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RPD || Henrique Brandão: Exclusão e preconceito unem Samba e Rap

Forte na construção do mito, documentário do show que o rapper fez, em novembro de 2019, no Theatro Municipal de São Paulo, reivindica para si os lugares da história cultural do país

O documentário “Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem” tem recebido rasgados elogios na imprensa e nas redes sociais, desde que estreou na Netflix, em 8 de dezembro. O filme é o registro do show de lançamento do álbum homônimo do rapper paulista. Assisti-lo vale o ingresso, ou, mais apropriado para os tempos pandêmicos atuais, o clique no canal de streaming.

O local da apresentação é o palco do tradicional Theatro Municipal de São Paulo. Noite histórica. Teatro lotado, não pela costumeira plateia de melômanos de música clássica, mas por pessoas que sabiam na ponta da língua as rimas carregadas de contundência do rapper paulista. O público estava à vontade.

O que poderia vir a ser apenas o registro de um momento de ocupação de um espaço elitista por natureza, nas mãos de Emicida, do roteirista Toni C. e do diretor Fred Ouro Preto, transformou-se em um filme-manifesto muito original. Ao mesmo tempo em que carrega a visão particular de um artista oriundo da periferia de São Paulo, o documentário vai além e procura traçar um panorama da música brasileira de matriz africana e suas ligações com o rap.

Sem pretensões sociológicas, mas com críticas incisivas ao caráter excludente da formação social brasileira, Emicida é o condutor da história. No palco, divide músicas com convidados. O making off revela artistas que participaram da gravação do disco: (Zeca Pagodinho, Marcos Valle, Fabiana Cozza e Fernanda Montenegro). Em off, sua voz costura imagens atuais com cenas do passado, narrando a história do Brasil à sua maneira. Não a história triunfalista, mas o outro lado da moeda, em que a cara impressa é a dos pobres e negros que viveram – vivem – no país que foi o último das Américas a abolir a escravidão.

Emicida comenta: “de alguma forma meus sonhos e minhas lutas começaram muito tempo antes da minha chegada”. É a deixa para o início do passeio pela trajetória musical do país, estabelecendo conexão com o samba, outro gênero que enfrentou preconceitos e dificuldades para ser reconhecido.

Do início do século XX, quando o samba surgiu no Rio de Janeiro, até os dias atuais, muito aconteceu no panorama musical, mas pouca coisa mudou no que diz respeito à criminalização do pobre. “Os artistas de morro foram perseguidos por todos os meios. O Estado Brasileiro [criou] um instrumento jurídico conhecido como Lei da Vadiagem que, ao longo dos anos, aprisionou sambistas. O bizarro é que essa lei segue em vigor até hoje”, diz Emicida. Para comprovar a tese, imagens mostram a polícia reprimindo a gravação de um clipe do artista em uma comunidade da Zona Norte paulistana. É o presente repetindo o passado.

“O samba é o Brasil que deu certo”, exalta o rapper. “Não tem vitória possível para este país distante do samba”, enfatiza. Na tela, vão desfilando personagens que tiveram papel decisivo no gênero: Pixinguinha, Donga e os “Oito Batutas”, Ismael Silva, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Lecy Brandão, Riachão, Nelson Cavaquinho, entre outros.

Para Emicida, o rap e o samba são da mesma cepa. Jovelina, Jackson do Pandeiro, Jair Rodrigues e Wilson Batista “já eram hip-hop antes de nós existirmos”, defende. “Este fruto, ora azedo, ora adocicado que conhecemos como rap, hoje vem de uma grande árvore, e, se você for buscar as suas raízes, vai encontrar o samba.”

Não à toa, Emicida aproxima o rap ao samba. Traz para junto de si Wilson das Neves, ídolo confesso, descoberto em suas garimpagens discográficas pelos sebos, que vira seu parceiro em uma faixa do disco. O lendário baterista, com seu swing peculiar, elegante por natureza, faleceu antes da apresentação no Municipal paulista, para tristeza do rapper.

Em uma conversa com Marcos Vale, Emicida revela sua ambição: fundar um novo ritmo, uma nova linguagem artística: “com o AmarElo, eu tenho chamado de neosamba”.

Pelo sucesso que o disco vem fazendo, (conquistou o Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa”) e com esse poderoso inventário audiovisual, o rapper, com sua postura ao mesmo tempo altiva e serena, é hoje uma figura relevante da música brasileira.

Como mostra com cristalina evidência no documentário, Emicida sabe que, para mudar as coisas que se perpetuam há anos, é necessário juntar forças. “A única coisa que nós temos é uns aos outros”. Este é um mantra que perpassa o filme.

O rap está assentado no sampler, no uso da contribuição de “amostras” de outros artistas. Emicida resgatou versos de Belchior e criou a trilha sonora da pandemia: “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

Que assim seja.

*Henrique Brandão é jornalista e escritor


RPD || Dora Kaufman: A complexidade da decisão da Ford de deixar o Brasil

A pandemia da Covid-19 acentuou a mudança comportamental com impactos no futuro da mobilidade e preocupação com a sustentabilidade. Contexto influiu na crise da Ford e decisão de fechar suas fábricas no Brasil

A 51ª Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial, pela primeira vez realizada virtualmente por conta da pandemia da Covid-19 (janeiro, 2021), teve como tema central “The Great Reset”, compromisso de reconstrução das bases do sistema socioeconômico visando um futuro “mais justo, sustentável e resiliente”.

O Relatório de Riscos Globais de 2021 do Fórum, um dos mais importantes desde sua concepção em 2006, identificou como um dos principais riscos à degradação ambiental (condições climáticas adversas e perda de biodiversidade); a meta é descarbonizar a economia até 2030.[1]

Não por coincidência, o retorno dos EUA ao “Acordo de Paris” foi um dos primeiros atos assinados pelo Presidente Joe Biden. A agenda da sustentabilidade impacta todas as indústrias, particularmente a indústria automotiva. Guiadas pela “economia verde”, as montadoras estão investindo pesado na ampliação de suas linhas de veículos elétricos (EVs - Electric Vehicles).

É interessante observar que a liderança desse segmento pertence à Tesla, empresa de tecnologia e não uma das tradicionais montadoras, detendo 50% do valor de mercado, seguida pela Toyota e Volkswagen. A Ford, atualmente está classificada na posição 15, com planos de eletrificação começando por modelos “populares", como o Mustang Mach-E SUV.[2]

Além dos carros elétricos, com a migração da queima de combustível fóssil para corrente elétrica, eliminando os impactos climáticos negativos. Outros três fatores são responsáveis pela transformação da indústria automotiva: o conceito de acesso substituindo a propriedade, o veículo autônomo e a mudança comportamental. Em 2000, o economista americano Jeremy Rifkin publicou o livro A Era do Acesso e defendeu que a noção de propriedade tende a ser substituída pelo acesso, e a relação entre vendedores e compradores para a de fornecedores e usuários.

Nesse ambiente econômico, as empresas, no limite, entregarão gratuitamente seus produtos apostando no relacionamento com seus clientes, baseado na prestação de serviços. A garantia de acesso ao bem, quando e como preferir, torna-se mais importante do que a propriedade desse bem. Experiências como Uber sinalizam nessa direção estimulando, inclusive, serviços de aluguel de veículos por parte de montadoras.

A comercialização de carros autônomos enfrenta desafios ainda não equacionados - conexão com a infraestrutura das cidades e arcabouço regulatório incluindo a responsabilidade por eventuais danos -, mas as expectativas são promissoras. O relatório [3], conduzido pela KPMG com 751 executivos norte-americanos, inclusive da área de transportes, apontou que 82% dos entrevistados acreditam que os veículos autônomos serão uma realidade nos próximos 10 anos, com 35% prevendo que o fato ocorrerá nos próximos cinco anos.

A pandemia da Covid-19 acentuou a mudança comportamental com impactos no futuro da mobilidade, como aponta estudo da consultoria McKinsey[4], ampliando os canais digitais e as preocupações com a sustentabilidade, favorecendo a mobilidade compartilhada, e a micromobilidade com veículos leves tais como as bicicletas (expectativa de aumento de 5% no uso), as scooters e os ciclomotores. Esse é o contexto para compreender a crise da Ford com a subsequente decisão de fechar suas fábricas no Brasil, ela que foi a primeira montadora a se instalar no país no longínquo ano de 1919. A Ford não conseguiu se posicionar bem neste novo cenário, está atrasada com as soluções inovadoras (carro elétrico, carro autônomo) e, pior, não teve sucesso em concretizar coligações ou fusões com outras montadoras seguindo o movimento global, como bem ilustra a recém constituída Stellantis, fusão entre Fiat Chrysler e Peugeot Citroën.

Adicionalmente, as condições desfavoráveis do Brasil configuram externalidades negativas. O coordenador do Observatório de Inovação da USP, Glauco Arbix, alerta para redução mais acelerada da participação da indústria brasileira no PIB, comparativamente ao resto do mundo, caracterizada por “desindustrialização prematura”, gerando uma economia disfuncional, elevando ainda mais o “custo Brasil”. Esse movimento, segundo Arbix, atinge fortemente o setor automotivo, dentre outros fatores pelo declínio da indústria com base no petróleo.

No caso da Ford, o atrativo do tamanho do mercado consumidor brasileiro não compensou as condições de produção mais favoráveis da Argentina. Em dezembro último, a montadora alemã Mercedes-Benz anunciou o fechamento de sua fábrica em Iracemápolis, no interior paulista, onde produzia os modelos Classe C sedã e o utilitário esportivo GLA. Resta-nos torcer para não virar tendência entre as montadoras.

*Dora Kaufman é doutora em Mídias Digitais pela USP, pós-doutora pela COPPE-UFRJ e pesquisadora dos impactos sociais de Inteligência Artificial em seu pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TID D|PUC-SP), sob supervisão de Lucia Santaella, e participa do grupo de IA do Instituto de Estudos Avançados e do Centro de Pesquisa Atopos, ambos da USP.


[1] (http://reports.weforum.org/global-risks-report-2021/). 

[2] (https://www.visualcapitalist.com/worlds-top-car-manufacturer-by-market-cap/)

[3] "Vivendo em um mundo de IA" (Living in an AI world,https://advisory.kpmg.us/content/dam/advisory/en/pdfs/2020/transportation-living-in-an-ai-world.pdf.)   

[4] (https://www.mckinsey.com/industries/automotive-and-assembly/our-insights/from-no-mobility-to-future-mobility-where-covid-19-has-accelerated-change)