Renan Calheiros

Ricardo Noblat: Bolsonaro faz o jogo de Renan Calheiros, que agradece

O governo e aliados do senador Renan Calheiros (MDB-AL) querem que ele baixe o tom dos seus discursos como relator da CPI da Covid-19. Aos aliados, Renan até poderá dar ouvidos para não perder parte deles, mas ao governo, não, nem faria sentido.

O senador já foi dado muitas vezes como politicamente morto, para depois recuperar-se e seguir adiante. De 2018 para cá, amargou dois duros reveses: perdeu a eleição para presidente do Senado e viu Arthur Lira (PP-AL) agigantar-se em Alagoas.

Entre Renan e Lira, Bolsonaro escolheu Lira como seu mais forte aliado no Congresso. Não só o ajudou Lira eleger-se presidente da Câmara dos Deputados, como ajudou Davi Alcolumbre (DEM-AP) a derrotar Renan na eleição para presidente do Senado.

Como um cangaceiro esperto, Renan é bom de tocaia. Escondeu-se no mato nos últimos dois anos para ressurgir de repente como a principal estrela da mais delicada ação política que poderá influenciar os resultados das eleições do ano que vem.

Como querem que ele deixe passar tal oportunidade? Na vida real, Renan, hoje, é o líder da oposição a Bolsonaro. É quem fala por ela, e o país voltou a escutá-lo. Foi o governo, com suas manobras desastradas, que o promoveu a essa condição.

O governo tudo fez para impedir a criação da CPI – perdeu. Tudo para que ela não fosse instalada – perdeu. Tudo para que se fosse, contasse ali com a maioria dos votos, ou pelo menos com uma maioria amorfa – perdeu. Perdeu a relatoria para Renan.

Pasmem! E depois de colecionar tantas derrotas, orientou três dos seus senadores com assento na CPI para tentar no Supremo Tribunal Federal tirar Renan da relatoria. Vai perder novamente. E Renan nem precisará se mexer para que isso aconteça.

Lira não está gostando nem um pouco do que vê. Achava que tinha chances de acabar em 2022 com o mandarinato de Renan em Alagoas. Agora, receia que seu plano se frustre. Renan já tem candidato à sucessão de Bolsonaro – Lula. Lira, ainda não.

Política é como uma gangorra – ora você está por cima, ora por baixo. Exige habilidade, paciência e faro apurado para se antecipar ao que está por vir. Gostem ou não de Renan, ele reúne tais predicados.

Fonte:

Veja

https://veja.abril.com.br/blog/noblat/bolsonaro-faz-o-jogo-de-renan-calheiros-que-agradece/


Afonso Benites: Renan Calheiros, o insólito novo líder da oposição a Bolsonaro

Político camaleão e hábil interlocutor na câmara alta, senador envia recado: “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”

Inaugurada nesta terça-feira, a CPI da Covid já demonstrou quem será o segundo principal adversário político de Jair Bolsonaro pelos próximos meses, o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Não é o principal, pois, como usualmente se diz em Brasília, o papel de maior opositor do Governo Bolsonaro cabe ao próprio presidente e a seus ministros, com as crises autoinfligidas e declarações que provocam conflito com outros poderes e países ―nesta terça-feira foi a vez de Paulo Guedes (Economia) irritar Pequim dizendo que o “chinês inventou o vírus”, sem saber que estava sendo gravado. Antes desta gafe, foi o discurso de Calheiros como relator da comissão parlamentar de inquérito que trouxe os primeiros indícios do caminho que o experiente senador de Alagoas pretende trilhar e do barulho que a CPI pode causar.

MAIS INFORMAÇÕES

Em sua primeira participação, Calheiros provocou incômodo no primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). O herdeiro do presidente reclamou que as sessões presenciais da CPI poderiam resultar na contaminação de mais servidores da Casa e até na morte de parlamentares ―três senadores já morreram de covid-19 desde o ano passado. “Acho que o presidente [do Senado] Rodrigo Pacheco está errando, está sendo irresponsável, porque está assumindo a possibilidade de, durante os trabalhos dessa CPI, acontecerem mortes de senadores, morte de assessores, morte de funcionários desta Casa em função da covid-19”, disse Flávio. Indagado por repórteres sobre esta fala, Calheiros ironizou. “É a primeira vez que ele se preocupa com aglomeração. Significa que ele, talvez, esteja saindo do negacionismo e esteja aderindo à ciência e à necessidade dos brasileiros”, afirmou.PUBLICIDADE  

Em seu primeiro discurso na CPI, o senador não citou diretamente Bolsonaro em nenhuma ocasião. Mas enviou recados incômodos. “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”, disse. Ele prometeu ser imparcial em seu relatório, do qual disse querer ser um sintetizador, um redator. E alegou ainda que prezará sempre pela ciência. É um contraponto à rejeição dos preceitos científicos de Bolsonaro e de seus asseclas. “A comissão será um santuário da ciência, do conhecimento e uma antítese diária e estridente ao obscurantismo, ao negacionismo sepulcral responsável por uma desoladora necrópole que se expande diante da incúria e do escárnio desumano.”

Crítico da operação Lava Jato, Calheiros reforçou essa postura também no discurso inicial da CPI. “[A comissão] tampouco será um cadafalso com sentenças pré-fixadas ou alvos selecionados. Não somos discípulos nem de Deltan Dallagnol nem de Sérgio Moro”, disse em referência ao procurador e ao ex-juiz que atuaram na operação em Curitiba. “Não arquitetaremos teses sem provas ou Power Points contra quem quer que seja. Não desenharemos o alvo para depois disparar a flecha”.

Ataques nas redes processos judiciais

Assim que passou a circular a informação de que o emedebista seria o relator da comissão, interlocutores do Governo o procuraram para tentar aliviar o relatório para Bolsonaro. Na conta, estaria um eventual apoio ao seu grupo político na eleição estadual do ano que vem. O cenário em Alagoas ainda não está claro. O Estado é governado por Renan Calheiros Filho (MDB), que, em seu segundo mandato, tem dois ou três pré-candidatos a sua sucessão. O apoio de Bolsonaro, no momento, não é bem recebido pelos emedebistas. Por enquanto, eles preferem estar ao lado do lulismo do que do bolsonarismo.

Seja como for, Renan Calheiros é um camaleão político que ocupa cargos públicos e eleitorais há 42 anos. Desde a redemocratização, já foi da base governista de todos os presidentes. De Fernando Collor (PROS) a Michel Temer (MDB). Em alguns momentos foi mais defensor do presidente da ocasião. Em outros, como no de Dilma Rousseff (PT), foi um conciliador que deixou de apoiá-la na reta final de processo de impeachment, mas conseguiu manter os direitos políticos da petista em um grande acordo parlamentar. Por essa razão, é bem-quisto pelos petistas, principalmente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.PUBLICIDADE

Após ser derrotado por Davi Alcolumbre (DEM-AP) para a presidência do Senado em 2019, Calheiros atuou nos bastidores contra a gestão Bolsonaro. Fugiu dos holofotes por um período para se defender dos 12 processos aos quais responde no Supremo Tribunal Federal e, agora, volta com todas as cargas contra o presidente e já enfrenta a ira das redes bolsonaristas. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) tentou impedi-lo, por meio de uma ação judicial, retirá-lo da relatoria. Conseguiu, em primeira instância, mas viu na segunda, viu a decisão cair. “Intimidações, e todos os dias nós as vemos sob qualquer modalidade e arreganhos, não nos deterão”, disse. Uma das principais queixas dos bolsonaristas trata exatamente dos elos familiares de Calheiros. “Se for pela questão de interesse, o presidente não deveria nem deixar o Flávio Bolsonaro entrar aqui no colegiado”, disse o líder do PT no Senado, Paulo Rocha.

A característica mutante de Calheiros faz com que ele esteja, hoje, ao lado de quem antes era seu opositor. Agora, caminha de braços dados com Randolfe Rodrigues (REDE-AP), o senador que liderou o seu partido na Justiça, em 2016, em um movimento para afastar o emedebista da Presidência do Senado. Naquela ocasião, foi a primeira vez que o Senado afrontou uma decisão judicial, dada em caráter liminar pelo ministro Marco Aurélio Mello.

Próximos passos

Nesta quarta-feira, a CPI deverá receber sugestões de planos de trabalho, que são uma espécie de roteiro do colegiado que inclui as próximas convocações e os documentos que deverão ser entregues para se iniciar a investigação. Três já foram entregues, e o relator espera receber ao menos mais cinco. Antes, contudo, Calheiros já enviou uma série de requerimentos que devem dar o tom dos trabalhos na primeira semana. Na quinta, esses planos de trabalho deverão ser votados pela comissão.

O primeiro a comparecer na comissão, como testemunha, será o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), na próxima terça-feira. “Temos a preocupação de começar a cronologia do início, para saber o que foi feito desde o primeiro momento”, disse o presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM).

Mandetta deixou o Governo por discordar da conduta negacionista do presidente Jair Bolsonaro. Ele defendia medidas de restrição de circulação enquanto o mandatário era contrário. Também havia um confronto sobre o uso de cloroquina e outros medicamentos ineficazes no tratamento do coronavírus, sempre propagados pelo presidente.


Alon Feuerwerker: A largada da CPI

E a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado instalou-se com uma missão definida pela maioria de seus participantes: apontar a culpa do governo federal pelo alto volume de mortes na pandemia. Na inauguração, ouviram-se declarações de princípio sobre a isenção nos trabalhos. Mas é apenas retórica. Conclusões de CPIs são modeladas não tanto pelos fatos, mas pela correlação de forças.

O Brasil vive uma situação política curiosa, porém habitual. Uma certa bipolaridade espiritual. No Senado, o foco é apontar os canhões da CPI para o Palácio do Planalto. Na Câmara, o presidente da casa legislativa engata a marcha das reformas administrativa e tributária. O que vai prevalecer? A agenda negativa ou a positiva? Naturalmente, cada um mira 2022.

Bem, a correlação de forças na largada da CPI é desfavorável ao Planalto. Mas o desenho que vale mesmo é o a ser observado nas hora das conclusões. Ou seja, um governo que aparentemente perdeu a maioria política no Senado, apesar de manter certa maioria programática, especialmente quando se trata de assuntos relacionados à economia, vai ter de encontrar uma saída do labirinto. 

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Roberto DaMatta: Somos todos pacientes

Para José Paulo Cavalcanti, Merval Pereira, Carlos Alberto Sardenberg e Joaquim Falcão

O dicionário “Aurélio” revela o amplo significado da palavra “paciente”. Uma palavra fundamental por sua capacidade de desmontar bate-bocas, inibir impaciências em filas, adiar vinganças e apaziguar minha angústia diante deste claro endoidecimento do Brasil.

Somos todos pacientes porque haja paciência para suportar o hospício desta psicose jurídico-política. De um lado, um enorme ressentimento porque o “povo”, que já foi puro e sagrado, teve motivos para eleger um presidente querelante, sabotador e autoritário; do outro, um surto suicida incapaz de apaziguar um sistema obsessivamente legalista em que a forma pode valer mais que o “objeto” ou substância (falando francamente: que o crime).

A palavra paciente é parte do linguajar jurídico, mas creio que seria absurdo ou despropositado chamar assassinos, genocidas e ladrões — gente como Capone, Eichmann, Goebbels, Stálin, os torturadores do regime militar, os assassinos do menino Henry, os larápios confessos da Operação Lava-Jato e Derek Chauvin, o policial que matou com óbvio viés racista George Floyd — de “pacientes”.

Uma palavra que invoca neutralidade não deveria ser usada como sinônimo de quadrilheiros. Sobretudo de gente que traiu o seu voto. Mas cabe perguntar: quando um réu vira paciente? A resposta é clara: quando ele é importante!

Aliás, se ele é o dono da grande fazenda, nem poderia ser julgado. Chamá-lo, pois, de paciente fatalmente revela a parcialidade e a lealdade do tribunal às convenções estruturais do “sistema brasileiro”, ancoradas na cautela dos compadrios, dos favores e do “você sabe com quem está falando?”, ou julgando... Essa “medida cautelar da paciência” explicita como o que conta não é o crime, mas quem o cometeu.

Trata-se de mais uma jabuticaba expressiva do jeitinho brasileiro.

Uma amiga americana compara com brilho Trump e Bolsonaro. Mas é provável que Donald seja mais facilmente explicável que Jair.

A palavra-chave nessa comparação é o compromisso e a lealdade a uma tradição democrática e republicana. É a fidelidade com a liberdade e com a igualdade como valores. Biden e Harris fazem parte dessa lista, que tem desacordos, mas não tem dúvida relativamente às complexas e duras exigências deste regime inacabado por definição chamado democracia.

Aqui no Brasil, ainda não concordamos se não seria melhor continuar mais ou menos numa realeza ibérica (franquista ou salazarista), mais ou menos populista-socialista e mais ou menos liberal-aristocrática, mas sempre autoritária, ou se vamos continuar como frustrados republicanos, arcando com o difícil compromisso de fazer valer a lei para todos — sobretudo, para nós mesmos!

E, por último, mas não por fim: se vamos cobrar coerência da instituição guardiã da Constituição, o STF.

As diferenças culturais entre Brasil e Estados Unidos são grandes, mas nada no campo do humano é impossível. Os americanos têm uma Constituição pioneira, pequena e inteligível; aqui, um oceano de leis complementares e de privilégios impede a clareza. Eles começaram republicanos, e nós fomos um pouco de tudo. Lá, trata-se de manter continuidade; aqui, de liquidar antigos privilégios; lá, quanto mais privilegiado, mais se é responsável perante a lei; aqui, o justo oposto. Lá, um federalismo localista obriga a julgamentos com início, meio e fim; aqui, há o recurso que engaveta os processos, tirando a confiança na maior das igualdades: a equidade perante a lei.

A melhor prova é o caso Floyd. Lá, está resolvido! Aqui, o STF anula sentenças e suspeita de um movimento anticrime fundamental para corrigir as trapaças do populismo, as sobrevivências do fidalguismo e o retorno do filhotismo. Lá, o trabalho é um chamado; aqui, foi e ainda é estigma e cicatriz da escravaria.

Aqui, o ministro Gilmar Mendes afirma, com maestria sociológica, que o governo do PT engendrou um “plano perfeito” de poder. Num texto magistral, esse paladino da coerência continua: “Na verdade, o que se instalou no país nesses últimos anos, e está sendo revelado na Lava-Jato, é um modelo de governança corrupta. Algo que merece o nome, claro, de Cleptocracia”. Onde foi parar esse juiz? Será que ele foi canibalizado por sua imparcialidade?

Para concluir, lembro uma outra pérola do mesmo magistrado em sua resposta a um colega: “O moralismo é a pátria da imoralidade”.

Como um velho acadêmico metido a cronista em pleno processo de cancelamento, digo apenas que a incoerência como um valor é, sejamos modestos, a terra da injustiça.


Hélio Schwartsman: A CPI da Covid será um sucesso?

Se fixarmos o objetivo no impeachment, receio que a resposta seja não

Com o passar dos anos, tornei-me cético em relação a CPIs. Há tempos que eu não vejo uma delas produzindo bons resultados.

Uma das razões para isso é que investigar é uma tarefa técnica, que requer uma expertise só raramente encontrada entre parlamentares. O ambiente escancaradamente público e politicamente carregado do Parlamento tampouco ajuda em apurações, que costumam avançar mais quando conduzidas com discrição e objetividade.

CPI da Covid, porém, é diferente. E é diferente porque a investigação já está pronta. Aliás, dizer "está pronta" é um eufemismo. Tanto o TCU como o MPF já analisaram a atuação do governo na pandemia e produziram documentos pouco abonadores à conduta das autoridades do Executivo. A imprensa também fornece boas peças.

Nos últimos dias, o próprio governo, em mais uma demonstração de inabilidade, deu de mão beijada para a CPI um roteiro com 23 vulnerabilidades a explorar. No que talvez seja inédito, existem até estudos acadêmicos a subsidiar o trabalho dos parlamentares, apontando falhas graves na gestão da epidemia e correlacionando falas negacionistas do presidente a aumentos nos óbitos. O relator da CPI precisará só juntar tudo isso e selecionar as melhores partes.

Isso significa que a CPI da Covid será um sucesso? Depende do que se define como sucesso. Se considerarmos que a meta é apenas gerar um relatório poderoso, a resposta é provavelmente sim. Mas, se formos um pouco mais ambiciosos e fixarmos o objetivo no impeachment, aí eu receio que a resposta seja não.

O que manda é a política. E o mais provável é que as correntes majoritárias no Parlamento prefiram usar a CPI para manter uma espada de Dâmocles sobre a cabeça de Bolsonaro e arrancar vantagens do governo.

É pena, porque qualquer coisa menos que o impeachment significará que a sociedade acha normal e aceitável ter um presidente que fez tudo o que Bolsonaro fez.


Elio Gaspari: O caos de Bolsonaro

No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico

Outro dia, o capitão perguntou:

— O que eu me preparo?

E respondeu:

— Não vou entrar em detalhes, um caos no Brasil.

Em março do ano passado, Bolsonaro reclamava da “histeria” diante do vírus, levantava o estandarte do Apocalipse, com uma frase que explica seu comportamento diante da pandemia:

— Vai ter um caos muito maior se a economia afundar. Se a economia afundar, afunda o Brasil. (...) Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.

Entre as duas referências de Bolsonaro ao caos, morreram perto de 400 mil pessoas, e a população aguentou o tranco com sofrimento e paciência.

Todos os povos e governos sofrem com a pandemia. No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico. Fritou três ministros da Saúde, combateu o distanciamento, menosprezou as máscaras e enalteceu as virtudes da cloroquina.

Uma coisa é um governo que se acautela diante do risco de um caos. (Nesse caso, os detalhes são bem-vindos.) Bem outra é apreciar o caos, até mesmo desejando-o.

Em apenas uma semana, o governo de Bolsonaro produziu alguns episódios sinalizadores de um governo que, até mesmo por inépcia, patrocina o caos.

O programa Pátria Solidária, aninhado no Palácio do Planalto com o objetivo de recolher doações para enfrentar a pandemia, gastou R$ 9,6 milhões para fazer propaganda de si e arrecadou R$ 5,89 milhões.

A Secretaria de Comunicação do Planalto não comentou a discrepância. Até há bem pouco tempo, ela era dirigida pelo doutor Fabio Wajngarten. Ele acabara de dar uma entrevista contando que, em setembro, tentou apresentar ao Ministério da Saúde uma proposta do laboratório Pfizer. Já haviam morrido 123 mil pessoas:

— Se o contrato da Pfizer tivesse sido assinado em setembro ou outubro, as vacinas teriam chegado no fim do ano passado. (...) Incompetência e ineficiência.

Dias depois, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi fotografado num shopping center de Manaus sem máscara, fazendo piada com a transgressão:

— Onde se compra isso?

O general estava nas redes, e seu sucessor, Marcelo Queiroga, de máscara, contava que faltavam vacinas para a segunda dose em alguns estados porque eles seguiram a recomendação do ministério de avançar sobre os estoques.

Bolsonaro sonhava com crises antes mesmo da pandemia. Com ela, transmutou-se num São Jorge cavalgando o cavalo branco para matar o dragão e salvar a princesa. Ela está lá, de máscara, e o dragão não apareceu. Os desconfortos que afligem o governo decorrem da armadura desconjuntada do Santo Guerreiro, de sua lança torta e de uma sela visivelmente desconfortável.

A marquetagem do Pátria Solidária, as revelações de Wajngarten, a conduta de Pazuello e a falta de vacinas refletem um caos que está no governo, não vem de fora dele.

A Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil de Bolsonaro encaminhou a 13 ministérios uma pauta de 23 perguntas que poderão aparecer na CPI da Covid, pedindo pronta resposta.

Lê-las é um passeio pelo caos da desarticulação e da falta de gestão do governo. Algum membro da CPI bem que poderia devolvê-las, perguntando por que a curiosidade só surgiu agora.

Nas próximas quatro quartas-feiras, o signatário usufruirá o isolamento e o ócio, sempre pesquisando as virtudes da cloroquina.


Ricardo Noblat: CPI da Covid-19 decola e ameaça abater o governo que voa baixo

Um bando de amadores

Sem querer ofender os pets, 27 de abril de 2021 ficará marcado como mais um dia de cão para o presidente Jair Bolsonaro e seus filhotes. Tudo aconteceu no período da manhã, a saber:

1) O Senado instala a CPI da Covid-19 com Renan Calheiros (MDB-AL) como relator e o governo em minoria;

2) O general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, confessa que se vacinou às escondidas para que não pegasse mal para ele;

3) O ministro Paulo Guedes, da Economia, diz que o vírus é chinês e que a vacina americana é melhor do que a vacina chinesa.

Enquanto isso, distraído, Bolsonaro confraternizava bem humorado com devotos nos jardins do Palácio da Alvorada e plantava mais uma notícia falsa, desta vez contra o PT.

Segundo ele, há um vídeo que mostra Lula, Dilma, Haddad, e atrás deles, dois homens se beijando. “Beijo de língua”, garantiu, “coisa que nem homem e mulher fazem em público”.

Pensando melhor, talvez não tenha sido mais um dia de cão para Bolsonaro e seus descendentes, mas um dia normal na vida de um governo radicalmente diferente dos que o antecederam.

O senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) chamou de “ingrato” Rodrigo Pacheco (DEM-MG) porque ele pouco fez de fato para barrar a criação da CPI.

Lembrou que Pacheco teve a ajuda do seu pai para se eleger presidente do Senado, e que por isso “deveria ter nos procurado” para avaliar a conveniência ou não da CPI.

Ingrato foi Flávio. Pacheco só concordou com a instalação da CPI por ordem do Supremo Tribunal Federal. O Tribunal Regional Federal derrubou a liminar de um juiz que tentou abortar a CPI.

Bolsonaro, pai, e seus filhos zero estão convencidos de que Pacheco cobiça a presidência da República nas eleições do ano que vem, e que por isso se distancia deles.

“Vão usar os caixões dos quase 400 mil mortos para fazer política contra o governo federal”, acusou Flávio. Como se seu pai não usasse a pandemia para fazer política também.

O senador da rachadinha teve que engolir uma invertida que levou de Calheiros: “É a primeira vez que [Flávio] se preocupa com aglomeração… Deve estar saindo do negacionismo”.

Nada superou, porém, as intervenções do general Ramos e de Guedes durante a reunião do Conselho de Saúde Suplementar, transmitida ao vivo no site do Ministério da Saúde.

Os dois não sabiam da transmissão. Quando souberam, já era tarde. O vídeo foi retirado do site, mas se espalhou nas redes sociais, o que dá a medida do amadorismo dessa gente.

Primeiro, Ramos afirmou:

“Tomei escondido, porque a orientação era para não criar caso, mas vazou. Eu não tenho vergonha, não. Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, eu quero viver, pô. E se a ciência está dizendo que é a vacina, como eu posso me contrapor?”.

Não satisfeito, acrescentou:

“Eu estou envolvido pessoalmente tentando convencer o nosso presidente [a tomar a vacina], independente de todos os posicionamentos. Nós não podemos perder o presidente por um vírus desse. A vida dele, no momento, corre risco”.

Entre os 3.500 servidores da presidência da República, 460 já se infectaram com o vírus, o que representa uma taxa de contaminação de 13% – maior do que a média brasileira, de 6%.

A China é o maior parceiro comercial do Brasil no mundo. Mexeu com ela, mexeu com o agronegócio. A Coronavac representa 84% das vacinas aplicadas no Brasil até agora. Guedes tomou.

Mas isso não o impediu de acicatar os chineses:

“O chinês que inventou o vírus. E a vacina dele é menos efetiva do que a americana. O americano tem 100 anos de investimento em pesquisa. Então, os caras falam: ‘Qual é o vírus? É esse? Está bem, decodifica’. Está aqui a vacina da Pfizer. É melhor”.

A vacina da Pfizer não foi desenvolvida por americanos, mas por alemães de origem turca – o casal de cientistas que é dono da empresa BioNTech. Guedes não sabe o que diz.

Quanto à suposição de que o vírus foi inventado por chineses, a Organização Mundial da Saúde considera a hipótese improvável. Como Bolsonaro, Guedes admira tudo que seja “Made in USA”.

O Brasil registrou 3.120 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, totalizando 395.324 óbitos desde o início da pandemia. Faltam vacinas e o Ministério da Saúde está perdidinho da Silva.

Anunciou que em breve estaria vacinando 1 milhão de pessoas por mês. Depois recomendou que se aplicasse a 2ª dose em quem não tomou a 1ª. Recuou mais tarde, e agora voltou a recomendar.


Rosângela Bittar: Sinfonia em meio à barbárie

Livro de Aldo Rebelo transforma releitura da história política em instantâneo da atualidade.

No capítulo 12 do seu livro O Quinto Movimento – propostas para uma construção inacabada, a ser lançado nos próximos dias, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo transforma o que seria uma releitura da história política brasileira em um instantâneo da atualidade. Sua visão sobre os desafios impostos à democracia revela que não tem sido fácil mantê-la sob Jair Bolsonaro.

Sem citá-lo nominalmente, traça um retrato da ameaça à República exercida pelo comandante supremo das Forças Armadas, o presidente. As instituições democráticas, na sua avaliação, perdem prestí- gio, identidade e substância.

Bem escorado na disciplina de sua formação marxista, a que agrega experiência e trânsito entre políticos de todas as tendências, Rebelo defende, entre suas principais teses, a construção de um governo forte. Tão forte quanto democrático, com equilíbrio entre os poderes.

O problema não está só no Executivo. A situação crítica em que se transformou a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), alvejado por todos os lados tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, está arrolada como um dos maiores desafios. “Após a constituinte de 88, quando os militares se afastaram, procedeu-se à judicialização da política e, por consequência, a politização do Judiciário.”

Este desequilíbrio permanece e se amplia a cada dia, em meio à turbulência de um país de política convulsionada, em que recrudesce e se aprofunda o confronto entre parlamentares, magistrados e presidente da República. Problemas claramente expostos nos episódios mais recentes, que culminaram, ontem, com a instalação da CPI da Covid, no Senado, e a abertura, na Câmara, do debate sobre o episódio da apreensão de madeira ilegal na Amazônia. Uma reação do Congresso ao massacre de ignorância que o governo Bolsonaro impõe à sociedade.

Enquanto se desenvolve esta luta de campo aberto, surge, da quarentena da pandemia que nos esmaga, o inesperado livro de testemunhos e reflexões de Aldo Rebelo, um roteiro completo para debater o Brasil.

Político que viveu, em extensão e profundidade, como protagonista, diferentes facetas da política brasileira, Rebelo reúne uma experiência singular. Líder estudantil da época da ditadura, exerceu a presidência da UNE, seis mandatos de deputado federal e a presidência da Câmara. Foi ministro da Defesa, do Esporte, da Ciência e Tecnologia, da Coordenação Política, funções em que entrou e de que saiu sem acusações ou processos.

Aldo Rebelo sistematiza os episódios, em seu livro, com a criatividade de quem escreve uma sinfonia. Mais do que um nacionalista, como definido por todos, desde sempre, é um patriota apaixonado. E amplia, a cada dia, a confiança no seu estilo de fazer política: rigor na atenção aos diagnósticos e tolerância nas soluções.

Os sentimentos que criou com relação ao Brasil e aos brasileiros se forjaram na cena de abertura do livro. “A primeira vez que me dei conta do mundo, estava sobre um cavalo. Meu pai trabalhava em uma fazenda. Lembro que ele chegou a cavalo e me pôs montado. Eu devia ter uns três anos e vi outra dimensão do mundo. O mundo visto de cima: o rio, o horizonte, os campos. Data dessa época minha admiração, respeito e paixão pelos cavalos.”

Escrito durante a quarentena da pandemia, que Aldo Rebelo passou no Sítio Amazonas, em Viçosa, Alagoas, em companhia de sua mãe e sua mulher, o livro, de 249 páginas, tem bela ilustração de Elifas Andreato e Agélio Novaes e edição da JÁ, de Porto Alegre. Os 21 capítulos de O Quinto Movimento permitem uma visão otimista da história do Brasil, com intervenções de fatos do presente que lhe dão dinamismo.

No repertório que apresenta, com argumentos de plataforma, figuram economia e futebol, mulheres e índios, militares e diplomacia, educação e desigualdade, agricultura e Amazônia, campos nos quais se especializou nos últimos mandatos.


Carlos Melo: Fragilidade política e ruas definirão jogo

CPI é território em disputa: a oposição quer enfraquecer e, se puder, derrubar o governo; governistas agem na contenção de desgastes do Executivo. As condições iniciais tampouco independem de circunstâncias mais gerais, localizadas no governo e no país. Ao final, serão as condições de contorno – a insatisfação popular e a fragilidade política – que definirão o jogo.

Sempre houve abuso na utilização de CPIS. Oposições sem projeto e oportunismo fisiológico as usaram descoladas do contexto mais amplo. Normalmente, “deu em nada”. Mas, o oposto também se deu: a “CPI do PC Farias” derrubou Collor; a “CPI dos Correios” resultou no mensalão e destroçou promissoras lideranças do PT. Nos dois casos, a insatisfação geral se dava para além do objeto da CPI.

Hoje, a população está recolhida ao isolamento social da pandemia. E, por enquanto, não há mobilização de rua, elemento que potencializa as CPIS. Mas, à parte disso, as condições de contorno são notoriamente insatisfatórias.

Em 60 dias, o País chegará a 500 mil mortes, infelizmente. A situação econômica é deplorável: desemprego e fome tomam o cotidiano das famílias. A base governista é arenosa, como se viu no conflito do Orçamento. O governo está internamente fracionado, ministros sob fogo cerrado. Velhos aliados estão ressentidos e a imagem internacional é péssima.

O presidente e seu séquito são máquinas de disparates. Campeões de tiros nos pés, se desviam a atenção, também agravam a situação. A inabilidade política e a incapacidade de articulação atingem patamares inéditos. Não faltam condições de contorno desfavoráveis para que a CPI prospere.

Faltam as ruas. Mas, quanto mais rápido avançar a vacinação, maior a possibilidade de grandes mobilizações. Arrastar a CPI e estender seus ritos será mais um erro. Com quatro senadores e tudo o que ocorre no País, será difícil dominar o território em disputa.

*Cientista Político, professor do Insper


Miguel Caballero: Os recados de Renan para Bolsonaro e os militares na abertura da CPI da Covid

Não faltaram recados e indiretas a Jair Bolsonaro, embora Renan Calheiros tenha evitado citar nominalmente o presidente da República. Em seu discurso na primeira sessão da CPI da Covid, o relator, porém, foi mais direto ao falar das Forças Armadas, botando o dedo diretamente na relação que é uma das principais bases de apoio do governo Bolsonaro.

Em dois anos e meio, os militares apoiaram o presidenciável Jair Bolsonaro, ocuparam muitos postos na administração federal e, em que pesem alguns estremecimentos e rompimento com os que foram demitidos do governo, os principais atritos entre o presidente e os militares se restringiram à preocupação manifestada fora dos microfones de que um mau desempenho do governo contamine a imagem das Forças Armadas. Esse ponto jamais esteve tão em risco como agora, e a CPI será um novo teste da solidez dessa aliança.

Não se trata de esperar que os militares, categoria longe de ser homogênea, abandone ou não o presidente. Mas o Exército, especialmente, dificilmente escapará do escrutínio da CPI, e precisará limitar até que ponto poderá dividir responsabilização sobre erros da crise com o governo.

A fala de Renan tocou em pontos sensíveis na caserna. Citou as “454 mortes em combate na Segunda Guerra Mundial”, episódio quase sagrados para as Forças, lembrando em seguida que diariamente morre um número maior de brasileiros. “O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas?”, perguntou Renan. “Porque guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa. E foi isso que aconteceu”.

É muito possível, porém, que a CPI tenha de ir além da participação de militares na gestão de Eduardo Pazuello. Embora Renan tenha dito em seu primeiro discurso que “não é o Exército que estará sob análise”, as investigações que a comissão fará sobre propaganda e distribuição de remédios sem eficácia cientificamente comprovada pode alcançar a compra de insumos e produção da hidroxicloroquina pela Força. O Exército, inclusive, já foi instado pelo Tribunal de Contas da União a, juntamente com o Ministério da Saúde, prestar esclarecimento sobre os gastos com a produção e distribuição do remédio.

Uma eventual convocação de um militar da ativa, fardado, a dar depoimento na mesa da CPI, é uma cena com grande potencial de danos à imagem das Forças Armadas.

O último comandante do Exército, general Edson Pujol, perdeu o posto após divergência públicas com o presidente no discurso de combate à pandemia.

No seu retorno ao protagonismo do noticiário político, Renan Calheiros reservou também outros recados. Um dos principais articuladores da resistência da classe política à Lava-Jato, repetiu no discurso ataques ao ex-juiz Sergio Moro — “não vou condenar ninguém por convicção” — e aos procuradores da antiga força-tarefa de Curitiba — “aqui nessa CPI não vai ter PowerPoint”.

Opositor ao governo Bolsonaro, o senador não perdeu a oportunidade de lançar uma alfinetada ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Numa referência indireta à inércia da PGR para investigar possíveis crimes do presidente na pandemia, Renan afirmou que “CPIs vicejam quando os canais tradicionais de investigação se mostram obstruídos e isso é um ensinamento histórico”.

Por fim, fez também uma provocação a Bolsonaro, mesmo sem citá-lo. Ao elogiar o Supremo Tribunal Federal (STF) por ter garantido à minoria do Senado o direito de instalação da CPI após atingir as assinaturas necessárias, afirmou que o tribunal foi “terrivelmente democrático”, fazendo questão de usar o advérbio preferido do presidente sempre que afirma, há dois anos, que indicará um evangélico para o Supremo.


Andrea Jubé: 'Quantos poderiam ser salvos?'

Atraso nas vacinas foi deliberado, diz governador de Alagoas

O governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), recorreu a uma metáfora futebolística, tão comum na política, para explicar por que a falta de uma coordenação nacional no combate ao coronavírus contribuiu para o recrudescimento da pandemia no Brasil.

“O Ministério da Saúde é fundamental nesse processo, e em meio à crise, tivemos quatro ministros. Imagina a Seleção Brasileira, às vésperas da Copa do Mundo, trocando de técnico quatro vezes, cada um com um time de diferente, um lateral esquerda, outro de direita. Certamente isso dificulta a organização do time”.

O mandatário é filho do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que ontem teve a nomeação para o cargo de relator da CPI da pandemia impedida por uma liminar da Justiça Federal do Distrito Federal. Nas redes sociais, o senador classificou a decisão como “interferência indevida”, acusou o governo Jair Bolsonaro de orquestrá-la, anunciou que vai recorrer, e provocou: “Por que tanto medo?”

Para Renan Filho, contar com Renan Calheiros na relatoria da CPI não deveria inspirar medo, mas, sim, confiança pela sua experiência política e disposição para conciliação. “Não se encontra no Senado tanta gente com a capacidade dele, experiente, calmo, sereno. O senador Renan é equilibrado e no papel de relator, só vai ajudar”.

O governador acrescenta que o senador seria incapaz de qualquer injustiça na condução dos trabalhos “porque já foi injustiçado, e sabe o que isso significa”. Uma alusão às denúncias contra o senador no âmbito da Lava-Jato. Renan ainda responde a oito processos no Supremo Tribunal Federal, mas dos 17 originais, nove já foram enviados ao arquivo.

Na última semana, Renan Filho recebeu um telefonema do presidente Jair Bolsonaro, que tem o alagoano como único interlocutor entre os governadores do Nordeste. Na conversa, Bolsonaro reafirmou ao governador que o momento é inoportuno para a CPI.

O governador não discordou do presidente naquele momento, porque seria uma descortesia em pleno telefonema com o chefe do Executivo. Ontem, entretanto, Renan Filho disse à coluna que tem outra opinião: “Quem decide o momento ideal para uma CPI é o Congresso Nacional”.

Renan Filho acredita que Bolsonaro lhe telefonou para fazer “um gesto na direção do diálogo”, já que o senador Renan havia sido indicado para relatar a CPI. O governador lembrou que, em entrevistas recentes, Renan Calheiros disse que, como relator, conversaria com todos, “especialmente com o presidente, se ele desejar”.

Até ontem, havia ambiente para o diálogo, mas a ofensiva judicial da deputada Carla Zambelli (PSL-SP), aliada de primeira hora do Palácio do Planalto, e que obteve a liminar barrando Renan, tumultuou o jogo. Se a decisão for revogada, Renan assumirá o posto pintado para a guerra, um figurino que ainda não havia exibido.

No fim de semana, Renan foi ao Twitter declarar-se suspeito em relação a qualquer investigação sobre o governo de Alagoas que surgir na CPI. Uma reação à campanha deflagrada nas redes sociais pelos bolsonaristas, que impulsionaram a hashtag #Renansuspeito, já que o relator da CPI é pai de um governador, e os governadores serão investigados quanto à gestão dos recursos federais para o enfrentamento da pandemia.

Renan Filho diz que não teme essa investigação porque Alagoas tem bom desempenho na pandemia. É o terceiro Estado com menos mortes por grupo de 100 mil habitantes, e não foi investigado pela Polícia Federal.

Para conter a covid-19, ele associou medidas de distanciamento social e de restrição de circulação, à ampliação da rede hospitalar. Relata que acelerou a conclusão de quatro hospitais, ao mesmo tempo em que contou com o apoio da Federação das Indústrias e da Associação Comercial em comerciais para a televisão nas medidas restritivas. Está em vigor o toque de recolher a partir das 21 horas, e dias pontuais para o fechamento dos shoppings. A lotação das UTIs está em 76%.

“Por essas ações a rede não colapsou até agora. É possível construir um discurso integrado, mas houve no Brasil uma intenção de dividir o país”.

Renan Filho invoca o infográfico elaborado na semana passada pelo site “Poder360”, que comparou unidades federativas a países. Nesse comparativo, o Distrito Federal e sete Estados brasileiros estariam entre os 10 países com mais vítimas da covid-19. Amazonas, com 2.903 mortes por milhão, desponta acima da República Tcheca, líder do ranking mundial. Alagoas estaria empatado com a Bahia, em 32º lugar, com 1.186 mortes por um milhão de habitantes.

Renan Filho defende que a CPI faça esse modelo de cálculo. “Quantas vidas teriam sido salvas se as medidas corretas de enfrentamento à pandemia fossem tomadas no momento adequado? Essa história também precisa ser contada”, conclamou.

Ele admite que não será possível um cálculo direto ou objetivo, “mas obviamente dará para demonstrar que algumas regiões têm resultados melhores do que outras, e podemos olhar o que levou a isso, podemos fazer discussão com especialistas”, sugeriu.

Num momento em que o Brasil ainda vivencia um platô de 3 mil mortes diárias, o governador considerou “muito grave” a nova revisão do cronograma de imunização, e vê um atraso intencional na busca de imunizantes.

“Nós nos atrasamos deliberadamente na aquisição de vacinas. Em determinado momento, o Brasil era contra a compra de vacinas, e isso se verbalizou por meio de várias autoridades. E não temos um cronograma de vacinação, ele é alterado a cada semana, quinzena ou mês, e é sempre para postergar, nunca para antecipar”.

Renan Filho lembra que defendeu a urgência de uma coordenação nacional de combate à pandemia, com a integração de esforços entre as três unidades da federação na reunião de governadores, ministros e chefes das Casas Legislativas no Palácio da Alvorada há um mês. “Governo federal e Congresso concordam com essa falta de coordenação, por isso criaram o comitê [nacional de combate à pandemia], mas de lá pra cá, não teve ação nenhuma”.


Eliane Cantanhêde: Na CPI, guerra é guerra

Bolsonaro quer impor roteiro, desqualificar Calheiros e dar Pazuello aos leões, mas os fatos o condenam

Com a instalação da CPI da Covid, começa hoje uma nova fase do governo Jair Bolsonaro, que, além de já estar em campanha eleitoral antecipada para 2022, vai estar muito ocupado em tentar explicar o inexplicável numa tragédia histórica que já levou 390 mil vidas no Brasil. Bolsonaro vai passar a ter oposição real e muita visibilidade negativa.

A CPI é como o coronavírus: desconhecida, altamente contagiosa e potencialmente letal. Se Bolsonaro reagir a ela com o negacionismo com que trata o próprio vírus, ficará em maus lençóis. Mas, se ele é incompetente como presidente, é esperto como candidato e na relação com o Centrão. Suas três prioridades: impor o roteiro da CPI, desqualificar o senador Renan Calheiros como relator e manter controle sobre o general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello.

Quanto ao roteiro, o Planalto fez 23 perguntas a ministros sobre os erros mais gritantes, mas tem muito mais. Exemplos: por que tratar a pandemia até hoje como “gripezinha”? E por que Bolsonaro jogou no lixo documentos do Exército e da Abin sobre isolamento? Nenhum ministro tem resposta para isso, assim como ninguém sabe que tipo de motivações, ou interesses, estão por trás da posição sobre isolamento, máscaras e vacinas – e sem pôr nada no lugar, além de cloroquina...

Atacar Calheiros é fácil, pelos processos no Supremo e por ser pai do governador de Alagoas, Renan Filho, como acatou ontem a Justiça Federal no DF. Mas Renan pode ser tudo, menos bobo. É experiente, tem liderança e, depois de tanto tempo recolhido, sabe bem o que o esperava e espera ao voltar aos holofotes.

Quanto a Pazuello, ele é um risco para Bolsonaro. Como ministro, já se atrapalhava todo com jornalistas, mentindo, apresentando previsões irreais de vacinas, tirando onda de irritado. Já imaginaram numa CPI com raposas, maioria oposicionista, montanhas de erros e nenhuma defesa?

Até na véspera da CPI, Pazuello e o sucessor, Marcelo Queiroga, continuaram errando. Um ex-ministro da Saúde passeando sem máscara num shopping logo de Manaus? E o atual tentando culpar o Butantan por falta de segundas doses? De Pazuello não se espera muito e o próprio Exército não sabe o que fazer com ele. Mas Queiroga? Está mal informado, ou entrou na dança política?

Ontem, Queiroga jogou para governadores, Butantan e Coronavac a culpa por muitos brasileiros, sabe-se lá quantos, não conseguirem tomar a segunda dose. Se há vacinas, o Brasil deve à Coronavac. E por que não há segunda dose? Porque, em 21 de março, dois dias antes da nomeação de Queiroga, o Ministério da Saúde liberou Estados e municípios a gastarem todo o estoque na primeira. É mais uma irresponsabilidade criminosa, até porque as previsões de doses nunca foram confiáveis. O ministro não sabia?

Foi também o Ministério da Saúde quem confiscou toda a produção nacional do kit intubação, mas, quando os insumos e medicamentos começaram a faltar e o governo de São Paulo mandou nove ofícios pedindo envio urgente de kits, o que Queiroga respondeu? Mandou os “Estados ricos” comprarem seus próprios kits. Comprar onde, se todo o estoque foi requisitado pelo governo federal?

A estratégia do governo é jogar Pazuello aos leões e deixar os demais ministros na fila da jaula, inclusive Paulo Guedes e o ex-chanceler Ernesto Araújo. Todos, porém, só cumpriram ordens. Um manda, os outros obedecem. O presidente Jair Bolsonaro é o grande responsável, cometeu os grandes erros, é o grande alvo. A intensa articulação do Planalto para esvaziar a CPI, atacar Calheiros e usar Pazuello de escudo esbarra numa antiga verdade: contra fatos, não há argumentos. Nem articulação que dê jeito.