de R$ 600, criado na pandemia do coronavírus para socorrer a população de baixa renda.
Ele está em pleno voo, como tem mostrado uma série de reportagens do Estadão. O tema amadureceu com velocidade inimaginável há seis meses, diante do aumento da pobreza durante a pandemia, que clareou a fotografia dos milhões de “invisíveis” no País.
Congresso e governo se movimentam para não perder esse bonde que se movimenta em alta velocidade por sobrevivência política. Cada um a seu modo. A questão no momento é como financiar o aumento das transferências sociais num cenário de piora das contas públicas, com a dívida pública no caminho de 100% do Produto Interno Bruto (PIB) e a restrição do teto de gastos.
Se quiser mesmo avançar num programa de fortalecimento dos programas sociais e não ser atropelado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá de chamar para o diálogo (melhor que seja o mais rápido possível) os parlamentares e os principais especialistas do tema no Brasil envolvidos na elaboração de uma proposta de renda básica.
Eles são muitos e com grande experiência acumulada em quase 30 anos, desde a apresentação do primeiro projeto de lei de garantia de renda mínima, pelo ex-senador Eduardo Suplicy em abril de 1991.
O grupo tem apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que quer ver aprovado o novo programa ainda durante sua gestão no comando da Casa, para deixar sua marca reformista.
Nessa negociação, o governo, que desenha o Renda Brasil (programa que pretende colocar no lugar do Bolsa Família), não poderá fazer o que fez durante a implementação do auxílio emergencial de R$ 600. Não ouviu quem muito sabe do assunto e não deu transparência total aos dados do programa, sobretudo às informações dos pedidos negados e em análise. O auxílio completa 80 dias neste sábado e tem gente que ainda está em análise.
Muitos erros que ocorreram na implementação do benefício foram apontados antes por esse grupo e ignorados pelo Ministério da Cidadania. Agora, a pressão da sociedade civil aumentou para estender o auxílio até o final do ano (ou seja, mais seis parcelas), e o governo tenta organizar e oferecer a prorrogação por mais três parcelas de R$ 500, R$ 400 e R$ 300, resultando num valor total de R$ 1.200.
O governo tenta ganhar tempo para fechar sua proposta. Uma espécie de transição para impedir, na prática, que não só o Congresso amplie muito as parcelas do auxílio (elevando o endividamento público) mas também que o fim do auxílio fique com o carimbo do presidente Jair Bolsonaro.
Há poucos dias, Bolsonaro disse que não tinha dinheiro para manter o valor do auxílio. Depois voltou atrás, durante a live da última quinta-feira, com a oferta dos R$ 1.200 em três parcelas. O anúncio ocorreu no mesmo dia em que um grupo de 45 parlamentares apresentou projeto de lei para conceder mais seis parcelas e alterar as regras.
A negociação está só começando, e o mais provável é um entendimento no meio do caminho, provavelmente três parcelas de R$ 600. Cada uma delas ao custo de R$ 51,5 bilhões.
A oposição a Bolsonaro já viu que a digital do presidente no programa pode lhe favorecer nas próximas eleições, principalmente em redutos onde não tinha penetração. Com esse perigo, não dá sinais para o diálogo. Pelo contrário, afirmam que Guedes, com sua cartilha liberal, blefa ao falar de aumento dos programas sociais.
Sem o diálogo, as mudanças legais para arrumar o dinheiro que vai irrigar as transferências não serão aprovadas, mesmo com a aliança entre Bolsonaro e as lideranças do Centrão.
A equipe econômica não blefa quando acena com o fortalecimento dos programas por uma simples razão. Não quer perder o teto de gastos e tenta de alguma forma “organizar” as prioridades para conseguir abrir espaço nas despesas para a política social. Para isso, gastos terão de ser revistos e enfrentados pelo Congresso.
Como mostrou o Estadão, cálculos da equipe econômica já apontam a intenção de dobrar o orçamento do Bolsa Família, de R$ 32 bilhões, com remanejamento de despesas de programas ineficientes.
O tempo dirá se é blefe ou necessidade de tomar a dianteira para não ser atropelado pela mudança do teto ainda esse ano, que está na berlinda. A flexibilização do teto parece cada vez mais inevitável, mesmo com a avaliação da equipe econômica de que dá para aumentar os recursos para o programa social sem mexer nele.
O tempo dirá. Maia surpreendeu ao não descartar a mudança no teto em live promovida pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado.
Por ora, o que se pode esperar é uma renda mínima que contemple mais pessoas. Não será uma renda básica universal e sem condicionantes. Mas ficará mais próxima dela. Não será pouco garantir essa mudança, diz à coluna o presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, Leandro Ferreira, que reúne 163 organizações da sociedade civil. O diálogo passa por elas.
Monica De Bolle: Renda básica é impagável?
O impacto total desse tipo de programa sobre as contas públicas acaba sendo menor do que parece
A ideia de se instituir um programa de renda básica permanente está ganhando adeptos mundo afora. Em resposta à crise, o governo da Espanha aprovou, na sexta-feira, um programa de renda mínima para reduzir a pobreza. Governos de outros países estão considerando medidas semelhantes, como é o caso do Chile.
No Brasil, o debate sobre a renda básica ganhou fôlego no âmbito da adoção do auxílio emergencial de R$ 600 em abril, cuja prorrogação é necessária para o enfrentamento da pandemia e dos efeitos macroeconômicos dela provenientes. Mas a renda básica que hoje é assunto de artigos diversos – inclusive da série de colunas que tenho escrito neste espaço sobre o tema – transcende a emergência. A ideia é fazer o que fez a Espanha e torná-la um benefício permanente, reforçando as redes de proteção social do País.
Há muitos pesquisadores no Brasil debruçados sobre esse tema, fazendo simulações, contas, analisando os dados e as possibilidades. Destaco em especial o trabalho de pesquisadores do Ipea, da USP, e do Cedeplar da UFMG. Esses são os estudos que mais têm recebido a atenção dos parlamentares no Congresso, ao contrário de outras propostas que nem sequer estão em discussão. Insisto: não há uma só proposta para a renda básica. Há várias. Algumas são perfeitamente viáveis do ponto de vista macroeconômico e sustentáveis do ponto de vista fiscal. Outras são impagáveis.
Recentemente, uma proposta impagável foi objeto da coluna do economista Samuel Pessôa, que ficou impressionado com seus potenciais efeitos sobre a redução da desigualdade, mas, depois de mostrar ser a proposta inviável, lamentou e ficou por isso mesmo. É compreensível que existam temores de natureza fiscal sobre a adoção de um programa que, à primeira vista, pode parecer impossível de custear. Não é compreensível, entretanto, deixar de lado propostas que hoje fazem parte do debate interno.
É evidente que um programa de renda básica formulado como simples extensão do atual auxílio emergencial é custoso: os cálculos mostram que o gasto com esse programa alcançaria facilmente cerca de 7 pontos porcentuais do PIB. Além disso, tal programa poderia ter consequências indesejáveis do ponto de vista do trabalhador, estimulando a informalidade quando essa já é elevada e tende a aumentar em razão da crise. Por fim, o financiamento da renda básica exigiria, no mínimo, a extinção de outros programas focalizados, como o Bolsa Família, que hoje alcança as famílias mais pobres. Por que não simplesmente ampliar o Bolsa Família, alguns perguntam? Porque o Bolsa Família deixa vulnerável uma massa de brasileiros que não são suficientemente pobres para atender aos seus critérios, mas ainda assim vivem na precariedade, oscilando entre o emprego formal e a informalidade.
Quais as alternativas? Uma delas, proposta por pesquisadores do Ipea e da USP e hoje tema de intensas discussões e simulações, seria pagar uma renda mínima para todas as crianças, universalizando o benefício. Quais crianças? Uma ideia é começar pela primeira infância, a faixa de 0 a 6 anos, que receberiam meio salário mínimo. Tal programa abrangeria um enorme contingente de famílias pobres e vulneráveis, cobrindo as lacunas deixadas pelos programas sociais existentes. Ao preencher essas lacunas, o programa seria complementar aos já existentes. Não deixaríamos de ter o Bolsa Família, ou o Benefício de Prestação Continuada, por exemplo. Esse programa universal de proteção infantil custaria cerca de 1,5 ponto porcentual do PIB, não elevaria a razão dívida/PIB, não geraria inflação, e atenderia tanto à necessidade de responsabilidade fiscal quanto a de responsabilidade social.
O impacto total desse tipo de programa sobre as contas públicas acaba sendo menor do que parece, e a razão é simples: trata-se de uma transferência de renda que resulta em aumento do consumo, e o aumento do consumo eleva a arrecadação de impostos, o que financia, em parte, o programa. Além disso, o consumo aquece a economia e gera crescimento, de modo que há um efeito multiplicador: com mais renda, há mais consumo e, no fim, mais arrecadação.
O Brasil atravessa um momento único. Nele se abre uma fresta pela qual podemos finalmente emplacar um reforço às redes de proteção social que preencham as lacunas dos demais programas. São dezenas de milhões de pessoas que poderão ser beneficiadas. E tudo isso é perfeitamente pagável. E também impagável: seu valor para a sociedade é inestimável.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University