Reinaldo Azevedo

Reinaldo Azevedo: Versão de Villas Bôas é lixo golpista

Justificativa para tuítes que ameaçaram o Supremo está assentada numa mentira factual

O general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, militar mais poderoso da Terra, enfrentou as delinquências de Donald Trump recorrendo à Constituição americana. Por aqui, um general da reserva resolve narrar, em tom que aspira ao pudoroso, a ameaça golpista que fez para intimidar o Supremo.

No dia 3 de abril de 2018, véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, escreveu no Twitter: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem d e repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais".Os que dele discordavam não eram "homens de bem". Comandar tanques corresponderia a ter razão. O general ainda distinguiu os que pensavam "no bem do País" dos que estariam preocupados "com interesses pessoais". Adivinhem em que lado ele se via. A propósito: quantas divisões tinha o adversário?Lembro: cinco dos seis ministros que votaram contra a concessão do habeas corpus foram indicados por Lula ou por Dilma. Três dos cinco favoráveis, por outros presidentes.

Villas Bôas concedeu um depoimento a Celso Castro, diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da FGV. A fala está condensada no livro "General Villas Bôas: Conversa com o Comandante".

Não é exatamente novidade. O próprio militar já havia tratado do assunto em entrevista, mas fica ainda mais claro desta feita que seus tuítes ameaçadores reproduziam o pensamento do Alto Comando do Exército —ao menos é isso o que diz. Não havendo contestação, assim é. Querem passar um paninho na biografia do general e nas tentações golpistas?

Então fiquem com a versão de que, ao mandar um ultimato ao Supremo, Villas Bôas evitou coisa pior —quem sabe uma tentativa de quartelada, à revelia do Alto Comando, estimulada por pijamas inflamados. Conhecemos, desde Castello Branco, a cascata do militar honrado, que resiste à quebra da hierarquia, mas acaba cedendo a contragosto... A versão vale uma dose de cloroquina contra o coronavírus, ministrada por Eduardo Pazuello, general da ativa.

Uma mentira essencial constitui o pano de fundo do relato de Villas Bôas: a de que Lula poderia concorrer à Presidência se deixasse, então, a cadeia. Falso. Tivesse acontecido, tratar-se-ia apenas de cumprir o que dispõe o inciso LVII do artigo 5º da Constituição.

O petista continuaria inelegível segundo a Lei da Ficha Limpa. Ainda que elegível fosse, a suposta legitimidade da intervenção, à qual o militar pretende emprestar dimensão constitucional, emana de que título legal?

Estou enganado, ou ele pretende legitimar com as baionetas a leitura do artigo 142 da Constituição no esforço de impedir o cumprimento de disposição do artigo 5º, que é cláusula pétrea?

Os militares teriam seus motivos para tanto rancor: estavam revoltados com as conclusões da Comissão da Verdade —jamais um golpista sofreu qualquer prejuízo pessoal--; viam a Amazônia submetida à cobiça de organizações estrangeiras, consideravam a demarcação de terras indígenas um risco à soberania...Pouco me importam os fantasmas que povoam a imaginação criativa do golpismo. Fato: Lula foi o presidente que mais investiu no reaparelhamento das Forças Armadas desde a redemocratização. E desafio que se evidencie o contrário. A ideia de que se forjou um espírito antipetista num ambiente de penúria e de política entreguista (ao onguismo internacional) vale uma dose do vermífugo do astronauta.Não tenho apreço por quem me ameaça. Os tuítes de Villas Bôas marcaram o engajamento explícito das Forças Armadas na candidatura de Bolsonaro. Um dos generais do poder organizou uma lista de compra de votos para eleger o presidente da Câmara. Outro, da ativa, poderá, no fim de fevereiro, discursar sobre 250 mil cadáveres.

Seriam esses os "anseios dos cidadãos de bem?" O depoimento de Villas Bôas tem óbvio interesse histórico. Merece um lugar na prateleira do lixo golpista.


Reinaldo Azevedo: Dois eventos nesta semana evidenciam um país que se acanalhou

Precisamos recuperar, na vida pública, uma hierarquia do saber

Vivemos uma espécie de apagão de critérios. Como o Estado de Direito e o devido processo legal estão sob vara desde, ao menos, 2013, as mentes foram ficando confusas, atrapalhando-se, perdendo a noção de hierarquia.

Assistiu-se, nesse tempo, a cada dia, a um tantinho de abuso impune. E fomos nos abastardando. Ou, nas palavras de Graciliano Ramos em “Memórias do Cárcere”, nós, como povo, “nos acanalhamos”. E, nesse ambiente, começamos a conviver com o “tudo é possível”, dizendo a nós mesmos: “Vá lá, isso não é tão grave”.

Nesta semana, dois eventos ilustram essa decadência, vamos dizer, civilizacional. Só para lembrar: em 1995, FHC apanhou severamente da imprensa porque disse que as críticas que lhe faziam as oposições eram “nhenhenhém”. Viu-se ali desrespeito ao contraditório. Bem mais rascante, Lula chamou seus críticos de “babacas”. Apanhou. Inclusive deste escriba. Já fomos melhores, como se vê.

Alguns ficaram um tantinho chocados com o fato de deputados do PSOL terem homenageado Bolsonaro, na quarta, com palavras como “genocida” e “fascista”. Também levantaram pequenos cartazes, em tamanho de papel ofício, que traziam essas palavras, acompanhadas de um “Fora”. Não me choquei. O que me preocupou foi o fato de tão poucos terem protestado de maneira evidente e clara.

Sei que alguns preferem debater se, afinal, Bolsonaro é mesmo um “fascista” e “genocida”; se os termos não traduzem mera “lacração”; se não faltam os requisitos históricos que definem uma coisa e outra. Assim que o genocídio (querem aspas?) dos pobres de tão pretos e pretos de tão pobres chegar ao fim —ao menos em razão da Covid-19—, prometo que topo fazer esse debate.

Enquanto pessoas morrerem asfixiadas por falta de oxigênio, na reta dos 250 mil cadáveres antes que fevereiro chegue ao fim, os que exibem tal sede de precisão busquem aí como definir um presidente que incentiva —e pratica— todos os comportamentos de risco e que sabota os meios para reduzir o contágio. Acrescentem à soma de características para chegar ao nome adequado —que seja, por ora, “O Coiso— o fato de que este mesmo presidente criou as dificuldades que estavam ao seu alcance para impedir o início da imunização.

Fascista? Atendendo, então, à objetividade dos sufixos, serviria “fascistoide”? Participou de atos que pregavam abertamente o fechamento do Congresso —ali onde a Paz Perpétua era celebrada na quarta— e do Supremo. Discursou em frente ao QG do Exército, num incentivo claro à intervenção militar.

Estranho seria que participasse de uma solenidade no Congresso sob o silêncio ou cúmplice ou acovardado de todos os parlamentares. Digamos que fosse pertinente agora um debate sobre a criação de um Selo de Origem Controlada para definir um “fascista” e um “genocida”. Ainda assim, seria incontroverso que os oposicionistas estavam obrigados a encontrar palavras para designar “O Coiso”.

Tratei até aqui de Bolsonaro e das palavras que alguns pretendem ser as historicamente incorretas para defini-lo. Esta foi também a semana em que a Lava Jato de Curitiba chegou ao fim, sob muitas lágrimas. As 105 reportagens da Vaza Jato já fizeram a anatomia da criação do Estado paralelo —que, ora vejam!, resultou justamente na eleição de Bolsonaro.

Parte do que foi recolhido pela Operação Spoofing começa a vir à luz. Reitera os descalabros e acrescenta novos assombros. Sergio Moro constituiu a própria mulher como advogada para ver se substitui Ricardo Lewandowski por Edson Fachin na relatoria do caso na esperança de que se submeta também a verdade a um apagão.

Os que se fizeram sócios da empreitada que corrompeu o direito penal no Brasil, inclusive na imprensa, corrompem agora os fatos para ligar o tal “desmonte da Lava Jato” —que não existe— aos supostos interesses de Bolsonaro. Trata-se de uma fraude histórica, intelectual e moral.

Precisamos recuperar, na vida pública, uma hierarquia do saber. Proponho a Constituição e o devido processo legal acima de todos. Que tal?


Reinaldo Azevedo: Lira não é só o antirreforma; ele é a contrarreforma

Deputado encarnaria antiliberalismo na sua modalidade reacionária

É evidente que considero desastrosa para o país a eventual vitória do deputado Arthur Lira (PP-AL) na disputa pela presidência da Câmara. E de várias maneiras. Com ele, eleger-se-ia não só a antirreforma, mas a contrarreforma.

Se já há dificuldade para emplacar no Congresso qualquer coisa que possa lembrar, de longe, uma pauta liberal, o parlamentar encarnaria esse antiliberalismo na sua modalidade reacionária.

Uma mágoa de Jair Bolsonaro com Rodrigo Maia (DEM-RJ) faz sentido. O atual presidente da Câmara, de fato, criou obstáculos civilizatórios para que o outro levasse adiante sua agenda fúnebre na Casa --que Lira, se vencer, promete retomar.

Bolsonaro admite —com o despudor com que anseia enfiar leite condensado na parte terminal do aparelho digestivo da imprensa— que resolveu meter a mão grande na disputa. Seu escolhido é uma espécie de Eduardo Cunha redivivo nos transes da ventura e nos dons do pensamento.

Há, no entanto, uma diferença: Cunha fez-se presidente da Câmara na contramão da tentativa de Dilma Rousseff de emplacar um nome. Bolsonaro, consta, pode ser mais feliz na empreitada, mas isso não muda a natureza e o caráter do seu parceiro. Perderá ganhando ou perdendo.

Lira foi um dos algozes no governo na Câmara ao longo de 2019. Ele e o presidente começaram a trocar juras de amor eterno no começo de 2020. No dia 19 de abril do ano passado, num ato golpista em frente ao QG do Exército, em Brasília, o "Mito", na prática, incitou as tropas a aderir a um autogolpe, sob seu comando.

Discursou: "Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos, sem exceção, têm que ser patriotas e acreditar e fazer a sua parte para que nós possamos colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder".

No dia seguinte, recebeu Lira no palácio para marcar "o fim da patifaria". Ambos fizeram uma selfie. Imagino um deles soprando aos ouvidos do outro: "Acho que este é o começo de uma bela amizade", como Rick, o amoralista charmoso e do bem, em conversa com Louis, o policial corrupto, no fim do filme "Casablanca". "Quem é o Rick da relação, Reinaldo?" Ninguém.

O "velho ficou pra trás"? Reportagem do Estadão evidencia que 250 deputados e 35 senadores foram premiados com R$ 3 bilhões, além das emendas parlamentares previstas, em obras para seus redutos. Maia estima as promessas em R$ 20 bilhões. Não há esse dinheiro.

Presidente fraco e destrambelhado azeita o mercado das adesões. A sua eficiência está em ser incompetente, o que dificulta a formação de base de apoio —e observo que isso nosso mandatário não tem nem terá. Sem a adesão orgânica de partidos ou parlamentares, resta ir às compras. E, como é sabido, o centrão não dá nem empresta. Vende.

Dilma chegou a ter a maior base de apoio das democracias no Congresso. Parte considerável era formada por esses patriotas. Aquele espetáculo grotesco do "eu digo sim (ao impeachment) em nome da minha mãe, do meu cachorro e da perereca da vizinha presa na gaiola" era a turma em ação.

Enquanto escrevo, Bolsonaro, Lira e os contemplados pelas verbas cantam seu triunfo. Se o deputado do Progressistas (que nome!!!) derrotar Baleia Rossi (MDB-SP), não leva só a presidência da Câmara. Também terá um refém em cativeiro: o presidente da República.

Por mais que seja apaixonado por si mesmo, o "Mito" não é tolo o bastante para acreditar que seu governo é bom. Deve ter noção dos desastres em curso e sabe que o futuro não é sorridente. Quer a garantia de que o presidente da Câmara jamais porá para tramitar um pedido de impeachment.

O centrão é essa garantia? Enquanto Bolsonaro dividir com o grupo o governo e as verbas, sim. Se o troço desandar, sempre se pode evocar o "fato novo" e dar o cavalo de pau no que foi dito no dia anterior. Saindo tudo como quer o presidente, mal posso esperar para ver Paulo Guedes a debater com Lira a "recuperação em V".


Reinaldo Azevedo: É preciso parar os golpistas. Se não agora, quando?

É preciso romper o círculo vicioso e perverso a que estamos presos; Bolsonaro está começando a nos tornar dependentes de sua estupidez

O abismo em que se meteu o Brasil é tal que, no momento, estamos mais perto da eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara do que de obter dois terços na Casa —e depois no Senado— para impichar Jair Bolsonaro. Mesmo a investigação por crime comum, caso a PGR se movesse, só poderia avançar no STF com a autorização de ao menos 342 deputados. Não há.

A mobilização popular, eu sei, submete a história a acelerações em princípio improváveis. Mas se reconheçam as dificuldades. O país não pode ficar à espera. A degradação tem de parar. O Congresso precisa, por exemplo, aprovar a Lei de Defesa do Estado Democrático —PL 3.864, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP).

A proposta foi elaborada por uma comissão de juristas liderada por Pedro Serrano e substitui a Lei de Segurança Nacional —que este inacreditável ministro André Mendonça, da Justiça, usa como arma para perseguir críticos de Bolsonaro. A democracia não pode ser tolerante com aqueles que recorrem a suas licenças para solapá-la. A lição é antiga. E, para a surpresa dos tontos, não tem origem na esquerda.

É preciso ainda —e há caminhos; deixarei de lado as minudências— alterar a lei 1.079, a do impeachment. Que se mantenham os dois terços para efeitos de impedimento, mas que baste a maioria absoluta em cada Casa para definir a inelegibilidade do presidente denunciado por crime de responsabilidade.

Nesse particular, não podemos ficar entre o tudo —a queda do mandatário— e o desastroso nada: a permanência no cargo de um sabotador impune. É preciso romper o círculo vicioso e perverso a que estamos presos. Bolsonaro está começando a nos tornar dependentes de sua estupidez. A cada dia, há um despropósito novo, que respondemos com justa indignação exclamativa. E a reação lhe assanha a sede de produzir indignidades novas.

Olhem para este mundo cada vez menor, como cantou Gilberto Gil na bela “Parabolicamará”. Depois da posse de Joe Biden, um capitão golpista da reserva comanda, se cabe o verbo, o governo mais isolado da Terra. Realizou o prodígio de se colocar como antípoda dos dois gigantes em confronto: EUA e China.

Também em razão das insanidades de sua política externa, brasileiros vão morrer por falta de vacina. O atraso nos insumos vai retardar a imunização. E a consequência é óbvia. É preciso ser fanaticamente incompetente para chegar a esse ponto. E sobram fanatismo e incompetência.

Nunca tantos morreram em tão pouco tempo por uma única causa no país. E, como é notório, nada é capaz de tocar o coração do nosso Faraó da Zona Oeste do Rio. A exemplo daquele da Bíblia, responde às evidências que rejeita —científicas hoje; miraculosas naquele caso— com os truques de seus magos vulgares da cloroquina. Ocorre que não será sua milícia a ser tragada pelo mar em razão de uma determinação do Altíssimo. Brasileiros morrem sufocados por falta de oxigênio em hospitais em colapso.

Hoje, a minha contabilidade bate com a da Folha. Consideradas as agressões à Constituição e à lei 1.079, o presidente já cometeu 23 crimes de responsabilidade. Antes de completar 90 dias de mandato, apontei então neste espaço, já eram quatro.

Como avançar além da indignação exclamativa? Apesar dos rosnados aqui e ali, não há risco de um golpe no país, coisa fácil de desfechar e impossível de sustentar —especialmente depois da posse de Biden. A degradação permanente da democracia, que hoje mata aos milhares, já é desastrosa o que chega. Impeachment? A história, reitero, pode tornar possível o improvável. Que se tente. A questão é saber se podemos esperar.

Lembro que a extrema direita não aplica no Brasil um receituário inédito. A tática, mundo afora, tem sido a manipulação das licenças que a democracia oferece para destruir os seus valores. Donald Trump —ora defunto, mas ainda insepulto politicamente— chamou a invasão do Capitólio de direito à mobilização e de liberdade de expressão.

É o tipo de licença que homicidas em massa reivindicam no Brasil. É preciso pará-los com mobilização e com leis. Se não agora, quando


Reinaldo Azevedo: A democracia brasileira precisa aprender a punir a barbárie

Espero que Bolsonaro e Pazuello, mesmo fora do cargo, respondam por improbidade

Enquanto escrevo nesta quinta a coluna que você lê agora, o precioso tempo dos ministros do Supremo Tribunal Federal é consumido numa questão já pacificada na Constituição, na legislação ordinária e numa portaria do ministério da Saúde: a compulsoriedade da vacina. Por compulsória, os recalcitrantes sem causa, que não uma injustificada obstinação, têm de arcar com as consequências de sua resistência.

Não se aplica a vacina à força, escreveu o ministro Ricardo Lewandowski, relator de duas ações diretas de inconstitucionalidade, num voto impecável. Mas é legítimo que o Estado casse benefícios ou crie restrições de circulação a quem decidir se apartar da imunização desde que isso esteja previsto em lei.

Ao ler o voto do ministro na quarta à noite, uma música de protesto começou a soar aos meus ouvidos, vinda lá de 1969, ano seguinte à decretação do AI-5: "E na gente deu o hábito/ De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr".

É trecho de "Rosa dos Ventos", de Chico Buarque, que deu nome a um show de Maria Bethânia, com direito a LP, em 1971. Tudo muito antigo. Santo Deus! Não é possível que, 50 anos depois, estejamos aqui a caçar metáforas nas trevas, entre as pregas, nas pedras, vendo o tempo correr...

A rigor —e não se trata de uma crítica a Lewandowski, deixo claro—, o ministro nem deveria, como se diz no jargão técnico, ter "conhecido das ações". Sim, leitor, em direito, o "conhecer" é verbo transitivo indireto, no sentido de "tomar conhecimento de". E, no entanto, ao se ver obrigado a fazer o desnecessário, assim como o tribunal, acabou fazendo a coisa certa.

Eis aí um emblema do grande salto civilizatório para trás que é o governo Bolsonaro. O país e as instituições deixam de se ocupar dos desafios do presente com vistas ao futuro —e não se trata de mera retórica— para ter de refazer o que esses depredadores da ordem vão destruindo com sua ignorância truculenta.

Exceção feita à pororoca —à bossa nova, a um Machado, a um Drummond, a um Rosa ou a uma Clarice, que, de vez em quando, brotam em nosso jardim—, já há tão pouco do que nos orgulhar... Como destacou o The New York Times, o mundo da ciência reconhecia um sistema eficiente de imunização em Banânia, mesmo em meio às nossas obscenidades sangrentas.

Um capitão da reserva e um general da ativa, como dois arruaceiros, chegaram arrebentando as portas da excelência, cobrindo com o véu opaco de sua estupidez o que havia de clareza no setor, de modo a obrigar a Corte Suprema do país a decidir o que decidido já está desde a lei 6.259, de 1975 —no tempo em que ainda caminhávamos nas trevas.

Estamos, como sociedade, nos acostumando ao atraso, normalizando o absurdo, normatizando a burrice. A delinquência vai se esgueirando às margens da lei ou contra ela, de sorte que mesmo aquilo que já está sacramentado pela legislação ou pacificado pelo entendimento majoritário de tribunais superiores vai sendo permanentemente desafiado, um pouco por dia, de forma determinada, obsessiva, contínua, constituindo um método, ainda que seja o da desordem.

Expresso na minha última coluna deste 2020 os bons auspícios no modo que segue.

Espero que Bolsonaro e Pazuello, quando fora do cargo, venham a responder por uma tempestade de ações de improbidade administrativa, nos termos em que a medida provisória 966 foi admitida como constitucional pelo Supremo.

Estou entre os que entendem que ex-presidentes e ex-ministros podem responder por improbidade. Há condicionantes muito claras definidas pelo tribunal.

O STF assentou, então, que a inobservância de critérios científicos e técnicos na tomada de uma decisão, ignorando-se normas das autoridades nacionais e de organismos internacionais na área da saúde, constitui "erro grosseiro" e "elevado grau" de negligência. Que os Recrutas Zero da cloroquina paguem por seus feitos. É o que posso desejar de melhor, leitores!

Este escriba tira quatro colunas de férias e retoma a lida no dia 22 de janeiro. Mantenha o distanciamento social e cultive o jardim. Um Voltaire de máscara.


Reinaldo Azevedo: O país não precisa dos milicos de pijama da Anvisa

Prestem atenção a quem está ocupado em combater a pandemia

O Instituto Butantan começou a produzir a Coronavac no Brasil, em parceria com a Sinovac. Onze estados negociam a compra da vacina. É assim que se faz. Devemos dar uma solene banana para a Anvisa, hoje abrigo de milicos de pijama, agarrados a uma boquinha. Ignorância gera subserviência.

Precisamos de uma Agência Nacional de Vigilância Sanitária que bata continência à saúde dos brasileiros, não a um general da ativa, subordinado a um capitão da reserva, chutado do Exército por alimentar delírios terroristas. É subversão demais para parágrafo tão curto.

A agência publicou um documento autorizando o uso emergencial, mas nem tanto, das vacinas. O texto teria ficado mais claro, a alguns ao menos, se escrito em grego antigo. Querem saber? Não sofram —não por isso! Ignorem o que diz a Anvisa. Prestem atenção a quem está ocupado em combater a pandemia.

Com a doença em expansão e um caso confirmado de reinfecção no país, Jair Bolsonaro decreta que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”. Até seus diminutivos são ofensivos e negacionistas. Nem o governo federal nem a Anvisa decidirão o destino dos brasileiros nesse particular.

A palavra final sobre a imunização, se necessário, será do Supremo, não de bananas de pijama ou de uniforme. Leiam os artigos 6º e 196 a 198 da Constituição. O inciso VIII do artigo 3º da lei 13.979 dispensa o registro da vacina na Anvisa para que se possa proceder à imunização mesmo em larga escala. Basta a certificação de uma de suas respectivas congêneres nos EUA, União Europeia, Japão ou China —país que é sede da Sinovac.

A propósito: o Supremo tem de dar celeridade às ações que lá estão e que dizem respeito à obrigatoriedade ou não da vacinação e aos deveres do governo federal. Nesta quinta (10), no Rio Grande do Sul, Bolsonaro voltou a assegurar a eficácia da cloroquina no que chamou de tratamento precoce da doença.

É preciso, senhores ministros, pôr alguma ordem no hospício, ainda que o presidente do tribunal, Luiz Fux, esteja ocupado em exaltar as glórias de Sergio Moro, o defunto moral da Lava Jato, e em encaixar a palavra “orgia” num discurso fescenino sobre o Estado de Direito. Se os pilotos sumiram, assumam a aeronave os que devem.

Foi, aliás, o que fez João Doria ao anunciar para janeiro o início da vacinação e ao estabelecer um calendário. “Ah, ele está tentando pavimentar a sua candidatura para a Presidência, e a vacina virou um caça-votos”, reagiram alguns. Não descarto e pergunto o que há de errado nisso. Prefiro um político que tente ganhar eleitores com uma droga que salva vidas a outro que faz da morte o seu palanque.

Como brinquei no programa de rádio “O É da Coisa”, não pertenço à mesma enfermaria ideológica do tucano. Nem mesmo votei nele em 2018. Iria fazê-lo no segundo turno. Quando pegou carona na campanha de ódio do bolsonarismo, aparecendo em péssimas companhias, desisti. Também não escolhi o seu adversário. O voto obrigatório oferece alternativas.

No caso da vacina? Aí, não! Há uma compulsão, em certos nichos da própria imprensa, de simular independência decretando um solene “ninguém presta” e narrando um permanente empate moral entre os litigantes. Às vezes, é assim mesmo. Mas há casos em que a postura traduz irresponsabilidade.

Na batalha da vacina, trata-se de fazer uma escolha entre a psicopatia política, festivamente homicida —já “que todo mundo morre um dia, e eu não sou coveiro”—, e o esforço de quem mobilizou recursos para investir na ciência. A história deu a Doria e a Bolsonaro uma pandemia. Um deles produziu negacionismo, obscurantismo, truculência, cloroquina e uma quantidade assombrosa de frases pusilânimes. O outro apostou numa vacina. Poderia ter dado errado, mas tudo indica que deu certo.

Se render votos, terá valido a aposta na civilização, não na barbárie, para voltar a uma antítese antiga, que hoje povoa os cemitérios. Reconheça-se: sem o ativismo de Doria nessa área, continuaríamos, 2021 afora, a contar os mortos em companhia do general patético e trapalhão e seus milicos de pijama.Reinaldo Azevedo

*Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.


Reinaldo Azevedo: O juiz Moro já teria mandado prender o empresário Moro

É preciso que se apure eventual corrupção passiva do agora sócio de consultoria

Segundo os critérios com que o então juiz Sergio Moro conduziu a Lava Jato —e ele a conduziu, não é mesmo?—, o agora "sócio-diretor" da Alvarez & Marsal estaria em prisão preventiva, que seria decretada no mesmo dia em que se efetuaria um espalhafatoso mandado de busca e apreensão em seus endereços, devidamente acompanhado por ao menos uma equipe de televisão, previamente avisada. Tudo combinado com os parças do MPF.

Homens de preto invadiriam a sua casa. Com algum requinte, um helicóptero sobrevoaria a residência para indicar a periculosidade da pessoa sob investigação. Ato contínuo, haveria uma entrevista dos procuradores e do delegado federal encarregados da operação. Nessa oportunidade, então, acusações novas se fariam, ausentes do despacho do juiz que autorizou o espetáculo. E pronto! A defesa não teria o que dizer porque sem acesso aos autos.

No dia seguinte, um repórter farejador de procuradores e delegados vazaria uma informação exclusiva contra o preso.

Moro mandaria prender Moro com base em que fundamento? "Garantia da ordem econômica e conveniência da instrução criminal", conforme estabelece o artigo 312 do Código de Processo Penal, uma vez que o suposto crime investigado é grave: corrupção passiva, segundo dispõe o artigo 317 do Código Penal.

Lá está escrito: "Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena "“ reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa". Mas Moro fez isso?

"Calma, senhores!", diria o diligente juiz morista. As decisões foram tomadas "em regime de cognição sumária" apenas. É que não existe circo sem espetáculo. Como diria o ministro Luiz Fux, o amigão de Adriana Ancelmo, não podemos permitir "que a Lava Jato seja desconstruída", com o que concorda o punitivismo dedicado de Edson Fachin e Cármen Lúcia, por exemplo.

Depois de ter ajudado a quebrar a indústria de construção pesada no país, inclusive a Odebrecht, Moro se torna "sócio-diretor" da empresa que comanda a recuperação judicial do grupo. A A & M já recebeu R$ 17,6 milhões pelo serviço. Fez o mesmo com a OAS e tem ainda como clientes a Queiroz Galvão e a Sete Brasil, todas elas vitimadas pela dita "maior operação de combate à corrupção da Terra".

O então juiz homologou os benefícios da delação concedidos a diretores de empresas que caíram na teia da Lava Jato e gerenciou as facilidades dos acordos de leniência. Os beneficiários de sua ação são agora clientes da empresa que vai enriquecê-lo. Ganha o pão onde comeu a carne. No terreno moral, o conflito de interesses é óbvio, a menos que o observador já tenha se despedido de tais pruridos. Mas isso é pouco. É preciso que se apure a eventual ocorrência de crime de corrupção passiva.

Como repudio os métodos de Moro e do morismo, não defendo que o ex-juiz e agora empresário seja preso antes de eventual condenação, se condenado for, sempre de olho no 312 do CPP. Ele tem de ter direito àquilo que sempre negou às suas vítimas: as garantias de um Estado democrático e de Direito. Mas, para tanto, precisa ser investigado. Augusto Aras, no entanto, deve se acoelhar.

Aqui e ali, os passadores de pano afirmam que a investigação constituiria uma soma de vinganças: do PT e de Bolsonaro. Assim, mais uma vez, Moro pode se colocar acima da lei e da moralidade, protegido pela mesma esfera de inimputabilidade que levou a Lava Jato a destruir o devido processo legal no país, jogando-nos no buraco do bolsonarismo.

Para arrematar: o juiz Moro rejeitou relatórios da A & M, de que agora o empresário Moro é sócio, segundo os quais o tal tríplex de Guarujá pertencia à OAS, não a Lula. Até o objeto do processo que levou o ex-presidente à cadeia era fraudulento. Faz sentido. O líder petista já estava condenado antes de qualquer investigação, como deixou claro a Vaza Jato.

Por ato falho ou desconhecimento da I & B (Inculta e Bela), a A&M informou nesta quarta que Moro vai se ocupar do "desenvolvimento de políticas antifraude e corrupção".

Bingo!


Reinaldo Azevedo: Bolsonaro cumpre promessa e desconstrói o Brasil

Em reunião com forças conservadoras em Washington, o presidente foi profético sobre o próprio governo

O governo de Jair Bolsonaro acaba de comprar mais um conflito estúpido com a China; ainda não reconheceu a eleição de Joe Biden nos EUA; acusou recentemente países europeus de comprar madeira ilegal do Brasil —o que os tornaria, quando menos, corresponsáveis pelo desmatamento— e é hostil à Argentina, um dos principais clientes, ainda que em declínio, da combalida indústria brasileira.

O festejado acordo UE-Mercosul é agora só miragem, e o ingresso do país na OCDE vai ficando mais distante. Bolsonaro é hoje um dos líderes mais isolados no planeta. Em seu rosto, percebem-se laivos de nanico orgulhoso, que não se dobra à grande conspiração contra os homens justos. Não é sem razão que suas honras viris mereceram o reconhecimento de Vladimir Putin.

Em nota oficial, a embaixada da China reagiu, em termos apropriadamente duros, à acusação feita por Eduardo Bolsonaro —filho de Jair e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara— de que os chineses pretendem usar a tecnologia 5G para praticar espionagem. O texto lembra que o país governado por Xi Jinping, a quem o “capitão” claramente se opôs na reunião virtual do Brics, responde por 33,5% das exportações brasileiras.

Se não cabia ao Itamaraty pedir desculpas —afinal, não se tratou de manifestação de governo—, menos apropriado seria reagir com críticas adicionais à China, como se a nota dura da embaixada representasse uma ofensa ao próprio governo. Mas foi precisamente o que aconteceu. O Ministério das Relações Exteriores tomou as dores do filho do presidente.

Assim, a família Bolsonaro e o grupo de lunáticos que o cerca —incluindo Ernesto Araújo, o chanceler— confundem a própria pantomima com a história e os interesses do país. Os malucos têm uma certeza: a China precisa da soja brasileira, da carne brasileira, do ferro brasileiro. Logo, não pode advir desse confronto mal nenhum ao país, e a ameaça de retaliação seria pura bravata.

Não ocorre a esses gênios da raça que os chineses não precisam abrir mão das commodities brasileiras. Causariam um estrago considerável ao agronegócio, e ao nosso país, se comprassem menos soja, menos carne e menos ferro do Brasil. Até em briga de rua, no meu tempo de ser moleque, a gente avaliava antes as consequências de um confronto. A noção de honra, às vezes, a tanto nos obrigava. Mas nenhum de nós podia fazer mal nenhum a não ser à própria cara. Esses celerados estão empenhando o futuro do país. Alguma surpresa?

Não. O Brasil tem uma elite econômica temerária —é claro que há notáveis exceções—, capaz de flertar com o caos sob o pretexto de salvar o país do demônio. O “mal”, no caso, segundo essa gente, acaba se confundindo com a cara média do povo brasileiro, que é meio preta e pode morrer de susto, bala, vício ou asfixia num hipermercado. Já em 2018 eu me perguntava, e a questão permanece, por que setores do empresariado e do mercado financeiro imaginavam que Bolsonaro poderia ser a solução para as suas angústias.

Em parte, sei a resposta. O ódio à política, liderado pela Lava Jato, levou pesos pesados do PIB brasileiro a acreditar numa espécie de purificação mística. Se os “espertos”, na narrativa escatológica então inventada, haviam criado o país da corrupção e da impunidade, talvez nos faltassem brutalidade e crueza em estado puro.

E existia a personagem que encarnava todos esses baixos instintos —tudo aquilo que a civilização, na verdade, deve reprimir pelo caminho da educação e do decoro para que a vida em sociedade seja possível. E Bolsonaro chegou lá, com seu séquito de neófitos arrogantes e truculentos, vocalizando os preconceitos mais sórdidos sob o pretexto de conjurar, então, as forças do mal que teriam se entranhado no país.

Em março do ano passado, numa reunião com forças conservadoras em Washington, o presidente foi profético sobre o próprio governo: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa.”

Homem de palavra. Ele está desconstruindo o Brasil.


Reinaldo Azevedo: Advirta, leitor, o otimismo da vontade com o pessimismo da inteligência

Eleitor recusou a estupidez antipolítica, mas a esperança precisa aprender a fazer conta

Saúdo alguns sinais que vêm das urnas como auspícios de sanidade. Mas estamos ainda lendo o voo das aves e fazendo interpretações. Convém não confundir presságios com realidade, bom augúrio com antevisão do futuro. “O mundo é para quem nasce para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.”

Os versos pertencem ao poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, no heterônimo Álvaro de Campos. Não se trata de autoajuda para tontos, mas de autoironia para sábios. No verso seguinte, escreve: “Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez”. O poeta conquistou o mundo como inapto e sonhador. A literatura, felizmente, consagra o erro porque não é tabela trigonométrica. A política é quase.

O eleitorado, na média, manteve distância da estupidez encarnada pelo presidente da República. O sobrenome “Bolsonaro” agregado a candidatos (re)elegeu apenas o vereador Carlos, que obteve 35.657 votos a menos do que em 2016, quando Jair era só um postulante à Presidência, de sucesso então improvável. O poder do pai tirou votos do filho.

Até o bolsonarismo Nutella do Novo levou uma sova. Os laranjas que faziam a dança do acasalamento da antipolítica com férias em Miami não conseguiram eleger nem um miserável prefeito. Seus candidatos obtiveram menos de 392 mil votos no país. Ou mudam o CEO ou chamam de volta o antigo, sei lá.

Aquela que entrou na disputa pela Prefeitura de São Paulo como Joice Hasselmann (PSL) saiu como Joice Cristina. Durante a voragem de 2018, a “Bolsonaro de saias” teve desempenho fabuloso: 1.064.047 votos —289.404 só na capital. Chutada pelos filhos do pai, rompeu com o clã e até engrolou alguma civilidade. A candidata, no entanto, voltou ao velho figurino: “direita raiz”, “biógrafa de Sergio Moro”, “sem mimimi” etc.

Pois bem: Joice Cristina, o segundo orçamento eleitoral público na cidade, amargou 1,84% dos votos: 98.342. Nem a rima elíptica em debate de TV, em que associou o IPTU ao monossílabo tônico sem acento mais famoso da língua, garantiu-lhe saliência eleitoral compatível com a da personagem que inventou.

Seu ocaso é oportuno para que eu advirta para o trincado da xícara que ainda pode nos conduzir à terra dos mortos —de Covid-19, susto, bala perdida ou vício— caso achemos que basta sonhar para conquistar o mundo. Bolsonaro tentará tomar de volta o espólio do PSL. Precisará de recursos e de tempo no horário eleitoral para disputar a reeleição. Se não conseguir, não lhe faltará abrigo em outra legenda do centrão ou da extrema direita.

Esquerda e centro-esquerda murcharam no primeiro turno na comparação com 2016. Juntas, obtiveram pouco mais de 21 milhões de votos. Legendas que podem ser classificadas, sem exagero, de extrema direita somaram quase 13 milhões. A direita e o centrão saltaram de pouco mais de 24 milhões para quase 31 milhões.

Na centro-direita, o DEM ganhou quase 3,5 milhões, mas o PSDB perdeu quase 7 milhões. O centrista MDB assistiu à evaporação de mais de 4 milhões. Os números estão detalhados na minha página no UOL​. Os vitoriosos da eleição de 2020 compõem, em suma, a base do governo ou, ainda que nela não estejam formalmente, cedem seus quadros para uso de Bolsonaro.

Há fatores de risco para a sobrevivência do presidente como candidato, mas também os há para o seu fortalecimento. Não cabem neste texto. O que, nesse cenário, independe de artes divinatórias? Se esquerda e centro-esquerda preferirem a balcanização à federação e se centro e centro-direita juntarem mais vaidades do que objetividade —flertando, inclusive, com a antipolítica—, os auspícios da sanidade podem dar na terra dos mortos.

Eleições municipais e federais têm variáveis distintas, eu sei. Estas estão muito mais sujeitas à guerra de valores. As abstrações ideológicas tomam o lugar dos buracos nas ruas. Cresce, pois, o perigo do flerte com a estupidez. Não quero ser o chato da festa, leitor, eu juro! Mas não custa lembrar que a “cadela do fascismo está sempre no cio”. Melhor que o “pessimismo da inteligência” torne prudente o “otimismo da vontade”.

Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.


Reinaldo Azevedo: Preparem-se! Bolsonaro quer confronto

Cerco a Flávio afeta o equilíbrio do presidente, que abre a tampa do bueiro

Jair Bolsonaro vai dar trabalho. O cerco dos fatos ao senador Flávio Bolsonaro afeta o seu equilíbrio instável, e ele abre a tampa do bueiro. Chama os brasileiros de “maricas”, ameaça os EUA com retaliação militar, mente sobre efeitos colaterais da vacina, anuncia a cura da Covid-19, mergulha numa espiral de demência.

Chega mesmo a ter um rasgo de sinceridade ao afirmar: “A minha vida aqui é uma desgraça, é problema o tempo todo, não tenho paz para absolutamente nada”. E lá vem um novo ataque aos de sempre, aos urubus: “Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel. Quando eu saio, vem essa imprensa perturbar.”

Imagine aí, leitor, que atividades a palavra “nada” resume. Não enchêssemos tanto a paciência de Bolsonaro, não existisse um país para ele governar, em que ocuparia o seu tempo, além de tomar caldo de cana e comer pastel? FHC foi entrevistado logo depois de deixar o poder. Quiseram saber se experimentava alguma sensação de vazio, alguma melancolia de rei destronado.

Respondeu muito calmamente, cito de memória, que levava consigo as preocupações de antes, suas inquietações intelectuais, seus livros. Tinha com que ocupar seu tempo distante das rinhas políticas e da disputa pelo poder. Estas, sim, ao lhe impor a ética da responsabilidade, eram mais maçantes do que as convicções de quem tem uma vida intelectual ativa, pautada por utopias, desejos, prefigurações.

Não sou especialista na psique humana. Há bons profissionais no Brasil dedicados à área. Acredito que, atravessando a casca do ogro, consigam descobrir em Bolsonaro também o ser que genuinamente sofre. E, se querem saber, ele vive a pior de todas as tragédias intelectuais: ser mero figurante de um enredo que reserva a alguém na sua posição o papel de protagonista.

Ah, Bolsonaro poderia perfeitamente dizer, parodiando o poeta: “Olhem que não há mais metafísica do que o pastel e o caldo de cana”. Ali está a sua essência. A Presidência da República o obriga a sair de um mundo em que há satisfação para os desejos. Na função em que está, não existe paz, e todas as respostas serão sempre precárias. Mais: o cargo impõe que empatize com as dores dos que sofrem. E ele veio desprovido dessa faculdade. É uma condição clínica.

À margem do poder, estimulava a fantasia de que um dia seria presidente da República, mas não era para valer. Preparou o clã para obter os benefícios oriundos da gestão de verbas de gabinete, do salário de funcionários geridos por um Queiroz, e tudo caminhava a contento, vociferando contra minorias e pregando uma rigidez de comportamento que, como resta evidente, não é seguida nem pelos membros da família.

Circunstâncias que agora não vêm ao caso, que provocaram um desequilíbrio ecológico na política, o alçaram, de fato, à Presidência. E é aí que tem início a combinação de pesadelos que o leva a dizer sandices e que pode, sim, torná-lo uma pessoa perigosa.

A função o obriga a fazer escolhas sobre temas que desconhece. Quem não desenvolve a empatia também é incapaz de manter relações de confiança. Deve ser um inferno experimentar a sensação permanente de que está sendo trapaceado. Tudo à sua volta fala um idioma que ele ignora.

A vida assim já deve ser um tormento. Mas há bem mais do que isso: o passado assombra o presente por intermédio das peripécias havidas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, agora senador. O presidente é inteligente o suficiente para saber que as chances de um desfecho virtuoso para a família são reduzidas.

O casamento da redução do auxílio emergencial com a inflação de alimentos corrói a sua popularidade e ameaça a sua posição. Esse poder que lhe tira a paz de espírito também lhe garante imunidade e lhe permite ao menos retardar a tempestade que colherá o primogênito e, por extensão, o clã.

Sim, ele dará trabalho. Testou um flerte com a racionalidade na esperança de que isso funcionasse como uma absolvição do filho e como uma trégua. Inútil. O Bolsonaro golpista está de volta. É sua identidade possível. As instituições que se preparem.


Reinaldo Azevedo: A democracia e as mulheres sob ataque

Ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz desafio

O único regime, já escrevi aqui, em que tudo pode é a tirania. Assim é para o próprio tirano e para os seus amigos. A democracia tem interdições. E aí está o busílis. A ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz um desafio.

Não raro, sólidas reputações liberais, inclusive neste jornal, confundem, por exemplo, a prática de crimes com a liberdade de expressão, pedra angular da civilidade. E tal confusão é um caminho muito curto para que se tome a liberdade de expressão por um crime.

Assim tem sido nos Estados Unidos, no Brasil e em toda a parte em que a democracia ainda resiste. O momento é delicado. O sistema tem sido refém de uma leitura liberticida de suas próprias premissas. Há uma pergunta, que não é recente, mas que está ainda a pedir resposta adequada: a democracia deve tolerar a ação daqueles que se aproveitam de suas garantias para solapá-la caso cheguem ao poder?

Vejam o que se passa nos EUA. Os celebrados "founding fathers" criaram um modelo em que o federalismo se opõe à democracia genuína, de modo que um homem não vale um voto. Os sinais de esclerose são evidentes. Além do samba e do ditongo nasal "ão", podemos ensinar aos gringos como se organiza uma votação eficiente.

É fato: a forma que assumiu o federalismo americano, somada ao subdesenvolvimento da tecnologia do voto, joga o mundo num impasse. Que tomem emprestadas as nossas urnas eletrônicas! Nada impede que se digite lá o número de um estúpido. Mas o resultado, ao menos, sai com mais rapidez. Assim, o modelo em vigor potencializa a ação de um vândalo da democracia como Donald Trump.

Pergunta com resposta que a mim soa evidente, embora pouco haja a fazer por lá —e já vou chegar ao nosso quintal. É moralmente aceitável que um chefe de Estado coloque em dúvida o arcabouço legal que lhe assegurou a vitória quando este está prestes a certificar a sua derrota? E que fique claro: esse "pôr em dúvida" não se limita a um arroubo retórico.

O chefe da nação convoca abertamente suas milícias digitais a entrar em ação, o que, segundo os padrões americanos, pode implicar comparecer ao local da apuração dos votos com um rifle nos ombros para parar a contagem, como pede o bandoleiro. Deve a democracia garantir ao chefe de Estado a "liberdade de expressão" para incitar a luta armada contra as regras do jogo? É preciso, nesse caso, que o moralmente inaceitável seja também um crime punível.

Olhemos para nossos próprios desatinos. A democracia brasileira deve tolerar que Jair Bolsonaro diga asneiras contra as vacinas enquanto faz, com a força da representação, a apologia de drogas comprovadamente ineficazes contra a doença, usando para tanto a visibilidade que lhe confere o aparelho de Estado?

As democracias estavam preparadas para enfrentar aqueles que, à margem do sistema, buscavam se organizar para destruí-la. Seus aparelhos de repressão, diga-se, atuam muitas vezes para esmagar até o protesto justo de oprimidos que só reivindicam direitos, o que é lamentável e tem de ser coibido.

O regime, no entanto, tem se mostrado inerme para punir a ação daqueles que o sabotam a partir dos aparelhos de Estado, buscando minar por dentro as suas virtudes. E isso, hoje, é uma ameaça concreta às nossas liberdades.

Uma nota sobre o caso Mariana Ferrer, que também atine à democracia: "estupro culposo" é uma senha para um estado de coisas. O tipo penal não existe. Mas é preciso que os tribunais não atuem como se existisse. Nem preciso entrar no mérito da sentença ou do cometimento ou não do crime para apontar o que está estupidamente errado no que se viu —e eu me refiro à íntegra do vídeo.

Um tribunal julga o réu —culpado ou inocente—, não a vítima. Ou estaremos de volta aos tempos da heroicização de Doca Street e da demonização de Ângela Diniz. Escrevi e sustento: mais grave do que o "estupro culposo" é o "estupro por merecimento", já que "ela" tira fotos sensuais ou tem um estilo de vida que intimida a macharia que se sente acuada pela história. Há os que não suportam democracia e mulheres. Para estes, não são coisas de macho.


Reinaldo Azevedo: Memento mori', Guedes! Chamem Dedé

Decreto que punha UBSs no programa de privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó

Oba! Paulo Guedes viveu nesta quinta-feira (29) mais um “patético momento”, com o perdão de Cecília Meireles, em audiência pública no Congresso. Falou a verdade ou só promoveu guerrilha interna ao afirmar que o governo abriga um ministro financiado pela Febraban, a federação de bancos? É claro que se referia a Rogério Marinho.

Sendo verdade, é grave, e o lobista tem de ser demitido. Sendo mentira, demita-se o acusador. O chilique é apanágio de incompetentes. Temos um governo de destrambelhados. A desorientação da gestão de Jair Bolsonaro deixou o terreno do debate administrativo e virou pastelão.

O decreto que punha as Unidades Básicas de Saúde no escopo do programa de concessões e privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, em parceria com o Mussum de porre. Esqueceram de chamar Dedé e Zacarias. Teriam alguma reserva de bom senso: “Melhor não!”.

O texto era assinado por Bolsonaro e pelo próprio Guedes. O chefe não tem noção do que fala e faz. A única coisa que lhe interessa é a rinha política. Para tanto, é preciso manter a adesão de duas frentes: nas redes, a da súcia de sempre; no Congresso, a dos clientes de Luiz Eduardo Ramos, pagador de emendas.

Vai dar errado, antevê o general Rêgo Barros, ex-porta-voz, que adverte Bolsonaro: “Memento mori”. A tradução que circula por aí não é boa: “Lembre-se de que é mortal”, o que seria um convite à humildade. “Memento” é um imperativo no tempo futuro, que não sobreviveu nas línguas neolatinas. “Mori” é verbo no infinitivo.

Deve ser traduzido como predição e vaticínio: “Hás de te lembrar de que vais morrer”. Ou seja: o castigo virá para aquele que se deixa adular por “comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”.

Nesse ambiente nascem decretos que ninguém lê. Nem Guedes conhecia direito a estrovenga. A audiência deixou claro: a sugestão partiu da área de PPI (Programa de Parcerias de Investimento), dirigida pela secretária Martha Seillier, “uma pessoa competente, séria, trabalhadora”, segundo o ministro.

Foi enfático sobre Martha: “Não é uma das pessoas que eu trouxe de fora para privatizar o sistema, para atacar o sistema de saúde brasileiro. Zero”. Entendido. Privatizar bens públicos, segundo o ministro, corresponde a… atacá-los. Nem o PCO seria tão sucinto.

Nesta quinta, apanhou a Febraban. Caso discorde dele, será a Febraqueba (Federação Brasileira dos Querubins Barrocos) na quinta que vem. ​

Notem: essa conversa sobre as UBSs brotou do nada. O resto do governo foi pego de surpresa. É evidente que os valentes tentam se livrar de parte da carga da Saúde —e aí está o problema de fundo. Mas é preciso fazê-lo com método.

Foi tal o barulho que o texto teve de ser revogado. Ao se justificar, escreveu Bolsonaro nas redes: “Temos atualmente mais de 4.000 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 168 Unidades de Pronto Atendimento (UPA) inacabadas. Faltam recursos financeiros para conclusão das obras, aquisição de equipamentos e contratação de pessoal. O espírito do decreto 10.530, já revogado, visava o término dessas obras, bem como permitir aos usuários buscar a rede privada com despesas pagas pela União”.

É mesmo? Se é assim, revogou por quê? Então mantenha o texto e compre a luta política, ora bolas! Acontece que, para tanto, é preciso que exista um diagnóstico de governo, o que, por sua vez, supõe a existência de um… governo.

Guedes aproveitou ainda a audiência pública para atacar o Governo de São Paulo, que já teria recebido muito dinheiro. Também deixou claro que não se fala sobre novo imposto. Não em período eleitoral ao menos. E se disse contrário à vacinação obrigatória: “Eu sou um liberal, acredito que a vacina é uma decisão voluntária de cada um. Se o sujeito preferir ficar trancado em casa seis anos, não ter contato com ninguém e não tomar a vacina, o problema é dele”.

Opa! Ninguém até agora havia pensado na possibilidade de confinar os recalcitrantes. Ainda bem que existe o ministro para iluminar o debate.

Dedé para a Economia. ”Memento mori”, Guedes!