reformas
Maílson da Nóbrega: As quatro reformas tributárias
Se aprovada a PEC 45, haverá crescimento da produtividade e do potencial da economia
Sob o nome genérico “reforma tributária”, discutem-se atualmente quatro distintas propostas para reformar o caótico, regressivo e injusto sistema tributário brasileiro. São elas:
1) A reforma da tributação do consumo configurada nas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) 45 (Câmara dos Deputados) e 110 (Senado), que criam um imposto sobre o valor agregado (IVA), denominado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). O método é adotado por mais de 160 países. 2) A criação de um IVA federal mediante a fusão e simplificação do PIS e da Cofins. 3) A proposta do Ministério da Economia para recriar um tributo nos moldes da CPMF, associado à desoneração das contribuições sobre a folha de salários e ao aumento do emprego. 4) E a proposta do Ministério da Economia para melhorar a equidade do sistema tributário, reduzindo privilégios e aumentando a progressividade do Imposto de Renda.
A mais relevante de todas é a primeira, por atacar a principal fonte de ineficiências da economia. Prevê a unificação de cinco tributos, três federais (IPI, PIS e Cofins), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS). Entre as suas principais características estão a alíquota única, a proibição de seu uso como incentivo fiscal (eliminando a guerra fiscal), a completa desoneração nas exportações e a devolução, em espécie, do IBS incidente no consumo dos segmentos menos favorecidos. A PEC 45, a melhor, baseia-se em projeto preparado pelo Centro de Cidadania Fiscal, sob liderança do economista Bernard Appy.
A PEC 45 conta com o apoio inédito e unânime dos secretários de Fazenda estaduais, convencidos das disfunções do ICMS. A questão federativa em tentativas de reforma anteriores constituía ponto de veto. Assim, a proposta tem viabilidade de aprovação, mesmo diante dos desafios políticos.
A PEC 45 e a fusão do PIS e da Cofins, têm forte oposição da área de serviços, hoje subtributados pelo ISS, pois aumentarão a carga tributária em segmentos como os de educação, saúde, lazer e turismo, consumidos pelas classes de maior renda. Os pobres não costumam ter acesso a tais serviços, o que agrava a regressividade da tributação do consumo no Brasil. A coalização contrária à reforma é politicamente poderosa e tem contado com a simpatia da imprensa. Isso poderá levar à solução de compromisso de admitir duas alíquotas, uma para bens e outra, menor, para serviços. Há precedentes mundiais de mais de uma alíquota em IVAs.
A segunda reforma é modesta em seus efeitos, mas tem vantagens, principalmente a de engajar o governo federal no processo. O IVA dual (governo central e governos subnacionais) existe em outros países, mas a PEC 45 é melhor por ser mais ampla e completa. É provável que a proposta seja incorporada nessa PEC.
A terceira reforma tem conhecidos defeitos, a saber: 1) trata-se de tributo disfuncional, em cascata, o que provoca ineficiências e reduz a competitividade dos produtos exportáveis. 2) Torná-la permanente é muito perigoso. Tributos de fácil arrecadação costumam ter sua alíquota elevada durante crises fiscais. 3) Pior do que a CPMF, a nova contribuição incidiria no comércio eletrônico, penalizando transações mais eficientes do que as do comércio físico. 4) Dificilmente haverá aumento de emprego. Como se sabe, na prática o ônus das contribuições previdenciárias recai sobre o trabalhador. Assim, nos casos em que a medida foi adotada, o efeito foi elevar a renda dos empregados, não criar postos de trabalho. 5) A contribuição previdenciária do trabalhador é a base para o cálculo das aposentadorias. Se a proposta incluir sua eliminação, caberia às empresas informar os salários pagos. O potencial de fraudes poderia elevar os gastos previdenciários.
A quarta reforma, fundada basicamente na equidade tributária, buscaria eliminar privilégios que reduzem a progressividade do Imposto de Renda, o qual, historicamente, desde que o mundo o conheceu, no início do século 20, incorporou objetivos sociais. Seu propósito sempre foi o de tributar proporcionalmente mais os segmentos mais ricos, promovendo redistribuição da renda.
No Brasil, conforme demonstraram os economistas Marcos Mendes, Marcos Lisboa e coautores, há incentivo à prestação de serviços mediante a constituição de pessoas jurídicas em substituição ao regime regular de pessoas físicas, a chamada “pejotização”. Com isso se transforma rendimento do trabalho em rendimento do capital. Contribuintes de maior renda gozam do privilégio de abater, na sua declaração anual de rendimentos, as despesas com saúde e educação, o que reduz a progressividade. Os lucros são tributados na pessoa jurídica, o que impede a progressividade na distribuição de dividendos a pessoas físicas. O Ministério da Economia estaria cogitando de rever todas essas distorções.
Caso seja aprovada a proposta mais relevante, a da PEC 45, haverá elevação da produtividade e do potencial de crescimento da economia brasileira. Cálculos recentes indicam que, em 15 anos, ela aumentaria o produto interno bruto (PIB) potencial em 20%. Não é pouco.
SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA
Zeina Latif: O carnaval acabou
Passada a aprovação da Previdência, pouco se avançou na agenda econômica
O carnaval terminou antes do esperado para Paulo Guedes. Bolsonaro cobra do ministro o prometido crescimento econômico, não sem alguma razão. As promessas foram muitas e faltaram alertas sobre a fragilidade do País, o que vem desgastando o ministro.
Na campanha eleitoral, o candidato a formulador da política econômica exibia desenvoltura no “palanque”. Guedes exagerou nas promessas, rejeitando a ponderação usual de ministros da área econômica e descuidando do rigor técnico necessário para a boa prática da profissão de economista. Um exemplo foram as estimativas de receita com privatizações e venda de imóveis da União, totalizando cada uma R$ 1 trilhão. Pelo seu discurso, vender imóveis, privatizar, abrir a economia e eliminar os rombos fiscais eram tarefas fáceis; não foram feitas antes devido apenas à inépcia ou a visões equivocadas dos governos anteriores. Minimizou as dificuldades técnicas e políticas para avançar em temas espinhosos que demandam a construção de consensos e capacidade de enfrentamento de grupos organizados.
Não foi muito diferente no governo de transição, quando se esperava a “descida do palanque”. Pouco se avançou no detalhamento do programa da pasta. Vale citar que não se partia do zero, tendo em vista o importante legado do governo Temer. Alguns temas anunciados geraram ruídos, mas nada avançaram, como as medidas na área tributária e no Sistema S.
A grande notícia de 2019, a reforma da Previdência melhor que a esperada, contribuindo para os cortes da taxa de juros pelo Banco Central, foi inicialmente apresentada como propulsora de crescimento econômico robusto, algo entre 3% e 3,5% em 2019.
Subestimou-se a gravidade da crise fiscal e a fragilidade estrutural da economia. Foram criadas falsas expectativas.
Passada a aprovação da reformada Previdência na Câmara, pouco se avançou na agenda econômica, diferentemente do prometido. Foi um semestre praticamente perdido.
Bolsonaro não foi devidamente alertado sobre os desafios da gestão fiscal, mesmo no curto prazo, e a necessidade de mais medidas fiscais estruturantes. Em agosto último, diante das reclamações dos ministérios, o presidente compreendeu que o dinheiro acabou e não havia “comida para dar para o recruta”. Os alertas deveriam ter partido do ministro da Economia, e não de terceiros.
Apesar das promessas exageradas ou até impossíveis, é injusto colocar toda a responsabilidade pelo crescimento em Guedes. Não só porque seu trabalho tem méritos, como o de evitar mudanças na regra do teto de gastos, mas principalmente porque o chefe da pasta da Economia pode muito menos do que se imagina. As mais importantes medidas econômicas dependem de interlocução com o Congresso e de coordenação interna do governo, além do diálogo com o Judiciário.
Como avançar com as privatizações, por exemplo, se o presidente limita sobremaneira seu escopo, alguns ministros se posicionam contra e a relação com o Congresso está precocemente desgastada, dificultando até a privatização mais urgente, a da Eletrobras?
Temas ligados a educação, meio ambiente e arcabouço jurídico, que assustam os investidores e freiam o crescimento, não dependem do ministro. Falta agenda de governo e liderança do presidente.
Além disso, os ruídos causados por Bolsonaro e seu entorno cobram um preço elevado: limitam a melhora da confiança de empresários e investidores, prejudicam o avanço das reformas para a volta do crescimento e desviam as instituições do seu papel. A cada energia gasta para discutir as trapalhadas do governo e o acinte contra instituições, menos resta à discussão séria e urgente de políticas públicas.
Bolsonaro já entendeu que há algo errado na economia. Não compreende, porém, a importância de reformas estruturais e de sua liderança no processo de aprovação. Improvável o presidente mudar seu estilo. Caberá, pois, a Guedes, sem ilusionismos e com perseverança, reconquistar a confiança na equipe econômica e manter a agenda econômica nos trilhos.
* Consultora e doutora em economia pela USP
Zeina Latif: Freio de arrumação
Com o passar do tempo, vai ficar cada vez mais difícil aprovar reformas estruturais
São conhecidos os pilares da agenda econômica, como reduzir o tamanho do Estado e torná-lo mais eficiente. Ainda não estão claras, porém, as prioridades do governo e sua capacidade de entrega. Governar vai muito além de enviar propostas ao Congresso. É necessário trabalho para aprovação. Capacidade política é tão importante quanto boas intenções.
As dificuldades do governo têm consequências.
A reforma tributária, por exemplo, que deveria ser prioritária, talvez se inviabilize. O momento ideal para seu avanço pode ter ficado para trás, após a aprovação da reforma da Previdência na Câmara. Perder o timing pode ter saído caro. Tem crescido muito a resistência a ela e as eleições municipais este ano atrapalham a discussão do tema. Os setores que perdem com a reforma se mobilizam. Alegam a distribuição desigual do ajuste, mas omitem o fato de, no sistema atual, serem os que menos pagam impostos, sendo necessário reequilibrar o peso tributário.
Pelo cálculo político e de curto prazo de Bolsonaro, ele provavelmente não vai apoiar essa iniciativa, pois quase nada teria a ganhar com a aprovação tardia da reforma, e o custo político seria seu.
A política econômica, no entanto, não se resume a aprovar reforma. Evitar retrocessos e consolidar a disciplina fiscal será importante feito. No contexto atual, não se deve subestimar esse desafio. O menor foco do governo na agenda econômica e o descuido na política têm aberto espaço para iniciativas que preocupam.
Cito alguns exemplos.
Primeiro, o aumento de recursos na proposta de emenda constitucional que prorroga o Fundeb, o fundo para educação básica. Pela proposta, os gastos subirão quase R$ 80 bilhões em seis anos. O problema não é apenas o elevado custo fiscal. A medida é inadequada em um país que envelhece e menos crianças ingressam nas escolas. E há impacto nos cofres estaduais, posto que o aumento do custo por aluno se eleva e implica, pela regra atual, o aumento do piso salarial dos professores. Vai aumentar o custo da folha dos Estados, sendo que muitos já estão violando ou estão prestes a violar a regra de não comprometer mais de 60% da receita corrente liquida com o pagamento da folha.
Segundo, a capitalização de empresas estatais, que, assim como o Fundeb, não está limitada pela regra do teto de gastos. Os valores foram elevados em 2019, abrindo perigoso precedente. A capitalização de R$ 7,6 bilhões da Emgepron, empresa estatal de projetos navais, é polêmica, não sem razão. Caberia o questionamento desse acordo firmado no governo Temer. Adicionalmente, segundo a imprensa, o Ministério da Defesa negocia com o governo ampliar o escopo da empresa, para que ela seja também responsável por projetos estratégicos das Forças Armadas, e não só da Marinha. Seria mais adequado discutir a liquidação da empresa.
Terceiro, associações de juízes e procuradores pedem no STF a suspensão do aumento da alíquota de contribuição previdenciária previsto na reforma da Previdência.
Recentemente, o governo conseguiu demover o líder do governo no Senado da ideia de elevar gastos utilizando recursos a serem liberados por fundos públicos, que pela proposta original do governo seriam direcionados para reduzir a dívida pública.
E por aí vai. Sempre uma novidade. Um perigo em cada esquina.
Um risco a ser acompanhado é o de não cumprimento da regra do teto pelo Judiciário e Legislativo, pois a partir deste ano, o Executivo deixará de compensar o estouro do limite dos demais órgãos, o que ocorreu em 2019. Grande esforço de ajuste será, portanto, necessário.
Com o passar do tempo, vai ficar cada vez mais difícil aprovar reformas estruturais, especialmente com as dificuldades do governo. Reforçar, porém, a disciplina fiscal e garantir o cumprimento da regra do teto será grande conquista. Além de promover a estabilidade da economia, esse é um instrumento importante para reavaliar políticas públicas que geram injustiças sociais, má alocação de recursos e baixo crescimento.
* Consultora e doutora em economia pela USP
Ribamar Oliveira: A irrelevância da meta fiscal para 2020
Trajetória depende da aprovação das reformas
Até o próximo dia 15 de abril, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá que encaminhar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para o próximo ano, com a meta fiscal a ser perseguida pelo governo. Com as atuais incertezas, Guedes não tem como fixar uma meta de resultado primário para 2020 que seja minimamente crível ou que possa indicar o tamanho real do esforço fiscal a ser realizado pelo setor público.
As variáveis que ajudariam Guedes a determinar uma trajetória fiscal mais consistente para 2020 ainda dependem da aprovação pelo Congresso de medidas que ele mesmo já propôs, como a reforma da Previdência Social. Outras, como a revisão e redução dos subsídios e desonerações tributárias, também serão submetidas neste ano ao Congresso, de acordo com o ministro.
Todas as medidas, se aprovadas, tenderão a reduzir as despesas e a elevar as receitas da União, ou seja, terão impacto sobre o resultado primário. Mas o PLDO, a ser enviado pelo ministro da Economia em abril, não poderá levar em consideração o efeito fiscal das propostas, simplesmente porque elas ainda não foram aprovadas.
Qual será, por exemplo, a redução de despesas a ser obtida com a reforma dos sistemas previdenciário e assistencial em 2020, se ela for aprovada nos termos da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2019, do Executivo? Guedes ainda não revelou a informação.
Quando apresentou a proposta de reforma, o governo estimou que ela permitiria uma economia de R$ 161 bilhões em quatro anos e de R$ 1,072 trilhão em dez anos, sem considerar os ganhos com o projeto de reforma das regras para os militares. Mas não foram divulgadas projeções sobre a economia a ser obtida em cada ano.
Apenas a mudança no abono salarial, que limita o pagamento do benefício aos trabalhadores que ganham até um salário mínimo, daria uma economia de R$ 15 bilhões aos cofres públicos por ano, de acordo com cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI), entidade do Senado. Hoje, têm direito ao benefício os trabalhadores que ganham até dois salários mínimos.
Qual será a diminuição das despesas com as mudanças nas regras do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e do Regime Próprio de Previdência dos Servidores (RPPS) da União em 2020? O governo deve apresentar esta estimativa durante os trabalhos da Comissão Especial que analisará a PEC.
A redução de despesas resultante da reforma abrirá espaço para o cumprimento do teto de gastos da União nos próximos anos, embora este não seja, no curto prazo, exatamente um problema. Nos seus dois primeiros anos de vigência, o teto foi cumprido com muita folga, como mostram os dados do Tesouro (veja tabela acima).
É interessante observar que as propostas orçamentárias de 2017 e 2018 foram enviadas pelo governo ao Congresso com as despesas no teto, ou seja, sem margem. Mesmo assim, a execução ficou bem abaixo do limite de despesas, indicando que está ocorrendo um fenômeno nas contas da União ainda não devidamente explicado.
Haverá ganhos também de receita, caso a PEC 6/2019 seja aprovada, pois ela prevê mudanças nas alíquotas de contribuição previdenciária dos servidores públicos, que passariam a ser progressivas, nos moldes do Imposto de Renda da Pessoa Física, com alíquota máxima sendo de 22%.
A proposta do governo para a redução dos subsídios também terá repercussão no próximo ano, caso seja aprovada. Guedes já disse que quer acabar com desonerações e cobrar tributos de quem não paga. Nada disso poderá ser quantificado no PLDO.
O ministro da Economia anunciou ainda um ambicioso plano de privatização de empresas estatais federais e venda de ativos da União, com o objetivo de reduzir o endividamento público. Em quase todos os seus pronunciamentos, Guedes critica o atual montante da dívida pública, lembrando que o setor público brasileiro paga um Plano Marshall por ano em juros, indicando sua intenção de reduzir fortemente essa despesa.
Até agora, no entanto, nenhuma estatal foi vendida nem foi divulgado um cronograma de privatização das 134 empresas pertencentes à União. Há também o interesse do governo em vender imóveis e participações da União em empresas privadas.
Saber o tamanho da redução do endividamento público que o governo pretende realizar é importante para estimar uma meta de resultado nominal para 2020. Este é o critério fiscal com o qual o ministro da Economia parece preferir trabalhar, em substituição ao resultado primário.
A diminuição da dívida é igualmente importante para o cumprimento da chamada "regra de ouro", que continuará sendo um problema para o governo em 2020. A Constituição estabelece que as operações de créditos não podem exceder o montante das despesas de capital (investimentos, inversões e amortizações da dívida).
Todas essas indefinições tornam a meta de resultado primário do próximo ano irrelevante, principalmente diante da existência do teto de gastos. O governo Bolsonaro não pode, no entanto, repetir o que fez o governo Michel Temer, que estabeleceu uma meta de déficit primário de R$ 139 bilhões para o setor público neste ano, quando o déficit de 2018 foi de R$ 108,2 bilhões. Ou seja, a meta de déficit para 2019 é superior ao déficit registrado no ano passado. Qual é o sentido disso?
César Felício: A reforma será permanente
Se o cenário se complicar, convém estudar Portugal
Qualquer reforma da Previdência que permita uma economia acima de R$ 500 bilhões em dez anos já será bem vinda para muitos agentes do mercado. Os desenredos de Jair Bolsonaro em sua confusa coordenação política impactam pouco as expectativas porque o nível de exigência foi significativamente rebaixado. A experiência vivida no governo Temer trouxe ensinamentos.
O consenso que se pode obter no Congresso para a aprovação da reforma é limitado, incompatível com a sustentabilidade do sistema a longo prazo. Daí porque é considerado estratégico se conseguir a desconstitucionalização geral que está embutida na proposta do governo, com a remissão de diversos itens para a definição por projetos de lei complementar, com quórum significativamente mais baixo, como observou anteontem Ribamar Oliveira em coluna neste jornal.
A reforma da Previdência estará permanentemente na pauta. Será tema todos os anos, para todos os governos e todos os legisladores. A desconstitucionalização pereniza a aposentadoria como tema de debate, independentemente do nível de incerteza que isso trará para todos os segurados. Do ponto de vista político, seria um extraordinário triunfo do poder Executivo, já que não é necessário demonstrar como é mais fácil se obter maioria absoluta do que o quórum constitucional. Em relação ao Congresso, o Legislativo estaria cedendo em uma prerrogativa: a de ter maior controle sobre a modulação do texto da Carta.
Face a isto, qual a importância de uma reforma do sistema previdenciário que pode ficar comprometida quando for introduzida a norma da capitalização, e os benefícios de quem está dentro da repartição perderem sustentação atuarial? Os problemas vão sendo vividos dia a dia. Como na famosa frase atribuída ao ex-vice-presidente Marco Maciel, as consequências vêm depois. O importante é que Bolsonaro concretize o primeiro passo, e ambiente para isso existe.
A estratégia bolsonarista é diferente do que previa a linha de ação da vertente do mercado representada, por exemplo, pelo grupo reunido pelo ex-presidente do Banco Central, Arminio Fraga, que propunha um sistema de repartição mais duro, com menor margem de negociação, bastante centrada em se obter um grande resultado fiscal, convivendo com uma regra de capitalização mitigada, válida para quem nasceu a partir de 2014. Coincidia no propósito de desconstitucionalização do tema, mas estabelecia-se um gradualismo para manter a sustentabilidade.
As dificuldades em relação ao tema começam a tornar divisível o momento em que os brasileiros terão que estudar a fórmula portuguesa. Em janeiro de 2011, ainda no governo do socialista José Sócrates, foi criada uma contribuição extraordinária, incidente em todos os benefícios, que cortava 10% do que excedia € 5 mil mensais, tanto do setor público quanto do setor privado. Não foi suficiente. Cinco meses depois, foi criado um redutor para os pagamentos acima de € 1,5 mil. No ano seguinte, já no governo de Passos Coelho, um conservador, a contribuição extraordinária passou a podar 25% na faixa entre € 5 mil e € 7 mil e 50% acima disso. Em janeiro de 2013 passou a incidir um cobrança para os aposentados que recebiam mais de 1.350, de pelo menos 3,5%. Em agosto, as pensões superiores a € 600 passaram a ser afetadas. De 2014 em diante o torniquete começou a ser afrouxado lentamente, por pressão do Judiciário.
2020
A eleição de 2020 já se desenha no horizonte e a grande dúvida é o tamanho do empuxo da onda de extrema-direita. A magnitude do fenômeno no ano passado estimula candidaturas como a do Delegado Francischini em Curitiba, ou a de Joice Hasselmann em São Paulo. Mesmo no Nordeste o desempenho de Bolsonaro na eleição presidencial mostra que a esquerda se arrisca a perder bastante terreno.
Ele ficou em primeiro lugar no primeiro turno em Natal, Recife, Maceió e Aracaju, por exemplo. Nas capitais da Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, o resultado se repetiu no segundo turno.
A questão é que a popularidade do presidente inevitavelmente perderá terreno até o fim do próximo ano. Os indicativos neste sentido da pesquisa CNT/MDA divulgada terça são importantes neste sentido. O levantamento apontou um índice de bom/ótimo próximo a 39%, enquanto 29% de pesquisados classificaram a administração como regular. É sugestivo anotar que em uma pesquisa feito pelo Datafolha na virada do ano a expectativa em torno da gestão era boa ou ótimo para 65% dos entrevistados, e de regular para 17%. Em linhas gerais, parece ter havido uma migração do sentimento positivo para uma posição de expectativa neutra, o primeiro estágio para a desaprovação.
Candidatos cujo único capital é a identificação com o presidente tendem a se ressentir, o que não significa que o viés conservador do eleitor se dissipe e que tenhamos em 2020 uma maré vermelha.
Existirá uma avenida para ser percorrida por aqueles que dialogam com este eleitorado assentados em outras bases que não o bolsonarismo explícito. É uma vertente que pode ajudar os atuais prefeitos que podem tentar um novo mandato, mesmo aqueles que sabidamente atravessam um mal momento, como o tucano Bruno Covas ou o prefeito do Rio, Marcelo Crivella. É cedo para descartá-los.
Um possível freio à perda de substância do bolsonarismo está nas mãos do próprio Congresso. O pacote de Sergio Moro, e todas as iniciativas tocadas pelo ministro, que foi bombardeado nas redes sociais pela extrema-direita e obrigado e recuar da nomeação da desarmamentista Ilona Szabó para a suplência de um conselho consultivo, representa o que há de agenda transversal neste governo, que traduz o sentimento da imensa massa de eleitores que se movimentou em direção à candidatura de Bolsonaro na última eleição, sobretudo no ano em que a Lava-Jato chega ao quinto aniversário.
Monice De Bolle: Educando bolsonaristas
A má comunicação do governo e a desarticulação da base podem comprometer seriamente a reforma
Na semana passada, o governo apresentou uma boa proposta para a reforma da Previdência. Mais ambiciosa do que a de Temer para resolver os problemas de médio prazo das contas públicas, mais progressista do que a de Temer ao incluir alíquotas que aumentam de acordo com os salários, mais abrangente do que a de Temer ao incorporar Estados e municípios. Evidentemente, como em qualquer reforma dessa envergadura, há pontos para discussão e aprimoramento. Há também o receio de que o governo não tenha o traquejo necessário para evitar que a reforma seja substancialmente diluída. É sobre isso que pretendo tratar.
Bolsonaristas são um grupo heterogêneo dentro e fora do governo. Dentro há militares, ideólogos-religiosos e tecnocratas – mistura esquisita. Fora há ultraconservadores de direita, alguns religiosos outros não, gente que continua a ver fantasmas petistas por toda parte ainda que o partido esteja completamente desarticulado, e pessoas que simplesmente esperam do novo governo o necessário e urgente rumo para o País. Difícil achar muitos pontos em comum entre esses grupos, assim como é complicado encontrá-los dentro do governo. Dessas dificuldades e complicações surge, inevitavelmente, a necessidade de educar alguns – não todos – bolsonaristas.
Comecemos pelos ministros. O do Turismo tentou intimidar a Folha de S. Paulo após revelações comprometedoras, mas a liminar do cala a boca foi derrubada pela Justiça. Eis um bolsonarista cuja educação veio diretamente de um dos três Poderes da República. O ministro da Educação tentou emplacar o mote de campanha de Bolsonaro na cartilha das escolas, a ser repetido pelos alunos como autômatos todos os dias. Também tentou forçar a barra para que crianças e professores fossem filmados no ato de cantar o Hino Nacional. Nada contra o Hino Nacional – apesar do positivismo retumbante de sua letra, considero nosso hino belíssimo.
O problema é filmar crianças e adultos para que o Ministério da Educação pudesse agir como um big brother orwelliano. Não emplacou. A sociedade se manifestou de várias formas, inclusive por meio das redes sociais, o atual quinto poder da República Bolsonarista. O MEC foi obrigado a recuar da ordem que descumpriria vários artigos da Constituição, conforme alertaram especialistas. O ministro ideólogo de Bolsonaro foi educado de forma rápida e contundente. O ministro do Meio Ambiente bem que tentou esvaziar as notícias sobre seus fictícios diplomas acadêmicos. O quinto poder não permitiu, dando-lhe educação exemplar. O ministro das Relações Exteriores, assanhado com a possibilidade de se aproximar dos EUA dando declarações estapafúrdias sobre a Venezuela e a Coreia do Norte foi velozmente desautorizado pelos generais – esse anda recebendo educação dia sim, outro também. Aguardamos o aprendizado de Ernesto.
Tudo isso e mais alguma coisa – porque sempre tem mais alguma coisa – aconteceu em momento crítico, quando as atenções deveriam estar voltadas para a reforma da Previdência. Não à toa, Rodrigo Maia soltou advertência: a má comunicação do governo e a desarticulação da base podem comprometer seriamente a reforma. Sobretudo se o País continuar a perder tempo com os devaneios de alguns de seus Bolsonaristas.
Nas redes sociais repete-se algo já visto na era petista. Em vez de as pessoas estarem concentradas em algum debate – bobo, raso, ou sério – sobre a reforma da Previdência, há profusão de xingamentos, intimidações, e até ameaças. Fui alvo disso recentemente. A educação dispensada não foi difícil. Afinal, em tempos de internet, certos bolsonaristas ou direitistas extremados assanhados podem até acreditar que são anônimos. Mas a internet é uma maravilha. Por lá, nada se perde e tudo se descobre, inclusive identidades de quem se acha protegido atrás de avatares e monitores de computador. O quinto poder da República, mais do que os outros, vale igualmente para todos.
Portanto, deixo o recado. Podemos perder todo o tempo do mundo educando os bolsonaristas que se acham os donos do Brasil – não são todos. Ou, podemos aprovar uma boa reforma da Previdência. Alea Jacta Est.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Ricardo Noblat: Por que não te calas, Bolsonaro?
Tropa desautoriza o capitão
Na última quarta-feira, em entrevista à GloboNews, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República, já se vira obrigado a desautorizar o capitão Jair Bolsonaro.
Não, ainda não está certa a transferência de Telavive para Jerusalém da embaixada o Brasil em Israel, esclareceu Heleno. Por ora, a ideia está na cabeça de Bolsonaro sem data para passar ao papel.
Ontem, foi o caos. O ministro Onyx Lorenzoni, da Casa Civil, e o secretário especial da Receita, Marcos Cintra, foram escalados para apagar os mais recentes incêndios provocados pelo presidente recém-empossado.
Não, não era verdade que Bolsonaro assinara um decreto elevando o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para aplicações no exterior como ele mesmo havia anunciado de manhã.
E não, também era falsa a informação dada por Bolsonaro que a alíquota máxima do Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas seria reduzida imediatamente de 27,5% para 25%.
Quanto à redução da alíquota, segundo Bolsonaro, o anúncio seria feito à tarde pelo ministro Paulo Guedes, da Economia, depois de se reunir com a Comissão de Valores Mobiliários. Guedes cancelou a reunião e sumiu.
O decreto que Bolsonaro disse que assinara garantia a continuidade das superintendências de desenvolvimento da Amazônia e do Nordeste, nada tinha a ver com o aumento do IOS, explicou Lorenzoni.
Sobre a redução do teto do IR, Cintra admitiu que o assunto está sendo estudado, mas que não haverá mudança imediata. Uma eventual alteração, concedeu, só será discutida “posteriormente” e “no tempo correto”.
Ensinou em seguida: “Temos uma premissa que é obter o equilíbrio fiscal. Este ano, o déficit primário será de R$ 139 bilhões. Não podemos fazer nenhuma ação que possa resultar em redução da arrecadação”.
Na véspera, Bolsonaro revelara que a reforma da Previdência a ser proposta por seu governo prevê uma idade mínima de aposentadoria de 62 anos para homens e de 57 anos para mulheres. Falso, outra vez.
Bolsonaro, justificou Lorenzoni, quis apenas “passar para as pessoas a tranquilidade de que a transição vai ser humana”. O mercado financeiro respirou aliviado. Até o próximo susto.
Vinicius Torres Freire: Novo governo se enrola com o conflito dos impostos
Assessores parecem querer reformular o imposto sem o "tá ok" do chefe
Economistas de Jair Bolsonaro dizem com frequência que impostos sobre empresas vão baixar. Logo, a arrecadação vai diminuir. Então, alguém vai ficar com esta conta: vai pagar mais imposto.
Por quê? O governo não pode tomar ainda mais empréstimos para cobrir suas despesas. Mesmo se cortar muito gasto, faltará dinheiro por anos: ainda haverá déficit e dívida crescente, um motivo principal desta meia década de crise.
Quem vai ficar com o mico?
Pode ser a classe média remediada ou ricos. Mas não sabemos. Parece que o governo também não. O próprio presidente não sabe o que seus assessores sabem e vice-versa, mesmo quando se trata de decisões que já teriam sido firmadas. Ou não.
No meio desta sexta (4), Bolsonaro disse que assinara um aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Era solução lamentável, dizia o presidente, para compensar uma perda de receita aprovada em 2018 pelo Congresso.
Horas depois, um ministro e um secretário negavam que havia decreto ou que haveria alta de imposto. Por cortesia, diga-se que foi um lapso. Ou não.
Assim que tratou do IOF, Bolsonaro contou que Paulo Guedes (Economia) anunciaria a "possibilidade" ou a "ideia inicial" de diminuir o Imposto de Renda da Pessoa Física. Rendimento superior a R$ 4.664,68 não pagaria mais a alíquota de 27,7%, mas de 25%.
Ficaria bem prometer um docinho de IR menor quando se aplicava uma injeção de IOF maior, mas nem isso fazia sentido.
Não era preciso compensar o IOF. Não é essa a discussão do IR entre economistas do governo, embora não se saiba bem quem está mal informado, se o presidente ou seus assessores que planejam reformular o imposto sem o "tá ok" do chefe.
A equipe econômica pensa em reduzir o número de alíquotas do IR das pessoas físicas (cada parcela do rendimento é tributada com cinco alíquotas cada vez mais altas, de zero a 27,5%). Haveria uma mordida maior para gente de renda mais alta. Ou não.
Além disso, discute-se o fim de certas deduções do IR, os conhecidos "abatimentos" com despesas particulares com educação e saúde. Isso resultaria na prática em aumento de imposto, embora a ideia seja socialmente justa.
A Receita prevê que, em 2019, o governo deixará de arrecadar R$ 21 bilhões por causa desses subsídios para gasto privado em saúde e educação. Isso equivale a uns dois terços do gasto com o Bolsa Família. Ou a quase metade do gasto federal com investimento em obras.
Pode ser ainda que aumente o imposto de quem recebe via empresa individual, o dito "PJ", pessoa jurídica. Seria uma mordida em profissionais liberais, na classe média alta ou nos ricos "mais pobres".
Talvez viesse dessas mordidas parte da compensação do fim de algum imposto sobre empresas ou da redução do IR de pessoas que ganham menos. Sabe-se lá.
Em suma, o governo diz que não quer nem aumentar a carga tributária nem perder receita. Mas, assim, se baixar imposto sobre alguns, terá de cobrar de outros. Transferir o peso da carga. Ou não?
A encrenca é que Bolsonaro se elegeu com a promessa maior de não aumentar impostos e, no futuro, de reduzi-los. Mas falava de carga tributária, o total arrecadado, não do imposto de cada um.
Uma reorganização dos tributos, no entanto, pode fazer com que milhões de pessoas paguem mais.
Ao que parece, o governo não sabe como dar essa notícia ao eleitorado e, pelo jeito, ao próprio presidente.
Vinicius Torres Freire: Neblina na aposentadoria e nos juros
Indefinição sobre reforma de Bolsonaro é política e começa a inquietar donos do dinheiro
A mudança nas aposentadorias e nas pensões ainda não tem projeto definido porque Jair Bolsonaro ainda não se ocupou do assunto. Mesmo antes de chegar ao Congresso, a reforma da Previdência do próximo governo enfrenta problemas políticos.
A ala parlamentar bolsonarista diz o que quer sobre a Previdência porque simplesmente não recebeu diretrizes ou ordens do presidente eleito, que, por sua vez, diz nebulosidades preocupantes sobre a reforma porque dá ouvidos a seus articuladores políticos e "bases".
É o que se pode ouvir entre economistas do governo de transição de Bolsonaro. Políticos bolsonaristas e "bases", inclusive nas redes insociáveis, são refratários à mudança e não têm entendimento da crise que pode sobrevir caso a reforma vá para o vinagre ou seja muito aguada.
A inquietação entre negociantes de dinheiro e porta-vozes do mercado se espalha.
Por um lado, ouvem o presidente eleito e seus articuladores políticos dizerem em público que a reforma não pode ser dura, "matar idoso", que pode ser feita em até quatro anos, que não se pode bulir com servidores, que o Congresso vai desidratar qualquer plano de mudança etc.
Por outro lado, gente da futura equipe econômica trata do assunto em conversas informais com conhecidos na praça. Dentro do governo de transição, sentem a mesma indisposição reformista do entorno político imediato do presidente eleito.
Acreditam, porém, que tais conversas não indicariam uma inclinação firme de Bolsonaro. Dizem apenas que Paulo Guedes, futuro überministro da Economia, ainda não levou projeto claro para uma conversa decisiva com o futuro governo.
Os economistas dizem que têm uma reforma em mente, talvez com umas três variantes possíveis de estratégia de implementação, mas nenhum pacote de alternativas teria sido ainda apresentado ao presidente eleito.
De menos incerto é que se pretende apresentar um projeto básico bem assemelhado ao que Michel Temer enviou ao Congresso, com algumas emendas para torná-lo algo "diferente" e para que a economia prevista volte ao nível previsto na versão original da reforma.
Talvez alguma parte do projeto seja apresentada à parte, em particular alguma mudança que não dependa de mexida na Constituição.
O plano de capitalização (de Previdência baseada em contas individuais de poupança) viria de qualquer modo depois de aprovado o "bloco 1" da reforma, a mudança do sistema atual de aposentadorias e pensões, uma urgência fiscal.
Ainda não há sinais inequívocos de descrença no mercado, sinais nos preços, em taxas de juros, por exemplo.
Há taxas de prazo mais longo dando uma esticadinha, mas pode bem ser por qualquer motivo, como a escaladinha do dólar e outras tensões na finança internacional, que voltou a ficar estressada.
O clima doméstico é menos otimista, dada a desconversa sobre reformas, e o mundo lá fora não está ajudando nada, ao contrário.
Nas conversas com economistas da finança, nota-se um certo desânimo sobre as liberdades que Guedes terá para tocar um programa de reforma rápido e duro na Previdência.
No entanto, o povo que de fato mexe os bilhões para lá e para cá acha que, afora surpresas ou vazamentos essenciais, o próximo movimento decisivo ocorre em janeiro.
O fato é que se conhece quase nada dos planos de Guedes para a economia, muito pouco além do que se sabia durante a campanha. Dos planos de Bolsonaro, menos ainda.
Míriam Leitão: Cenários e receita para o país crescer
Estudo do Ipea mostra que o Brasil tem potencial para crescer o PIB per capita em 50% em 12 anos. Mas será preciso aprovar muitas reformas
O país cresceu no terceiro trimestre e retomou o ponto em que estava em 2012. Esse é o tamanho do atraso provocado pelos erros de política econômica no governo Dilma. Ainda há um caminho a fazer para chegar ao ponto em que a economia estava quando despencou. Os serviços puxaram, o investimento cresceu, mas nada foi suficiente para imprimir um ritmo maior. Desde que parou de encolher, o PIB se expande em ritmo moroso.
Os números do terceiro trimestre vieram mais fracos do que o esperado pelo mercado. O crescimento acelerou na comparação com o segundo trimestre, de 0,2% para 0,8%, mas o que houve foi uma recuperação dos efeitos da greve do setor de transportes, que paralisou o país no mês de maio. Quando a comparação é feita com o mesmo trimestre de 2017, a alta foi de apenas 1,3%. No acumulado em 12 meses, subiu 1,4%. No começo do ano o país achou que cresceria 3%. Não vai dar.
O Ipea divulgou esta semana, no meu programa na Globonews, os cenários preparados para o país nos próximos 12 anos, até 2030. Bom para quem quer ver o Brasil avançar. “Cenários de longo prazo podem ser uma ferramenta importante para avaliação de custos, benefícios e riscos de alternativas”, alertam os economistas do Ipea.
No cenário “de referência”, o país cresceria em torno de 2,2% ao ano, o que daria 30% ao longo do período. Mesmo para esse ritmo moderado, será preciso fazer a reforma da Previdência. Sem ela, alerta José Ronaldo de Souza, diretor de Macroeconomia do Instituto, as receitas serão engolidas pelos gastos com pensões e aposentadorias. No cenário “década perdida”, o país entra em desequilíbrio fiscal, e o final será o default da dívida interna, ou seja, o Tesouro não conseguirá honrar sua dívida, que é a espinha dorsal da poupança do país. Neste filme de terror, que o país viu no Plano Collor, todo mundo perde.
O cenário “transformador” é o mais interessante. Aumentar o crescimento é o desejável. O país cresceria 3,9% já em 2020 e, dois anos depois, 4,8%. Ao longo de 12 anos a taxa acumulada chegaria a 60%. Para isso será preciso fazer as reformas que reequilibrem as contas, mas também uma série de mudanças que aumentem a produtividade da economia. Será preciso ter um sistema tributário mais eficiente e leve, abrir a economia, investir em qualificação de pessoal, ter uma regulação mais lógica, um custo menor de capital, ambiente de negócios mais favorável. São reformas macro e micro para mudar a economia.
— É uma projeção e não uma previsão. O interessante é que temos o potencial, é possível. O país pode aumentar em 50% o PIB per capita — diz José Ronaldo.
— O Brasil só tem três caminhos: reformas, reformas e reformas. Não há um quarto caminho. Temos que resolver gargalos porque sem isso a gente não consegue crescer, gerar emprego, gerar renda para a população que demanda uma retomada depois de anos de recessão — diz a economista Ana Carla Abrão, da Oliver Wyman.
Ele diz que é preciso acrescentar na lista das tarefas a mudança do Estado, que é 40% do PIB, uma máquina inchada, que gasta muito e não presta bons serviços. Ela sugere mudar carreiras e melhorar a qualidade dos serviços públicos. Para essa e outras mudanças, será preciso desagradar os grupos de interesse:
— O Brasil é hoje um país dominado pelas corporações — disse Ana Carla.
Se não optar por reformas vigorosas, o país de qualquer maneira terá que mudar a Previdência, do contrário o teto de gastos não se sustenta. O pior cenário, de não reformar nada, é flertar com o abismo do calote. Os dois economistas se disseram até otimistas, dado que a situação chegou a tal ponto que ou o país terá o pior dos mundos ou enfrentará a lista das grandes tarefas. Uma delas é abrir a economia.
— Essa é uma agenda que ficou abandonada nas últimas décadas e se formos falar de eficiência temos que ter abertura. O país continua muito fechado. Quando se soma exportação e importação o Brasil está abaixo dos países pares — diz Ana Carla Abrão.
— A economia brasileira ainda é voltada até hoje para substituição de importação, escolha feita há várias décadas. Os países só avançam com mais competitividade — afirma José Ronaldo.
A atual equipe econômica tirou o país da recessão, mas o PIB não engrena. A futura equipe diz que fará reformas e a abertura da economia. A receita está certa. Aplicá-la é mais difícil do que pensam alguns dos que assumirão o comando em janeiro.
Luiz Carlos Azedo: Adeus, mudanças!
Bem que Temer tentou convencer os líderes da base aliada, mas não teve sucesso. “Alguns líderes disseram realmente que está difícil, que não temos votos para aprovar a reforma hoje”, disse
O presidente Michel Temer admitiu ontem que o seu governo não tem força para aprovar a reforma da Previdência: “Vou insistir, vou me empenhar, mas concordo que, sozinho, o governo não tem condições de aprovar a reforma da Previdência”, disse. Resultado: o principal índice da bolsa paulista caiu mais de 2% e fechou abaixo dos 73 mil pontos pela primeira vez em dois meses. Foi a reação do mercado, ressabiado por causa do potencial de impacto da não aprovação da reforma nos índices de risco do Brasil.
Bem que Temer tentou convencer os líderes da base aliada, mas não teve sucesso. “Alguns líderes disseram realmente que está difícil, que não temos votos para aprovar a reforma hoje”, disse. Segundo ele, a questão da Previdência não é algo de interesse do governo, mas do país, admitiu. O presidente da República, ao manter o discurso a favor da mudança das regras da Previdência, compartilha o desgaste político de não aprová-las com os aliados, principalmente os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE). Ambos avaliam que o governo não tem votos para aprovar a reforma, a não ser que seja muito mitigada, com objetivo apenas de dizer que o governo fez o que prometeu.
Temer mal metabolizou o desgaste das votações das duas denúncias do ex-procurador-geral Rodrigo Janot contra ele, que foram rejeitadas pela Câmara, e já se vê às voltas com o desembarque iminente do PSDB, anunciado para dezembro pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, num artigo de jornal. Temer foi pego de surpresa pelo aliado “mui amigo”, que aprofundou o racha no PSDB a favor dos que desejam romper com o governo. FHC também tirou o tapete do presidente licenciado da legenda, senador Aécio Neves (MG), aliado de Temer, que recentemente conseguiu não só recuperar o exercício do mandato, do qual havia sido afastado por uma decisão da segunda turma do Supremo Tribunal Federal, como se blindou contra um possível processo de cassação no Senado. Para isso, foi fundamental a solidariedade da bancada do PMDB e de Temer.
A eleição do senador Tasso Jereissati (CE) para a presidência do PSDB será um golpe de morte na aliança do partido com Temer, apesar da indignação dos tucanos que ocupam posições no ministério. É o caso, por exemplo, do ministro de Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira (SP), que não esconde a irritação com a cúpula do partido. A posição de FHC foi corroborada por declarações do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, para quem o PSDB não precisa estar no governo para aprovar as reformas.
É uma boa senha para Temer antecipar a reforma ministerial, que ocorreria naturalmente em abril, reorganizando a base. As votações na Câmara mostraram que o presidente da República conta com 240 deputados para o que der e vier. É com eles que pretende recompor sua equipe, jogando ao mar os representantes dos partidos infiéis, processo que já começou. Experiente no jogo parlamentar, pois presidiu a Câmara por três mandatos, Temer sabe que é mais fácil negociar a aprovação das suas propostas com os antigos partidos de oposição, que estão demarcando distância regulamentar de seu governo, do que com uma base mais fisiológica insatisfeita.
Outro problema de Temer é a deriva eleitoral dos caciques da legenda, que já começam a aderir à candidatura de Lula. Sem um nome competitivo que possa chamar de seu, Temer corre o risco de ter um fim de governo semelhante ao do ex-presidente José Sarney. Tanto que muitos já comparam as eleições do próximo ano com a de 1989, mas há pelo menos duas diferenças importantes no plano institucional: primeira, a sucessão de Sarney ocorreu numa eleição solteira, o que não é o caso agora; segunda, Sarney não podia ser candidato à reeleição, o que não é o caso de Temer.
Mãos pesadas
A 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) ontem aumentou em 14 anos a pena de João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT. Foram condenados mais cinco réus na Lava-Jato, entre eles o casal Mônica Moura e João Santana— ex-marqueteiro da legenda. Vaccari, que cumpre prisão preventiva em Curitiba, havia sido condenado em fevereiro a 10 anos de prisão por corrupção passiva, em decisão de primeira instância. A pena agora aumentou para 24 anos.
O desembargador Leandro Paulsen, que absolveu Vaccari nas duas apelações criminais julgadas anteriormente, destacou que “neste processo, pela primeira vez, há declarações de delatores, depoimentos de testemunhas, depoimentos de corréus que à época não haviam celebrado qualquer acordo com o Ministério Público Federal e, especialmente, provas de corroboração apontando, acima de qualquer dúvida razoável, no sentido de que Vaccari é autor de crimes de corrupção especificamente descritos na inicial acusatória”.
Samuel Pessôa: Defasagens na política econômica
Laura Carvalho, na quinta-feira (5), sugeriu que não há evidências de que a aceleração do crescimento nos anos 2000 deveu-se à maturação das reformas liberalizantes iniciadas nos anos 90, que terminaram depois da saída do governo de Antonio Palocci, ministro da Fazenda do primeiro mandato de Lula.
Três são as dificuldades apontadas por Laura. A primeira é que levou muito tempo para que o longo ciclo de liberalização aparecesse no crescimento econômico.
A segunda é que o crescimento se acelerou ainda mais em seguida à mudança na formulação da política econômica, com a troca de guarda na Fazenda no início de 2006. E a terceira é que os efeitos negativos da alteração do regime de política econômica em 2006 sobre o desempenho da economia tiveram defasagem muito menor que as políticas liberalizantes.
Os seus questionamentos são válidos. Há limites à nossa capacidade de conhecer, principalmente em ciência social. Além disso, é difícil separar movimentos causados pelos nossos fundamentos domésticos daqueles decorrentes da dinâmica internacional.
A passagem do tempo, porém, reduz a incerteza. Parece-me ser quase consensual, por exemplo, a tese de que o milagre brasileiro é tributário das reformas liberalizantes do governo Castelo Branco.
Laura deveria acompanhar a pesquisa acadêmica sobre o impacto de várias reformas. João Manoel Pinho de Melo, Vinícius Carrasco, Juliano Assunção, Jacob Ponticelli e seus coautores publicaram diversos artigos nas mais respeitadas revistas acadêmicas internacionais mostrando o impacto das reformas no primeiro governo Lula sobre a produtividade de diversos setores.
Além disso, ao contrário do que afirma Laura, não há evidência de que o segundo mandato de Lula tenha implementado uma política de reajuste do salário mínimo mais ousada do que a de FHC ou a do primeiro governo do presidente petista.
Por fim, os trabalhos de João Manoel e Vinícius Carrasco mostram que o desempenho do Brasil no governo Lula foi inferior em diversos aspectos ao observado em países semelhantes no mesmo período. O crescimento no governo FHC, por outro lado, foi similar ao dos países da América Latina nos anos 1990.
Talvez melhor do que tentar convencer Laura seja compartilhar com o leitor a forma pela qual trato os questionamentos por ela levantados, que, como já mencionei, fazem todo o sentido.
A evolução da economia é mais bem analisada com base nas taxas médias reais anualizadas de crescimento em quadriênios. O pico de 4,7% ocorreu no quadriênio terminado em 2007. Posteriormente, inicia-se lenta desaceleração até 2,3% ao ano no quadriênio terminado em 2014. Ou seja, a desaceleração iniciou-se pouco mais de dois anos após a troca de guarda na Fazenda.
Reformas microeconômicas usualmente não geram impactos sobre o desempenho enquanto persistir desequilíbrio macroeconômico. Foi assim com as políticas liberalizantes do governo ditatorial de Pinochet no Chile e com Menem na Argentina. Em ambos os casos, o regime cambial —e, na Argentina, também o problema fiscal— impediu a decolagem da economia.
Com relação à assimetria —leva mais tempo para aparecerem os efeitos de boas políticas— é uma lei da vida. Vale para a díade construção e demolição, seja para uma obra de construção civil, seja para reputação, seja, ainda, para a política econômica e os seus impactos sobre o crescimento e a geração de emprego. Construir é mais difícil do que destruir.
* Samuel Pêssoa é economista