Reinaldo Azevedo
Reinaldo Azevedo: Hipocrisia se exalta com fala de Lula sobre Ortega
Talleyrand e La Rochefoucauld refletem, respectivamente, sobre declaração de petista
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
Convido Lula e o PT a uma reflexão com uma frase que já virou um clichê: "Não aprenderam nada nem esqueceram nada". É atribuída ao diplomata francês Talleyrand ao se referir à volta dos Bourbons e sua turma ao poder na França, no período da Restauração.
E um bom debate se faria se os petistas respondessem com outra frase, igualmente espirituosa e verdadeira, na trilha de La Rochefoucauld: "A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude".
Vamos sair do mundo das frases para o dos fatos, que lhes conferem valor universal.
Junto-me àqueles que criticam duramente as afirmações feitas por Lula ao jornal El País sobre o nicaraguense Daniel Ortega. Ainda que repise argumentos, vá lá: Angela Merkel e Felipe González disputaram eleições limpas, seus adversários não estavam na cadeia, e o Poder Judiciário de seus respectivos países não eram formados por bonecos de mamulengo de um ditador.
Assim, não faz sentido associar os seguidos mandatos de Ortega —que fraudou a Constituição em conluio com juízes escolhidos a dedo— à longa permanência no poder daqueles dirigentes.
Ademais, como já se verifica, trata-se de um erro de operação política que nem mesmo faz justiça à atuação de Lula como presidente.
Se quisesse, teria mudado a tempo a Constituição para disputar um terceiro mandato, para o qual teria sido reeleito no primeiro turno. Escolheu outro caminho. Dilma sofreu um processo de impeachment, e o PT deixou o poder pacificamente. Foi fazer a luta política.
Os governos petistas mantiveram relações amistosas com ditaduras, a exemplo dos que os antecederam. Não é assim mundo afora? Como é mesmo, Deng Xiaoping? "Não importa se o gato é preto ou branco, contanto que cace ratos".
O Brasil não tem de escolher o regime dos países com os quais se relaciona, embora, entendo, deva se alinhar, nos fóruns multilaterais, com a defesa da democracia e dos direitos humanos.
Ou venderemos soja, carne e ferro apenas a regimes democráticos, condição para que importemos sua tecnologia? A pergunta é meramente retórica. A que vem a condescendência de Lula com o governo da Nicarágua?
Ecos, entendo, de um mundo que nem existe mais, como já não existia aquele da Restauração: seu modo de ser era a evidência de sua inviabilidade. Agora vamos a La Rochefoucauld.
Eu me indignei, sim, quando Lula afirmou não saber por que os adversários de Ortega estão presos. Quando menos, esperava dele empatia e solidariedade com aqueles que são encarcerados por motivos políticos.
Afinal, no Brasil democrático, ele próprio foi condenado por um juiz parcial e incompetente, por intermédio de uma sentença sem provas. O então magistrado fez questão de deixar claro, em embargos de declaração, que não as tinha.
Reportagens da Vaza Jato e dados da Operação Spoofing apontaram o conluio entre juiz e MPF, numa violação inquestionável do sistema acusatório. Que coisa! As personagens centrais da Lava Jato disputarão o poder em 2022.
Sete meses depois de mandar Lula para a cadeia, Sergio Moro aceitou ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Seis dias antes do primeiro turno de 2018, divulgou trechos selecionados da delação picareta —data venia!— de Antonio Palocci. Ao postular a sua candidatura à Presidência, o agora ex-juiz propõe um certo Tribunal Superior Anticorrupção e oferece a Ucrânia como exemplo.
Engana-se quem acha que estou justificando ou minimizando as declarações do líder petista. Para citar Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição de 1988 —frase vivificada no excelente documentário "8 Presidentes, 1 Juramento", de Carla Camurati—, tenho "ódio à ditadura; ódio e nojo". A qualquer uma.
Mas lastimo o rigor salta-pocinhas de supostos liberais, que se escandalizam com uma declaração inaceitável sobre o governo da Nicarágua, mas confundem, no Brasil, o devido processo legal com impunidade, condescendendo com um justiceiro que colaborou para a corrosão do processo democrático e que agora se lança como o restaurador da ordem, cavalgando um tribunal de exceção.
Sempre espero que políticos aprendam alguma coisa. E tenho tolerância zero com hipócritas.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/11/hipocrisia-se-exalta-com-fala-de-lula-sobre-ortega-ditador-da-nicaragua.shtml
No mundo da Dreadnoughts, inexiste menina pobre sem absorvente
Não proponho enforcar o último dono de offshore com as tripas do último reacionário; até os vejo com certa piedade
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
O que o veto do presidente Jair Bolsonaro à distribuição gratuita de absorventes para estudantes pobres e mulheres em situação de rua tem a ver com a Dreadnoughts Internacional, a inoxidável offshore de Paulo Guedes, com patrimônio de ao menos US$ 9,55 milhões?
A propósito: Sérgio Rodrigues, colunista desta Folha, sinta-se desafiado a fazer um ensaio combinando o nome dessas empresas dos ricos com seu grau de alienação da realidade. Ou de arrogância. Espero responder à pergunta inicial no curso do texto.
Consta que o ministro está indignado com a proporção que tomou a notícia, não a fake news, de que ele tem a tal empresa nas Ilhas Virgens Britânicas. Compreenda-se a sua fúria. Ele contou tudo à Comissão de Ética Pública. Por alguma razão inexplicada, a dita-cuja não viu contradição entre a sua empresa (e as de Roberto Campos Neto) e a lei 12.813. Há ainda o Código de Conduta da Alta Administração Federal, que também veda tal prática.
Um endinheirado qualquer ter uma offshore, devidamente declarada à Receita, não é crime. Quando se é ministro da Economia ou presidente do BC, o ordenamento jurídico define a prática como ilegal. E o código a considera antiética. Não se conferiu à tal comissão a faculdade de reinterpretar os dois textos.
A escalada do dólar, que tira comida da boca do pobre, deixa Guedes e Campos Neto mais ricos. A frase lhes pareceu, assim, de um jacobinismo juvenil? É que a alienação ou a impiedade de alguns ricos têm a idade da Terra e pedem o contraste. Ainda que a cotação da moeda não guardasse nenhuma relação com decisões tomadas pela dupla —e guarda—, isso estaria dado pela “árvore dos acontecimentos”.
Voltemos a falar daquele estrato social em que meninas deixam de ir à escola porque não dispõem de produtos para a higiene íntima. É bem provável que, num ambiente de prosperidade e de uma gestão virtuosa da economia, as peripécias da dupla não fossem percebidas por aquilo que são: um escândalo, antes de mais nada, moral, como apontei desde a primeira hora no programa “O É da Coisa” e em minha coluna no UOL.
As offshores, por si, não fazem de Guedes ou de Campos Neto larápios ou ladrões de dinheiro público. Ocorre que eles são personagens centrais de decisões que têm consequências e não podem, pois, ter o próprio patrimônio protegido das suas escolhas. O que este governo fez, por exemplo, para minorar os efeitos da estúpida inflação de alimentos? O câmbio inflacionou também o mercado de ossos.
Não proponho aqui enforcar o último dono de offshore com as tripas do último reacionário. Eu até os vejo com certa piedade. Não é que sintam prazer diante da miséria. Eles simplesmente não a entendem como questão urgente. O liberalismo à moda da casa —e peço escusas, leitor, por ainda acreditar numa versão virtuosa— especializou-se em dizer por que os pobres teriam direitos demais no Brasil. E jamais se ocupou de explicar as proteínas de menos.
Certamente há uma penca de hipócritas que transformam o sofrimento dos pobres em mero discurso ideológico, advogando soluções que seriam, antes de tudo, problemas. Não são nem meus interlocutores nem meus opositores. No mais das vezes, diga-se, são irrelevantes no debate e só servem para fazer a fama de cronistas vigaristas, que têm a grande coragem de se opor a minorias militantes.
Sou um conservador em muita coisa. Um dos traços do meu conservadorismo está em considerar que a coragem sempre será a coragem contra os poderosos, nunca contra quem os contesta, por menos razão que tenha ou por mais bobagens que diga. É a minha escolha há mais de 40 anos. Estes tempos insanos, no entanto, deram à luz também este tipo ordinário: seu destemor está em não ter receio de esfregar verdades na cara de quem nada pode.
Esses poderosos alienados não existem no vácuo. Há um ambiente também intelectual que os explica, em que menina pobre não menstrua. São, a seu modo, vítimas morais de sua concepção de mundo. Mas jamais terão de se submeter ao sopão de ossos. Que as urnas tentem corrigir os desatinos. E se não? O apocalipse não virá. Países não fecham; países pioram. Que o Brasil melhore ao menos.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/10/no-mundo-da-dreadnoughts-inexiste-menina-pobre-sem-absorvente.shtml
Reinaldo Azevedo: Guedes cobra que o STF o ajude a combater as oposições
Nos precatórios, ministro apela ao tribunal para que seja seu parceiro no calote a estados governados por oposicionistas
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
Paulo Guedes pode ser tão virulento como Jair Bolsonaro. Eventualmente mais, já que os patógenos políticos e ideológicos que vão em sua mente têm um pouco mais de bibliografia. Menos, é certo, do que ele dá a entender. Não importam, como se sabe, os volumes que se leram, mas o que se reteve do que foi lido. A metáfora é óbvia: traças também devoram livros e não viram Schopenhauer.
Na fábula do infantilismo político que se tentou construir no Brasil, o ministro dito liberal conferiria uma face de eficácia e modernidade ao discurso atrasado do chefe, um reacionário delirante. O enlace desses seres ditos distintos e complementares era mera “fanfic” da direita xucra.
O ministro é o maior produtor de teses “ad hoc” do país. Em questão de horas, aquele que se diz pronto para uma interlocução madura entre os Poderes pode partir para a vulgaridade conspiratória e tratar negócios de Estado com a sofisticação de um bêbado inflamado de boteco.
Nem Bolsonaro nem ele próprio estão preparados para seus respectivos papéis. Um foi eleito nas circunstâncias conhecidas —e não vou sintetizá-las agora—, e o outro foi oferecido como âncora de confiabilidade. No desenho da prancheta, Guedes blindaria a economia das ignorâncias do supremo mandatário.
Durante algum tempo, a fantasia parecia eficiente a depender do índice para o qual se olhasse. Mas eis-nos aqui: com a inflação nas alturas e o crescimento do ano que vem caminhando para o buraco. Guedes, claro!, tem os culpados —entre estes, estariam os “negacionistas” do que ele considera sucessos inéditos de sua gestão. Parece-me desnecessário esfregar os números na cara do ministro.
Interessa-me a questão política. Nesta quarta-feira (15), num seminário em companhia de Luiz Fux, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), o titular da Economia fez um apelo para que o tribunal o ajude na questão dos precatórios.
Se o governo tiver de pagar os R$ 89,1 bilhões que meteu no Orçamento de mentirinha, não sobram recursos para turbinar o rebatizado Bolsa Família, entre outras dificuldades. Mais: estimaram-se para este ano um INPC de 6,2% e um IPCA de 5,9%. A inflação está na casa dos 9%. Um erro de análise de 50%!
No “Auxílio Brasil” está o fiapo da esperança (re)eleitoral de Bolsonaro. Da “retomada em V”, vai restar, no ano que vem, um traço, com possibilidade razoável de recessão. Culpa dos “negacionistas” do seu sucesso! Fizeram disparar os preços dos alimentos, dos combustíveis e da energia, sem contar a pressão cambial, que vira inflação. Aí o Banco Central, agora “independente”, eleva juros, o que deprime o crescimento. Negacionistas!
A PEC dos precatórios é, por óbvio, um calote. Existe o risco objetivo de que o Supremo a declare inconstitucional se aprovada pelo Congresso. Assim, em seminário para pessoas de fino trato, Guedes dirigiu a Fux um “pedido desesperado de socorro”. Simulava o padrão de um homem do diálogo. Ali, não era o caso de excitar e incitar a turba. O tom mudaria radicalmente, no entanto, numa entrevista poucas horas depois.
Aí, falando à militância, mandou bala: “Curiosamente, [os precatórios] caem sobre nosso governo e [vão] para dois ou três estados que são oposicionistas. É evidente que não vou achar que é a politização da Justiça. Não vou achar. Não posso acreditar nisso, mas eu tenho que pedir ajuda ao Supremo”.
Ele se referia a Ceará, Bahia e Pernambuco, que não são formados por “oposicionistas”, mas por cearenses, baianos e pernambucanos. Bolsonaro não anda muito popular por lá e em lugar nenhum. O truque retórico é primário, vulgar. Obviamente, está sugerindo, ainda que o negue de modo irônico, a existência de uma ação concertada da Justiça em benefício das oposições.
Logo, o apelo de Guedes a Fux se esclarece: está pedindo, de forma “desesperada”, que o Supremo seja parceiro no calote a estados governados por oposicionistas. A lógica embutida na formulação delinquente é dele, não minha.
O STF, assim, terá de decidir se colabora com o governo, mas não com uma decisão pautada pela razoabilidade e pela economicidade. Trata-se de uma empreitada contra as oposições —eleitoreira, portanto. As palavras fazem sentido.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/09/guedes-cobra-que-o-stf-o-ajude-a-combater-as-oposicoes.shtml
Reinaldo Azevedo: Pluralidade exclui golpismo
Os dias são anômalos; defender a democracia, as regras do jogo e as instituições passou a ser uma agenda antigovernista
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
Vivemos uma situação espetacularmente anômala. Se não tomarmos cuidado, nós, da imprensa, ainda acabaremos como porta-vozes involuntários do golpismo. Lamento ter de constatar que, aqui e ali, isso já acontece. Golpistas, sem nenhum pudor, expõem a sua agenda, que compreende, realizados seus intentos, calar um dia também o diligente entrevistador.
Notem que mal se veem, hoje em dia, estampados na imprensa, os embates que se tornaram corriqueiros desde a redemocratização. Privatiza ou não? Mais Estado ou menos? A legislação que protege o trabalho garante ou rouba os empregos? A elevação da taxa de juros certamente concorrerá para deprimir o crescimento no ano que vem, mas ela será eficaz para baixar a inflação? O debate sumiu.
Tudo se dilui na aparente unanimidade da imprensa profissional contra o governo Bolsonaro. E as exceções mal conseguem esconder uma militância a soldo: ou gozando já de privilégios oferecidos pelo poder ou de olho em concessões futuras. A questão é saber se essa unanimidade —reitero que é apenas aparente— tem mesmo de ser rompida e o que, então, se deve entender, dado o contexto, por pluralidade.
Uma coisa é tentar compreender a cabeça de um golpista, fazendo, vamos dizer, a etiologia do seu pensamento para chegar à origem da patologia —e, como notam, tomo a defesa da democracia como exemplo de “saúde civil”, fazendo eco à campanha das Diretas. Outra, muito distinta, é lhe franquear o megafone para vomitar proselitismo contra a ordem democrática.
Mal sabemos o que pensam e querem hoje os que se opõem a Bolsonaro porque é impossível identificar qual é a pauta do governo. As forças políticas não mais se organizam a partir de um eixo de propostas que o poder de turno busca implementar. Querem um exemplo? O que pretende Paulo Guedes, o “homem-meme”, como o chama minha mulher?
Transformou-se numa espécie de “clown” —refiro-me à linguagem do teatro— de uma mistura exótica de liberalismo do século passado com bolsonarismo. Pode falar qualquer coisa —“qual é o problema se a energia ficar um pouco mais cara?”—, sempre com o ar meio entristecido, como cabe a essa persona, com eventuais rompantes de indignação reacionária. O controlador do caixa se mostra um teórico da contabilidade criativa e fura-teto, esforçando-se, adicionalmente, para mandar para o lixo a Lei de Responsabilidade Fiscal e o inciso III do artigo 167 da Constituição, o da “Regra de Ouro”.
Em tempos de normalidade democrática, as forças políticas estariam se engalfinhando em razão dessas e de outras escolhas, cabendo à imprensa, sim, dar conta da pluralidade de vozes. Mesmo no pega-pra-capar do jornalismo investigativo, ouvir o que têm a dizer os acusados é primado básico do Estado de Direito e da civilidade política. Aliás, depois da aluvião lavajatista, uma revisão de critérios é mais do que necessária. Está por ser feita.
Dados alguns exemplos do que seriam os embates corriqueiros, voltemos à questão de fundo. A que se deve, na imprensa profissional e independente, o suposto consenso? Bolsonaro se ocupa de golpear as instituições desde que se sentou na cadeira presidencial. O primeiro ato relevante de seus fanáticos —então unidos ao lavajatismo— contra as instituições se deu no dia 26 de maio de 2019, com apoio mais do que explícito do governo.
E, desde aquela data, assiste-se a uma escalada. A pauta pode variar um pouco, mas o intuito é sempre o mesmo: rasgar a Constituição. As oposições deixaram de ser o outro lado do governo. O governo deixou de ser o outro lado das oposições. A referida anomalia está no fato de que defender a ordem democrática, as regras do jogo e os valores mínimos da civilização se tornou uma agenda antigovernista. O bolsonarismo se manifesta como o polo oposto às instituições. A barbárie se expressa com a clareza que a barbárie tem.
Pergunto: deve-se entender que a pluralidade passa por normalizar a pregação golpista, legitimando-a, assim como quem diz “hoje é sexta-feira”? Dar voz a quem quer nos calar não é um paradoxo. É sujeição voluntária.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/08/pluralidade-exclui-golpismo-governo-vira-o-outro-lado-da-civilizacao.shtml
Reinaldo Azevedo: Um texto em defesa do Supremo e da liberdade, ainda uma exceção
Não fosse o malhado inquérito 4.781, o país estaria à mercê de hordas que pregam abertamente a ruptura institucional
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
Não tenho receio de um golpe de Estado. Temo um permanente estado de golpe. E isso não se esgota num jogo de palavras. Cultivamos uma certa crença mística nas nossas instituições e tardamos a reagir — refiro-me aos que pertencemos aos radares da sociedade, e a imprensa é um deles— àqueles que se organizam para assaltá-las. E noto que este texto se cingirá à democracia política. A social ainda está por ser inaugurada.
Penso no escarcéu que se fez quando, no dia 14 de março de 2019, o então presidente do Supremo, Dias Toffoli, abriu de ofício o correto e legal inquérito 4.781, que tem Alexandre de Moraes como relator. O país ainda vivia sob a égide da Lava Jato —esse “Fetiche da Destruição” que seduziu e ainda seduz tantas almas incautas—, que criou o ambiente ideal para a ascensão de um desordeiro destrambelhado.
Bolsonaro estava no poder havia menos de três meses. A reforma da Previdência chegara ao Congresso no dia 20 de fevereiro. Sem ela, os tais mercados teriam quebrado as pernas do fanfarrão antes que emitisse o primeiro insulto. A, vá lá, convergência entre os Poderes era fundamental para o mandato do próprio presidente.
Não obstante, a máquina de difamação dos Poderes e da democracia que o bolsonarismo havia montado ao longo de mais de três anos não refreou seu ânimo. Ao contrário. Ganhou musculatura. E restava evidente que, sem base parlamentar e sem articulação com atores políticos relevantes, o governo buscaria arrancar por meio do berro e da intimidação o que não conseguia por meio da negociação. Afinal, sobravam-lhe arruaceiros; faltavam-lhe interlocutores.
O Supremo se tornou o primeiro e principal alvo porque, afinal, ali estava o limite do Napoleão de hospício. Não é um Poder Moderador, mas é quem tem a última palavra sobre a Constituição. O general Augusto Heleno acredita que, acima da Carta, estão um cabo e um soldado, sem nem um jipe...
No 132º aniversário da República, nascida de um golpe, o regime de liberdade plena de organização e de manifestação no país ocupa exíguos 33 anos: da Constituição de 1988 a esta data. A crença mística a que me refiro no primeiro parágrafo, a exemplo de todas, é infundada: a liberdade plena, entre nós, é a exceção, não a regra.
Não fosse o malhado inquérito 4.781, o país estaria à mercê de hordas que hoje pregam abertamente a “ruptura institucional”, conforme mensagem que o próprio presidente mandou a seus sectários. Em 2019, a PGR, ainda sob o comando de Raquel Dodge, resolveu arquivá-lo, o que foi rejeitado por Moraes, com o apoio dos demais ministros.
Tardou para que a imprensa percebesse —e, até hoje, o reconhecimento é reticente e cheio de reservas— o que Toffoli e outros ministros do Supremo anteviram —e olhem que o então presidente do STF manteve relações cordiais com Bolsonaro: o nosso sistema de liberdades estava sob ameaça. A única barreira de contenção era o Ministério Público. E se ele não reagisse? E se a inércia, que já se verificava então, continuasse?
Infelizmente, involuiu-se para a conivência. A resposta à penúltima pergunta da entrevista concedida a esta Folha por Augusto Aras, procurador-geral da República, não faz sentido. Ainda não entendi por que Roberto Jefferson deveria ser livre para, por exemplo, incitar o assassinato de policiais, mas um colunista deveria merecer sanção legal por chamar Aras de “poste da República”. Ainda mais quando este se comporta como um poste diante de alguém que... incita o assassinato de policiais.
Com todos os defeitos —e não os terão o jornalismo, a academia e a assembleia dos santos?...—, este é um texto em defesa do Supremo. A ele coube conter os incensados arreganhos autoritários da Lava Jato, que avançou sob silêncios cúmplices, e é ele, hoje, a barreira em “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
Vai entre aspas trecho do artigo 127 da Constituição, que define as atribuições do Ministério Público. A liberdade ainda é a exceção na nossa história. Quem se dispõe, de fato, a protegê-la, inclusive da desídia dos omissos?
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/08/um-texto-em-defesa-do-supremo-e-da-liberdade-ainda-uma-excecao.shtml
Perigo está na derrota do centrão para o Partido Militar, não no contrário
Risco de rompimento do equilíbrio instável não está no acordo com Nogueira e Lira
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
A "prova matemática" que Jair Bolsonaro apresenta de que houve fraude em 2018 é, ela mesma, uma fraude já desmoralizada pelos... matemáticos. O truque, a exemplo do que se dá com o cloroquinismo, consiste em chamar de mera opinião a ciência, e de ciência a mera opinião ou o proselitismo ideológico. Uma postura corrói a democracia; a outra mata pessoas. O momento é delicado. Bolsonaro já sabota seu recém-indicado ministro da Casa Civil.
A trapaça se opera com a mesma sem-cerimônia com que o crime é chamado de liberdade de expressão, e a liberdade de expressão, de crime. E tudo se dá sob o silêncio cúmplice do procurador-geral da República, Augusto Aras, ele próprio empenhado em criminalizar os que têm uma opinião desabonadora não a respeito de sua pessoa privada —talvez seja um cara bacana—, mas de seu desempenho à frente da PGR, a exemplo do que faz com Conrado Hübner Mendes, colunista deste jornal.
Antes de sua patuscada matemática —criminosa por si mesma porque ataca a institucionalidade por meio de uma falácia—, foi o presidente a acusar o Supremo de ter cometido crime ao supostamente tê-lo impedido de atuar contra a pandemia. É evidente que não agiria com tamanha desenvoltura não fossem a certeza da impunidade e a esperança da virada de mesa "manu militari". E aqui está o xis da questão.
O centrão terá de decidir se vai ser esbirro do golpismo, que conta com apoio de alguns fardados de pijama, ou se vale o combinado entre o próprio Bolsonaro, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e Ciro Nogueira, novo ministro da Casa Civil: apoio até o fim, mas dentro das regras do jogo. Nogueira, note-se, foi o intermediário do recado golpista de Braga Netto, o gendarme da Defesa, a Lira: ou voto impresso ou suspensão das eleições de 2022.
Como desdobramento imediato da ameaça, deu-se o revés da fortuna para o Partido Militar (PM). O presidente do PP foi guindado à Casa Civil, definida por Bolsonaro como "a alma" do governo. Convém lembrar que Luiz Eduardo Ramos, o defenestrado, saltara do Comando do Sudeste para a Secretaria de Governo, encarregando-se, então, da articulação política. Uma aberração.
A 18 de fevereiro de 2020, assumiu a Casa Civil outro general: justamente Braga Netto, oriundo da chefia do Estado Maior do Exército. Mais uma aberração. Quando o presidente houve por bem "mostrar quem manda" nas Forças Armadas, tirou Fernando Azevedo e Silva da Defesa, substituindo-o por aquele que ameaçou pôr fim às eleições, e entregou a Casa Civil a Ramos.
Ora, é preferível que o centrão seja "a alma" do governo a que o governo tenha uma alma fardada e golpista. Os parlamentares podem ser aposentados pelo voto. O moralismo estridente que tomou conta do meio ambiente político com o lavajatismo policialesco destruiu a nossa hierarquia de valores. E não é raro que se leiam na imprensa textos de pessoas até bem-intencionadas a relegar a própria democracia a aspecto lateral em nome do que entendem ser a moralidade.
Pululam em todo canto, por exemplo, os vídeos da campanha de Bolsonaro em que ele assegura que vai governar sem o centrão, sem os políticos, sem os partidos, sem as ONGs, sem os entes da sociedade civil. Era candidato a César, não a presidente. E aí se contrasta aquele postulante, como se virtuoso fosse, com o presidente de hoje, que faz acordo com o centrão.
Esperem aí! Aquele era o Bolsonaro fascistoide, que voltou a dar as caras nesta quinta. Já o acordo com o centrão pertence ao universo da política se cumprido. Ocorre que, tudo indica, o novo ministro da Casa Civil nem deu os primeiros passos e já está sendo sabotado pelo presidente.
A nomeação de Nogueira representou uma derrota para o Partido Militar. Pela primeira vez em dois anos e sete meses, o governo pode ter um eixo que não seja a força, ainda que seja o centrão. A nova agressão de Bolsonaro ao STF e a mentira sobre a fraude eleitoral indicam que o risco de rompimento do equilíbrio instável não está no acordo com Nogueira e Lira, mas no seu descumprimento. O perigo está na derrota do centrão para o Partido Militar, não no contrário.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/07/o-perigo-esta-na-derrota-do-centrao-para-o-partido-militar-nao-no-contrario.shtml
Reinaldo Azevedo: Precisamos da Frente Ampla Contra o Ódio; o resto se vê depois
Pensem nos quase 450 mil mortos de Covid-19 e lembrem-se dos respectivos desempenhos de Marcelo Queiroga e Eduardo Pazuello na CPI. Procurem se inteirar dos motivos que levaram o ministro Alexandre de Moraes a autorizar a operação da PF contra a cúpula do Ministério do Meio Ambiente. Pensem no palanque em favor de um golpe, armado em Brasília no sábado passado, com a presença do ministro da Defesa.
Leiam, nesta Folha, a entrevista de Mario Frias, secretário de Cultura, que viajou à Itália para a abertura da 17ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza. Ele confessa à repórter não saber quem é Lina Bo Bardi, a grande homenageada da mostra. Informado sobre as obras que ela projetou no Brasil, usou-a como exemplo do que entende ser a “alma brasileira”. Italiana, Lina só se naturalizou em 1951, aos 37 anos. Isso não é um governo.
É natural, nas democracias, que grupos e partidos se organizem para apoiar ou se opor à administração de turno, segundo os valores e o viés ideológico dos que estão no poder e dos que a eles se opõem. Há, no entanto, uma diferença entre fazer oposição a um governo dito “conservador” ou “progressista”, segundo marcos de “economia política” —expressão que precisa ser devolvida ao debate—, e ter de resistir à combinação de múltiplas expressões de delinquência.
Mundo afora, governos querem, por exemplo, taxar um pouco menos ou um pouco mais os ricos. O pressuposto dos primeiros, para ser sintético, é que mais dinheiro com a sociedade, não com o Estado, gera um maior número de empresas e empregos —e, pois, aumenta a riqueza. Já seus adversários sustentam que o modelo concentra renda e conduz a iniquidades sociais.
Ganhando a direita democrática, ou uma variante mais ao centro, esta buscará adotar medidas compensatórias para enfrentar a crítica de que não se importa com o social. Vencendo a esquerda, ou força assemelhada, o normal é que busque um entendimento com os donos do dinheiro, tentando convencê-los de que a redução das desigualdades amplia o mercado e, pois, a riqueza —aquela mesma que a direita também diz buscar. Avança-se. Ora com mais reformismo, ora com menos.
Em 2018, o Brasil rompeu com a direita, com a esquerda e com o centro. Em 2018, o Brasil rompeu com o bom senso. Em 2018, o Brasil rompeu com a racionalidade. Em 2018, o Brasil rompeu com a economia política. Em 2018, o Brasil rompeu com a ciência. Em 2018, o Brasil rompeu com o pacto civilizatório. Em 2018, o Brasil rompeu com o futuro.
Já escrevi dezenas de textos a respeito. Demonstrei em que medida a razia provocada nas instituições alimentou a crença de que haveria uma solução mágica. Mais: ela seria imposta por um ogro —ignorante e grosseiro, como sói—, mas que traria consigo a vontade genuína de acertar, livre de todos os “vícios” dos políticos. Ocorre que os tais “vícios” traduzem, justamente, as virtudes da conciliação necessária. Eram e são muitos os males a corrigir. Mas nenhum fora ou acima da política.
Na marcha rumo aos 500 mil mortos, vemos que Jair Bolsonaro cumpre rigorosamente o que prometeu. Já eleito, afirmou, ainda antes da posse, haver no país mais coisas a desconstruir do que a construir.
Observem: com sinais de uma possível terceira onda de Covid-19 —sem que a segunda tenha deixado de nos apavorar—, o Ministério da Saúde ainda não fez uma campanha nacional sobre métodos de prevenção porque, afinal, estes não combinam com as crenças do presidente e com seus próprios hábitos. E, no entanto, lá estava Braga Netto, da Defesa, no palanque golpista.
Que as forças comprometidas com o pacto civilizatório façam o possível para que as hostes da destruição não sejam nem mesmo uma das opções em 2022. O governo Bolsonaro não pode ser visto como um simples surto de incompetência a ser superado. Estamos diante da evidência de que a democracia não precisa de um golpe para morrer. Ela pode ser solapada pela irracionalidade tomada como um método.
Pode ser aterrador, eu sei, mas o Brasil contemporâneo prova que o ódio e o ressentimento são forças poderosas e mobilizadoras.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Reinaldo Azevedo: Bolsonaro oferece 400 mil mortos ao lúmpen-milicianato
A instalação da CPI da Covid mexe com os bofes de Jair Bolsonaro. Agride o seu senso de onipotência —injustificado segundo um crivo objetivo, mas compreensível se visto por lentes clínicas. O golpista de primeira hora, que nunca precisou de comissão de inquérito ou de oposição organizada para pregar o rompimento da ordem —como provam os atos antidemocráticos que patrocinou já em 2019—, não aceita que sua obra seja questionada. Os, até agora, mais de 400 mil mortos são o seu grande legado ao lúmpen-milicianato que o aplaude.
A política sempre deve ter precedência na análise da vida pública, embora os dados de personalidade não possam jamais ser ignorados. Uma leitura mais aberta de Maquiavel sugere que a “fortuna” e a “virtù” —a história herdada que condiciona alternativas e as escolhas ditadas pela personalidade— também podem ter um enlace negativo. Em vez de surgir o Príncipe, eis que aparece o ogro, que a democracia tem de esconjurar. Ou morreremos todos.
Assim, é claro que, ao não arredar um milímetro das posições as mais estúpidas e reacionárias, que muitos enxergam danosas e contraproducentes para seu próprio futuro político, Bolsonaro age com cálculo. Ele deu voz a esse público que existia nas sombras; que se esgueirava nos escuros da história; que se acoitava nos desvãos nunca visitados —não de modo suficiente ao menos— pela teoria política.
Há nesses cafofos mentais um potencial de ressentimento odiento; de rancor acumulado contra virtudes vistas como inalcançáveis —pouco importando se as limitações são objetivas ou subjetivas—; de repulsa a tudo o que escapa de suas escolhas, tidas como valores universais. Encontram no presidente a sua voz.
Essa esfera de sentimentos e sensações é infensa a dados da realidade fática. A evidência do erro só reforça a convicção. Daí a fúria patológica contra a imprensa, por exemplo.
Querem uma prova? A crítica ao distanciamento social, sob a alegação de prejuízos à economia, expressa uma racionalidade torta. É um erro, sim, mas faz sentido. O que explica, no entanto, a repulsa de muitos à máscara senão a reação dos que se sentem tolhidos na sua vontade e reprimidos por um mundo que não compreendem, por valores que lhes são distantes, por um discurso que entendem ser só afetação e hipocrisia?
Na arte e na vida, esse caldo alimentou os fascismos. Leiam “M, o Filho do Século”, de Antonio Scurati, sobre os primeiros anos da trajetória de Mussolini, o trânsfuga. Vejam ou revejam o filme “Lacombe Lucien”, de Louis Male, e percebam como o oprimido pode encontrar no peito do opressor o regaço para a sua ascese, ainda que destrutiva.
Bolsonaro pode não saber exatamente o nome do que pratica —embora viva cercado de alguns que o sabem—, mas já percebeu ter um público cativo —em mais de um sentido. O que um olhar objetivo e crítico apontaria como um tiro no pé é precisamente a seiva, vertida como fel, que plasma em eleitorado os ódios que ele açula e alimenta. E, por essa razão, o presidente não desiste nem recua nunca. Aí está a sua fortuna —este texto está pleno de palavras polissêmicas.Não é fácil a um outro qualquer liderar esse lúmpen-milicianato —presente em todos os setores e classes, já que não é o interesse econômico que une os fanáticos, mas uma espécie de identidade espiritual. Embora esteja consciente do jogo, Bolsonaro é um homem, a seu modo, sincero. Está plenamente convencido das coisas estúpidas que diz e faz. É o que a sua inteligência alcança. Creiam: nem os filhos são seus herdeiros naturais. Já pensam demais, ainda que a seu modo.
Nesse particular sentido, raramente houve no Brasil um representante que expressasse com tanta fidelidade o universo mental dos seus representados e que estivesse tão à altura do momento. Ele soube pôr as suas características pessoais a serviço da terra que a Lava Jato arrasou. É emblemático que, neste momento, o senador Renan Calheiros —uma das caças de predileção de procuradores— seja o homem mais temido pelo presidente e pelos fascistoides que ele mobiliza.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Reinaldo Azevedo: Quem discursou na Cúpula do Clima? Fala de Bolsonaro desafia Mateus
Uma constante do presidente em 28 meses de mandato é nunca recuar; ao contrário: ele sempre piora o que fez no dia anterior
Quem era aquele presidente que, nesta quinta, falou em lugar de Jair Bolsonaro na Cúpula de Líderes Sobre o Clima? O mesmo que, no dia anterior havia participado do almoço de desagravo ao ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, na casa do dito "moderado" Fábio Faria, ministro das Comunicações? Obviamente não. E aí mora o problema. A reação à fala, mundo afora, é de desconfiança.
Uma pausa para uma consideração: quando o "moderado" do governo oferece um costelão amigo a Salles, cercado pela nata do reacionarismo, o que se deve esperar dos não moderados? No dia anterior, o homenageado havia feito pouco caso dos povos indígenas, com seu habitual humor truculento, destacando que há índios com iPhone, num esforço claro de deslegitimação das demandas dessas comunidades.
Na terça ainda, o delegado Alexandre Saraiva foi apeado da Superintendência da Polícia Federal do Amazonas, depois de trombar com Salles, que resolveu se solidarizar com madeireiros do Pará, apontando falhas inexistentes na operação, empreendida em dezembro do ano passado, que resultou na maior apreensão de madeira ilegal da história.
Em entrevista a O Globo, Saraiva afirmou que só apresentara ao Supremo uma notícia-crime contra o ministro porque, afinal, ele detém foro especial. Não fosse assim, teria instaurado ele mesmo um inquérito por obstrução da investigação e advocacia administrativa. E lá estava Salles, na quarta, sendo aquinhoado com uma costela assada, prestigiado, note-se, pelo chefe —o mesmo que prometeu, nesta quinta, mundos ao mundo --desde que este lhe dê os fundos.
O discurso de Bolsonaro, em si, é bom. Mas quanto ele realmente vale? Esse presidente prometeu, na campanha eleitoral, extinguir o Ministério do Meio Ambiente. E, com efeito, tentou subordinar a área à pasta da Agricultura. Diante da grita nacional e internacional, recuou, mas avançou na pauta reacionária: chamou Salles. E este se encarregou de fazer "passar a boiada".
E que se note: essa metáfora só vale para bois clandestinos. O agronegócio que conta quer distância das delinquências ambientais em curso e busca descolar a sua agenda das ações oficiais. Temos hoje um governo que é nefasto à preservação ambiental e também aos negócios.
Ao fim de seu 28º mês de mandato, é preciso que se destaque uma constante em Bolsonaro. Ele não recua nunca, pouco importando a eficácia ou não das escolhas que faz. É uma característica dos fanáticos. O resultado adverso reforça as suas crenças. Se uma determinada medida se mostra inútil ou contraproducente, atribui o revés à falta de convicção ou de energia na sua aplicação. E então manda dobrar a dose do remédio errado —cloroquina ou qualquer outro.
O presidente que agora passa o pires na Cúpula do Clima, afirmando que o Brasil precisa de dinheiro para preservar suas florestas —e precisa!— mandou um recado, em agosto de 2019, à primeira-ministra da Alemanha, que decidira suspender recursos enviados ao Brasil: "Eu queria até mandar um recado para a senhora querida Angela Merkel (...) Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, ok? Lá está precisando muito mais do que aqui".
Então o presidente muda de ideia? Há uma diferença entre reconhecer um erro, tomando outro rumo, e fazer apenas a mímica da mudança, a exemplo do que se verifica na Saúde. Há quem pense que devemos considerar uma vitória da moderação termos um ministro que usa máscara em público e que reconhece a urgência da vacinação. O presidente, ele mesmo, continua a incentivar a barbárie virótica em meio a 400 mil mortos.Terá Bolsonaro recuado, de fato, pela primeira vez? Para ficar na metafísica influente neste governo, respondo com Mateus 7:15-17: "Acautelai-vos quanto aos falsos profetas. Eles se aproximam de vós disfarçados de ovelhas, mas, no seu íntimo, são como lobos devoradores. Pelos seus frutos os conhecereis. É possível alguém colher uvas de um espinheiro ou figos das ervas daninhas? Assim sendo, toda árvore boa produz bons frutos, mas a árvore ruim dá frutos ruins".Que Bolsonaro desafie Mateus!
Reinaldo Azevedo: Sem juízo e as regras do jogo, morreremos todos sufocados
Que os políticos e os magistrados se lembrem de que a destruição do devido processo legal nos legou a Terra dos Mortos
Na minha contabilidade, Jair Bolsonaro cometeu 26 crimes de responsabilidade, alguns deles também crimes comuns. Por qualquer caminho, não entrarei em minudências, seriam necessários dois terços da Câmara para retirar das suas mãos os instrumentos de Estado que servem, por ação e omissão, ao morticínio em massa. Os etimologistas do caos contestam a palavra "genocídio". Mesmo diante do genocídio. Se operadores da política e da Justiça cometerem erros importantes agora, morreremos todos. Sem estrondo nem respiradores.
O país já enfrenta a falta de anestésicos e de neurobloqueadores para intubar pacientes. Entes públicos e privados precisam da autorização imediata para tentar comprá-los onde quer que estejam disponíveis no mundo. O colapso chegou. O caos se avizinha. Não temos mais UTIs. Não temos mais respiradores. Não temos mais mão de obra disponível. E agora o pior: há o risco de a infraestrutura existente se tornar inútil porque faltam as drogas necessárias.
Não obstante, até esta quinta, tínhamos, na prática, dois ministros da Saúde que não valiam por um. Porque, de fato, a pasta é conduzida por Bolsonaro. Marcelo Queiroga chegou simulando apego à ciência. Indagado sobre o uso da cloroquina, afirmou: "É algo que precisa ser analisado para que a gente consiga chegar a um ponto comum que permita contextualizar essa questão no âmbito da evidência científica e da ciência".
Madame Natasha, fonte exclusiva de Elio Gaspari, fiquei sabendo, deu o rapaz como caso perdido. E aí digo eu, não ela: há uma dimensão da linguagem que não guarda relação com a sintaxe ou com a etimologia. O conteúdo, ainda que meio atrapalhado, tem mais intimidade é com o caráter mesmo.
Quanto ao ministro que está saindo, um general da ativa, não resisto a lembrar aqui, mais uma vez —e o farei quantas forem necessárias—, o tuíte do general Villas Bôas, então comandante do Exército, escrito para intimidar magistrados e pavimentar, querendo ou não, o terreno para homicidas em massa: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?".
No começo, como é mesmo?, a Covid-19 matava "nossas avós", como discursava o "Lírico da Cloroquina". Eram as gerações passadas. "Todo mundo morre um dia", ele avançou, com o realismo típico aprendido ali pelas bandas da zona oeste do Rio. Jovens e crianças estão morrendo agora. São as "gerações futuras", em nome das quais o general ameaçou civis desarmados, ora vítimas da irresponsabilidade, da ignorância, da mesquinharia sórdida.
E agora retomo o fio que deixei lá no primeiro parágrafo. As forças e lideranças que se opõem a Bolsonaro e os operadores da Justiça comprometidos com a Constituição têm de se perguntar, a cada dia, se sua ação pode concorrer para a eventual reeleição do mandatário. Sairemos lanhados dessa tragédia humanitária e civilizatória. Precisaremos reconstruir o tecido esgarçado da democracia. Ainda é possível. Resta-nos a esperança no fundo da caixa.
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), num raciocínio essencialmente correto e moral, falou sobre a necessidade de as esquerdas e o centro se unirem em defesa de algum futuro. É pouco provável que aconteça no primeiro turno. Mas saibam todos: discursos e postulações, no terreno antibolsonarista, que criem zonas de exclusão —dando mais relevo ao inconciliável do que a uma pauta mínima de defesa da ordem democrática— concorrem para a permanência daquilo que nos mata como indivíduos e nos inviabiliza como país.
Da mesma sorte, nunca foi tão grande a responsabilidade dos togados. A destruição do devido processo legal e da política como espaço de resolução de conflitos nos conduziu ao desastre. A exemplo de todo salvacionismo, também o dos fanáticos de Curitiba resultou em devastação e morte. Tenham a coragem, senhores ministros, de resgatar as regras do jogo. Não é um golpe que nos ameaça. É a desordem. Ou morreremos todos. Sem estrondo nem respiradores.
Reinaldo Azevedo: No banquete de Bolsonaro, somos 210 milhões de leitões no espeto
Parte do STF ajudou a pavimentar o caminho para a terra dos mortos. E agora? Como enfrentar a necropolítica?
Na terça (2), houve recorde de mortes por Covid-19 no país, já superado por outros. Jair Bolsonaro estava num almoço festivo no Alvorada com políticos mineiros. Peça de resistência do cardápio: brasileiro no espeto. Estávamos lá na forma de um leitão esturricado. Somos a carne barata do capitão tresloucado, cercado de generais por todos os lados.
Nesta quinta, com um novo marco de cadáveres, ele conclamou os brasileiros a cair na vida para entrar na morte. "Chega de mimimi", exortou. Afirmou que, na Bíblia, a expressão "não temas" aparece 365 vezes. Teve de consultar um papel. Não conseguiria reter na memória tanta informação. Disse o troço olhando estranhamente para o lado, como se fizesse o download de algo que não era deste mundo.
Vamos a uma indagação que fez história: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" É um dos tuítes golpistas que o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, dirigiu ao STF no dia 3 de abril de 2018. Mais de 260 mil mortes depois, será que ele tem a resposta?
A intimidação tinha como alvos os ministros do STF. Queria que endossassem o voto de Edson Fachin, relator do HC de Lula, que mantinha o ex-presidente na cadeia contra a Constituição e contra o Código de Processo Penal. O resultado saiu ao gosto da caserna. Fachin não soltou nem Lula nem um pio. Três anos depois, o jacobino tardio anuncia que a democracia está sendo ameaçada por militarismo, intimidação aos Poderes, depreciação do voto, ataques à liberdade de imprensa, armamentismo, recusa antecipada ao resultado das eleições e, claro!, corrupção.
Os seis primeiros itens servem apenas para lavar o sétimo. O paladino do moralismo em que jaz a moral continua a fazer a defesa incondicional da Lava Jato e de seus métodos criminosos. Em offs nada sutis, o ministro tem especulado que a suspeição de Sergio Moro —e, pois, a anulação da condenação de Lula no caso do tríplex— pode ter um efeito cascata, atingindo outros casos. A sugestão implícita é clara e indecente: mantenha-se a sentença insustentável para salvar o sistema.
Fachin é o emblema de um tempo em que o Supremo, por sua maioria, faltou miseravelmente ao país, permitindo que o Estado de Direito se esboroasse no grau zero da legalidade, fragmentando-se em solipsismos de suposta vocação redentora, com o alegado propósito de excluir malfeitores da vida pública. Bolsonaro e os milicos souberam percorrer a trilha que unia a destruição do devido processo legal à terra dos, em breve, 300 mil mortos.
O tribunal que ajudou a promover —por sua maioria, não por unanimidade— a razia na política se queda inerme e perplexo diante da devastação produzida pelo presidente da República e por alguns de seus ministros. No que lhe tem sido dado arbitrar, é verdade, tem feito a coisa certa em relação à Covid-19. Ocorre que há pouca margem de manobra.
Como esquecer? Políticos se tornaram réus, alguns defenestrados da vida pública, porque a corte acolheu denúncias segundo as quais doações então legais a campanhas eram formas veladas de corrupção, bastando para tanto as delações premiadas arrancadas no cárcere por procuradores dispostos a fazer com que seus reféns "mijassem sangue". Mistificação, demagogia e truculência abriam a picada para os cemitérios.
O delírio punitivista em que se perdeu o Judiciário, em especial o STF —e Fachin continua caudatário desse desastre—, não protege, como se vê, os brasileiros da sanha homicida do Poder Executivo; de sua incompetência; da negação do saber científico; da distribuição de drogas sabidamente ineficazes no combate à Covid-19; da negligência no trato com as vacinas; da, para ser sintético, necropolítica.
O impeachment de Bolsonaro não está no horizonte. Pergunto-me: o que mais pode fazer o Estado legal, de que o STF é a expressão maior e o intérprete final, para impedir que o presidente da República trate 210 milhões de brasileiros como leitões no espeto?
Reinaldo Azevedo: Silveira sequestra turma do miolo mole. Ou: a nossa moral e a deles
Senhores da oposição, tomem cuidado com uma eventual cassação que poderia servir à impunidade do criminoso Daniel Silveira
O lugar de Daniel Silveira é a cadeia. Agora e depois. É preciso cuidado para não oferecer a ele uma tábua de salvação. Se cassado, seu caso vai para a primeira instância, com o risco de o desfecho ficar para as calendas gregas, aquele tempo sem tempo. A Procuradoria-Geral da República já o denunciou ao Supremo com base nos artigos 344 do Código Penal e 18 e 23 da Lei de Segurança Nacional. Que se torne logo réu.
Que seja julgado, condenado e preso em regime fechado, com consequentes perda de mandato e inelegibilidade. Tudo de acordo com o devido processo legal. Ele sonha com surras públicas de gato morto em ministros do Supremo e convoca uma guerra não só contra os magistrados, mas também contra um Poder da República. A propósito: o general Eduardo Villas Bôas e pares se deram conta da qualidade dos aliados que mobilizam? É com esses Bombadões de Plutarco que pretendem construir a terra dos "homens de bem", sobre uma montanha de quase 250 mil cadáveres? Atenham-se aos quartéis.
A correta decisão do STF gerou mais debate entre advogados do que entre os pares de Silveira. Pois é. O que une os livros "Como as Democracias Morrem" (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), "O Povo contra a Democracia" (Yascha Mounk) e "Fascismo "“ Um Alerta" (Madeleine Albright), com olhares e ângulos às vezes bastante diversos? Os três registram a inércia dos regimes democráticos quando confrontados com a subversão reacionária.
Os Estados democráticos estão preparados para se defender de uma improvável disrupção revolucionária, mas não têm sabido responder, em tempos de redes sociais, ao devotado ódio dos extremistas de direita à democracia. Eles se apropriam de seus códigos para destruí-la. E podem encontrar aliados improváveis entre os ditos "progressistas" e liberais do miolo mole.
Confundir os crimes de Silveira com imunidade parlamentar —ou liberdade de expressão— corresponde a permitir que garantias constitucionais que protegem a democracia sejam usadas para solapá-la. Não há filigranas retóricas nem excertos supostamente sapientes que contestem essa evidência. Assim é no mundo.
No Brasil, a questão já passou pelo crivo do STF: a prerrogativa não acoberta crimes —e só por isso Jair Bolsonaro é réu duas vezes no tribunal. Ou se deveria, então, ter considerado a apologia do estupro protegida pela imunidade? Nesse caso, "progressistas" não fizeram coro aos bolsonaristas. Devem ter ficado com receio da vigilante militância feminista. Inexistem militantes "esseteefistas", né?
Flagrante discutível? Discutíveis são comida japonesa, o "Bolero de Ravel" e "single malt" defumado. O flagrante não. O artigo 302 do Código de Processo Penal define as condições da flagrância. O caso se encaixa à perfeição no inciso III do dito-cujo. Leiam lá. O CPP é de 1941, pré-YouTube, e veio à luz na forma do decreto-lei 3.689. A propósito: junto com o Código Penal, compõe o que alguns chamariam por aí de "arsenal da ditadura" —no caso, a do Estado Novo... Devemos evitá-los?
Defendo, noto, que a Lei de Segurança Nacional seja substituída pela Lei de Defesa do Estado Democrático, projeto do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), em parceria com juristas, liderados por Pedro Serrano e Lenio Streck. Mas não perderei a vida por delicadeza, como escreveu o poeta. Não combaterei o uso contra Silveira de uma "lei da ditadura", como dizem, para que ele possa esculhambar a República e defender o AI-5.
Será que eles podem, em nome de sua moral, pregar golpe de Estado, ameaçar as instituições, perseguir minorias, sabotar os esforços coletivos contra a Covid-19 etc.? E nós, os democratas, em nome da nossa —que compreende a defesa da liberdade de expressão— estaríamos impedidos de reagir, deixando, então, que nos engulam?
Ah, não sou peru de Natal de fascistoide. Não morro de véspera. Por isso, senhores da oposição, tomem cuidado com uma eventual cassação que serviria à impunidade. Silveira, como deputado, tem de ser julgado pelo Supremo. Segundo as mais severas regras do devido processo legal.