reformas
Nas entrelinhas: Adeus reformas. Agenda possível é mais modesta
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense*
O mais ambicioso programa de reformas de estrutura da história do Brasil foi o do presidente João Goulart (1961-1964), que havia assumido governo no lugar de Jânio Quadros, em meio a uma tentativa de golpe e graças a uma solução de compromisso: a adoção do parlamentarismo. Em razão das nossas desigualdades, no seu governo havia um cenário de radicalização político-ideológica e intensificação dos conflitos sociais.
Jango, como era chamado, sofria fortes pressões do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), principalmente de seu cunhado, Leonel Brizola, e de outras lideranças de esquerda, como o líder comunista Luís Carlos Prestes e Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, para realizar reformas estruturais na sociedade, entre as quais a agrária. Com a volta do presidencialismo, decidida por um plebiscito em 1963, Jango se sentiu fortalecido para levar adiante o projeto nacional-desenvolvimentista da esquerda brasileira.
As chamadas Reformas de Base abarcavam um conjunto amplo de problemas: a questão agrária, o sistema financeiro, a crise fiscal, a urbanização acelerada, o atraso burocrático e o acesso às universidades. O principal objetivo delas era combater a concentração de propriedade e de renda, além de ampliar a participação política da sociedade. Para isso, era preciso mudar a Constituição de 1946, o que exigia maioria ampla no Congresso. Pela legislação, o governo indenizaria os proprietários de terra, em caso de desapropriação, com dinheiro em espécie, mas Jango queria fazê-lo com títulos públicos e a longo prazo.
Jango também pretendia criar condições para os inquilinos comprar as residências que alugavam com títulos públicos. Também pretendia limitar a remessa de lucros ao exterior, estatizar alguns setores econômicos e expandir a Petrobras. Além disso, estava aceitando a pressão de militares de baixa patente para aumentar a sua representação política concorrendo a cargos eletivos, como os de vereadores e deputados.
Nada disso significava uma mudança de regime político, uma opção pelo socialismo. Mas assim passou a ser visto pela maioria da sociedade, após intensa campanha da oposição, liderada pelo governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda, o principal líder da UDN à época, que era candidato a presidente da República. No início de 1964, Jango perdeu o apoio do PSD (Partido Social Democrático), de Juscelino Kubitschek, que sonhava com a volta à Presidência nas eleições previstas para 1965. Brizola pretendia ser candidato, mesmo estando inelegível por ser cunhado do presidente da República, e Prestes articulava a reeleição de Jango nos bastidores.
O Congresso, de maioria conservadora, rejeitou as reformas de base. Jango resolveu mobilizar os trabalhadores urbanos e rurais para respaldar a adoção das reformas por decreto presidencial. No dia 13 de março de 1964, o chamado comício da Central do Brasil, reuniu cerca de 150 mil pessoas. Nele, Jango anunciou que decretaria as Reformas de Base, à revelia do Congresso.
Moral da história
A reação conservadora foi imediata: convocada por forças políticas e religiosas de direita, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, na cidade de São Paulo, em 19 de março de 1964, reuniu quase 500 mil pessoas. Outras manifestações se realizaram no interior paulista e em outros estados. Em 31 de março de 1964, um golpe militar foi deflagrado, depôs Jango e deu início a 20 anos de ditadura.
No dia 2 de abril, no Rio de Janeiro, realizou-se a Marcha da Vitória. Não foram apenas o ambiente de guerra fria e a quebra de hierarquia nas Forças Armadas que viabilizaram golpe. As marchas conservadoras demonstraram que o golpe também era vitorioso na sociedade.
Qual é a moral da história? Darcy Ribeiro dizia que foi melhor ser derrotado do lado certo, pois as reformas eram necessárias. E eram mesmo, tanto que a maioria foi feita pelos militares, durante a ditadura, como o Estatuto da Terra, a estatização de empresas de infraestrutura e expansão da Petrobras, a reforma bancária e fiscal, a expansão das universidades. Alguns chamam esse processo de modernização pelo alto de “revolução passiva”, outros de “autoritarismo funcional”. Os militares que apoiaram o governo Bolsonaro sonhavam — e ainda sonham — com a ressignificação do regime militar.
O governo Jango pôs o carro à frente dos bois, ao tentar fazer as reformas de base na marra, sem aprovação do Congresso. Além disso, a esquerda considerava um retrocesso a volta de JK ao poder, o favorito nas eleições marcadas para 1965. Para se manter no poder, defendia a candidatura de Brizola, inelegível por ser cunhado do presidente da República, ou até mesmo a reeleição de Jango.
1964 serve de exemplo para o governo Lula, que precisa adotar um programa democrático, porém, mais modesto do ponto de vista das reformas. É mais exequível focar o programa de governo na gestão ambiental e nos direitos básicos e universais da população (saúde, educação, trabalho, moradia, transporte e segurança pública). É o caminho para construir uma ampla maioria no Congresso e, ao mesmo tempo, corresponder à expectativa de seus eleitores, que hoje se resume a trabalho e renda, além do respeito aos direitos humanos e o combate ao racismo estrutural.
Cristiano Romero: A mais difícil e a mais urgente das reformas
Todos querem mudança tributária há trinta anos
Cristiano Romero / valor Econômico
Os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não sepultaram a possibilidade de aprovação da reforma tributária nesta legislatura, mas inovaram ao indicar que o tema, por bem ou por mal, será apreciado até dezembro. Como ocorreu nos últimos 30 anos, a reforma institucional mais demandada pelos agentes econômicos _ inclusive, os contribuintes pessoas físicas _ pode não sair do papel. E a razão é uma só: é impossível conciliar todos os interesses envolvidos nesse tema.
Razões para justificar mudanças no regime tributário brasileiro não faltam. O sistema taxa mais o consumo do que a renda, na contramão das economias avançadas. No 8º país que mais concentra renda no planeta, onde existem mais de 50 milhões de pessoas miseráveis (dependentes de programas de transferência de renda para sobreviver) e a maioria da população é pobre, essa regra ajuda a perpetuar uma de nossas maiores chagas.
Trata-se de uma “brasileirice” sem tamanho, típica de uma sociedade dilacerada pela cultura escravagista por mais de 500 anos: neste imenso pedaço de terra abençoado, mas esquecido por Deus, os pobres pagam mais imposto que os ricos. E isso ocorre porque, por razões óbvias, essa parcela da população consome mais, isto é, despende fatia maior de sua renda com bens de consumo e, quando a maré permite, serviços.
Incidem sobre o consumo três tributos _ o ICMS (estadual) e dois federais (PIS e Cofins) _, todos sobre a mesma base de cálculo, o faturamento das empresas que vendem os produtos. As alíquotas do ICMS são as mais elevadas. No caso de serviços como telefonia e energia, superam o patamar de 40%! Não nos esqueçamos do IPI, imposto que incide sobre a produção de bens industriais.
As “brasileirices” (sinônimo de jabuticaba) que condenam este país a não ser nação não param por aí. Neste território riquíssimo em recursos naturais onde vive um dos maiores contingentes de cidadãos pobres do mundo, indivíduos de classe média e os ricos podem deduzir, da base de cálculo do Imposto de Renda, tudo _ isso mesmo, tudo _ o que gastam em hospitais particulares e planos de saúde, inclusive, no exterior.
PRESIDENTES DA CÂMARA E DO SENADO
O raciocínio por trás dessa maldade é o seguinte: como a Constituição de 1988 assegura, a todos os viventes nesta extensão de terra no hemisfério sul da Terra, acesso universal a serviços públicos de saúde, é razoável que os transeuntes tenham o direito de requerer dedução das despesas que tiverem com serviços particulares de saúde. O cinismo _ uma “brasileirice” da qual ninguém fala, do mesmo quilate das férias de dois meses de juízes e procuradores _ chega ao paroxismo quando os defensores da vilania alegam que “a dedução é um direito, uma vez que o sistema de saúde estatal ainda não consegue atender a toda a demanda.
Se alguém tem alguma dúvida de por que o país a que chamamos de Brasil não dá certo, não precisa ir muito longe. Como os pobres não têm dinheiro para serem atendidos em hospitais particulares, eles não têm direito a deduzir nada da base de cálculo do Imposto de Renda. Os cínicos, neste momento da tertúlia, rompem qualquer fronteira do bom senso civilizacional: “Ora, pobres não pagam Imposto de Renda, logo, eles não precisam deduzir os gastos com saúde”.
Era só o que faltava: o sonho dos pobres no Brasil, agora, é pagar Imposto de Renda! Na verdade, eles já pagam, pois, já é obrigado a isso quem percebe pouco mais de R$ 2 mil por mês. Em termos menos edulcorados, o que esse sistema injusto e concentrador de renda faz é tirar bilhões de reais que deveriam financiar a saúde pública, que segundo a Carta Magna é para todos, inclusive, estrangeiros que estejam de passagem pelo país, e transferi-los para hospitais particulares e grandes empresas de planos de saúde.
Mesmo tendo consciência de que o Sistema Único de Saúde (SUS) pode ter uma gestão melhor, deveríamos considerar nas duras críticas que fazemos ao serviço público o fato de que o próprio Estado abre mão de bilhões de reais para beneficiar meia dúzia de grupos de interesse específico.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os americanos perceberam-se mais importantes do que achavam antes do conflito. Essa constatação mudou tudo. Logo, viram que, para sua economia crescer na velocidade desejada, eles precisavam de uma matéria-prima _ petróleo (energia) _ que eles possuíam, mas não na quantidade necessária.
Ora, o jeito foi sair pelo mundo em busca de fornecedores “confiáveis”_ um dos principais, a Venezuela, que, até o início deste século, fornecia 20% do petróleo consumido pelos Estados Unidos. A fome americana por óleo era tanta que moldou a geopolítica mundial a partir dali. Internamente, a decisão foi desonerar o preço do combustível consumido por empresas e famílias americanas, afinal, o país precisava crescer. Taxar excessivamente a gasolina para financiar o Estado, como fizeram outros grandes produtores de petróleo (México, Venezuela, Nigéria, Arábia Saudita), seria contraproducente: aumentaria a presença do governo na atividade econômica, tornando-o ineficiente por definição; estimularia a corrupção; desestimularia o desenvolvimento de outros setores; por fim, diminuiria a produtividade, uma vez que não haveria, de forma geral, incentivos para o desenvolvimento de uma economia dinâmica.
Quando achou que tinha chegado a sua hora de reluzir na economia mundial, depois de se deitar em berço esplêndido por quatro séculos e meio, a Ilha de Vera Cruz também não tinha petróleo suficiente. Mas, o que se viu desde então foi a taxação sempre elevada dos combustíveis. Como facilitar o crescimento da atividade?
Em entrevista à Maria Fernanda Delmas, diretora de redação do Valor, Lira e Pacheco expuseram o drama infindável da reforma que não se realiza. “É óbvio que a reforma tributária guarda uma série de divergências. É sem dúvida a proposta com maior dificuldade de conciliação, de entendimento do que é bom para o país”, disse Pacheco.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/coluna/a-mais-dificil-e-a-mais-urgente-das-reformas.ghtml
Judeus progressistas em São Paulo e a Casa do Povo
Fluxo migratório para o Brasil dos judeus progressistas (comunistas e socialistas) se intensificou após a ascensão do Nazismo ao poder na Alemanha, em 1933, e por razões econômicas pós crise de 1929, além da fuga das ditaduras fascistas e antissemitas da Polônia e Romênia
Dina Lida Kinoshita / Militante e dirigente do PCB, PPS e Cidadania
Com o estabelecimento das “quotas” por nacionalidade para emigração aos Estados Unidos, nos anos 1920, o Brasil passa a ser uma das possibilidades para os judeus do Leste Europeu. É uma emigração pós pogroms ocorridos durante a Guerra Civil, nas regiões do Império Czarista onde a Revolução de Outubro fracassou, sobretudo na Polônia e na Lituânia. Com a ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha em 1933 e, a política britânica de conter a ida de judeus para a Palestina a partir de 1936, esse fluxo migratório para outros países, entre eles o Brasil, se intensificou. Essa emigração ocorre não só devido ao perigo nazista, mas principalmente por razões econômicas pós crise de 1929 e pela fuga de judeus progressistas (comunistas e socialistas) das ditaduras fascistas e antissemitas da Polônia e Romênia.
Esses judeus progressistas foram forjados nas lutas contra a opressão da autocracia czarista e posteriormente nos países do “cordão sanitário”, criados para que a “praga bolchevique” não se alastrasse. Vinculados aos círculos socialistas surge um novo tipo de intelectual dentro “...da tradição marxista que levou o movimento político fundado nos trabalhadores a dar ênfase particular ao desenvolvimento da teoria, considerado indispensável para orientar uma prática transformadora da realidade...”[1]. Apesar da pouca ou nenhuma educação formal uma vez que vigia ora o “numerus clausus” ora o “numerus nulus”, formavam-se verdadeiros intelectuais autodidatas para quem a questão cultural era central para esse fim. Havia nos estratos populares uma fome de cultura e esses autodidatas tinham uma militância ativa e nada do que é humano lhes escapava. Além do que, antes do surgimento da indústria cultural, os círculos comunistas e socialistas eram os grandes difusores da cultura laica nas classes populares.
Desde os primórdios da imigração judaica do Leste Europeu, os progressistas de São Paulo criaram várias entidades. Nos anos 1920, inicialmente o Tsukunft (O Porvir) e, depois o Yugnt Club (O Clube da Juventude), que privilegiava o aprimoramento cultural, do ponto de vista marxista, dos poucos operários e uma maioria de mascates, muitos deles militantes de bairro.
Esses imigrantes tentaram se integrar ao novo país onde viviam, porém nunca deixaram de lançar seu olhar ao que ocorria no “Velho Lar” onde houve uma Revolução que prometia “pão, paz e terra”[2].
As décadas de 1930-40 talvez tenham sido o auge do que Eric Hobsbawm denominou “A Era dos Extremos”[3]. Embora nos anos 1920 já houvesse ditaduras fascistas na Itália e em Portugal, a ascensão do nazismo ao poder agravou deveras o contexto político europeu. Essa última vitória decorre em grande parte devido à política de “classe contra classe” definida no VI Congresso da Internacional Comunista (IC), em 1928.
Para barrar o avanço do nazi fascismo a IC convoca para julho de 1935, o VII Congresso, onde são aprovadas as teses do búlgaro Gyorgy Dimitrov, de construção das “frentes populares”. Neste congresso houve uma sessão de grandes escritores e intelectuais de todo o mundo, “Em Defesa da Cultura”[4]. A fração judaica que acorreu a essa reunião convocou um congresso para julho de 1936, a ser realizado em Paris. Houve um boicote de alguns no mundo Ocidental, mas no cômputo geral, o Congresso “Em Defesa da Cultura Judaica” obteve grande êxito e ao final, foi criado o “Ídicher Cultur Farband” (ICUF)[5]. O representante do Brasil foi Menachem Kopelman.
A organização do ICUF tinha uma estrutura que consistia de um comitê internacional inicialmente sediado em Paris, posteriormente transferido para os EUA, devido à invasão nazista; os comitês nacionais, nos países onde havia comunidades que se expressavam na língua iídiche, e uma vasta rede de entidades locais. A cada três anos eram previstos os congressos nacionais. Essa estrutura seguia muito de perto, a das Internacionais Socialista e Comunista, bastante hierarquizada e verticalizada. Certamente não corresponde às redes modernas, onde as novas tecnologias propiciam muito mais horizontalidade. Mas com certeza, havia um grande intercâmbio entre estes setores progressistas das diversas comunidades. A II Guerra Mundial e o extermínio dos judeus europeus haviam diminuído a importância do Comitê Internacional e os comitês regionais e nacionais adquiriram mais força.[6]
De toda maneira a frente formada em torno do ICUF, é a que se havia constituído nas organizações clandestinas de resistência nos guetos e nos destacamentos partisans durante a II Guerra Mundial e que perdurou no imediato pós-guerra, onde atuavam comunistas, bundistas e sionistas de esquerda. Basta verificar os nomes e filiações partidárias dos mais destacados comandantes, militares ou intelectuais, da resistência antifascista judaica na Europa Oriental: Mordechai Aniliewicz, Josef Kaplan e Arie Wilner do Hashomer Hatzair (Jovem Guarda), Josef Lewartowski e Itzik Vitenberg do Partido Comunista Polonês, Marek Edelman e Michal Klepfisz do BUND e Dr. Emanuel Ringelblum do Linke Poale Tzion (Esquerda dos Operários de Sion).
Cabe lembrar que enquanto ocorria este Congresso, judeus provenientes do Brasil estavam lutando nas Brigadas Internacionais ao lado da República Espanhola, durante a Guerra Civil. [7].
A grande ausência notável no Congresso, foi de uma delegação soviética de escritores que se expressavam no idioma iídiche.
No plano nacional, a década de 1930 se inicia com a ditadura de Getulio Vargas que simpatiza por muitos anos com o nazi fascismo. Foi um período de muita intolerância do governo e resistência judaica com numerosas prisões e deportações. A espada de Dâmocles pendia sobre a cabeça desses imigrantes, uma ameaça real numa Europa fascista[8]. A construção do aparelho repressivo no Brasil, a partir do começo do século XX até os anos 1930, com a instituição do Estado Novo através da Constituição de 1937, mais conhecida como a “polaca”, a repressão se agrava. Especialmente a política varguista com relação aos imigrantes judeus vindos das regiões do antigo Império czarista e de suas possíveis simpatias com a Revolução de Outubro[9]. Não se pode esquecer que nos fins dos anos 1920 e até meados dos anos 1930 a IC havia dedicado uma atenção especial ao Brasil, na medida em que Luis Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, líder máximo da Coluna Prestes, havia ingressado no PCB e vinha-se preparando o Levante de 1935. Um número expressivo de judeus estava envolvido nisso.
O Uruguai, país com estabilidade democrática, prestou solidariedade e refúgio a perseguidos políticos. Pode-se citar como exemplo, os casos de Hersch Schechter que em sua segunda deportação, ocorrida em 1941, e até sua volta após a democratização de 1945, e em seu exílio entre 1964-68 esteve no Uruguai trabalhando no jornal Unzer Fraint (Nosso Companheiro), ou no caso de Alter Kowalski e de Volf Feldman que se fixaram definitivamente no país vizinho e realizaram um trabalho de enlace político-partidário entre as comunidades desses países vizinhos da região. Srul Fajbus Roclaw também passou vários anos no Uruguai, enquanto Josef Lipski esteve no Uruguai e Argentina.
Casa do Povo Monumento Vivo
Havia também decretos secretos proibindo a entrada de judeus no país[10].
Se a difícil situação econômica e a perseguição são condições gerais para os judeus do Leste Europeu, os judeus de esquerda em todas as suas vertentes, são duplamente perseguidos. Embora a história dos judeus de esquerda hoje seja escamoteada e pertença à história dos silenciados e vencidos, sua importância pode ser conferida pelo papel desempenhado pelo BUND na formação do Partido Operário Social Democrata da Rússia, bem como em obras literárias como “A Família Muskat”[11] de Isaac Bashevis Singer, nas memórias de velhos militantes como Hersz Smoliar[12] ou em livros como Le Yiddishland Revolutionaire[13], ou ainda “Le Pain de la Misére” de Weinstok[14]
Enquanto alguns preferiram inserir-se nas lutas gerais do povo brasileiro, a maioria, ao chegar a terras de língua, hábitos e costumes estranhos, reproduz os seus modos de organização dos países de origem.
Parte dos comunistas judeus nascidos no Brasil ou que chegaram aqui bem jovens, entre os quais poder-se-ia citar Leôncio Basbaum, Hersch Schechter, Sara Becker (mais tarde Sara de Mello), Felícia Itkis (mais tarde Schechter), Noé Gertel, Jacob Wolfenson e José Gutman, abraçavam em primeiro lugar, as lutas gerais do povo brasileiro, já que a comunidade era e continua relativamente pequena e nunca se respirou o “idishkeit” (atmosfera judaica) da Europa Central e Oriental com muita intensidade. Porém, vários imigrantes que já vinham dos círculos socialistas europeus, como Jacob Frydman, tentaram inserir-se inicialmente nessas lutas do povo brasileiro, e só após muitas perseguições e deportações, os que permaneceram no país, muitas vezes se organizaram no meio judaico. Talvez, o Levante de 1935 organizado pelo PC em consonância com a IC, tenha propiciado um acerto de contas internacional, uma vez que os integralistas, que tinham forte simpatia pelas forças do Eixo, participavam do governo Vargas[15]. De toda maneira, a violenta repressão que se abate a partir dos anos 1935, praticamente liquidam essa primeira onda de entidades da esquerda judaica.
Em 1942 Vargas muda de posição após uma negociação com o Presidente Franklin D. Roosevelt, em que os Estados Unidos construiriam a Companhia Siderúrgica Nacional, em troca de permissão para construção de uma base militar em Natal, no Rio Grande do Norte, ponto estratégico para a travessia do Atlântico rumo à África. Esse acordo dá margem a fissuras no regime brasileiro. As forças que lutam pela democracia começam a se reorganizar.
Os judeus progressistas também buscam os caminhos para satisfazer as melhores aspirações populares. Num caminho de vai e vem, abraçavam todas as causas condutoras ao enraizamento na nova terra e ao mesmo tempo preservavam os valores político-sociais, humanistas e literários adquiridos em suas terras natais da Europa Oriental. Foi nesta época que surge o Centro Cultura e Progresso. É um momento de muita efervescência política bem como cultural.
Merece uma menção especial o papel desempenhado pelo teatro nessa entidade. Unindo o ensinamento de I. L. Peretz, “O teatro é escola para adultos”, e o de Romain Rolland, “O teatro deve compartilhar o pão do povo, de suas inquietudes, de suas esperanças e de suas lutas”, o Dramkraiz (Círculo Dramaático) de São Paulo fez “...do trabalho teatral uma prática deliberada não só de arte, como de educação e política, sem renunciar contudo, nos vários momentos de sua trajetória e de suas preferências ideológico-estilísticas, à busca da artisticidade, senão da forma, na linguagem dramático cênica.”[16] Há indícios de que ainda em 1938, no tempo do Yugnt Club, Riven Hochberg encenou uma peça teatral. O espetáculo ocorreu no teatro do Clube Luso-Brasileiro. Mas no período do Estado Novo e da II Guerra foram proibidas todas as atividades de estrangeiros.
Porém por volta de 1942, com a “abertura” surge o Centro Cultura e Progresso e as atividades teatrais são retomadas a todo vapor.
Outra atividade essencial era a biblioteca. Havia uma quantidade grande de livros, a maioria em iídiche e português mas também em russo e polonês. Quem cuidava da biblioteca como voluntário era Avrum Rajnsztajn e posteriormente, também Felícia Itkis Schechter.
Com a mudança de rumo da política internacional do governo Vargas, navios alemães atacam as costas brasileiras e a população começa a se manifestar pela entrada na guerra ao lado dos Aliados. O governo brasileiro vê-se obrigado a organizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Muitos judeus se alistam para lutar na Itália, contra o nazifascismo. Entre eles, Boris Shnaiderman, professor de literatura russa da USP; o artista plástico Carlos Scliar; Salomão Malina, o último Secretário Geral do PCB e Samuel Safker, ativista e dirigente da Associaçao Scholem Aleichem do Rio de Janeiro.
Com a derrota do nazi fascismo cai a ditadura de Vargas. Não obstante a pouca atividade das entidades vinculadas ao ICUF durante a guerra, por razões já mencionadas, no imediato pós-guerra, tiveram um grande florescimento e se associaram às congêneres argentinas e uruguaias. Como primeira atividade, trabalharam no auxílio imediato aos sobreviventes do Holocausto que se encontravam, sobretudo na Polônia e, pouco depois nos diversos DP Camps na Alemanha.
A criação do ICIB e outras atividades afins
Em 1942, enquanto se desenrolava na URSS a sangrenta e decisiva Batalha de Stalingrado, turning point da II Guerra, Manoel Casoy prometeu doar uma soma de dinheiro, caso os nazistas fossem derrotados, para erigir um monumento em homenagem aos heróis e mártires tombados. Terminada a guerra, Casoy cumpriu a promessa. Ao tomar conhecimento da barbárie do extermínio das comunidades judaicas no Leste Europeu, formou-se uma comissão que decidiu construir o Instituto Cultural Israelita Brasileiro (ICIB), mais conhecido como o Folks Hois ou a Casa do Povo.
O espaço também abrigaria a Escola Scholem Aleichem e um Clube Infanto-Juvenil. I. L. Peretz, ambos em homenagem a dois patriarcas da literatura iídiche. Outras atividades que não poderiam faltar eram o Clube de Xadrez, o Leinkraiz (Círculo de Leitura) e o Coral que cantava belas canções populares do repertório iídiche bem como músicas revolucionárias e de combate. Os três grupos teatrais, o Dramkraiz e outros dois em língua portuguesa se apresentavam em outros teatros da cidade, inclusive no Teatro Municipal. Esses grupos amadores de alto nível foram premiados por diversas vezes. O Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB) só foi inaugurado em 1960.
O edifício é uma espécie de Palácio da Cultura, para preservar pelo menos uma pequena parte do que foi destruído. A comunidade judaica de São Paulo engrossou sua simpatia pela esquerda pois os soviéticos libertaram a maioria dos grandes campos de concentração e de extermínio. Quase toda a comunidade contribuiu ainda que fosse com um tijolo. Foi uma demonstração do apreço pelos progressistas. O ICIB foi fundado em 1948 mas o edifício só foi inaugurado em 1953. A biblioteca já existente nas entidades anteriores foi incorporada à nova sede.
Os arquivos da Casa do Povo têm muitas lacunas, não por incompetência dos que o organizaram. Os longos períodos de autoritarismo no Brasil, durante o século XX, e a tradição revolucionára do Leste Europeu é rica em silêncios. Muitos eventos não constam nos arquivos, outros não têm data ou são anunciados de uma maneira hermética que só quem estava presente pode recordar do que se trata. Um exemplo disso é um convite para ouvir um camarada que viajou para a Europa. Se visitou em Paris o Moulin Rouge ou a redação do Sovietish Heimland em Moscou é impossível saber.
Porém houve muitas conferências e debates. Escritores e intelectuais importantes, militantes da cultura iídiche como Aron Kurtz (presidente do ICUF nos EUA), os poetas H. Lêivik e SZmerke Kaczerginski, bem como da cultura universal, como, Pablo Neruda (Prêmio Nobel de literatura, Chile), Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, o cantor Paul Robson, Ida Kaminska (atriz do Teatro Estatal Judeu da Polônia e intérprete principal do filme, A Pequena Loja da Rua Principal, Mario Schenberg (intelectual e eminente físico teórico), entre muitos outros proferiram conferências ou participaram de atividades artísticas na entidade. Marcos Ana, poeta libertado das masmorras franquistas nos anos 1960 também foi ouvido na Casa do Povo. Foram homenageados em seus natalícios ou em datas fúnebres, Scholem Aleichem, I. L. Peretz, Moishe Olguin, M. Gebirtig, Avrum Reisn, bem como W. Shakespeare, Rubén Dario, Euclides da Cunha, Albert Einstein, Julio Cortázar, Machado de Assis, Rafael Alberti, entre outros.
A Escola Israelita Brasileira “Scholem Aleichem” de São Paulo foi a primeira escola de pedagogia moderna, durante muitos anos considerada como escola avançada, servindo de modelo às escolas de aplicação e experimentais implantadas na rede de ensino público mais tarde. Do ponto de vista da educação judaica, o enfoque era laico, sendo a única escola judaica que ensinava no pós-guerra a língua iídiche e não o hebraico. Enquanto os sionistas consideravam o iídiche como a língua dos judeus dos guetos que foram aos crematórios como carneiros, os progressistas afirmavam que em memória aos combatentes e heróis da resistência dos guetos e dos destacamentos de partisans, em memória a toda uma cultura progressista criada em íidiche e destruída durante o Holocausto, e com a esperança de um renascimento sócio-cultural das comunidades judaicas nas Democracias Populares, decidiram manter o iídiche e não ensinar o hebraico. Mas mais importante talvez seja o sentimento transmitido aos alunos de “...serem lutadores invencíveis pelas causas da humanidade.
Além dessas atividades havia outras de caráter nacional:
- O jornal Unzer Shtime (Nossa Voz), cujo redator-chefe nem constava do expediente por ser estrangeiro e havia sido deportado nos anos 1920 e 1940. Quem respondia pelo jornal era o estudante de medicina, Israel Nussenzweig. Mas todos sabiam que Hersch Schechter era a cabeça e a alma do jornal e escrevia todos os editoriais. O jornal se referia às questões da paz e quanto à questão judaica, sempre enfatizava, diferentemente dos jornais sionistas, propostas plurais de experiências das comunidades judaicas, e também demonstrava grande esperança na reconstrução de uma vida sócio-cultural judaica nas Repúblicas Populares e na URSS pós-holocausto. A redação do jornal foi invadida e empastelada logo após o golpe militar perpetrado em 1º de abril de 1964 quando o jornal deixou de ser editado – é difícil prever como esta proposta evoluiria, se houvesse continuidade. Além disso, havia um esforço muito grande, no sentido de encorajar os setores progressistas da comunidade judaica, a se integrarem ao povo brasileiro e às suas lutas mais gerais. O jornal jamais teve uma linha isolacionista. Apesar da década de 1970 ter sido a época de ouro dos jornais alternativos no Brasil, que se colocavam claramente contra o regime ditatorial, como o Pasquim, sucedido pelo Opinião e pelo Movimento, não havia condições de relançar o Unzer Shtime, porque quase ninguém mais lia em íidiche e a Casa do Povo vivia permanentemente vigiada, alguns de seus ativistas e diretores estavam presos no Doi-Codi[17], não permitindo grandes atividades. Quanto à orientação, o Unzer Fraint segue a mesma tônica e também não resistiu ao regime ditatorial uruguaio dos anos 1970;
- A juventude publicava a revista O Reflexo entre 1946 e 1951 sob a direção de Luiz Israel Febrot. Também organizavam bailes e comemorações festivas.
A simpatia da comunidade judaica pela esquerda no imediato pós-guerra, teve reflexos de algum modo no número e destaque intelectual de quadros de origem judaica da geração de 1945, na direção do PCB. Pode-se citar Salomão Malina, Jacob Gorender, Mário Schenberg, Marcos Chaimovitch, Isaac Scheinvar, Maurício Grabois, Moisés Vinhas e Carlos Frydman entre outros. Num determinado momento, o setor judaico do PCB em São Paulo foi a base mais importante e Eliza Kaufman Abramovich, diretora da Escola Scholem Aleichem, foi a vereadora mais votada e a bancada de comunistas majoritária na Câmara dos Vereadores da cidade. Já em 1946, na eleição para a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, foi eleita uma bancada expressiva de deputados comunistas, entre eles, Mário Schenberg. É difícil fazer comparações com eleições anteriores uma vez que de 1930 a 1945 só houve uma eleição direta para a Assembléia Nacional Constituinte de 1934, quando poucos judeus no Brasil puderam votar, por sua condição de estrangeiros ou porque muitos chegaram após esta data;
- A Colônia de Férias Kinderland funcionava como um prolongamento da escola em época de férias. Além das atividades recreativas, havia uma vasta programação cultural e um aprofundamento da noção de vida coletiva em detrimento do individualismo.
A Associação Feminina Israelita Brasileira (AFIB) se espelhava na tradição de Clara Zetkin e Rosa Luxemburg, das mulheres combatentes de todos os tempos pela liberdade e pelos direitos humanos, desde as operárias de Manhattan em greve pela redução da jornada de trabalho, até pelas combatentes Niuta Teitelboim do Gueto de Varsóvia e Vita Kempner do Gueto de Vilna. As voluntárias da AFIB administravam[18] a Colônia.
Passeio sonoro pelo Bom Retiro
Assim, esta frente, paralelamente à atividade política, realizava um trabalho nas áreas de educação e cultura.
Ao analisar as atividades da Casa do Povo, vem à lembrança o texto de T. Grol a respeito do Bund na Polônia: “Paralelamente à atividade política e sindical, o BUND realizava um trabalho ramificado e multicolorido nas áreas de educação e cultura. Quem de nossa geração não se lembra da maravilhosa rede de escolas populares judaicas, bibliotecas, associações culturais, clubes esportivos, sanatórios infantis, jornais, boletins e revistas na Polônia do pré II Guerra Mundial, organizadas pelo BUND?”[19] Se o movimento não adquiriu a mesma pujança é preciso guardar as devidas proporções quanto ao tamanho das respectivas comunidades e ao tempo de enraizamento nos vários lugares.
A questão da paz é recorrente ao longo de todas as décadas, com ênfase especial na obtenção de uma paz negociada, justa e duradoura no Oriente Médio, que contemple todos os povos da região. Mas nunca deixaram de lutar por um mundo mais igualitário e pacífico e pelo banimento dos artefatos bélicos nucleares. Transcrevo abaixo um trecho de uma convocatória do XXV aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia:
“... Hoje, quando comemoramos o XXV Aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia, que tão tragicamente nos lembra a II Guerra Mundial, sentimo-nos inquietos com os conflitos que surgem e se desenvolvem no mundo. Inquieta e nos revolta a tragédia do Vietnã, onde diariamente milhares de preciosas vidas de homens, mulheres e crianças são impiedosamente ceifadas e que poderá culminar com o emprego de armas atômicas, e como conseqüência, provocar uma III Guerra Mundial, com o perigo de aniquilamento de grande parte da humanidade. Portanto, é nosso dever unirmo-nos a todos os povos amantes da Paz, para clamar contra os conflitos que surgem e se desenvolvem no mundo. .”
“...A Israel cabe criar condições de vida e segurança para o País e aos seus cidadãos, como também achar soluções pacíficas para os problemas de fronteiras ou outros, com seus vizinhos Árabes.
No interesse do Estado de Israel e do povo judeu espalhado pelo mundo, no interesse, felicidade e bem estar de toda a humanidade, é necessário que juntos, todos os povos, empreguem os meios e esforços para que a paz e a liberdade sejam preservadas.” (1968)
A política soviética com relação aos judeus durante
a II Guerra Mundial e no imediato pós guerra
É inegável que, durante os anos do Grande Terror stalinista foram liquidados muitos judeus, Mas, ninguém atribuía este fato ao antissemitismo. Era considerado como um acerto de contas genérico do stalinismo com todos que não rezavam nesta cartilha: trotskistas, bukhrinistas e outros “istas” menos conhecidos por quem não é íntimo da história do PCUS e do regime soviético.
E nos anos da Grande Guerra Patriótica, como os soviéticos denominavam a II Guerra Mundial, os judeus se destacaram não só por seu heroísmo e bravura em combate contra o invasor nazista, mas também, pela proximidade entre os idiomas iídiche e alemão que lhes rendeu missões militares especiais.
Durante o período de guerra, abriram-se certas brechas no regime stalinista uma vez que Stalin estava empenhado em demonstrar que não estava interessado em exportar a Revolução, mas, tão somente, na aliança com os Aliados do Ocidente para derrotar os nazistas. Foi neste contexto que a comunidade judaica soviética havia logrado criar o Comitê Judaico Antifascista. Por outro lado, até 1944 os Aliados do Ocidente ainda não haviam aberto a II Frente na Europa e o peso do conflito nesta região era suportado pelos soviéticos. Stalin constituiu em 1943 uma Comissão Antifascista Judaica para visitar os EUA visando angariar fundos para o esforço de guerra soviético e, conclamar a grande comunidade judaica norte-americana oriunda da antiga “Zona de Residência” para se manifestar pela abertura da II Frente.
Esta comissão era composta pelos próceres da intelectualidade judaica soviética que se expressavam em iídiche: Solomon Mikhoels, grande ator e diretor do Teatro de Arte Judaico de Moscou, e os poetas Itzik Feffer e Peretz Markish. Esta Comissão acabou tendo contatos com intelectuais e artistas como o ator e cantor negro Paul Robeson que participou do maior evento pró-soviético promovido nos EUA pela comunidade judaica de Nova Iorque, com o apoio de Albert Einstein. O evento em favor da abertura da II Frente na Europa, ocorreu no dia 8 de julho de 1943. Logo após a II Guerra, a URSS era vista como a grande vitoriosa da guerra na Europa e gozava de muito prestígio.
No imediato pós guerra a URSS estava interessada em meter uma cunha no Oriente Médio contra os países colonialistas, a saber, Grã-Bretanha e França. Quem presidiu a Assembleia Geral da recém criada ONU, em novembro de 1947, foi o diplomata brasileiro Oswaldo Aranha, mas quem encaminhou e defendeu a proposta da partilha da Palestina, que deu ensejo à criação de um Estado judeu — e de um Estado árabe-palestino — , foi Andrey Gromyko, embaixador soviético neste organismo. Os Estados Unidos votaram a favor da proposta com muitas reticências, a Grã-Bretanha se absteve. Todos os países árabes rejeitaram a partilha e declararam guerra ao Estado recém-criado, com o apoio tácito dos britânicos. A República Popular da Checoslováquia fornecera, em grande medida, as armas utilizadas pela Haganá, embrião do Exército israelense, na Guerra da Independência (1948). Note-se que o processo de descolonização na Ásia e África estava em marcha com o apoio decisivo da URSS. No entanto o Estado Palestino não existe até os dias de hoje.
TVFAP: Entrevista de Dina Lida Kinoshita
Foi um momento de grande unidade do povo judeu. Sionistas e progressistas apoiam a criação do Estado de Israel – se para os primeiros essa criação simboliza a realização de um sonho milenar de volta à “Terra Prometida”, para os segundos, trata-se de um movimento de libertação nacional em que o apoio soviético para um Estado judeu, afetaria os interesses imperialistas numa região altamente estratégica como tem sido ao longo de séculos, o Oriente Médio. Por outra parte, não se pode ignorar que embora houvesse um apoio firme da URSS e das Repúblicas Populares na ONU à criação do Estado de Israel, a atitude dos comunistas sempre foi matizada por um outro sentimento: havia a esperança de um reflorescimento das comunidades judaicas no Leste Europeu, que seria a experiência socialista, e não sionista, de solução da “questão judaica”.
Esse momento durou pouco: a frente constituída nos anos da guerra que perdurou no imediato pós-guerra sofreu uma fratura. Retiraram-se das organizações progressistas, primeiro os sionistas de esquerda e mais tarde outros grupos socialistas. Os sionistas de esquerda, em nível mundial, se alienam das políticas locais e passam a privilegiar uma política de fortalecimento e consolidação do Estado de Israel que pretendiam democrático e socialista. Esta política se expressa na prática por um apoio financeiro, cultural e uma emigração expressiva para o Estado de Israel, entre 1948 e 1965, principalmente de jovens que se dirigem para Bror Khail, Guivat Oz e Gash, conhecidos como os kibutzim de brasileiros.
Contudo, para entender as mudanças, não se pode deixar de fazer uma reflexão a respeito da política brasileira no que diz respeito ao antissemitismo. Durante o Estado Novo, o governo brasileiro foi muito influenciado pelo integralismo, com grandes simpatias pelo Eixo, e praticou uma política cujo conteúdo tem fortes matizes antissemitas. Nesta conjuntura, um grupo de imigrantes que se sente marginal, acaba ingressando num partido de propostas internacionalistas que também é marginal, clandestino e ilegal como o PCB, embora houvesse um número reduzido de anarquistas e trotskistas. Segundo Hobsbawm[20]. talvez, por falta de opções. Outro fator que deve ser levado em conta, é a “política de substituição de importações” implantada no Brasil que propicia às novas gerações de judeus nascidos na região uma ascensão social e cultural. Estas comunidades deixam de sentir-se marginais, e nos momentos de democratização tem maior leque partidário para escolha.
Mas a lua-de-mel dos Aliados dura pouco. Este quadro começou a mudar de rumo, por várias razões:
Menos de um ano após a vitótia Aliada, Winston Churchill profere em 5 de Março de 1946, na cidade de Fulton, EUA, o famoso discurso sobre a Cortina de Ferro, dando início à Guerra Fria.
O Estado de Israel era economicamente inviável. Embora a URSS tenha se empenhado na criação deste país, não tinha condições de prestar ajuda econômico-financeira, dado que necessitava reconstruir o seu próprio país que sofrera perdas humanas e materiais incalculáveis durante a Grande Guerra. O Plano Marshall possibilitou uma recuperação mais rápida à Europa Ocidental. Ao ser criada a República Federal da Alemanha, seu primeiro chanceler, Konrad Adenauer, firmou um tratado com o Estado de Israel (1951) pelo qual os sobreviventes do Holocausto teriam indenizações vitalícias, e a soma referente aos 6 milhões de assassinados destinar-se-ia ao novo Estado, o que deu um certo alento econômico.
Com o surgimento do macartismo nos Estados Unidos, houve um certo temor de que ocorressem perseguições aos judeus norte-americanos, uma vez que havia manifestações antissemitas e racistas em vastos setores do país. Portanto, não interessava o confronto com esta superpotência.
Em 1951, se reorganiza a Internacional Socialista (IS), totalmente destroçada com a ascensão do nazismo, uma vez que o Partido Social-Democrata Alemão havia sido o grande sustentáculo desse campo político. Os partidos trabalhista (Mapai) e socialista (Mapam), majoritários na fundação do Estado de Israel, ingressaram na IS.
Mais adiante, num contexto absolutamente polarizado da Guerra Fria, os países europeus, dirigidos por partidos pertencentes à IS, alinharam-se com os Estados Unidos, bem como Israel, A URSS passa a investir nos países árabes para fincar uma posição estratégica no Oriente Médio. Os países da OTAN já haviam cercado os países do bloco soviético e, a URSS buscava manter bases militares nos países do Terceiro Mundo.
A comemoração realizou-se com pleno êxito com a presença de um grande número de delegações estrangeiras, sem, no entanto, nenhum delegado soviético. Todos se indagavam onde estava a antiga Comissão Antifascista. E os rumores começaram a se espalhar pelo mundo.
Mas as manifestações antijudaicas já aparecem no início de 1948. A primeira envolve URSS e Polônia ainda no início de 1948. Hersz Smoliar recorda em suas memórias: o Comitê Central dos Judeus Poloneses, hegemonizado por velhos quadros do PC polonês, decidiu realizar um grande evento internacional, por ocasião do quinto aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia com a inauguração do Monumento em homenagem aos Heróis e Mártires do Gueto. Organizações judaicas de quase todos os países, não só aprovaram a ideia, como a apoiaram financeiramente. O Comitê polonês considerava de suma importância que uma delegação soviética de grande representatividade comparecesse ao evento apesar das dificuldades havidas naquela época para cidadãos soviéticos saírem do país, ainda que para as Repúblicas Populares. Smoliar, em nome do comitê polonês, havia contatado Itzik Feffer para dar andamento ao projeto além dos trâmites legais requeridos.
Combinaram de se falar por telefone semanalmente, sendo que a chamada era feita alternadamente por um deles. Num determinado dia agendado, Smoliar esperou por um longo tempo ser chamado de Moscou, mas foi em vão. Decidiu então ligar e, a secretária de Itzik Feffer, com voz embargada e muito alterada comunicou-lhe que Itzik Feffer não se encontrava e que Solomon Mikhoels já não está de todo... o primeiro reflexo de Smoliar era, que haviam levado Shlomo Mikhoels, detido... talvez também a Feffer. Voltou a ligar em seguida ao redator do Einikeit (Unidade), que lhe transmitira tudo que sabia então, a respeito da morte de Shlomo Mikhoels. Smoliar transmitiu imediatamente tudo que soubera à fração comunista do Comitê Central dos Judeus Poloneses e ninguém teve qualquer desconfiança de que esta morte tivesse sido planejada.
A comemoração realizou-se com pleno êxito com a presença de um grande número de delegações estrangeiras, sem, no entanto, nenhum delegado soviético. Todos se indagavam onde estava a antiga Comissão Antifascista. E os rumores começaram a se espalhar pelo mundo.
Mas os camaradas poloneses tinham um outro desgosto. Wladislaw Gomulka, secretário-geral do Partido Comunista Polonês e chefe do governo daquele país, se jactava em afirmar em seus discursos que a Polônia pós-guerra era um Estado uni nacional, negando a existência de minorias ucranianas e alemãs e jamais se referindo aos 10% de judeus desaparecidos como vítimas do Holocausto nazista[21].
Entrementes, nos EUA grassava o macartismo e ninguém escapava às investigações extremamente agressivas da Comissão de Investigação de Atividades Antiamericanas. Funcionários públicos, cientistas, intelectuais e artistas eram os mais visados. Carreiras eram destruídas, muitos perdiam seus empregos e alguns eram presos. Um dos investigados foi Paul Robeson que saiu do país.
De acordo com várias versões biográficas de Feffer e Robeson na Wilkipedia, seis anos depois, Robeson havia chegado a Moscou por ocasião das comemorações do 150º aniversário do poeta Alexander Pushkin. Ao chegar a Moscou, preocupado com a situação dos artistas judeus soviéticos, Robeson solicitara às autoridades soviéticas um encontro com Feffer, que havia conhecido e se tornaram amigos, durante a guerra, nos EUA. Foi-lhe dito que Feffer estava passando férias na Criméia e se demoraria naquela região. Diante da insistência de Robeson, as autoridades soviéticas tiveram que retirar Feffer, muito debilitado, da prisão, mantê-lo sob cuidados médicos por um tempo para que se restabelecesse, e então, o levaram ao encontro com Robeson. Um encontro estranho onde ambos se abraçaram, sem que Feffer pudesse emitir mais que uma palavra, pois, a sala havia sido grampeada pela NKVD (antecessora da KGB). Feffer conseguira transmitir a Robeson por meio de gestos que Mikhoels havia sido assassinado pela polícia secreta bem como a real situação dele e de muitos outros intelectuais e artistas. Desafiando as autoridades soviéticas, em sua apresentação na sala Tchaikovsky, no dia 14 de junho de 1949, homenageou seus amigos Feffer e Mikhoels e cantou o Hino dos Partisans de Vilna, em iídiche e russo.
Os sionistas já denunciavam esses fatos mas a esquerda judaica não sionista, não acreditava no que ocorria, dizendo que eram invencionices dos imperialistas. Um emissário soviético chegou a circular entre as comunidades judaicas da América Latina desmentindo os fatos.[i]
Outro acontecimento inusitado ocorreu poucos meses antes. Golda Meir tornou-se a primeira embaixadora do recém criado Estado de Israel na URSS. Pouco depois de sua chegada a Moscou ela foi à Grande Sinagoga por ocasião de Rosh Hashaná. Costumeiramente, apenas uns dois mil judeus moscovitas participavam destas cerimônias e, nesta ocasião compareceram cerca de cinquenta mil pessoas, obviamente para prestigiá-la e não por razões religiosas. As autoridades soviéticas interpretaram este gesto como um renascimento do nacionalismo judaico o que deu ensejo a novo expurgo. Desta vez os julgados foram acusados de “cosmopolitismo”. Poucas semanas depois os embaixadores foram convidados para uma recepção, em homenagem ao 31º aniversário da Revolução Russa. O Ministro de Relações Exteriores da URSS era Vyascheslav Molotov. Durante a festividade, a esposa do Ministro, Polina Molotov, havia se dirigido a Golda Meir em iídiche, exortando-a a frequentar mais vezes a sinagoga.
Poucos dias depois, Polina Molotov foi detida, obrigaram-na a se divorciar e, em seguida, enviaram-na para um campo de trabalhos forçados na Sibéria. Foi julgada por alta traição por desconfiarem que houvesse transmitido segredos do Estado Soviético à líder sionista[22].
Nesta conjuntura mundial ocorreu outro fato, desta vez, um expurgo na Checoslováquia. Rudolf Slansky, secretário geral do PC Checoslovaco e outros 13 altos dirigentes do partido foram presos sob a acusação de alta traição à Pátria. Todos, velhos quadros experimentados, dos quais dez eram judeus, foram acusados como, burgueses, sionistas e titoístas. Foram condenados à morte. Arthur Londor, apesar das violentas torturas sofridas sobreviveu, condenado à prisão perpétua e, mais tarde, confirmou que os outros foram liquidados[23]. Este processo espetáculo ocorrera mais ou menos na mesma época que o de Julius e Ethel Rosenberg, vítimas do macartimo nos EUA, também condenados à morte por alta traição porque teriam fornecido à URSS, segredos referentes à bomba atômica.
Em 1953, pouco antes de morrer, Stalin havia determinado que os seus médicos judeus fossem assassinados porque estariam metidos num complô para assassiná-lo ministrando-lhe substâncias venenosas.
Há quem atribua todos esses fatos à mente doentia e conspiratória de Stalin. Contudo, ao analisar os fatos em seu conjunto, é crível que o alinhamento do Estado de Israel com as democracias ocidentais havia provocado uma “limpeza” de judeus nos altos postos da URSS e das Democracias Populares.
No fim de fevereiro de 1956 ocorreu o XX Congresso do PCUS quando Nikita Khruschev denunciara os crimes stalinistas e afloraram vários dos episódios aqui relatados entre muitos outros[24]. Esse Relatório Secreto provocou um verdadeiro terremoto em todos os partidos e organizações de esquerda do mundo. Não foi diferente em São Paulo. Em particular, houve debates muito acirrados na Casa do Povo entte os que continuaram apoiando o bloco socialista ainda que criticamente e os que pretendiam uma postura de rompimento total. Em 1957 formaram-se duas chapas para eleger a Diretoria. Tentando um consenso pela unidade em três assembleias. Mas na primeiras não houve consenso. Na segunda, Manoel Casoy, presidente de honra, assumiu a Presidência pro tempore. E na terceira, decidiram que as duas chapas formadas teriam direito de ter um número proporcional de diretores e conselheiros de acordp com a quantidade de votos obtidos. Mas a chapa capitaneada por Godl Kon, apesar de obter 40% dos votos, não indicou ninguém para os cargos que lhe cabiam e se retirou da Casa do Povo. Foi impossível o consenso. Num mundo onde só havia branco e preto, sem tons e semitons, muitos quadros e ativistas da chapa derrotada se retiraram; alguns passaram a trabalhar em organizações sionistas, outros simplesmente se afastaram de qualquer atividade sócio-cultural. Alguns poucos ficaran nuito deprimindos e houve até um caso de suicídio.
História Oral Wexler do Yiddish Book Center
Enquanto a aproximação do Estado de Israel com os EUA atingira seu ápice logo após a Guerra dos Seis Dias (1967), quando os israelenses ocupam a Cisjordânia, Gaza, o Golan, o Sinai e a parte oriental de Jerusalém, a URSS e grande parte da comunidade internacional condenaram veementemente essa decisão. A URSS e as Democracias Populares do bloco soviético romperam relações diplomáticas com este país. Num processo binário de “bandido e mocinho”, se deu apoio integral aos palestinos e a clivagem se tornou absoluta.
Após o golpe militar ocorrido no Brasil em 1964, há um esvaziamento do movimento popular de um modo geral. A despeito disso, a Casa do Povo ainda exerceu alguma influência na comunidade até 1967. Muitos dos que não se deixaram abater, mesmo em momentos críticos para os judeus progressistas, tiveram uma atitude diferente em 1967. Poucos dos judeus progressistas mantiveram sua serenidade, o emocional falou mais alto, e a maioria apoiou Israel posteriormente. Foram pouquíssimos os que condenaram a ocupação desde o início, previram as dificuldades que os israelenses teriam se não desocupassem logo a região e continuaram apoiando a URSS e o Leste Europeu, por seu papel na descolonização da África e Ásia, por se contrapor à política agressiva do imperialismo americano e por entender que era justo criar um Estado Palestino, do mesmo modo que havia sido justo criar o Estado de Israel.
Muito poucos tiveram uma visão profundamente internacionalista, tendo clareza de que embora os interesses do Estado Soviético e os do Movimento Comunista Internacional, nem sempre caminhassem juntos, mas disciplinadamente jamais criticaram a URSS, para não dar munição ao inimigo imperialista. Neste período, no contexto da lógica binária da Guerra Fria, Israel tornou-se o principal aliado estratégico dos EUA no Oriente Médio enquanto a URSS e todo o bloco do “socialismo real” rompeu relações com o Estado de Israel e apoiou decididamente a OLP e alguns países árabes. A situação política e sócio-cultural das comunidades judaicas do Leste Europeu deteriorou-se culminando com um verdadeiro êxodo de velhos quadros comunistas na Polônia, todos cassados e aposentados compulsoriamente.
Os soviéticos nem podiam emigrar para não fornecer dados sigilosos aos países capitalistas. Esse quadro desloca o voto da maioria da comunidade judaica para a direita. Entretanto, perante parte da juventude de esquerda sionista o modelo de um Estado de Israel democrático e socialista sofrera forte abalo com a ocupação dos territórios. Muitos abandonaram a militância sionista e abraçaram uma militância socialista no Brasil. Entretanto não engrossaram as fileiras dos progressistas. Estes grupos ingressaram preferencialmente em organizações trotskistas ou nas dissidências armadas. Muitos pagaram com a própria vida por esta opção. Alguns entendiam que o PCB era muito moderados; outros declararam que Israel ainda estava nos seus horizontes apesar do abalo, e não poderiam ingressar em um partido profundamente vinculado à URSS e às Democracias Populares que haviam rompido relações com o Estado de Israel, apoiando irrestritamente os países árabes e a OLP.
Durante o governo do general Garrastazu Médici, ocorreu uma inflexão no Brasil. O país teve uma acelerada acumulação capitalista no período, passando a ser um exportador de manufaturados. Dentro da perspectiva do “Brasil, Grande Potência”, a questão energética necessária para o desenvolvimento dos grandes projetos mínero-metalúrgicos, petro e cloro-químicos foi considerada prioritária. Como corolário o Estado brasileiro decide implementar também o projeto de desenvolvimento da tecnologia nuclear, para satisfação daqueles que desde os anos 1940 defendiam essa alternativa energética. Além de aumentar a energia hidroelétrica com a construção de Itaipu. Ambos os projetos criaram contenciosos com os americanos e com a Argentina.
O afastamento do Brasil dos EUA levou à política do “pragmatismo responsável” caracterizada pelo reconhecimento imediato, junto com Cuba, da República Popular de Angola e por uma abertura para o mundo árabe, que acabou culminando com a assinatura de uma moção na ONU, denunciando o “caráter racista do sionismo”. Pouco a pouco, o “establishment” da comunidade judaica foi então se afastando do regime militar brasileiro. Por outro lado, a direita passa a governar o Estado de Israel, e apesar dos acordos de Camp David com o Egito (1981), houve uma escalada de atrocidades nos territórios ocupados que culminam com o massacre nos acampamentos de Sabra e Chatila em 1982.
Várias lideranças que anteriormente fizeram parte do arco da esquerda passaram a dar-se conta que o apoio irrestrito a Israel foi um erro. Mas em Israel também surgem vozes influentes discordantes. O Movimento Paz Agora adquiriu força e grande visibilidade, acabando, anos depois, por levar à queda o governo de direita israelense de Shamir. Entretanto a política de Brezhnev com relação aos chamados "dissidentes", muitos deles judeus, e com relação à comunidade judaica soviética como um todo, dificultou a aproximação entre comunistas e os outros grupos que reivindicavam a paz no Oriente Médio. Levando em consideração que o comportamento político da comunidade judaica era balizado em grande medida pela guerra fria e seus desdobramentos no Oriente Médio, é importante lembrar que M. Gorbachev, enquanto secretário-geral, tenha declarado anos mais tarde, que a política soviética para o Oriente Médio foi excessivamente unilateral.
Embora os protestos contra o massacre de Sabra e Chatila tenham chocado setores muito mais amplos e expressivos da comunidade judaica, o único espaço disponível para abrigá-los em São Paulo, foi a Casa do Povo, bastante esvaziada.
Mas este processo de retomada de consciência não implica um reflorescimento da Casa do Povo ou pela esquerda. No plano mais geral, é notório que a "transição democrática" no Brasil ocorre num momento em que o declínio do "socialismo real" já é evidente para muitos. No que concerne a comunidade judaica, é o momento de desaparecimento da geração de imigrantes, de mudanças do perfil sócio-econômico, responsáveis pelo deslocamento das atividades sócio-culturais para regiões urbanas distintas da original. O mais importante e o menos debatido, talvez, se refira ao fato da cultura não isolacionista da esquerda judaica e o encorajamento de integração às lutas do povo brasileiro trazer em si o germe da destruição de uma cultura trazida da Europa oriental que por sua vez não foi substituída por vínculos mais significativos com setores progressistas israelenses. Essa ruptura se dá por duas razões: por um lado os israelenses menosprezam a cultura do judeu do Leste Europeu, chegando em alguns momentos à proibição da língua iídiche e de todas as suas manifestações culturais e por outro, no clima exacerbado da Guerra Fria, os judeus comunistas ignoram que o Estado de Israel é um fato concreto, com sua pluralidade cultural e política e simplesmente o condenam por completo.
Anos de autoritarismo na América Latina e governos de direita em Israel, são fatores que fortalecem os setores democráticos das comunidades judaicas. O esgotamento do modelo do socialismo real e o fim da Guerra Fria caracterizada pelo enfrentamento dos blocos político-militares, pela corrida armamentista e o equilíbrio fundado na ameaça do terror nuclear são fatores determinantes na dinâmica estratégica no Oriente Médio e do papel exercido pelo Estado de Israel de aliado preferencial dos EUA. Os setores da esquerda mais ortodoxa que não atentaram para a crise de civilização que estava se prenunciando, e continuaram a sonhar com o “Birobidjan”[25] acabaram se marginalizando completamente e ficarão na história mas temo que sejam fontes de pensamentos retrógrados e conservadores no futuro. Por outro lado, os setores mais realistas e construtivos vem buscando um novo humanismo, engajando-se nas lutas ambientais, pela cidadania e pela paz e novos meios de superar o sistema capitalista injusto e excludente pela via da democracia e da liberdade. Essa posição implica um aprofundamento dessas questões – a democracia e a liberdade – em condições sociais e políticas novas. É uma posição que pode abarcar as variadas vias contemporâneas de expressão desse humanismo que se redefine, permitindo identificar e criar formas de luta adequadas às também novas formas de fascismo e autoritarismo que afloram hoje. A Casa do Povo não se exime desse debate e tem conseguido trazer mais gente jovem para atividades relacionadas a esse novo judaísmo contemporâneo.
Notas
[1] FREIRE, R., Carta convite enviada a intelectuais brasileiros por ocasoão da criação da Fundação Astrojildo Pereira
[2] LÊNIN, V. I., Discurso proferido por Lênin logo após a tomada do poder pelos Bolcheviques, 1917
[3] HOBSBAWM, E., ”A Era dos Extrtemos”, Companhia das Letras, São Paulo, 1995,
[4]EHRENBURG, I., “Memórias!”, vol. 4, A Europa sob o nazismo, Civilizaão Brasileira, RIO de Janeiro, 1966.
[5] Atas tssaquigráficas do Congresso, Paris, 1937,
[6] KINOSHITA, D. L. “O ICUF como uma rede de intelectuais”, Universum n. 15, Talca, 2000
[7] ”In Gang” (Em Marcha), Editado por Pinie Katz, Abril de 1937 e entrevista oral com Rivka Gutnik.
[8] IOKOI, Z. M. G., “Intolerância e Resistência: a Saga dos Judeus Comunistas”, Associação Humanitas- Univale, São Paulo, 2004
[9] PINHEIRO, P. S,, “Estratégias da Ilusão”, Companhia das Letras, São Paulo, 1995
[10] KOIFMAN, F., “ O Imigrante Ideal”, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012 2,
[11] Singer, I.B., A Família Moskat, Livraria Francisco Alves Ed., Rio de Janeiro, 1982
[12] Smoliar, H., Oif der Letzter Pozitzie, mit di Letzter Hofnung, Ed. I. L. Peretz, Tel Aviv, 1982
[13] Brossat, Alain e Klingberg, Sylvia, Le Yiddishland Revolutionnaire, Balland, 1983
[14] WEINSTOCK Le Pain de Misère, La Découverte, Paris, 1984
[15] VIAZOVSKI, T. O mito do complô judaico comunista no Brasil, Humanitas, São Paulo, 2008,
[16] Ginsburg, J. Aventuras Língua Errante, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1996
[17] Departamento de Ordem Interna, departamento especial formado pelo Serviço Nacional de Informações, Exército e Polícia Militar, encarregado da repressão e tortura de presos políticos nos anos 70
[18] Faziam parte da coordenação Carlota Lachtermacher, Dobe Zonenchein, Ienta Lerner, Ferga Zylbersztajn, Mania Akcelrad, Ita Akcelrad, Tuba Schor, Chaike Lustik, Gitl Rotstein, Clara Steinberg, Regina Landman e Lola Kaufman entre outras
[19] Grol, T., Gueshtaltn un perzenlekhkeitn in der iidicher un velt gueshikhte, Paris, 1976
[20] Hobsbawm, E., Trabalhadores, Ed. Paz e Terra, Petrópolis
[21] SMOLIAR, H., Oif der letzter pozitzie mit der letzter hofnung, Tel Aviv: Ed. I.L. Peretz, 1982. ,
[22] GREEN, D. B., This Day ln Jewish History: Golda’s Soviet welcome, Haaretz, 4/10/2012
[23] Executedtoday.com 1952: Rudolf Slansky and 10 “conspirators”. Acesso em
3/12/2007.
[24] VOLKOGONOV, D., STALIN:triunfo e tragédia, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2004
[25] Região Autônoma Judaica na URSS
[i][i] Entrevista com Mina Fridman, militante do Partido Comunista Argentino e ativista social no meio judaico, realizada em Buenos Aires, em outubro de 2000
Crescimento da economia requer incentivo a investimento
Sérgio Cavalcanti Buarque vai mediar debate da FAP na sexta-feira, com transmissão ao vivo pelo portal e pelas redes sociais
Cleomar Almeida, da equipe FAP
A reforma tributária deve considerar que o crescimento da economia requer mais incentivo a investimento e desestímulo ao consumo, diz o economista e consultor de planejamento estratégico Sérgio Cavalcanti Buarque. Ele vai mediar evento on-line sobre desenvolvimento e equidade na tributação dos dividendos, a ser realizado, pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e Folha da Manhã, sexta-feira (13/8), das 16h às 19h.
Com a presença de outros especialistas no assunto e transmissão pelo portal e pelas redes sociais (Facebook e Youtube) da FAP, o debate deve abordar, sobretudo, duas questões relacionadas às propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional: justiça tributária e redução do imposto sobre o lucro direto de empresas com criação de imposto sobre dividendos.
Assista!
“O consumo é importante porque vai gerar demanda e estimula o investimento, mas, se invisto diretamente, também vou gerar aumento da capacidade produtiva e gerar demanda da cadeia produtiva. Então, é preferível incentivar investimento do que consumo”, explica o mediador.
Ele lembra que o governo federal apresentou “um projeto de reforma tributária muito tímido” e que vai na direção contrária à de duas propostas que já estão no Congresso, mais abrangentes, porque sugere simplificação de impostos, concentrando cinco impostos em apenas um.
Na avaliação do mediador, a proposta do governo tem aspecto interessante que trata de imposto de renda, o que, conforme observa, não está contido nas que foram apresentadas pelo Congresso. “Na proposta de imposto de renda, produz-se um item inovador, muito controverso, que é a cobrança de impostos sobre dividendos”, afirma.
Na prática, este último significa que a empresa paga o imposto de renda sobre o lucro dela e o que sobra é distribuído para os acionistas. “Então, o que está sendo discutido é que esse imposto sobre dividendos faz com que seja imputado, também, com tributos, aos acionistas de empresas, ou, digamos, a renda do capital”, diz o economista.
A pergunta que se coloca, de acordo com o mediador, é a seguinte: na medida em que se cobra imposto sobre a renda do trabalho, que é o salário, por que não cobrar imposto da renda do capital? “É exatamente o que os acionistas recebem de distribuição do lucro que ficou retido na empresa”, explica ele.
Outro ponto importante, na opinião de Buarque, é que o segundo projeto reduz o imposto sobre o lucro direto da empresa e cria imposto sobre dividendos. “Queremos refletir se essa equação não significa um estímulo ao investimento e um desincentivo ao consumo”, ressalta o consultor.
De acordo com o analista, o recurso que fica na empresa só tem uma forma de ser utilizado por ela: investimento. “Então, reduzindo imposto sobre lucro direto da empresa, deixa mais recurso para ela investir ou distribuir para os acionistas. Em tese, ela poderia distribuir mais”, diz.
No entanto, neste caso, segundo Buarque, como imputa-se imposto sobre dividendos, desincentiva mais recursos para os acionistas, que, em geral, os transformam em consumo. “Claro que uma parte pode ser poupança que volta a ser investimento, mas é um incentivo ao consumo”, observa.
“Quando se reduz imposto direito na empresa e se cria imposto sobre dividendo ou imposto distribuído, a pergunta é se isso não tem o lado extremamente positivo, que, ao mesmo tempo, incentiva o investimento e desestimula o consumo, que, em geral, é de luxo”, pondera.
Webinar | Desenvolvimento e equidade na tributação de dividendos
Data: 13/8/2021
Transmissão: das 16h às 19h
Onde: Portal e redes sociais da FAP (Facebook e Youtube)
Cristovam Buarque lista lacunas que entravam desenvolvimento do Brasil
Ex-presidente do IBGE avalia os prejuízos da suspensão do Censo 2021
FAP cria grupos de trabalho para discutir temas relevantes para sociedade
Tributação e modernidade: Congresso avança em reformas desconectadas do país
Benito Salomão / Correio Braziliense
Ainda sob os danos de uma crise sanitária que está prestes a ceifar a vida de 550 mil brasileiros e às vésperas de um ano eleitoral que promete ser o mais duro dos últimos 35 anos, o Congresso brasileiro mergulha em reformas econômicas desconectadas do contexto sanitário e de uma estratégia mais ampla de desenvolvimento do país. Um exemplo disso é a proposta de reforma do imposto de renda que tramita na Câmara via PL 2337/21.
Antes de adentrar nos aspectos mais técnicos da supracitada reforma, é preciso se ater às questões políticas, igualmente importantes. Sobre isso, duas questões deveriam ser respondidas: i) Por que uma reforma do Imposto de Renda, seja ela boa ou ruim, precisa ser aprovada agora e não pode esperar até 2023, de forma que seja objeto de debate público e eleitoral e tenha a legitimação do eleitor? ii) Qual a possibilidade de um modelo tributário bem-feito sair de uma reforma fatiada, isto é, aprovada em etapas, sem estabelecimento claro do que é prioridade e do que é secundário? Aliás, qual o critério de prioridade de uma reforma tributária aos moldes do que tramita na Câmara? Por que o Imposto de Renda e, não, a unificação de impostos indiretos em um único IVA?
As respostas para tais questões devem ser dadas pelas autoridades empenhadas na aprovação dessa reforma, mas algumas considerações devem ser feitas. Em relação à primeira questão, a aprovação de uma reforma por um governo impopular, cuja capacidade de reeleição é baixa e em um período próximo das eleições, pode fazer com que o assunto volte à baila política a partir de 2023, sobretudo se a atual oposição vencer as eleições. Em outras palavras, os açodamentos para aprovação de uma medida de tamanho impacto pode levar o próximo governo eleito a revisitar o assunto e reformar a reforma. Melhor seria que o parlamento tivesse gastando esse capital político para aprovar medidas emergenciais para lidar com a crise sanitária que ainda mata muitos brasileiros.
Em relação à segunda questão, há fatores mais técnicos envolvidos sobre os quais é preciso empenhar maior atenção. Um regime tributário deve se pautar por alguns princípios: i) simplicidade, ou seja, passível de ser compreendido pelo contribuinte, ii) progressividade, o que significa que os impostos devem recair em maior volume sobre contribuintes com maior capacidade de pagamento e, iii) eficiência, isto é, o sistema tributário não pode causar ineficiências no sistema econômico, criando incentivos à sonegação, ao planejamento tributário e, principalmente, à alocação subótima dos recursos na economia.
O primeiro problema do projeto em trâmite é que ele não traz ganhos adicionais em nenhum dos princípios listados acima. Pelo critério da eficiência, uma reforma do IVA parece que traria mais ganhos à economia como um todo, pois unificaria vários impostos indiretos em um único imposto a incidir sobre valor agregado, impedindo, por exemplo, a tributação em cascata nas várias etapas das cadeias produtivas que minam a eficiência do sistema. Pela mesma razão, tal reforma não parece tornar o sistema tributário mais simples, pelo contrário, todas as mazelas do atual sistema, que o tornam excessivamente complexo e criam um elevado contencioso tributário, não são tocadas pela reforma.
Finalmente, no que se refere à progressividade, as melhoras são tímidas e poderiam estar incorporadas em uma reforma tributária mais ambiciosa. Resolver o problema da regressividade da carga tributária no Brasil requer um olhar especial quanto aos impostos sobre patrimônio, que, por sua vez, são constitucionalmente delegados a estados e municípios como IPVA, ITR e IPTU, respectivamente.
Dois problemas adicionais devem ser levados em conta em uma reforma tributária. Ela deve estar associada a um contexto de crise fiscal e estagnação do crescimento econômico ao qual o Brasil está submetido há quase uma década. Em outras palavras, o modelo tributário deve estar alinhado com objetivos da política macroeconômica, que não estão claros neste governo. Como uma reforma dessa natureza pode contribuir com o reequilíbrio das contas públicas e, ao mesmo tempo, não penalizar ainda mais a exaurida capacidade de crescimento da economia brasileira? Lembrando sempre que no Brasil o que determina o tamanho da carga tributária é exatamente o tamanho do gasto público. Apenas para que fique claro, o modelo tributário atual é ruim, precisa, sim, ser reformado, mas para tudo existe um tempo e um contexto. É preciso estabelecer, primeiro, as diretrizes macroeconômicas do país, em seguida vem a escolha dos instrumentos para alcançá-las.
Benito Salomão é economista do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia (PPGE-UFU)
Rogério Furquim Werneck: Tensão política e reformas
Não falta quem nutra a fantasia de que, nos próximos meses, antes da completa mobilização de Brasília com as eleições de 2022, ainda haverá uma janela de tranquilidade política que permitirá engajamento efetivo do Congresso no avanço do programa de reformas. O mais provável, contudo, é que o paralisante clima de alta tensão política que hoje se vê no País perdure por muitos meses mais.
Com base em longo histórico de CPIs criadas com grande estardalhaço e que acabaram dando em nada, vem sendo arguido, agora, que a recém-instalada CPI da Pandemia pode perfeitamente se revelar um completo fiasco. Mas a verdade é que as peculiaridades dessa CPI tornam pouco crível o prognóstico de que, mais uma vez, a montanha acabará por parir um rato.
É preciso ter em conta que nesse momento dramático da evolução da pandemia e de indignação generalizada, com as proporções da devastação e a lentidão com que avança a vacinação, o objeto do inquérito permanecerá sendo uma questão crucial, de fácil entendimento, na qual a grande maioria da população terá grande interesse.
É bom também ter em mente que, tendo se permitido desmandos de toda ordem no enfrentamento da pandemia, o governo já não consegue esconder seu alarme com a instalação da CPI e com os danos políticos que dela poderão advir. E que, ao se deixar levar por reações completamente destrambelhadas, vem garantindo à CPI uma caixa de ressonância de enorme potência que, a mídia, por si só, jamais conseguiria replicar.
Contando com não mais que quatro senadores governistas, entre os 11 membros da Comissão Parlamentar de Inquérito, o Planalto não teve melhor ideia do que conseguir que um juiz federal de primeira instância concedesse grotesca liminar, determinando ao Senado que não permitisse que o senador Renan Calheiros fosse “eleito” relator da CPI, quando, de fato, a escolha do relator não é feita por eleição, mas pelo presidente da Comissão.
Ao ver a liminar solenemente ignorada, o senador Flávio Bolsonaro voltou suas baterias contra o presidente do Senado, acusando-o de irresponsabilidade e “ingratidão”, por ter acatado a decisão do Supremo que determinava a criação da CPI e desacatado a do juiz de primeira instância que impedia a “eleição” do relator.
Na situação em que está, não será com hostilização ostensiva do presidente do Senado e do relator da CPI que o Planalto conseguirá conter os danos políticos que a comissão de inquérito poderá lhe trazer.
Entre as reações desastradas à instalação da CPI, merece também destaque a impensada divulgação, pela “sala de guerra” montada no Planalto, de longa lista de nada menos que 23 flancos distintos pelos quais a postura do governo durante a pandemia poderia vir a sofrer censura na CPI.
Com justa razão, a lista foi logo vista no Senado como um roteiro de confissões de culpa no qual a comissão de inquérito poderia se basear, de início, para organizar o trabalho que tem pela frente.
Tudo indica que, ao longo dos próximos meses, a relação entre o Planalto e o Congresso estará dominada pelos atritos advindos da CPI. A composição da Comissão deixou mais do que claro o caráter flagrantemente minoritário do apoio parlamentar efetivo com que conta o governo.
Tendo isso em mente, alguém acredita mesmo que, a 17 meses das eleições de 2022, o Planalto terá condições de conduzir com um mínimo de sucesso a aprovação de reformas econômicas complexas no Congresso?
É dessa perspectiva que se deve avaliar a pretensão do presidente da Câmara, Arthur Lira, de retomar o esforço de aprovação, ainda que fatiada, da reforma tributária. Entre as muitas razões para ceticismo, não se pode deixar de mencionar que esta é uma agenda sobre a qual o governo tem mantido posições especialmente confusas.
É difícil que, logo agora, com o Ministério da Economia fragilizado, e já privado da colaboração da competente Vanessa Canado, o governo consiga se livrar das suas confusões e dar coerência a uma discussão séria sobre reforma tributária no Congresso.
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/economia/tensao-politica-reformas-24995416
Jorge Henrique Cartaxo: Sobre os meios e os modos
Parece não haver lugar para a decência no Brasil. Além dos desencontros diários do presidente Bolsonaro com a língua portuguesa, o bom senso e a empatia, não raro seus ministros inundam a República com persecutórias aleivosias. O camelô da 25 de março que faz as vezes de ministro da Economia, o personagem de Dante, Paulo Guedes, durante uma reunião do Conselho de Saúde Suplementar na última terça-feira – que ele não sabia que estava sendo gravada – expressou, sem receios, todo o seu olhar sinistro sobre o Brasil, os brasileiros e o nosso tenebroso tempo. “Nas universidades públicas ensinam Paulo Freire, sexo para crianças de 5 anos e há maconha e bebidas nas unidades de ensino mantidas pelo governo”, professorou Paulo Guedes emulando as mais “eruditas” teses bolsonaristas. E num araujiano assombro diplomático acusou os chineses de terem inventado o coronavírus e uma vacina menos efetiva do que a vacina americana. “Os americanos têm 100 anos de investimento em pesquisa. Os caras falam: qual é o vírus? É esse? Tá bom. Decodifica. Tá aqui a vacina da Pfizer. É melhor que as outras. Então, vamos acreditar no setor privado”, vociferou Guedes, bolsonaristicamente, emporcalhando os fatos e a inteligência. Outras aberrações animaram a confraria palaciana que contou com a presença, dentre outros, dos ministros Luiz Eduardo Ramos, Marcelo Queiroga e Anderson Torres.
As insanidades dessa reunião foram tamanhas que se acredita que as ofensas primitivas do ministro Paulo Guedes, vazadas deliberadamente, cumprem uma estratégia no sentido de construir uma nova crise diante dos prováveis avanços da CPI da Covid instalada no início da semana no Senado. “Olha aí uma estratégia já até desbotada no governo federal. Sempre que um ministro não consegue cumprir o prometido ao povo brasileiro, para desviar a atenção do seu fracasso, copia uma das narrativas cretinas dos bolsonaristas ‘terraplanistas’ e soltam na mídia como se fosse uma ‘pérola’,” disse o deputado Fausto Pinto, presidente da Frente Parlamentar Brasil-China, formada por cerca de 270 deputados e senadores.
Bolsonaro, desde a sua posse na presidência da República, vem ofendendo a vida, a dignidade humana, a razão, a ciência, a decência, as instituições, a democracia, a Nação e a República. As tensões, artificiais e reais, sempre animaram o não-fazer do governo Bolsonaro. Do escandaloso descaso com a pandemia, passando pela sua evidente cumplicidade com os crimes ambientais, até as suas constantes sinalizações de que, a qualquer tempo, convocará as Forças Armadas para conter os seus fantasmas, Bolsonaro nunca sentiu, de maneira tão evidente, que o poder não está e nem nunca esteve exatamente em suas mãos.
As CPIs, no Brasil, costumam não dar em nada. É sempre plausível! Mas podem abrir as portas para o impeachment do presidente da República, como aconteceu com o ex-presidente Fernando Collor. Podem também imobilizar o governo, paralisar as aspirações políticas e eleitorais do presidente em exercício, como aconteceu com o ex-presidente Michel Temer que, para conter uma ameaça de um eventual impeachment ou da instalação de uma CPI, não teve condições de se candidatar para um segundo mandato.
Um outro fantasma de Bolsonaro, ainda não devidamente valorizado pela mídia, é a eventual candidatura do senador Tasso Jereissati à presidência da República. Lula, Ciro, Eduardo Leite, Doria e Huck não assustam exatamente a reeleição de Bolsonaro. Ao seu modo, cada um desses nomes evidencia suas fragilidades, ainda que o nome de Ciro Gomes apresente significativas vantagens e qualidades diante dos demais. Já o senador Tasso Jereissati é um personagem diferente. Ele jamais bateu à porta do poder ou empurrou portões de Palácios para se fazer presente na cena pública com o devido destaque. Em 1986, foi convidado para ser candidato ao governo do Ceará, inaugurando a Nova República cearense. Desde então, tornou-se uma das vozes mais respeitadas e acreditadas no universo político do País.
Talvez a única vez que ele tenha se colocado, deliberadamente, à frente de uma disputa política tensa em seu partido, tenha sido na sucessão do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, Tasso sabia que o senador José Serra, que empurrava a porta do Palácio no momento, não teria condições de vencer o candidato do PT. Ele sabia que a elite paulista e o mundo empresarial temiam, por motivos justos ou não, o nome de Serra na presidência da República. Tasso seria o único nome tucano, naquele momento, com chances reais de vencer o Lula e por isso lutou pela indicação na legenda. Ele perdeu no PSDB e o partido perdeu o poder pelas urnas. Essa história deve ser mais rica e bem mais interessante, mas, objetivamente, foi isso o que aconteceu.
Agora, assim como em 1986, Tasso está sendo convocado para ser o candidato que daria qualidade à disputa presidencial, que seria apenas medíocre entre Lula e Bolsonaro. Claro, ainda é muito cedo para previsões. Mas o senador Tasso Jereissati jamais deixaria o seu nome ser colocado como presidenciável e menos ainda se colocaria a disposição da sua legenda, se as conversas, avaliações, possibilidades, articulações, meios e modos, já não estivessem devidamente analisados.
São boas as razões para as apreensões de Bolsonaro e dos bolsonaristas. O senador Jereissati não se fez como homem público tangendo plateias ou sujando os tapetes. De um modo geral, abrem a porta e o convidam. A conferir!
*Jorge Henrique Cartaxo, jornalista, cientista político e historiador
Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/04/jorge-henrique-cartaxo-sobre-os-meios-e.html
RPD || Guilherme Casarões: Ser ou não ser um pária mundial?
Isolamento do Brasil sob o governo Bolsonaro não tem precedentes em nossa história. Congresso Nacional e oposição devem se unir para adensar interação com governos e parlamentos estrangeiros, avalia Casarões
O Brasil está por um triz de se transformar em pária internacional. A crise econômica se arrasta há uma década, agravada pela conjuntura mundial. Desmatamento descontrolado e incêndios ilegais colocam o país nas manchetes de todo o planeta. Violência policial, violação de direitos indígenas e assassinatos políticos causam revolta nacional e arranham a já frágil imagem de nossa democracia. Nos altos círculos da diplomacia ocidental, discute-se seriamente a hipótese de isolar política e economicamente o governo brasileiro, cujo presidente, cercado de militares, é visto como prejudicial às boas relações do Brasil com o mundo.
O ano é 1989, mas poderia ser uma boa descrição do que vivemos hoje. Na superfície, a semelhança entre os dois momentos neste intervalo de três décadas é expressiva. Mas há uma diferença fundamental: ao contrário de José Sarney, enfraquecido, prestes a sair da presidência e com pouco controle sobre o que restou da imagem internacional do Brasil, Jair Bolsonaro quer marginalizar o Brasil como parte de seu projeto pessoal de poder.
Nos últimos dois anos, Bolsonaro construiu relações personalistas (e fugazes) com lideranças de extrema direita, hostilizou sócios de longa data, como Argentina, China e França, e abandonou virtualmente todos os tabuleiros multilaterais nos quais o Brasil se firmara como liderança. Tudo isso com a chocante complacência de seu ministro de Relações Exteriores, que ficará para a história como o diplomata que, pela inédita subserviência e obtusidade ideológica, desmoralizou a diplomacia nacional.
Não surpreende, portanto, que as perspectivas da política externa para 2021 não sejam exatamente alvissareiras. Se depender somente do governo atual, a tendência é agravar o isolamento brasileiro sem qualquer precedente em nossa história bicentenária. O país que se orgulhava da ação internacional pragmática e universalista, sem descurar os princípios pacifistas e multilaterais que marcaram a era republicana, fechou o trágico ano de 2020 causando temor, apreensão e até certo deboche ao redor do mundo.
Ainda que não seja tarefa fácil, creio que o Brasil possa virar o jogo. Antes de tudo, é necessário romper o “bunker” ideológico-olavista que se enraizou no governo. Se Bolsonaro tiver juízo – o mesmo que o levou a reconhecer, embora muito tardiamente, a vitória de Joe Biden – ele precisa substituir, com urgência, os dois maiores porta-vozes da péssima reputação brasileira no exterior, Ernesto Araújo e Ricardo Salles. Afeitos a teorias conspiratórias e inimigos dos consensos científicos e da boa diplomacia, ambos se transformaram em vozes radicalizadas que, ao açularem a militância bolsonarista mais aguerrida, são vistas como reais ameaças à cooperação multilateral.
A demissão de Araújo e Salles é simbólica, mas paliativa. O maior entrave à melhoria da imagem do país é o próprio presidente. Mesmo adotando tom mais moderado, Bolsonaro dificilmente abandonará pautas que lhe são caras politicamente, como a negação da vacina, o Foro de São Paulo ou o nióbio amazônico. Por isso mesmo, uma guinada na política externa dependerá de pressão constante sobre o governo por parte de pelo menos dois atores: o parlamento e os entes subnacionais. Nenhum deles conseguirá agir sozinho, mas poderão, juntos, criar uma espécie de diplomacia paralela que permita que o Brasil sobreviva ao governo de turno.
Outrora reativo em temas internacionais, o Congresso Nacional precisa criar e adensar canais de interação com governos e parlamentos estrangeiros. Forças de oposição devem trabalhar para reocupar espaços nas Comissões de Relações Exteriores das casas e construir, sempre que possível, uma agenda positiva em campos abandonados pelo bolsonarismo, como cooperação técnica, integração regional, direitos humanos e meio ambiente.
Durante a pandemia (e graças a ela), governadores e prefeitos conquistaram certa independência para desenvolver laços de cooperação científica, ajuda sanitária e aquisição de insumos. Diante do cenário de acirrada disputa política, cujo objetivo último é viabilizar nomes de oposição ao presidente em 2022, é possível que alguns desses atores movimentem-se no sentido de ampliar ainda mais os espaços de atuação subnacional em política externa, com importantes implicações para o futuro das relações internacionais do país.
Nada disso se concretizará sem o apoio de setores da sociedade brasileira. Industriais, ruralistas, cientistas, acadêmicos, ativistas, entre outros, reconhecendo a emergente correlação de forças na inserção internacional do Brasil, deverão trabalhar lado a lado com parlamentares e outros agentes políticos para resgatar nossa reputação no exterior. A despeito dos esforços do atual governo para fazer do Brasil um pária, o isolamento e o ostracismo certamente não expressam a vontade de maioria da população.
*Cientista político e professor da FGV EAESP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Michigan (2019-2020).
RPD || Elimar Nascimento: O enigma Bolsonaro
Verdadeiro estelionato eleitoral, com as bandeiras da campanha que o elegeu presidente em 2018 se desfazendo, Bolsonaro mantém-se forte, ocupando o primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para 2022
Se um leitor atento percorrer os principais jornais do País ao longo de 2020, editoriais, inclusive, e seus articulistas, particularmente, encontrará os mais distintos epítetos atribuídos ao Presidente Bolsonaro. Todos negativos. Colhi alguns como exemplo: irresponsável, incompetente, psicopata, errático, acéfalo, imbecil, negacionista e insano. Para não citar o mais comum: antidemocrata. A conclusão de nosso leitor não poderia ser outra: este é um governo a caminho de um fim precoce. As cláusulas indispensáveis, porém, para se alcançar este desfecho estão longe de serem preenchidas: o presidente não perdeu o apoio da opinião pública, tem a seu favor uma rede de comunicação invejável (redes sociais e veículos tradicionais), goza de prestígio entre o empresariado e caminha para obter, senão a maioria, uma força expressiva no Congresso. E ainda conta, em princípio, com o prestígio das Forças Armadas, amplamente representadas em seu governo.
Desde o início de 2020 os principais analistas políticos deste País dizem que o governo Bolsonaro está no fim. E os motivos parecem consistentes: o governo tem desprezado o enfrentamento da pandemia; tem-se omitido nos cuidados com o meio ambiente, e particularmente a Amazônia, recebendo críticas de grandes empresários nacionais e governos estrangeiros; tem uma politica externa desastrosa, sendo objeto de “gozação”, desprezo e escárnio de governos e mídia internacional; tem filhos acusados de prevaricação e o próprio presidente é objeto de investigação por tentativa de uso de entidades públicas em favor de interesses pessoais e familiares; tem estimulado ações contra as instituições democráticas; e detém a capacidade de ter os piores ministros da educação da história deste País.
Um verdadeiro estelionato eleitoral, um dos motivos pelo qual a presidente Dilma sofreu o impeachment, está em curso. As quatro grandes bandeiras de sua campanha eleitoral estão-se desfazendo: o combate à corrupção foi interrompido, com seu ícone despedido e a Operação Lava Jato sendo desfeita; a defesa da nova politica está-se desmanchado a olhos vistos na aliança com o Centrão; a pandemia mandou para o espaço a política econômica liberal, e a batalha pela recuperação dos velhos costumes e valores não avança. Mas Bolsonaro mantém-se forte. Em todas as pesquisas de intenção de voto para eleições presidenciais, ele ocupa o primeiro lugar. Seu governo tem, somados as avaliações de ótimo/bom e regular, 59% de aceitação.
O enigma é ainda mais evidente quando se examinam as recentes eleições municipais. Bolsonaro foi fragorosamente derrotado, inclusive nas últimas eleições realizadas em Macapá, quando seu candidato, contando com o apoio do prefeito e governador locais, sendo irmão do presidente do Senado, perdeu. Venceu apenas nos confrontos diretos com o PT, principalmente no embate mais relevante, em Vitória do Espirito Santo.
Todas as análises sobre esse fenômeno politico pecam pela excessiva simplificação: base ideológica forte, carisma (sic), sentimento antipetista, vocaliza uma opinião majoritária no País (conservadorismo), navega na onda mundial da ascensão da extrema direita.
Para vencer, no entanto, o candidato preferido nas intenções de voto de todos os institutos de pesquisa, será necessário desvendar este enigma: por que, com tantos desmantelos, o Presidente goza de tamanho prestígio? Sobretudo, que a recente tradição brasileira é a de que todos os presidentes são reeleitos. Para vencê-lo, é preciso mais do que um bom candidato, é indispensável desfazer sua imagem junto a opinião pública. Por enquanto, todas as tentativas da oposição e seus críticos foram infrutíferas. Inversamente, parece alimentá-la.
Esse é o maior desafio em 2021 para as forças democráticas: desvendar o enigma do “mito”.
*Sociólogo político e socioambiental. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília e do Programa de Pós-Graduação Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.
RPD || André Eduardo Fernandes e André Borges: A questão fiscal e a urgência das reformas
Governo Bolsonaro tem de romper paralisia em relação às reformas inadiáveis, antes que a economia brasileira “derreta". Desde 2014 que o país vive situação permanente de déficit primários e taxa de crescimento medíocre
A questão fiscal sempre foi um dos problemas fundamentais da economia brasileira. Uma análise histórica desde o início da República revela constante desequilíbrio entre as receitas e as despesas nas contas públicas. Na pandemia, causada pelo novo coronavírus, registrou-se uma explosão dos gastos públicos, que ameaça gerar aumento dos déficits primários e da relação dívida/PIB, aproximando-se perigosamente dos 100%. De acordo com o Ministério da Economia, a previsão mais recente (novembro) de déficit primário para este ano é de R$ 844,6 bilhões, vale dizer, a assombrosa cifra de quase 10% do Produto Interno Bruto!
É ilusão supor que essa situação seja somente reflexo da pandemia. Como dito acima, a questão do déficit público é estrutural. A última vez em que se registrou superávit primário (sem considerar as despesas com juros) foi em 2013, com 1,9% do PIB da época. Desde 2014, o Brasil vive situação de permanentes déficit primários, ao mesmo tempo em que exibe taxa de crescimento medíocre. Em 2019, os primeiros dados do PIB já não foram animadores. O cenário, projetado pelos agentes do mercado, considerando os mais otimistas, chegava a apontar para cerca de 2% de crescimento do PIB. Divulgados, no entanto, os indicadores econômicos de 2018, frustraram-se as expectativas em relação ao PIB, e o mercado chegou a reduzir a previsão de crescimento para entre 1,5% e 2%, isso antes mesmo da chegada dessa pandemia ao Brasil.
Urge, portanto, acelerar a discussão sobre reformas estruturais do Estado brasileiro. Isso é apenas emergencial. Não se pode enfrentar a questão somente depois de a pandemia passar. É preciso enfatizar e ter claro que a arrecadação não é suficiente para bancar as despesas obrigatórias do governo, levando ao financiamento por meio de títulos de dívida, com prazos cada vez menores de colocação e riscos de prêmio crescentes. Sem contar que mais de 90% do orçamento brasileiro é destinado a gastos obrigatórios dos mais variados tipos! Esta obrigatoriedade torna a dinâmica da dívida particularmente explosiva em uma situação de queda brusca de arrecadação como a imposta pela pandemia. Isto é insustentável!
O que até o momento impediu o desastre foi a imposição de uma âncora fiscal, o teto de gastos, objeto, porém, do mais virulento ataque de parte das forças populistas. O teto de gastos é o que ainda dá certa credibilidade quanto à solvência do governo federal. Mas não se pode esquecer que um dos pilares da teoria econômica é que não existe almoço de graça. Vale dizer, impõem-se escolhas e sacrifícios para assegurar, a partir de análises objetivas, amparadas por conceitos técnico-científicos, livres, portanto, de narrativas populistas, as prioridades dos investimentos públicos, se se pretende evitar a degeneração dos indicadores macroeconômicos.
O que tem de ser revisto – privilégios do funcionalismo público e subsídios à zona franca de Manaus, por exemplo? Ou os recursos destinados a merendas escolares ou leitos hospitalares? Qual a escala relativa de importância dos gastos estatais no universo do orçamento? Há consciência nos corredores do poder de que a fragilidade da infraestrutura desestimula o investimento produtivo? Que o elevado custo de aquisição de capital compromete a produtividade do trabalho? Que a produtividade, estagnada desde a década de 1980, se reflete na baixíssima taxa de crescimento dos salários?
Em uma palavra, onde investir para assegurar acréscimo de bem-estar para a população brasileira, tanto agora como no futuro?
Crises são oportunidades, desde que se consiga romper a paralisia do atual governo em relação às reformas inadiáveis, antes que a economia brasileira “derreta”. Reformas nas escolhas feitas no orçamento, reformas no sistema tributário, reformas na administração pública, ou seja, o que não faltam são reformas extremamente necessárias que precisam ser feitas com urgência para que a situação fiscal não leve o país à insolvência a uma outra década perdida ou pior.
Fernando Schüler: A hora é de sair da lógica vazia das guerras digitais e avançar nas reformas
Narrativas extremas perderam fôlego, mas isso não garante que o país pare de procrastinar
Duas narrativas pautaram o debate brasileiro nesta era Bolsonaro. As duas vêm murchando como um balão furado, nos últimos tempos.
Uma delas, governista, conhecida de todos, sempre apostou na versão de Bolsonaro como um Capitão Nascimento capaz de purificar o sistema e destruir o “mecanismo”, como certa vez me explicou um sujeito bastante animado em um desses eventos empresariais.
A narrativa perdeu sua última camada de verniz por estas semanas. Bolsonaro se afasta dos radicais, consolida a base com o centrão, assiste jogo com o ministro Dias Toffoli, faz as pazes, pela enésima vez, com Rodrigo Maia, ganha afagos de Renan Calheiros e é cortejado pelos partidos tradicionais para uma eventual filiação.
A nossa líder fascista de história em quadrinhos, Sara Winter, jogou a toalha. Salpicaram ativistas na internet dizendo “chega”. Muitos deles foram banidos da internet (de mentirinha, claro) por defender o tal “cabo e soldado” que iria fechar a Suprema Corte.
A segunda narrativa apostou suas fichas na tese do abismo. A ideia saborosa de que havíamos nos tornado uma República de Weimar dos anos 1930, que havia em curso uma conspiração fascista “subterrânea” para terminar de vez com nossa democracia.
No fim a coisa esfriou. Leio nesta Folha que “Bolsonaro abriu mão da postura de embate para viabilizar o governo”. Bingo. Viabilizar o governo é isso. Negociar, ceder, fazer acordos. “Politics as usual.” A democracia e sua capacidade de moderar e fazer exatamente o que diz a Folha: induzir a turma a abrir mão, lá pelas tantas, de sua “postura de embate”.
Bolsonaro foi se revelando, com o tempo, o que sempre foi. Um político muito mais tradicional do que a boa parte da crônica sempre fez crer. Seu líder na Câmara é Ricardo Barros, um Vermeer da velha política brasileira. Seu ministro mais barulhento despacha de Washington e o país toca a vida em uma animada campanha eleitoral.
Cereja do bolo, nosso “Hugo Chávez brasileiro”, como li de um ilustre e sempre citado cientista político americano, indica um juiz garantista (seja lá o que for isso), saudado pela OAB e pelo mundo jurídico “do bem”, para o Supremo Tribunal Federal.
Alguma dessas coisas me surpreende? Nem um pouco. Como muitas vezes escrevi aqui, raspando um pouco a tinta, nosso “outsider” sempre foi mais “insider” do que quisemos acreditar. E nossa democracia mais capaz de produzir os devidos enquadramentos.
No mais, eis aí Bolsonaro, um político errático (ou “pragmático”, se alguém preferir), sem um projeto para o país, baixa convicção em política econômica e cuja “agenda conservadora” nunca passou de um punhado de frases de efeito.
As narrativas extremas erraram ao julgar o Brasil pela epiderme da política. Pela lógica das guerras digitais a qual pertencem e ajudam a alimentar. Elas são o feijão com arroz de nossas democracias polarizadas. Vão continuar por aí, ofendendo e espalhando ódio, apenas com menos “sex appeal”.
Seu problema sempre foi o mesmo: elas distraem o país das questões que realmente importam. Entulham o debate público de toxina ideológica. Seu resultado é a paralisia. O diálogo de surdos da democracia atual. E mais objetivamente, no Brasil de hoje, a perda de foco sobre a pauta de reformas que o país precisa enfrentar.
A pergunta a ser feita é a seguinte: o país retomará alguma objetividade agora que o fim do mundo não veio e há um momento de relativa distensão?
Rodrigo Maia garante que o Congresso mantém o ímpeto reformista, mas a verdade é que temos hoje menos consenso em torno da reforma tributária do que imaginávamos ter no início do ano.
A reforma administrativa avançou muito pouco e sequer descobrimos um jeito de financiar um óbvio programa de transferência de renda sem quebrar a regra do teto. Se o país decidisse por um momento sair do modo procrastinador, deveria exigir que o Congresso cumpra o aceno feito nesta semana de que irá cancelar o recesso de verão e trabalhar nas reformas.
No fundo, é disto que o país precisa. Menos conversa fiada e uma dose cavalar de senso de urgência.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Adriana Fernandes: A boiada das reformas
O Congresso tem agora o seu próprio Big Bang para administrar até o final do ano
Em 2017, o Congresso fervia com o debate nacional em torno da reforma da Previdência. A PEC 287 tinha sido enviada pelo presidente Michel Temer no dia 5 de dezembro de 2016 no embalo da aprovação rápida da emenda do teto de gastos.
Enquanto todos os holofotes estavam voltados para as mudanças nas regras previdenciárias, apontada na época como a solução para a crise fiscal do País, a reforma trabalhista foi sendo construída e aprovada sem muitos obstáculos e debates nas duas Casas e na sociedade civil.
O relator da reforma, o ex-deputado tucano pelo Rio Grande do Norte e hoje ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, propôs mudanças em 100 pontos da septuagenária CLT.
De repente, quando se viu, a reforma já estava pronta e rapidamente a votação do projeto foi concluída em julho de 2017 pelo Senado. Já a PEC da reforma da Previdência só saiu do Congresso aprovada após três anos da primeira tentativa do governo Temer.
Mais tarde, a estratégia de negociação da reforma trabalhista – à sombra da “gritaria” que acontecia na discussão da Previdência – foi saudada pela base governista como extremamente hábil e bem-sucedida para iniciar o que as lideranças chamaram de novo ciclo de reformas estruturantes. Marinho perdeu a eleição em 2018, mas ganhou a parada ao ser alçado ao cargo de secretário do ministro Paulo Guedes e articulador principal do governo Bolsonaro para a reforma da Previdência. Hoje, é um dos ministros mais influentes do governo.
No meio desse caminho, até hoje, diversas pautas-bomba e inúmeros “jabutis” foram sendo aprovados, armados e desarmados a um custo elevado para as próprias contas públicas.
Em nome de reformas para garantir a sustentabilidade das contas públicas, uma penca de medidas com aumento de gastos foi aprovada. Maior contradição impossível.
O caso mais recente foi a votação do congelamento dos salários dos servidores públicos até dezembro 2021 e das restrições ao aumento de gastos com pessoal. Foi uma batalha longa até a manutenção do veto presidencial pela Câmara.
Na semana seguinte, a fatura já estava sendo cobrada: a Câmara aprovou a proposta que cria o Tribunal Regional Federal da 6.ª Região, com sede em Minas Gerais. Sem falar nas categorias que correram para garantir reajustes antes do congelamento com as bênçãos do presidente Bolsonaro.
Agora, se fala em parecer do próprio governo que flexibiliza as restrições impostas pela lei recém-aprovada.
A lembrança de 2017 se justifica agora porque várias propostas importantes e polêmicas estão tramitando ao mesmo tempo. A mais ruidosa delas, e que gera debates intensos nas redes sociais, a reforma administrativa que mexe com o funcionalismo público, chegou esta semana desidratada e com blindagem para a elite do funcionalismo e os altos salários.
A reforma administrativa entrou no Congresso como resposta à pressão externa, que incluiu uma mobilização bem articulada de uma frente de parlamentares e de setores da sociedade civil, mas também pela interdição branca que o setor produtivo tem feito na reforma tributária. Todo mundo diz que quer aprovar a tributária para acelerar o crescimento, porém, lá no fundo não é bem assim. Isso vale também para o governo que retirou o pedido de urgência para a votação da primeira fase da sua proposta de reforma enviada no mês passado.
Os maiores riscos desse cenário de múltiplas reformas e escolhas são: aprovar propostas como remendos sem eficácia alguma e abrir a porteira para a passagem de jabutis que minam ainda mais as contas do governo e também as instituições públicas, com o aparelhamento da máquina pública.
Depois da pressão para o envio das reformas, o Congresso tem agora o seu próprio Big Bang para administrar até o fim do ano. A reforma administrativa é só mais um item polêmico a compor a extensa agenda de propostas que estão no Senado e na Câmara sem uma definição de qual delas é de fato a prioridade número um de votação nos quatro meses que faltam para terminar 2020.
Para quem não acompanhou de perto o frenesi do noticiário econômico das últimas semanas, Big Bang foi o apelido dado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao anúncio de um pacote de medidas para a retomada da economia na fase pós-pandemia.
Reforma tributária? Reforma do “RH”? PEC do pacto federativo para corte de gastos? Renda Básica? Novos gatilhos para investimentos? Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Orçamento de 2021? Plano Mansueto para salvar os Estados com as finanças em frangalhos em 2021?
Tudo isso junto e misturado com a disputa pelas presidências do Senado e Câmara, a briga pelo protagonismo e as sessões ainda afetadas pela pandemia. Prato feito para a aprovação de jabutis e propostas malfeitas para “inglês ver”. Mas como inglês não é bobo nem nada, uma hora a ficha cai.