regra de ouro
José Serra: Uma regra que vale ouro
O ajuste fiscal não pode continuar a entravar investimentos para elevar gastos correntes
A introdução da “regra de ouro” na Constituição de 1988 foi feita pela comissão que tratou de finanças públicas, da qual fui relator. O autor da emenda, por mim acolhida, foi o deputado Cesar Maia. A ideia é simples: não se deve gerar dívida para financiar despesas correntes. Há alguma analogia com o orçamento familiar. Não convém tomar emprestado para pagar contas de água, luz e telefone, pois nos meses seguintes as três contas se repetirão, porém acrescidas da dívida e dos juros.
É diferente quando a dívida é usada para investimentos. Estradas, energia, portos ou saneamento geram empregos, produção e arrecadação no futuro. Aumentar gastos correntes não garante crescimento econômico, que depende de aumento de capacidade produtiva, tecnologia, mão de obra qualificada, exportações de maior valor adicionado e outros fatores.
O espírito da regra de ouro é este: estimular os governos a poupar e investir. Ela foi estabelecida no artigo 167 da Constituição, que veda “a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.
Em síntese, “operação de crédito” quer dizer aumento da dívida pública, decorrente de juros ou déficit primários, menos as receitas financeiras do governo. Já “despesa de capital” são os investimentos e amortizações da dívida.
Assim, a expansão da dívida pública não pode superar os investimentos. Por hipótese, se o governo investir R$ 50 bilhões em dado ano e as operações de crédito totalizarem R$ 60 bilhões, a regra de ouro terá sido rompida.
Vejamos os números da última década. Em 2007, o pagamento de juros reais sobre a dívida do governo federal ficou em torno de R$ 100 bilhões, os investimentos somaram R$ 22 bilhões e o superávit nas contas primárias foi de R$ 58 bilhões. As receitas financeiras oriundas da remuneração da conta única e do pagamento dos juros da dívida dos Estados e municípios à União totalizaram R$ 45 bilhões. Como se vê, a regra de ouro foi cumprida, pois o pagamento de juros somado ao resultado primário do governo, subtraídas as receitas financeiras, totalizou saldo negativo de R$ 3 bilhões, resultado inferior aos R$ 22 bilhões investidos naquele ano.
Essa foi a dinâmica dos anos subsequentes, graças a superávits primários elevados e às transferências de resultados positivos do Banco Central para o governo.
Entre especialistas, o sinal de alerta acendeu entre 2015 e 2016, quando se percebeu que déficits primários crescentes poriam em xeque a regra de ouro. De fato, se a devolução de R$ 100 bilhões do BNDES não tivesse sido feita em 2016, o descumprimento da regra de ouro teria quase ocorrido. Os investimentos federais foram de R$ 65 bilhões e o líquido das operações de crédito, de R$ 61 bilhões. Com a devolução feita pelo BNDES (recursos que aumentaram a dívida no passado para que o banco concedesse empréstimos), as receitas financeiras aumentaram em R$ 100 bilhões e, assim, o total de operações de crédito caiu para R$ 39 bilhões negativos.
Em 2017, a devolução de R$ 50 bilhões do BNDES auxiliou novamente o governo no cumprimento da regra. Alguns dados ainda não são oficiais, mas é possível estimar que os investimentos tenham ficado em torno de R$ 55 bilhões e as operações de crédito, próximas de R$ 38 bilhões, uma diferença de R$ 17 bilhões. Sem os R$ 50 bilhões do BNDES, a regra teria sido rompida em R$ 33 bilhões. Um efeito colateral dessa transferência foi a perda de capacidade de financiamento do banco, a juros decentes, para investimentos produtivos.
Uma análise dos números e projeções mostra que a regra de ouro tende a ser descumprida neste e nos próximos anos. Trata-se de um sintoma de problemas mais sérios, como o desmonte do modelo de crescimento, com forte impacto sobre as receitas fiscais.
Alterar a Constituição para mudar a regra de ouro, no entanto, não seria conveniente. O bom funcionamento da economia requer credibilidade. Se as perspectivas sobre o futuro são abaladas, o presente é afetado: exigem-se mais juros para financiar a dívida, produtores reduzem investimentos, consumidores guardam dinheiro e o crédito se reduz. Mudar a Constituição poderia causar esse efeito negativo sobre as expectativas. Por essa razão, o melhor a fazer, no curto prazo, é valer-se do dispositivo já presente na Carta Magna que permite o descumprimento temporário da regra com autorização do Legislativo. É o caminho natural: usar os instrumentos já previstos na própria Constituição.
Mas não podemos parar por aí. O descumprimento da regra de ouro é apenas a face mais visível da crise de financiamento do Estado. A intenção dos constituintes, com a regra de ouro – posso afirmar com clareza –, era motivar o investimento em infraestrutura, fundamental para o crescimento, proibindo criação de dívida para custear despesas do dia a dia.
Mas o investimento público, incluindo Estados, municípios e União, nunca esteve tão baixo – R$ 127 bilhões no período de 12 meses encerrado em junho de 2017 –, como mostrou recente estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI).
O excesso de vinculações e a rigidez da despesa engessam a ação dos governantes e impedem a escolha democrática sobre como alocar os recursos dos impostos. Este é o nó a ser desatado já. Mais de 90% do Orçamento está predeterminado na Constituição ou em alguma legislação. Não há espaço para escolha de prioridades.
A correção de rumos no plano fiscal deve prosseguir, mas o ajuste não pode continuar a prejudicar investimentos para elevar gastos correntes. É hora de recuperarmos a capacidade de planejamento e ação do poder público, fixando uma estratégia nacional voltada para a expansão das taxas de crescimento do produto interno bruto (PIB) e para o controle do gasto público, combatendo desperdícios e privilégios encravados no setor público brasileiro.
*José Serra é senador (PSDB-SP)
Eliane Cantanhêde: De audácia a masoquismo
O governo Temer sacoleja de recuo em recuo; o último deles na PEC da ‘regra de ouro’
Depois de atrair chuvas e trovoadas, até fora do País, com a intenção de flexibilizar a “regra de ouro” do equilíbrio fiscal, o presidente Michel Temer decidiu mais uma vez voltar atrás. Henrique Meirelles alegou que a discussão “não é adequada ao momento”. Óbvio que não é. E, se não é, por que foi lançada? Para causar mais um enorme desgaste por nada?
Já se escreveu neste espaço sobre a audácia de Temer, mas essa audácia tem pitadas de masoquismo. Ele se mete nas maiores confusões, passa dias “apanhando” mais de aliados do que de adversários, de especialistas de diferentes tendências e até de analistas do exterior, e depois é obrigado a recuar. O governo sacoleja com um recuo atrás do outro.
Se a prioridade das prioridades é tentar aprovar a reforma da Previdência em fevereiro na Câmara, para que meter no meio a mudança na regra de ouro? Não bastava uma guerra? Temer não consegue votos nem para a Previdência e, não custa lembrar, foi formalmente por pedaladas fiscais, para dissimular o rombo e continuar gastando em ano eleitoral, que Dilma caiu.
Pela regra, a União só pode emitir dívida para amortizar dívida ou para investimento, mas Temer articulava uma Proposta de Emenda à Constituição para poder cobrir também as despesas correntes, ou seja, para manter a máquina. O deputado Marcus Pestana (PSDB-MG) alertou: se a PEC passa, no dia seguinte as agências de risco rebaixam de novo a nota brasileira. A Espanha, por exemplo, tem pesados investimentos na telefonia e na exploração do pré-sal e está atenta ao descontrole fiscal no Brasil.
Segundo o governo, a alteração seria só para 2019, mas o desgaste já tinha sido feito. Além de a PEC exigir o mesmo quórum que Temer não consegue para a reforma da Previdência, ela reforçou a fragilidade do governo: o objetivo é gastar bem em 2018? Ou porque a reforma não vai passar e é preciso mexer na regra fiscal para não incorrer no mesmo crime de responsabilidade fiscal da antecessora?
Enfim, foi mais um passo errado de um governo que adora virar alvo à toa: propõe um baita retrocesso no conceito de trabalho escravo e é obrigado a voltar atrás; anuncia um indulto de Natal que cai como uma luva nos atuais e nos futuros alvos da Lava Jato e é obrigado a engolir a suspensão pedida pela PGR e determinada pelo STF. Agora, diz não para o Ministério Público, que deu prazo para a troca de vice-presidentes e exigiu melhores condições de governança da CEF.
E por que o MP fez as exigências? Porque a CEF foi uma usina de escândalos nos últimos governos e é alvo de pelo menos três operações da PF: Sépsis, Cui Bono? e Patmos, que envolvem, por exemplo, os já bastante conhecidos Eduardo Cunha, Henrique Alves e Geddel Vieira Lima. Com um mínimo de humildade, a Caixa poderia reconhecer sua culpa e ceder pelo menos em parte aos procuradores.
Por fim, a posse da Cristiane Brasil (PTB-RJ) no Ministério do Trabalho está marcada para hoje à tarde, no Planalto, mas há ações tentando impedir que assuma. Empurrada para o cargo pelo próprio pai, Roberto Jefferson, a moça já foi condenada por crime trabalhista, acusada de manter motoristas até 15 horas por dia para a família – e sem carteira assinada.
Além de cuidar melhor da regra de ouro fiscal, um marco para o País, Temer deveria também cuidar da “regra de ouro” política, pela qual governos, como exércitos, devem se concentrar em uma guerra de cada vez: não se ampliam os focos de tensão, não se diversificam os inimigos ao mesmo tempo, não se anuncia o que não se consegue fazer, ou, pior, não se deve fazer. Além de audácia, Temer deve ter também picos de masoquismo. O homem adora apanhar, principalmente da opinião pública!