Relações internacionais
Crise humanitária na Venezuela requer resposta regional
A Venezuela está afundada em uma crise humanitária que levará talvez décadas para superar
Na semana passada, o novo chanceler brasileiro, José Serra, obteve uma importante e inesperada vitória diplomática: conseguiu convencer Buenos Airese Montevidéu a unirem esforços para aumentar a pressão sobre a Venezuela. Os membros do Mercosul deram até 1º de dezembro para que o país conclua a internalização das normas do bloco, sob pena de suspensão. A Venezuela entrou no Mercosul em 2012, mas ainda não ratificou muitas das normas do grupo para comércio, política, democracia e direitos humanos. O ultimato representa uma relevante mudança da estratégia em relação à Venezuela, que havia, até o momento, contado com um sólido apoio na América Latina desde a vitória deChávez na eleição de 1999.
É possível que a Venezuela peça uma extensão do prazo para acatar o pedido, mas é improvável que chegue a implementar as normas do Mercosul. É preciso lembrar que Caracas nunca teve a intenção de se adaptar às regras econômicas e comerciais do bloco regional. De um ponto de vista econômico, o protecionismo do Mercosul não faz nenhum sentido para a economia venezuelana. Ao contrário do Brasil e da Argentina — que querem proteger suas indústrias da competição chinesa, europeia e norte-americana —, a Venezuela exporta somente petróleo e importa praticamente tudo que consome. Uma porcentagem crescente dos produtos que importa vem daChina, e cada vez mais sua aquisição é requisito para conseguir crédito chinês. Adotar a tarifa externa comum geraria resistência em Pequim, um preço alto demais para Caracas. Isso mostra que nem mesmo uma mudança de regime na Venezuela alteraria a falta de sincronia implícita que sua adesão ao Mercosul criou.
Por mais que o ultimato do Mercosul represente um primeiro passo na direção certa, é preciso que haja mais pressão diplomática para preservar a democracia na Venezuela. Ao invés de apenas apontar para questões técnicas, o Brasil deveria articular uma declaração conjunta dos membros do Mercosul defendendo a realização de um referendo de recall antes de 10 de janeiro, o que possibilitaria a realização de novas eleições gerais, caso a população escolhesse cassar o mandato de Maduro.
Além de defender a democracia, no entanto, líderes em Brasília e Buenos Aires precisam de uma estratégia para lidar com algo ainda mais urgente: ajudar a salvar vidas venezuelanas. Com o pior desempenho econômico e a maior taxa de inflação do mundo, a Venezuela, rica em petróleo, está cada vez mais afundada em uma crise humanitária que levará anos, senão décadas, para superar. Uma parcela significativa da população não tem mais condições de ter três refeições diárias. Até mesmo remédios básicos estão em falta em hospitais públicos por todo o país e pessoas com doenças crônicas que precisam de tratamento são forçadas a emigrar para sobreviver. A pilhagem de supermercados é cada vez mais frequente. Portanto, Brasília e Buenos Aires deveriam encabeçar um esforço internacional para pressionar o governo Maduro a permitir a entrega, em grande escala, de medicamentos básicos em hospitais. Solucionar a crise humanitária não é meramente uma questão moral, como também faz parte do interesse nacional de Brasil e Argentina: quanto mais tempo perdurar o problema, maiores os riscos de conflitos civis na Venezuela, o que poderia gerar instabilidade na região.
Um levantamento recente do Datincorp, um instituto de pesquisa localizado em Caracas, apontou que 57% dos venezuelanos querem sair do país, contra 49% em maio de 2015. Consertar uma economia quebrada é difícil, mas convencer os jovens e aqueles com alto nível educacional a retornarem daqui alguns anos será ainda mais complicado: com uma política cronicamente instável e uma diáspora bem organizada em lugares como Estados Unidos e Argentina, muitos nunca retornarão. Uma fuga de capital humano é o pior cenário possível para um país que tenta desesperadamente reduzir sua dependência do petróleo e diversificar suas atividades em outras indústrias e serviços.
Políticos argentinos e brasileiros nunca criticaram Hugo Chávez, que, fortalecido temporariamente pela alta nos preços do petróleo, lentamente desmontou a democracia em seu país. Contratos vantajosos com a Odebrecht e outras empreiteiras ajudaram na internacionalização das campeãs nacionais brasileiras. A internacionalização do capitalismo brasileiro se tornou uma marca registrada da política regional de Lula e a Venezuela se tornou um elemento-chave nesta política. O compromisso de Chávez com a democracia, como os conselheiros de Lula reconheciam a portas fechadas, era limitado, mas os interesses econômicos em jogo eram grandes demais para arriscar perder um importante cliente. Em dado momento, o serviço secreto venezuelano descobriu que uma grande empreiteira brasileira havia doado dinheiro tanto para o partido de Chávez quanto para a oposição antes de uma eleição. Furioso, Chávez ameaçou expulsar a empresa em questão de seu país e foi necessário que Lula interviesse pessoalmente para resolver o problema. Outros líderes da região, desde Evo Morales na Bolívia até Cristina Kirchner da Argentina, são igualmente culpados.
É complicado para qualquer governo, mesmo para os autoritários, aceitar ajuda humanitária, pois fazê-lo é um reconhecimento óbvio de fracassos severos na política econômica (em particular no caso da Venezuela, tendo em vista que a crise não pode ser atribuída a um fator externo, como uma má colheita ou uma crise generalizada na região). Ainda assim, convencer um país a aceitar auxílio humanitário é muito mais fácil do que mediar com êxito as negociações entre um governo e a oposição, algo que sempre gera apreensões sobre a questão da soberania. É o mínimo que Brasil e Argentina podem fazer depois dos benefícios que a bonança da Venezuela lhes trouxe por anos.
Fonte: El País
Civilizar e crescer
Foram poucas as conclusões práticas do encontro do G20
Depois do surgimento da crise, confiou-se, no G20, que a gestão desta fosse não só mais participativa, com um protagonismo destacado das principais economias emergentes, mas que atentassem para os problemas apenas intuídos pelo pouco representativo G7, das principais economias avançadas. Na reunião que acaba de terminar em Hangzhou as conclusões operacionais foram poucas. O enunciado mais comercial foi o de “civilizar o capitalismo”.
Sob tal frase de efeito, pretende-se colocar freio ao descontentamento social derivado de uma gestão da crise que se traduziu em uma redução do potencial de crescimento e uma menor capacidade de reduzir a desigualdade na distribuição da renda e da riqueza que a própria crise acentuou. Mas ninguém no G20 colocou sobre a mesa decisões corretas. Nem sequer a diretora-gerente do FMI, que tornou o diagnóstico um pouco mais palpável ao destacar que “o crescimento está sendo pequeno demais, durante muito tempo, para muito poucos”. E mesmo quando nos documentos internos do FMI as políticas de expansão da demanda e reativação do comércio internacional se sobressaem sobre os ajustes orçamentários, a concretização continua encontrando objeções em algumas economias centrais da zona do euro. Que tenha aparecido no comunicado final uma referência à necessidade de controlar mais eficazmente a taxação das grandes multinacionais, sugerida pelo presidente da Comissão Europeia, não pode furtar-se ao freio que a zona do euro continua representando à normalização da economia mundial.
A condição necessária para que a dinâmica de globalização encontre menos rejeição social não exige tanto a dramatização de perseguições fiscais, mas decidir de forma imediata políticas que garantam a restauração do potencial de crescimento perdido, e a elevação do desemprego estrutural em não poucas economias.
Fonte: El País