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Refundação do Estado chileno pode ter complicações, diz historiador

Alberto Aggio lembra, em artigo na Política Democrática online de agosto, que a Constituinte nasceu de protestos cívicos

Cleomar Almeida, da equipe FAP

O processo político e institucional no Chile pode ser considerado como o mais democrático e participativo de reconhecimento da soberania cidadã em toda a história da América Latina, mas a refundação do Estado chileno pode ter complicações irreparáveis. A análise é do historiador e professor titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Alberto Aggio, em artigo publicado na revista Política Democrática online de agosto (34ª edição).

Veja, aqui, a versão flip da Política Democrática online de agosto (34ª edição)

Com o título “Os desafios e os riscos da Constituinte chilena”, o texto de Aggio está publicado na revista produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. Todo o conteúdo da publicado por ser acessado, pelos internautas, na versão flip, gratuitamente, no portal da entidade.

Em sua análise, Aggio observa que se instalou, no início de julho, a “Convención Constituyente”, que deverá elaborar a nova Constituição do Chile no prazo de nove meses, prorrogáveis por mais três, para, em seguida, ser levada a plebiscito. “São expectativas compartilhadas dentro e fora do Chile, mas há sérios riscos de uma derrapagem que pode causar complicações irreparáveis”, ressalta ele.

O historiador lembra que a Constituinte nasceu de protestos cívicos cujo ápice foi a manifestação multitudinária de 18 de outubro de 2019 e ganhou vida mediante um acordo firmado entre as principais forças políticas do país que reconheceram a legitimidade do que se passava nas ruas.

“Estabeleceu-se a realização de um plebiscito (realizado em 25 de outubro de 2020) que sancionou, tanto a vontade majoritária por uma nova Constituição, como a eleição específica e paritária de 155 constituintes, dentre eles 17 representantes dos ‘povos originários’, o que se concretizou nas eleições de 16 de maio deste ano”, afirma Aggio.

Desde novembro de 2019, de acordo com o professor da Unesp, ficou definido que 2/3 seria o critério para aprovação de todas as matérias constitucionais. “Talvez não se conheça o processo político e institucional mais democrático e participativo de reconhecimento da soberania cidadã em toda a história da América Latina”, escreve ele.

Com a aprovação de 80% no plebiscito, segundo o historiador, “feriu-se de morte a ordem institucional da Constituição de 1980, imposta pela ditadura de Augusto Pinochet e, ao mesmo tempo, abriu-se a senda da refundação do Estado chileno, expressa na instalação da Constituinte”.

“Está em curso, portanto, a ultrapassagem da Constituição de 1980 que amordaçou a sociedade chilena e, também, a estratégia de ‘reformas’ desta mesma Constituição implementada pelos diversos governos da Concertación desde 1990 que, embora tenha feito avançar a democratização, não conseguiu adequar-se aos novos tempos, ampliando direitos ou reelaborando aqueles que foram perdidos desde o golpe militar de 1973’”, assinala.

Confira, aqui, a relação de todos os autores da 34ª edição

A íntegra do artigo de Aggio pode ser conferida na versão flip da revista, disponibilizada no portal da entidade. Os internautas também podem ler, na nova edição, entrevista exclusiva com a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA)reportagem sobre escândalo das vacinas contra Covid-19 e artigos sobre política, economia, meio ambiente e cultura.

Compõem o conselho editorial da revista o diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado, Caetano Araújo, o jornalista e escritor Francisco Almeida e o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques. A Política Democrática online é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado.

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Ana Carla Abrão Costa e Paulo Hartung: A refundação do Estado brasileiro

Mãos à obra, para que o sentido de nação seja o mesmo para todas e todos os brasileiros

Francis Fukuyama, em seu livro Ordem Política e Decadência Política (Political Order and Political Decay), faz uma análise do papel do Estado no destino das nações. Nos países onde o patrimonialismo e o clientelismo deram lugar a um Estado voltado para servir o cidadão, o desenvolvimento acelerou-se e foi mais consistente, contribuindo para a consolidação das instituições democráticas e garantindo o bem-estar da população, com níveis inferiores de desigualdade social. Fukuyama, a par de uma ou outra menção ao Brasil, não faz uma análise profunda das bases históricas do Estado brasileiro. Mas sua leitura provoca reflexões que contribuem para um resgate da justiça social e das condições de crescimento por meio da refundação do nosso Estado.

Ao longo dos séculos, a máquina pública brasileira garantiu privilégios a classes específicas, desviando-nos do caminho da igualdade de oportunidades, da inclusão social e do desenvolvimento econômico de forma sustentável. Baseado num modelo operacional arcaico e voltado para sua autoperpetuação, construímos uma engrenagem de reforço de desigualdades que agora chegou ao limite. Exauriu-se e hoje se vê incapaz de servir à população. Esgarçou sua relação com o servidor público, tamanha a ineficiência que deriva de um modelo concentrador de renda e expropriador.

A baixa qualidade dos serviços públicos, o excesso de gastos e sua trajetória inexoravelmente crescente, a desigualdade salarial e as injustiças internas e externas definem uma espiral que serve a poucos, mas tira muito do País. Essa máquina de desigualdades abriu um abismo entre os que têm acesso à educação de qualidade e a bens e serviços básicos, como saneamento, ou sofisticados, como a tecnologia, e a maioria da população, que depende do Estado para ter alguma possibilidade de ascensão social ou ao menos a melhores condições de vida.

Felizmente, a sociedade brasileira tem demonstrado seu profundo descontentamento com a qualidade dos serviços públicos e a forma atual de organização do Estado. Ela não quer mais conviver com um sistema que divide o mercado de trabalho em dois: o público, em que benesses e privilégios vão muito além da estabilidade – em particular para a elite do funcionalismo; e o privado, sujeito a toda sorte de intempéries. Ela não aceita mais ganhos salariais reais contínuos, garantias de promoções, progressões, gratificações e outras vantagens financeiras desconectadas do resultado e presentes mesmo quando a economia afunda e o mercado privado desemprega e corta salários. Tudo isso se traduz em crescimento dos gastos públicos obrigatórios e também numa máquina que se deteriora, comprometendo as condições de trabalho dos servidores e, consequentemente, a qualidade da prestação de serviços para o cidadão.

Mirar um futuro diferente do presente e distanciado do passado é incrementar os passos reformistas. Nesse sentido, o gesto tardio e acanhado do governo federal ao enviar uma proposta de reforma administrativa ao Congresso Nacional abre uma possibilidade de avanço. Embora dependente do recebimento dos projetos de lei necessários ao detalhamento da reforma, caberá ao Parlamento a liderança desse processo. Quiçá menos atado às amarras corporativistas que limitaram a proposta enviada, ele poderá estender ao presente os conceitos que são hoje apenas promessas de futuro e promover a necessária mudança estrutural. Mas nessa caminhada imperativa o futuro precisa começar hoje. Não amanhã.

Nosso Estado é arcaico. Ineficaz e oneroso, investe muito mal e gasta para si. É um Estado anacrônico. Em tempos de avanço tecnológico, continua analógico e cartorial. Nosso Estado é cativo, historicamente capturado e patrimonialista, finca suas bases na defesa de grupos de interesse, sejam eles segmentos sociopolíticos e econômicos ou corporações estatais, que de forma hábil e perversa fazem confundir seus interesses particulares com os da Nação, sustentando uma sociedade inaceitavelmente desigual.

A refundação do Estado é, portanto, a única forma de usar suas potencialidades não mais na promoção de privilégios e desigualdades, mas na indução de prosperidade para todos. Nesse contexto, precisamos de uma reforma que vá além da criação do serviço público do futuro, como propõe o governo de forma teórica, mas também reformule as atuais leis de carreiras. Muito mais do que a esperada e desejada redução e racionalização dos gastos públicos, a prioridade é a busca da eficiência e da qualidade na prestação de serviços, além dos necessários ganhos de produtividade, que são precondição para a retomada do crescimento sustentável e da geração de emprego e renda.

A pandemia reforçou essa necessidade ao expor o distanciamento do Estado brasileiro da realidade dos cidadãos, especialmente dos mais empobrecidos. O governo cobra impostos de todos, mas não consegue saber quem são os brasileiros que precisam de apoio.

É preciso refundar o Estado para que ele seja parte e promotor de um novo futuro para o Brasil. Pois, como bem alertou Saint-Exupéry, “o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas um lugar que estamos construindo”. Mãos à obra na refundação do Estado, para que o sentido de nação seja o mesmo para todas e todos os brasileiros, finalmente!

ECONOMISTAS


Luiz Sérgio Henriques: A refundação necessária

Reconectar partidos e ideias requer a decisão de nos pormos nos marcos definidos em 88

Há formas e formas de encarar situações críticas, e lá diz o poeta que mesmo um copo vazio, bem observado, está cheio de ar. Em meio às agruras presentes, pressentimos, às vezes sem plena e cabal consciência, que a Carta de 1988 é o que impede sobressaltos, como a convocação de constituintes exclusivas para tal ou qual finalidade, especialmente a reforma política - que há de vir, mas por outros meios. Entre candidatos presidenciais bem posicionados, existem os afeitos à ideia de aumentar perigosamente a eletricidade ambiente, tornando-a mais “intensa”, seja qual for o significado disso.

Afinal, vivemos tempos de crise das democracias e os remédios que se aviam em laboratórios de fundo de quintal nem sempre trazem a cura, quando não são, como no caso dos populismos, piores do que o próprio mal.

Paradoxos não faltam. As instituições de controle se ativaram como nunca. Excessos à parte, puseram a nu mecanismos de financiamento político-partidário de cuja existência suspeitávamos, sem ter a exata noção de seu amplo poder corrosivo. Grupos dirigentes inteiros foram chamados às barras da lei, o que desarticulou alguns dos mais importantes partidos da redemocratização e os respectivos projetos de poder. Ao mesmo tempo, o ambiente de terra arrasada daí nascido é o mais propício a aventureiros de todos os matizes, que se alimentam da antipolítica que eles mesmos semeiam, ao se colocarem “contra tudo o que está aí”. Esta é a hora clássica dos demagogos.

Se as instituições de fiscalização vieram para ficar, com suas exigências de controle e transparência, o sistema político reage e se reagrupa como pode. Tem a seu favor o fato óbvio de que não existe democracia sem partidos e sem Parlamento digno do nome.

Velhos comunistas costumavam dizer que a mais medíocre das “democracias operárias” era preferível à mais pujante das “democracias burguesas”. Devemos parafraseá-los em outro sentido: do ponto de vista de uma vida civil moderna, como a que precisa existir no Brasil, não haver democracia parlamentar, verdadeiramente livre e plural, é o pior dos mundos.

Como dissemos, o establishment reage, vale-se das regras de financiamento exclusivamente público, aposta na maior visibilidade dos detentores de mandato, de modo que se vislumbra um nível baixo de renovação do Congresso e das assembleias estaduais. Eppur si muove, e algo como um processo constituinte, nada espalhafatoso, mas quem sabe promissor, pode estar ocorrendo sob nossos olhos. Este processo, distante de qualquer subversivismo rupturista, atinge um dos pilares da vida institucional: exatamente, o sistema de partidos, às vésperas de ser - em parte - racionalizado com a cláusula de barreira já prevista para este outubro.

Regras, quando pertinentes, costumam ser bem mais do que meros artifícios técnicos. Já que o voto é livre e as urnas são imprevisíveis, impossível dizer quantos e quais partidos terão plena existência parlamentar e assim poderão condicionar, positiva ou negativamente, o futuro programa de reformas.

Sabe-se apenas que serão em número bem menor do que as atuais três dezenas. Deixando de lado qualquer previsão minuciosa, aqui propomos um mapa provisório do sistema de forças em surgimento, apontando alguns dos prováveis rumos à frente.

Já temos de nos haver com uma extrema direita competitiva - e agressiva - pela primeira vez desde a redemocratização. O partido ou grupo de partidos que nesta área se firmarem estarão em linha com tendências globais. Não por acaso seu líder se derrama em elogios à figura tutelar de Trump e tenta capitanear uma versão nativa da Christian Right, com “Deus acima de tudo”. Será capaz de dirigir toda a sociedade com base em valores que dificilmente seriam os de uma apregoada “sociedade aberta”?

Partidos tradicionais, como PP, DEM e em certa medida MDB, vivem uma versão peculiar do dilema dos velhos partidos operários, quando se dizia que as ideias deviam vir “de fora” do aparelho partidário.

Veem-se assediados por vozes e movimentos que postulam um liberalismo distante das esferas do Estado, nas quais aqueles partidos se movimentaram até hoje com maestria e conhecimento de causa. A capilaridade que detêm parece condenar ao insucesso as novas vozes, mas, sem estas, organismos tradicionais caducam e morrem, antes de construir suas pontes para o futuro.

Este “centro ampliado”, de resto, é vital para barrar a pretensão hegemônica da ultradireita, mas não basta. A revitalização do PSDB será requisito para dar gravitação a uma frente democrática de novo tipo, com soluções positivas para as urgências econômicas e sociais do País. Nascido de notável constelação de intelectuais e com a vocação de representar as camadas médias modernas, um bom desempenho tucano nas urnas recolocaria o dilema deste partido, a saber, estar no governo e não desaparecer da sociedade. E desta vez sem espaço para o erro.

Tal como da extrema direita, pouco se pode esperar da esquerda dominante, pelo menos por ora. Até por uma questão geracional, teria cabido aos grupos dirigentes do petismo renovar a política e dar-lhe novo fôlego. Aqui, sim, teria sido necessária uma transformação que liquidasse mitos revolucionaristas e impedisse seu reaparecimento, ainda que só para fins de retórica ou de sustentação a toscos projetos externos, como o bolivarianismo. Uma missão que o petismo deixou de cumprir - e sem refletir sobre este descumprimento ele dará mil voltas sem sair do lugar.

Reconectar partidos e ideias - de preferência a ideologias -, ação e programa, sociedade civil e sociedade política requer a decisão de nos pormos nos marcos constitucionais livremente definidos há 30 anos. A República não precisa de refundação; os partidos que deveriam vertebrá-la, sim. Distinguir uma coisa da outra é um dos modos de separar amigos e inimigos da sociedade aberta.