reforma da previdência
Míriam Leitão: Maia no papel de articulador
Rodrigo Maia alerta que o governo ainda não tem votos para a Previdência e diz que quem ganha eleição tem que saber fazer aliados
Em um governo tão cheio de improvisos e erros na relação com o Congresso, o papel do deputado Rodrigo Maia tem crescido. Ele passou a semana dando os conselhos certos na busca da reforma da Previdência. Até os integrantes do executivo acham que Maia pode ser o grande articulador da reforma. “O governo pode encaminhar o que quiser, mas se o presidente da Câmara não quiser não tem pauta.”
Foi o que ele me disse quando, numa entrevista na Globonews, perguntei se não era estranho que ele, presidente de uma das Casas do poder legislativo, seja o grande articulador do projeto do executivo:
— Quando você constrói uma candidatura para a presidência da Câmara, você tem uma agenda. Como o sistema é presidencialista, quem decide o que será colocado na pauta é o presidente da Câmara.
Ele explicou, contudo, que esse poder tem que ser compartilhado com os líderes, e o presidente tem que estar presente sempre na articulação. Disse que exerceu essa liderança no governo Temer, mas “ela estava mais organizada”. Pelas contas dele, hoje não tem mais que 50 votos a favor da reforma:
— A gente precisa, antes de exercer qualquer liderança, tentar organizar junto com os líderes o que vai ser a tal maioria que o governo necessita para aprovar as reformas. O sistema brasileiro é híbrido, é quase semiparlamentarista.
Maia contou que o presidente do parlamento espanhol disse que não entende como se construirá a maioria sem partidos. Ele concorda. Afirmou que é preciso entender o papel dessa “possível aliança” não apenas na aprovação da Previdência, mas no projeto de quatro anos.
Perguntei se o DEM é governo, e ele respondeu de pronto:
— Não. O DEM não é governo.
Isso é a prova da situação criada pelo presidente Bolsonaro. Quando foi pelas bancadas temáticas, ele acabou nomeando políticos, mas os partidos não se sentem dentro do projeto. Há três ministros do DEM no governo. Rodrigo Maia lembra que o ministro Onyx Lorenzoni é da cota pessoal do presidente, mas admite que, se fosse feito de forma diferente, claro que os ministros Henrique Mandetta (Saúde) e Tereza Cristina (Agricultura) poderiam ser resultado de uma articulação do presidente com o Democratas.
Esta semana, o governo começou a conversar com os partidos e dar os primeiros passos na realidade política. É possível formar um coalizão sem os erros do passado.
— Não é nem a velha nem a nova, é a política que vai resolver os problemas do Brasil — diz o presidente da Câmara.
Quando Rodrigo Maia entrou na Câmara, a idade média dos parlamentares era 58 anos, hoje já caiu para pouco mais de 50. E ele, cumprindo o sexto mandato, está ainda abaixo da média, porque tem 48 anos. Mas tem sido muitas vezes a voz mais madura.
Alertou que o governo está perdendo a batalha da comunicação na Previdência e que o projeto entrega argumentos de fácil manipulação para quem não quer mudar o essencial no sistema de pensões e aposentadorias. Alerta que o impacto de mudar o BPC é pequeno, mas o risco é grande. Diz que a elite do funcionalismo quer defender seu direito de se aposentar com R$ 28 mil ou R$ 30 mil, usando os pontos fracos do projeto.
— Quando você usa o velhinho é mais fácil. Eu não gosto de tratar a aposentadoria de funcionário como privilégio, porque ele fez concurso e conquistou assim o seu cargo. Mas a demografia mudou e desorganizou o sistema do ponto de vista atuarial. Não dá para pagar os mesmos valores.
Rodrigo Maia também acha que há dois erros na questão dos militares. Não ter enviado o projeto junto com a PEC e falar em aumentar os soldos junto com a mudança:
— A gente reconhece que R$ 22 mil para um general quatro estrelas é pouco, mas o momento atual não é de falar de nenhum tipo de aumento.
Perguntei se havia ficado sentimento ruim entre ele e o ministro Onyx pela articulação do ministro contra a sua candidatura:
— O presidente escolhe os ministros e eu organizo a pauta. Está tudo bem. Eu ganhei a eleição. Quem ganha a eleição tem que saber construir aliados e não dividir a governabilidade.
O deputado criticou o elogio do presidente Bolsonaro ao ditador Alfredo Stroessner. Disse que Bolsonaro, quando exalta ditaduras, fala para um nicho, mas está formando valores negativos. E lembrou que a maioria nem sabe quem foi Stroessner. Por isso, a frase não traz nenhum benefício ao governo.
José Márcio Camargo: Um difícil começo
A desarticulação do governo ficou patente recentemente; risco de a Nova Previdência fracassar não é desprezível
Os primeiros dois meses do governo Bolsonaro foram particularmente difíceis. Além das dificuldades naturais de um início de governo, o presidente ficou quase 20 dias internado no hospital e foi submetido a uma nova cirurgia, a quarta em menos de seis meses.
Antes mesmo de receber alta, Jair Bolsonaro se indispôs publicamente com um de seus mais próximos aliados, um aliado de primeira hora, que comandou a campanha eleitoral e era considerado um dos pilares do governo. Os ríspidos diálogos por meio das redes sociais mostraram um presidente claramente nervoso e com pouco controle emocional.
Sem dúvida, pelo menos em parte, este comportamento está ligado aos efeitos de quatro anestesias gerais em menos de seis meses, ao longo período de internação hospitalar, além do nervosismo próprio de um início de mandato. De qualquer forma, o episódio levanta preocupação quanto ao futuro.
A eleição para a presidência da Câmara dos Deputados consagrou a liderança de Rodrigo Maia (DEM-RJ), reeleito em primeiro turno com mais de 300 votos, ao mesmo tempo que uma batalha sangrenta se desenrolava na eleição para a presidência do Senado. Ali, no final, o candidato apoiado pelo governo, Davi Alcolumbre (DEM-AP), surpreendeu e venceu o experiente senador Renan Calheiros (MDB-AL), fortalecendo seu “padrinho”, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, credenciando-o para assumir a articulação política do governo.
A batalha deixou feridas, que terão de ser curadas. A nomeação do senador Fernando Coelho (MDB-PE) para a liderança do governo no Senado é parte deste processo. Mas o importante é que as presidências das duas Casas Legislativas foram ocupadas por apoiadores incondicionais das reformas.
Ao receber alta, o presidente levou pessoalmente ao Congresso a proposta da Nova Previdência, um gesto que mostra a importância por ele dada ao projeto e respeito pelo Legislativo. Entretanto, após este gesto, o governo tem sido pouco ativo na divulgação e na defesa da proposta, tanto na mídia tradicional quanto nas redes sociais, levantando dúvidas quanto ao real compromisso do presidente.
Ao mesmo tempo, o processo de formação da base parlamentar está lento e desorganizado. A definição das lideranças somente agora começa a ganhar corpo e as comissões demoram para serem formadas, paralisando o trabalho do Poder Legislativo.
A desarticulação ficou patente em duas votações recentes: a aprovação de um decreto legislativo cancelando o decreto assinado pelo vice-presidente Hamilton Mourão que aumentava o número de funcionários públicos com permissão para declarar sigilo de documentos oficiais, uma fragorosa derrota; e, ao contrário, uma importante vitória do governo na rejeição dos destaques ao projeto de lei que criou o cadastro positivo, que estava para ser votado desde maio de 2018 e cuja rejeição era uma demanda da equipe econômica.
A vitória mostra que o governo já tem parte importante dos votos para aprovar a Nova Previdência. A derrota mostra que, sem organização, o risco de fracasso não é desprezível.
A proposta da Nova Previdência é abrangente, elimina privilégios e terá de passar pelas comissões e pelo plenário. Irá enfrentar forte resistência e ataques das corporações que hoje se beneficiam desses privilégios, à custa do restante da população. O apoio dos presidentes da Câmara e do Senado (que já foi conseguido), uma base de apoio forte, organizada e combatente no Congresso (que precisa ser criada) e o envolvimento direto do presidente da República (que precisa ser confirmado) são condições indispensáveis para que seja possível enfrentar e vencer este desafio. E, sem a Nova Previdência, não há futuro.
* Professor do Departamento de Economia da PUC/Rio, é economista da Genial Investimentos
Samuel Pessôa: A reforma, os pobres e as corporações
Sem ajuste, teremos inflação, que é jogar o não ajuste sobre os mais pobres
Como tenho escrito neste espaço, o ajuste fiscal envolve dois tipos de gasto: itens associados ao contrato social da redemocratização —política de valorização do salário mínimo, ajustes no RGPS (Regime Geral de Previdência Social), no BPC (Benefício de Prestação Continuada) e no abono salarial, entre outros—; e itens associados aos grupos de pressão —ajustes nos RPPS (Regimes Próprios de Previdência Social) e subsídios em geral ao setor privado.
Evidentemente, quanto maiores forem os ajustes sobre as corporações e o setor privado, menores precisam ser os ajustes sobre os mais pobres.
Sem ajuste, teremos inflação, que é jogar o não ajuste sobre os mais pobres. Quem se lembra da hiperinflação da virada dos anos 1980 para os 1990 e de seus impactos sobre os mais pobres sabe do que estou falando.
Nossa experiência nas últimas décadas é que as corporações são mais fortes do que a população.
Vejamos como será no governo Bolsonaro.
No jornal Valor Econômico na terça-feira passada (19), o futuro líder da bancada ruralista, Alceu Moreira, do MDB do Rio Grande do Sul, argumentou ser necessário haver "proteção racional" aos mercados agropecuários, "diante dos gargalos em infraestrutura e do histórico de juros altos no país".
Aplicando a mesma lógica, o setor deveria pagar impostos elevadíssimos para compensar a vantagem do sol e da água o ano todo e do bom relevo do Centro-Oeste.
O argumento do deputado está errado. As vantagens e as desvantagens que cada atividade tem no Brasil são compensadas pelo câmbio, que é flutuante. O cambio flutuante se ajusta à competitividade média das atividades do país. Os juros mais elevados, os custos tributários e trabalhistas maiores e os maiores custos de logísticas são compensados pelo câmbio.
Não faz sentido a agropecuária ter privilégios sobre a indústria e os serviços. Todos os setores precisam dar a sua contribuição para o ajuste fiscal.
Na semana passada, escrevi que o déficit do RGPS urbano foi de R$ 195 bilhões em 2018. Meu leitor atento Ricardo Knudsen notou que esse valor aplica-se ao RGPS todo.
Se retirarmos as contribuições e os gastos do RGPS rural, o déficit reduz-se para R$ 95 bilhões. Se consideramos a perda de receita pela desoneração da folha, do Simples nacional, da desoneração das entidades filantrópicas e do programa de microempreendedor individual, o déficit em 2018 foi de R$ 42 bilhões.
O RGPS rural apresentou em 2018 déficit de R$ 114 bilhões. Se descontarmos a renúncia fiscal da exportação de bens rurais, o déficit cai para R$ 107 bilhões.
Como escrevi há duas semanas, discutir déficit é ocioso. Dado que gastamos 14,5% do PIB (Produto Interno Bruto) com benefícios previdenciários e assistenciais para a terceira idade, incluindo pensão por morte, e nossa carga tributária é de 32% do PIB, é sempre possível estabelecer na forma de lei vinculações de receitas que superem o gasto previdenciário e tornam o sistema superavitário.
O tema é se faz sentido uma sociedade com as nossas características destinar 14,5% do PIB a esse tipo de gasto.
Exercício que fiz com meu colega Carlos Eduardo Gonçalves exposto no blog do Ibre (goo.gl/eQLJRC) indica que gastamos sete pontos percentuais do PIB a mais com previdência do que a norma internacional.
Adicionalmente, mostramos no mesmo exercício que esse excesso de gasto previdenciário reduz a poupança doméstica em cinco pontos percentuais do PIB. Não por coincidência os juros são elevados por aqui.
*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Elio Gaspari: Os ‘çábios’ uniram os marajás aos miseráveis
Não deu outra. Os “çábios” que conceberam o projeto de reforma da Previdência descobriram um jeito de entregar aos marajás a bandeira da defesa dos miseráveis. Fizeram isso ao propor a tunga do Benefício de Prestação Continuada, que dá um salário mínimo (R$ 998) aos miseráveis que têm mais de 65 anos. O projeto é engenhoso. Dá R$ 400 ao miserável a partir dos 60 anos, o que é um alívio para quem recebe, no máximo, R$ 371 pelo Bolsa Família. Com a outra mão querem tomar pelo menos R$ 598 mensais dos miseráveis que têm mais de 65 anos. Eles só terão direito aos R$ 998 se, e quando, chegarem aos 70 anos.
Se o conserto do rombo da Previdência precisa tungar um benefício pago aos miseráveis que têm entre 65 e 70 anos, então é melhor devolver o Brasil a Portugal. O ministro Paulo Guedes produziu um projeto racional e conseguiu apresentá-lo de forma competente. Na essência, podou privilégios. Essas virtudes levam à estupefação diante da tunga de sexagenários miseráveis. Ela só serve para soldar uma aliança maligna e hipócrita. O marajá que acumula privilégios ganha o direito de combater as reformas apresentando-se como defensor dos pobres e dos oprimidos.
Está entendido que o capitão reconheceu que errou ao combater a reforma proposta por Michel Temer, mas se as pessoas podem mudar de opinião, não podem mudar os fatos. Quando ele estava do outro lado da trincheira, lembrava que a expectativa de vida no Piauí “estava na casa dos 69 anos, quando você bota 65, você convida a oposição a fazer sua proposta e melar esse projeto”. Bingo. Os “çábios” fizeram isso, pois tomando-se a expectativa de vida do Piauí, seus miseráveis, que hoje recebem R$ 998, perderão o benefício aos 65 e irão para o outro mundo antes de terem direito a receber o que recebem hoje.
Tosa
O repórter Ancelmo Gois revelou que, num fim de semana, o ministro Paulo Guedes andou pelo Leblon e cortou o cabelo no salão Care, em Ipanema. Esses salões são os únicos lugares onde a turma do andar de cima paga para ganhar cortes. No Care uma tosa custa de R$ 130 a R$ 250. Não é o mais caro, pois há salão que cobra R$ 320.
Para a turma do regime geral da Previdência, um corte de cabelo vai de uns R$ 15 a R$ 30.
ESTÃO CORROMPENDO A MORALIDADE
Duas operações de combate à corrupção produziram episódios que corrompem a luta pela moralidade. Num, a turma da Lava-Jato do Paraná recorreu a uma gambiarra destinada a contornar a propensão libertadora do ministro Gilmar Mendes e prendeu o notório Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto da caixinha do PSDB paulista. No outro, prenderam e soltaram o presidente da Confederação Nacional da Indústria por causa de espetáculos teatrais mal explicados. O doutor Paulo Preto já foi preso duas vezes. Ameaçou os cúmplices com a possibilidade de romper seu silêncio, e documentos suíços mostram que amealhou milhões de dólares.
Para quem olha o caso de fora, ele não deveria estar solto, mas está.
Com barulho coreografado, o Ministério Público revelou que Paulo Preto tinha um bunker onde guardava R$ 100 milhões. Nas palavras do procurador Roberson Pozzobon, “talvez o bunker de Paulo Preto tivesse o dobro do dinheiro do bunker do Geddel”: “Isso é um escárnio”.
Para quem gosta de espetáculo, seria uma prisão exemplar, investigação primorosa. Teve milhões, bunker ,e até dinheiro no varal para não mofar. Era prato enfeitado, porém requentado.
A acusação veio da delação do doleiro Adir Assad e é de 2017. A cifra de R$ 100 milhões também é de 2017. E o bunker? “Talvez”, pois os endereços dados por Assad há dois anos não foram investigados.
São muitos os escárnios que acompanham o caso de Paulo Preto. Seria ótimo se o Ministério Público encarcerador brigasse publicamente com os magistrados libertadores, mas é péssimo que se faça isso com espetáculos de manipulação do distinto público.
Em outro episódio prenderam Robson Andrade, presidente da CNI, porque acharam o que parece ser uma roubalheira em contratos de eventos teatrais em Pernambuco. Se investigação de malfeitorias praticadas com dinheiro do Sistema S pretende girar em torno de festivais de bonecos é melhor economizar o dinheiro dessas operações espetaculares.
COISA PARA MAGO
Diversos dirigentes do PSL não foram convidados para a posse do capitão. Alguns se fizeram de desentendidos e apareceram nas solenidades.
A saída de Gustavo Bebianno deu uma enorme desarrumada no tabuleiro, e o presidente precisará de um mago para consertá-la. Se houver bom senso, Bolsonaro deverá começar seu serviço construindo uma convivência saudável com Rodrigo Maia.
DORIA DE OLHO
A turma do capitão gosta de pensar que a oposição ao governo vem do PT e da esquerda. É uma meia verdade. O verdadeiro polo alternativo está em São Paulo e gira em torno do governador João Doria. É para lá que confluem e são estocadas as ambições e os ressentimentos que Bolsonaro produz.
BANCADAS TEMÁTICAS
Para aprovar a reforma da Previdência o governo abriu um balcão de promessas para emendas de parlamentares. Acreditou na história das “bancadas temáticas”?
Tente Papai Noel (os deputados não acreditam em Papai Noel nem em promessas de liberação de recursos de emendas).
MARIA THEREZA FALA
No mês que vem chegará às livrarias “Uma mulher vestida de silêncio”, de Wagner William. Contará a história de Maria Thereza, a linda mulher do presidente João Goulart, um marido protetor e promíscuo.
Eles se casaram quando ela tinha 15 anos e ele, 37. Aos 21, Maria Thereza se tornou a bonita e elegante mulher do presidente da República e, aos 23, deixou a Granja do Torto com dois filhos pequenos para um exílio que durou 22 anos. O desterro terminou quando ela atravessou a fronteira levando o marido dentro de um caixão.
Em “Uma mulher vestida de silêncio” Maria Thereza conta sua história triste. Enquanto foi a mulher do poderoso Jango, era perseguida por um acervo de maledicências. A maior, por pública, vinda do governador Carlos Lacerda. Passou-se mais de meio século e nunca apareceu um só fiapo de veracidade, mas assim era o mundo.
Maria Thereza Goulart foi detida por duas vezes em condições humilhantes, viu as fronteiras das traições e da ingratidão, comeu o pão que Asmodeu amassou e nunca mostrou ressentimento, nem durante a cerimônia em que os restos mortais de seu marido voltaram a Brasília. Aos 78 anos, vestida de silêncio, Maria Thereza Goulart divide seu tempo entre Porto Alegre e o Rio.
ERRO
Estava errada a informação que saiu aqui, contando que os sapos, quando colocados numa panela com água aquecida lentamente, não percebem o calor e deixam-se ferver. Trata-se de pura lenda.
Quem se deixa ferver ou fritar são os ministros. Muitos sapos são feios, mas nenhum é bobo.
João Domingos: Otimismo exagerado
Praticamente impossível Congresso aprovar reforma da Previdência até junho
É compreensível que todos – ou quase todos, pois existem também os que continuam a afirmar, de boa ou má-fé, que a Previdência não tem déficit – queiram a aprovação o mais rápido possível da reforma da Previdência por parte do Congresso. Afinal, a proposta foi considerada boa por economistas e por quem entende do assunto, há elogios à alíquota progressiva, por trazer justiça social, e o debate sobre o tema parece estar suficientemente maduro. Mas tem havido exagero nos cálculos feitos quanto ao término da votação. Ou até na facilidade com os que os votos favoráveis serão conquistados.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), por exemplo, diz que, se a proposta for aprovada na Câmara até abril, ele garante sua finalização antes do recesso de julho. A não ser que haja um milagre, e um milagre numa matéria tão polêmica quanto a reforma da Previdência parece fora de cogitação, jamais a Câmara conseguirá terminar a votação da proposta em abril. Em primeiro lugar, a Câmara não tem ainda nem Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) montada, como não tem comissão nenhuma. A tramitação da proposta começa obrigatoriamente pela CCJ. Depois, se admitida, analisada a constitucionalidade, forma-se uma comissão especial, que tem 40 dias de prazo para dar o parecer, que será encaminhado ao plenário para votação em dois turnos, com interstício a ser observado.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), prometeu que na semana que vem a Câmara estará com sua Comissão de Constituição e Justiça pronta. Não será assim tão fácil defini-la para que comece logo a trabalhar. Sem outras comissões para as quais os deputados possam ser enviados, e com a reforma da Previdência em destaque, está na cara que todo parlamentar vai pressionar seu líder para indicá-lo para a CCJ. Será um Deus nos acuda. No próprio PSL do presidente Jair Bolsonaro, partido para o qual foi prometida a presidência da Comissão de Constituição e Justiça, há disputa ferrenha entre os que almejam chegar lá. Já os partidos de oposição garantem não ter nenhuma pressa para indicar seus integrantes.
Desse modo, é possível que a sessão de instalação da nova CCJ só ocorra depois do carnaval. Em seguida, haverá o embate de sempre entre governistas e oposição, com manobras regimentais das mais diversas. A comissão especial, nesse caso, só deverá iniciar seus trabalhos na segunda quinzena de fevereiro.
Rodrigo Maia prometeu ao ministro da Economia, Paulo Guedes, rapidez na votação. Mesmo assim, ele pensa diferente de Alcolumbre. Calcula que a reforma da Previdência só sairá da Câmara em junho.
Já o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), acredita que a reforma pode ser aprovada em setembro. Se tudo der certo. Com isso, no quarto trimestre o País já teria a nova Previdência, o que poderia destravar investimentos.
É preciso levar ainda em conta que o projeto do governo para a reforma da Previdência tem muitos “bodes” ou “jabutis”, expressões usadas na política para se referir a partes de uma proposta que não têm nada a ver com o assunto tratado. O que certamente vai gerar debates intensos e causar algum tipo de atraso.
Entre “bodes” e “jabutis”, já foram identificados o que isenta as empresas do pagamento de multa de 40% do FGTS para trabalhadores que se aposentaram e continuam trabalhando e o que transfere para Lei Complementar a definição sobre a idade-limite para que o trabalhador fique na ativa, o que poderá derrubar a chamada “PEC da Bengala”, que tornou compulsória a aposentadoria aos 75 e não mais aos 70. Essa PEC possibilitou o adiamento da aposentadoria por parte dos ministros do STF Celso de Mello e Marco Aurélio Mello.
Pedro Doria: O fascismo e o digital
Grandes transições econômicas deixam todos numa grande insegurança
Deixe que uma discussão transcorra por tempo o bastante na internet, diz a Lei de Godwin, e alguém por certo será comparado a um nazista. Mais recentemente, a política do mundo parece ter embarcado nesta – tem muita gente vendo fascistas por todo lado. Há muito de paranoia, nisto. Há também uma intolerância da esquerda com a direita. Por tanto tempo se chamou o centro de direita que quando aquela, a verdadeira, dá suas caras muita gente a recebe com espanto. Mas há também, entre os que veem um mundo assombrado por fascistas, alguma razão.
Esta discussão tem tudo a ver com o ódio nas redes, assim como tem com a reforma da Previdência.
O fascista original é Benito Mussolini, convidado pelo rei italiano a formar gabinete como primeiro-ministro em 1922, e morto pela ira do povo em 45. História é pop e, em geral, o conhecimento que temos de história é aquele dos clipes curtos e uns marcos fundamentais. Fascismo, portanto, é aquele governo totalitário da direita de durante a Segunda Guerra, aquela mesma que fez o Holocausto.
Mas o fascismo original não nasceu totalitário, tampouco surgiu do nada. E, se a afirmação parece polêmica, ela é de Palmiro Togliatti, sucessor de Antonio Gramsci como secretário-geral do Partido Comunista Italiano, que comandou entre 1926 e 1964. O fascismo nasceu como improviso em cima de uma situação atípica.
A Itália imediatamente após a Primeira Guerra vivia uma situação econômica muito complexa. O conflito empobreceu a todos, custou a vida de 7% da população masculina e, não bastasse, a transição de uma economia agrícola para industrial estava a pleno vapor.
Estas grandes transições econômicas deixam a todo mundo numa grande insegurança. Profissões estão desaparecendo. Gente que achou que trabalharia no mesmo ramo de pais e avós, de repente, vê aquela garantia desaparecer. Não há ideia do que será o futuro, sobram insegurança e incerteza. É um cenário tão difícil que o liberalismo não tem respostas imediatas para dar. A democracia liberal é mais frágil quando o mundo está em mudança rápida. Só os radicais têm respostas claras. No biênio imediatamente anterior à repentina ascensão de Mussolini, parecia que os comunistas fariam na Itália sua segunda revolução. Era uma greve após a outra, quase deu. Naquele cenário pós-guerra, com inúmeros veteranos desempregados na rua, Mussolini os reuniu, vestiu-os com camisas pretas, e saiu por ali impondo ordem na base do murro. Morreu muita gente nos embates entre fascistas e sindicalistas.
E é isto que temos em comum com aquele tempo. Cá estamos na transição da economia industrial para a digital. Há muita gente que planejou um futuro e viu sua indústria desmoronar. Vai acontecer com mais pessoas – os sociólogos os vêm chamando de precariado. Como nos anos 1920, a democracia liberal não tem remédios rápidos ou mesmo claros. Não bastasse, mudanças demográficas e indústrias várias em crise fazem com que a previdência em todo o mundo tenha de ser reinventada.
Mas não temos um bando de veteranos de guerra desempregados e treinados para a batalha nas ruas. Tampouco temos sindicalistas que forçam greves para agravar a crise e forçar uma revolução. O fascismo não veio sozinho – com ele veio, também, o comunismo. Radicais e totalitários, ambos. Soluções demagógicas, com promessas fartas de utopias inalcançáveis. Desta feita, não parece que teremos nem um, nem outro. Talvez outras coisas.
Mas isto não muda um fato: nas mudanças econômicas profundas, a democracia liberal entra em crise e demagogos e radicais fazem a festa. O digital virou política, é causa e meio, e com ele não será diferente.
César Felício: A arbitragem de perdas
Bolsonaro está fadado a fazer a reforma possível
As reformas da Previdência de hoje, em regra, são um jogo onde quase todos perdem. A regra vale para o Brasil e para o mundo. Arma-se um cenário em que se tem, de um lado, o Estado, tentando reter recursos, e do outro dependentes de assistência social, trabalhadores, empregados públicos, em alguns casos empresários, todos submetidos a rodadas adicionais de sacrifícios, pagando mais e trabalhando mais. Nada mais fácil do que armarem-se grandes frentes contra a reforma.
No ano passado, Putin aproveitou a distração na Rússia provocada pela Copa do Mundo para propor uma reforma da Previdência elevando de 60 para 65 anos a idade mínima para homens e de 55 para 63 a das mulheres. Houve grandes protestos populares e Putin foi obrigado a ceder um pouco para obter a chancela do Congresso.
A proposta de Bolsonaro impõe perdas a quase todos, ainda que de forma assimétrica - a base é mais poupada do que o topo - e há um ganhador, o sistema financeiro, a depender do avanço da capitalização. É natural a resistência ao projeto e a tendência que sua aprovação não seja sumária e seu conteúdo seja diluído. Isto não quer dizer que o ambiente para a vitória governista não exista, como já se tratou nesta coluna, mas demandará grande capacidade da articulação da base em saber a hora de ceder e estabelecer as linhas das quais não poderá transigir. Por enquanto esta linha ainda não foi traçada, já que o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, disse que não há nenhum ponto intocável na PEC da Previdência, conforme relatou a repórter Ana Krüger no Valor PRO na tarde de ontem.
A reforma da Previdência de Bolsonaro, conforme o que venha a ser proposto em relação à capitalização, carrega uma ironia, em se tratando de um governo com tamanha participação de militares de reserva: marca a reversão de um modelo de seguridade social impulsionado nos governos Castelo Branco, Médici, Geisel e Figueiredo. Retorna-se a um dos fundamentos do que havia antes.
Quando o sistema previdenciário começou a ganhar corpo no Brasil, nos anos 30, o regime que havia era o da capitalização. Getúlio centralizou as antigas caixas de pecúlio nos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) conforme a corporação. Havia o dos servidores do Estado, o dos marítimos, o dos bancários, o de transportes e cargas, o dos comerciários e assim por diante. A contribuição era tripartite: aportavam o Estado, o setor patronal e o trabalhador. O benefício seria concedido conforme o que fosse acumulado, individualmente. Quem dava as cartas era o Ministério do Trabalho, e esta é uma diferença essencial em relação ao modelo bolsonarista.
No Brasil de Vargas, em uma primeira fase o regime de capitalização depauperou as aposentadorias, conforme demonstram os pesquisadores Lara Lúcia da Silva e Thiago de Melo Teixeira da Costa, no artigo "A Formação do Sistema Previdenciário Brasileiro: 90 anos de história", de 2016, disponível no site da "Revista Administração Pública e Gestão Social". Em 1931, o valor da aposentadoria média era de R$ 18.442,37 por ano, em valores de 2015. Em 1945 caiu para ridículos R$ 5.744,86. Os fundos, contudo, se acumulavam: em 1939 o saldo correspondia a 70,8% da receita.
No período histórico seguinte, entre 1946 e 1964, o caixa dos IAPs tornou-se o motor da máquina política ancorada no clientelismo. À época não havia separação entre o sistema de saúde e o da previdência e os institutos criaram hospitais para seus segurados. O gasto com assistência médica em relação à receita sobre contribuições pulou de 3,6% para 26% entre 1947 e 1965. Mas cada um cuidava da sua corporação: em uma lógica de capitalização, ainda que sob controle estatal, a universalização do bem-estar social não fazia sentido.
O caixa dos IAPs também bancou investimentos de infraestrutura, como os da Chesf, por exemplo. Como o sistema de financiamento era tripartite, o ônus do Tesouro aumentava conforme a expansão do sistema, que pulou de 2,7 milhões de segurados em 1945 para 4,4 milhões em 1960. À medida que a crise fiscal do governo se agravava, o Estado retardava seus aportes. Quando os militares tomaram o poder, em 1964, a capitalização comandada pelo Estado era um regime falido.
Por meio de diversas medidas, os governos militares implantaram o regime de repartição, agora em declínio. Os IAPs foram unificados no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), o financiamento passou a ser exclusivamente do trabalhador e das empresas, o Estado ficou com o comando. Na Constituição de 1967, imposta por Castelo Branco, estabeleceu-se a diferença de cinco anos entre a aposentadorias de homens e mulheres. No governo Médici, a aposentadoria foi estendida ao trabalhador rural, independentemente de contribuição. No de Geisel, a gestão do sistema de saúde foi transferida para uma autarquia separada. Figueiredo calibrou o financiamento, estabelecendo que aposentados e servidores deveriam contribuir para o sistema e aumentando as alíquotas previdenciárias do setor privada.
A previdência social daquele tempo, está claro, era injusta, mas se tornou mais universal do que era antes. Não havia preocupação em cortar benefícios, a inflação se encarregava de corroer seus valores. O que se quer argumentar com esta digressão histórica é que a concepção do modelo previdenciário que nos anos 90 começou a ser reformado nasceu no período militar. E tal como o modelo anterior, ele também faliu.
Com a redemocratização, os quatro presidentes que reformaram a Previdência miraram no corte de benefícios, sempre de maneira insuficiente para conter a escalada do déficit. Coube a Fernando Henrique substituir o tempo de trabalho pelo tempo de contribuição, como pré-requisito de aposentadoria e desestimular as requisições precoces com o fator previdenciário. Lula limitou o benefício integral para o funcionalismo que entrasse na máquina pública de 2003 em diante. Dilma regulamentou os fundos complementares para os servidores públicos. Temer nada conseguiu, mas não por falta de tentativa. Tiveram todos o azar, por assim dizer, de serem obrigados a arbitrarem perdas dentro da lógica democrática. Bolsonaro também terá o ônus de fazer uma reforma incompleta. Outras virão.
*César Felício é editor de Política.
Vinicius Torres Freire: Guerras, perdas e ganhos da reforma
Mudança é enorme, achata salários e benefícios e tem vários aspectos justos
O projeto de reforma da Previdência é mudança enorme. Vai levar uns dias para mastigar detalhes e digerir com muitas contas o seu impacto. Das propostas que acabam de sair do forno, parece importante reter o seguinte:
Primeiro. Parte do que parece uma reforma das aposentadorias dos servidores públicos pode ser entendida como um plano de redução de salários e do valor de aposentadorias que já são pagas.
A contribuição dos servidores ativos e inativos, de governo federal, estados e municípios vai aumentar bastante. Nos casos extremos, para quem ganha na casa dos R$ 30 mil, a contribuição efetiva vai aumentar em mais de 40%. Mesmo para o setor privado, a contribuição de quem ganha mais vai subir.
Segundo. Para os trabalhadores do Regime Geral (setor privado, celetistas), em geral a idade mínima pula logo para cerca de 61 anos (homens) e 55 anos (mulheres), com exceção daqueles trabalhadores que têm pelo menos 33 anos de contribuição (homens) e 28 anos (mulheres).
Terceiro. Depois da reforma, o valor das aposentadorias do Regime Geral seria definido por lei complementar. Enquanto a lei não vem, as normas (talvez) provisórias de cálculo vão impedir quase todo o mundo de receber o teto do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). É um achatamento implícito do valor de benefícios.
Quarto. A redução de despesas prevista pela reforma de Jair Bolsonaro é no máximo igual à estimada pela reforma de Michel Temer, na versão original, no que diz respeito ao RGPS.
A economia da reforma Bolsonaro está inflada pela economia devida ao fim do abono salarial para quem ganha mais de um salário mínimo. No caso Temer, a economia seria de uns R$ 802 bilhões em dez anos.
No caso Bolsonaro, sem levar em conta a limitação do abono, uns R$ 795 bilhões.
Quinto. De qualquer modo, lei complementar detalharia vários aspectos da reforma. Os valores de economia e benefícios podem mudar.
Sexto. Entre parlamentares e governadores, em especial do Nordeste e Norte, a reforma Bolsonaro está apanhando nos mesmos lugares em que reforma Temer foi golpeada: na redução dos benefícios para idosos miseráveis e do valor das pensões por morte.
Se o clima político não mudar muito, a reforma Bolsonaro vai ser lipoaspirada do mesmo jeito que a de Temer, levando um talho de mais de 20% na economia prevista.
Sétimo. O piso do benefício para idosos miseráveis, hoje um salário mínimo, passaria a ser de R$ 400.
A pensão por morte passa a ser de 50% do valor da aposentadoria de quem morreu, mais 10% por dependente. Essas novas normas redundam em economia de mais de duas centenas de bilhões na reforma. Vão levar chumbo grosso no Congresso Nacional.
Oitavo. A reforma é um avanço na equiparação das aposentadorias de servidores às dos demais trabalhadores. Mesmo servidores que entraram no serviço público antes de 2003, protegidos por outras reformas, vão perder. A idade mínima de aposentadoria dos professores do ensino básico (até o ensino médio) vai subir bem.
Nono. A reforma Bolsonaro federaliza as aposentadorias de policiais militares e bombeiros militares, que saem da competência dos estados e passam a ser assunto de competência da União, do governo federal.
Décimo. Lá no meio da reforma, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) perde 30% da receita anual que recebia do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador, bancado por contribuições do PIS/Pasep). São uns R$ 6 bilhões por ano.
Maria Cristina Fernandes: Previdência testará serventia de Bolsonaro
Ambições de Moro, Guedes e caserna superam trapalhadas
A reforma da Previdência do governo Jair Bolsonaro foi talhada para arregimentar o apoio dos trabalhadores mais pobres dos centros urbanos contra a elite do funcionalismo. É este o fundamento da progressividade da proposta que reduziu a alíquota dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada com rendimento até um salário mínimo para 7,5% e aumentou aquela de carreiras de Estado com rendimentos alinhados pelo teto para 16,8%.
Esta será a propaganda que escorregará para a fantasia se incorporar o discurso de que a alíquota máxima será de 22%. Este percentual apenas incidirá para aqueles que recebem acima do teto de R$ 39 mil, só ultrapassado com penduricalhos que não entram na base de cálculo da contribuição previdenciária.
Entre aqueles que serão onerados com alíquotas de 16,8% estão servidores responsáveis pelo caixa do Estado (Receita, Tesouro e Banco Central), pelo sistema de Justiça (juízes, procuradores e defensores públicos) e pelas castas mais altas do Legislativo. Contra esta tropa, a proposta tem as digitais militares e a aposta redobrada na mobilização pelas redes sociais.
Entre os militares da reserva que compõem o primeiro escalão do governo, há generais que recebem aposentadorias de R$ 12 mil, o equivalente a menos de um terço dos rendimentos previdenciários da elite do funcionalismo alvo da proposta.
Ao reduzir, ainda que simbolicamente (meio ponto percentual), a alíquota dos trabalhadores de mais baixa renda, o presidente Jair Bolsonaro se dirige às periferias urbanas que engrossaram a votação do PT em 2018, e busca incorporá-las à sua base de apoio. Precisará delas para enfrentar desgastes em setores do seu próprio eleitorado que viu seu discurso de campanha envelhecer precocemente.
Ao manter a equiparação da idade mínima dos trabalhadores dos setores público e privado como cerne da proposta, o presidente apostará no discurso da justiça social para reverter o desgaste. Não terá, no entanto, facilidade em emplacar o figurino Robin Hood. Enfrentará o dissabor de trabalhadores rurais que terão que comprovar contribuição de 20 anos para uma aposentadoria hoje automaticamente concedida por idade. Encontrará ainda a resistência à elevação de 65 anos para 70 anos para o acesso ao Benefício de Prestação Continuada que atende os 3 milhões de idosos mais vulneráveis da população.
A proposta foi hábil em três lances. Mitigou os danos sobre categorias com poder de mobilização urbano, como professores e policiais. Protegeu os militares das barganhas corporativas, jogando as mudanças no seu regime para uma proposta posterior. E, finalmente, ao mandar para a legislação complementar as regras da previdência privada, também adiou o embate entre fundos de pensão de servidores e os bancos gestores de fundos de previdência.
A proposta é talhada para o embate entre redes sociais, de um lado, corredores e galerias do Congresso, espaço por excelência das corporações, do outro. O espetáculo da demissão do secretário-geral da Presidência, no entanto, mostra um golpe no modelo virtual ainda a ser superado. Um governo minoritário não é capaz de se mover sem acordos no Congresso e não é possível mediá-los quando a política é operada "on the records".
Michel Temer perdeu qualquer capacidade de operar quando teve seus diálogos com Joesley Batista expostos à luz do dia. A diferença é que a iniciativa de exibi-los partiu de um réu acuado. No governo Bolsonaro, é uma manobra apadrinhada pelo próprio presidente. Nem se o PSL fosse um partido de anjos teria chance de dar certo.
A aposta redobrada nas redes terá a 'prensa' como órgão auxiliar de sua articulação política. A surpreendente companhia feita pelo ministro da Economia ao colega da Justiça na apresentação do pacote de combate à violência e à corrupção mostra que ambos esperam que a tramitação conjunta dos projetos lhes traga benefícios mútuos.
Verbalizado ainda na transição, por Paulo Guedes, o modelo da 'prensa' parte do pressuposto de que os parlamentares não negariam reformas a um governo intransigente na defesa da moral pública. O novo Congresso ainda não havia tomado posse quando o filho mais velho do presidente se tornou vítima desse alçapão. Foi apenas a primeira. A exibição do laranjal do PSL mostrou que o partido de Bolsonaro só contribuiu com a renovação das fichas corridas do Congresso.
O enfraquecimento de Bolsonaro levou Moro a transformar o combate ao caixa dois de eixo fundamental em acessório, enferrujando precocemente a 'prensa'. O ministro deixou seu pacote refém da crítica de que tem visão unilateral do combate à violência. Credita-o mais ao endurecimento das penas do que à transparência das políticas de segurança pública e ao combate da corrupção policial.
A aliança entre Moro e Guedes ainda cobrará do ministro da Justiça a defesa de uma proposta que atinge os benefícios previdenciários de sua base no Judiciário e no Ministério Público. O ministro conta, no entanto, com o apoio de fatia das redes sociais bolsonaristas que se afastaram do presidente mas mantêm sua aposta no Partido da Justiça e em suas pretensões de poder. A aliança com os ministros da caserna é nítida no entrosamento com o qual incorporaram o combate ao narcotráfico à política de segurança nacional, ícone do alinhamento militar entre Brasil e Estados Unidos.
A dobradinha entre Moro e Guedes mostra que as ambições deste governo ultrapassam as trapalhadas da família Bolsonaro. Juntos, abriram frentes de batalha contra o Sistema S, contra os adversários da Lava-Jato e, agora, se insurgem contra as castas da Previdência. Compraram mais inimigos do que a mobilização política do governo é capaz de enfrentar. Para lhes ser útil, Bolsonaro terá que ser capaz de mobilizar a audiência.
No melhor dos cenários, a reforma da Previdência, vai operar uma mudança na base de apoio bolsonarista semelhante àquela do governo Luiz Inácio Lula da Silva. No pior, cederá espaço à aliança entre a caserna e Moro, que usufruirá da prerrogativa de liderar um Estado policial que prescinde das baionetas para se impor.
William Waack: A hora do capitão
As dificuldades de articulação política do Planalto vão testar a estratégia dos militares
Levava um tempão antigamente até que conversas confidenciais envolvendo um presidente e seus principais ministros aparecessem transcritas em algum arquivo. Agora é quase em “real time”. Como sempre, são elucidativas.
A audionovela envolvendo o presidente Jair Bolsonaro e o exonerado ministro da Secretaria-Geral Gustavo Bebianno – um de seus colaboradores mais próximos – confirma um vencedor ainda em clima de campanha eleitoral, totalmente preso ao círculo mais próximo familiar e subordinando temas centrais às rusgas pessoais. Ou seja, Bolsonaro está muito distante ainda de “institucionalizar” seu papel, talvez nunca o consiga.
Ao dar entrevistas comentando a audionovela que ajudou a divulgar (o episódio confirma que não existe lealdade em política), Bebianno forneceu uma importante radiografia do papel dos militares em todas as fases do processo que levou Bolsonaro ao Palácio. Sabe-se publicamente agora que os militares forneceram os planos estratégicos de governo. E os quadros para executá-los. Sem eles, o presidente provavelmente não tem condições de sobreviver no cargo, tal como a situação se coloca agora.
Cabe recordar que a entrada de algumas principais cabeças entre os militares (então fardados ou não) na campanha de Bolsonaro ocorreu de forma relativamente tardia. Deu-se em grande parte por uma leitura angustiada com a possibilidade de o País resvalar para uma situação incontrolável. Esse temor se agravou entre lideranças militares durante a semianarquia da greve dos caminhoneiros. E foi exacerbado pela bagunça institucional no domingo em que Lula saía e ficava na cadeia de hora em hora por causa de uma canetada de um desembargador.
Os líderes militares acolheram Bolsonaro também como instrumento eficaz na “guerra cultural” – os militares usavam a expressão “frear a esquerdização do País” – e como personagem político de apelo à estabilidade e à ordem. Não cabe na cabeça deles um Bolsonaro como agente de caos político, seja pela influência do clã familiar, seja pela dificuldade em impor um sentido e disciplina ao próprio partido pelo qual se elegeu, seja por estapafúrdia ideologia – e às vésperas de seu grande desafio do momento, a reforma da Previdência.
Essa mesma reforma, com o projeto apresentado ontem, vai testar, talvez precocemente (pela confusão política inicial), a “grande estratégia” de juntar a uma onda disruptiva e abrangente (a que levou Bolsonaro à Presidência) os méritos e o preparo de um grupo treinado para administrar e coordenar – coisa que os oficiais-generais aprenderam nas escolas de Estado-Maior. Esse lado eles, os militares, entendem bem. O que os deixa inseguros, pois não têm treino nisso nem experiência direta, é a política.
Bolsonaro pretende agora ser o articulador político dele mesmo. O teste é severo, e muito mais abrangente do que conseguir os 308 votos mínimos necessários na Câmara dos Deputados para aprovar a reforma da Previdência (sem a qual a economia não destrava) e fazer andar o pacote anticrime de Moro (importante medida de sucesso do governo). Requer um jogo de cintura que as hostes esbravejantes em redes sociais confundem com tibieza. E a inevitável colaboração de profissionais (como a do ex-ministro de Dilma agora na função de líder do governo no Senado) que a mesma turma da lacração carimba de “política desprezível”.
Bebianno diz que chamava Bolsonaro sempre de “capitão”. É um título de forte apelo positivo. O capitão do avião, do navio, do time. A figura da autoridade, comando e respeito. Na acepção puramente militar do termo, capitão ainda é um oficial júnior que, por mais brilhante que seja, não tem o sentido de direção e a visão abrangentes dos oficiais superiores.
El País: Governo promete militares na reforma da Previdência para mitigar resistência
Derrota em projeto simples nesta semana, falta de articulação com o Congresso e sinais de aliados acenderam sinal de alerta no Planalto
Por Afonso Benites, do El País
Parte também da estratégia de mitigar a resistência, o Governo se comprometeu a enviar até o dia 20 de março dois novos projetos ordinários. Um que altera o regime de aposentadoria dos militares e outro que fecha o cerco contra os grandes devedores previdenciários, tudo para tornar mais palatável politicamente um projeto geral de mudança da Previdência, considerado duro contra a elite do funcionalismo público que se aposentará no futuro, mas também visto com reserva em alguns setores por abrir a possibilidade de benefícios e pensões abaixo do salário mínimo.
Nesta equação, a percepção de que também pagarão seu quinhão os militares, categoria da qual faz parte o presidente e que forma um núcleo poderoso no Governo, é importante. A ausência dos militares nesta primeira investida foi questionada intensamente por presidentes de dois dos partidos aliados de Bolsonaro: o deputado Marcos Pereira (PRB-SP) e o senador Ciro Nogueira (PP-PI). “A ausência dos militares das Forças Armadas na proposta de reforma da Previdência enviada hoje por Bolsonaro à Câmara é um sinal ruim para a sociedade e pode dificultar o andamento da proposta entre os deputados”, declarou Pereira em seu Twitter.
Assista ao pronunciamento oficial sobre a nova previdência. Um forte abraço a todos!
O secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, disse que a proposta dos militares tratará de três temas principais: ampliará o tempo mínimo de contribuição de 30 para 35 anos, aumentará a alíquota de contribuição de 7,5% para 10,5%, e passará a cobrar esse mesmo percentual das pensões pagas a viúvas e filhas de militares – hoje, elas recebem o valor sem nenhum desconto. O mesmo assunto foi tratado, ainda que superficialmente, por Bolsonaro em um pronunciamento em rede nacional. Ele tratou a reforma como "justa" e disse ela cortará privilégios dos mais ricos. “Também haverá a reforma dos sistemas de proteção social dos militares. Respeitaremos as diferenças, mas não excluiremos ninguém. E com justiça: quem ganha mais, contribuirá com mais, quem ganha menos, contribuirá com menos ainda”, discursou na TV.
Com relação aos grandes devedores, o Governo pretende alterar as regras de refinanciamento de dívida dos grandes devedores e ampliar a cobrança desses débitos. O objetivo é ter uma vacina para um dos argumentos mais populares dos opositores de qualquer reforma previdenciária, o de que, caso essa cobrança fosse feita com maior empenho, as mudanças nas regras das aposentadorias seriam desnecessárias ou, ao menos, menos drásticas. O Governo calcula que dos 490 bilhões de reais em dívidas é possível receber até 160 bilhões, são os chamados créditos recuperáveis. A estimativa é que, em dez anos, a Previdência economize um montante de 1,07 trilhão de reais.
“Mesmo se em um ano a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional recuperasse essa dívida toda, não resolveria o problema da Previdência”, afirmou o chefe do órgão, o procurador-geral adjunto de Gestão da Dívida Ativa da União e do FGTS, Cristiano Neuenschwander. Conforme a procuradoria, atualmente há cerca de 4.000 pessoas estão cadastradas como grandes devedoras. São as que tem débitos superiores a 15 milhões de reais.
Crise potencial
A reforma da Previdência chega hoje ao Congresso Nacional, na forma de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Você sabe como ela vai tramitar? A gente explica aqui:
O Governo começa a maratona da tramitação da reforma da Previdência após ter recebido um sinal de alerta na Câmara. Na terça, a gestão foi derrotada com a revogação parcial de um decreto presidencial que alterava a Lei de Acesso à Informação. Para impedir a derubada, era necessário apenas maioria simples, mas os votos pró-Governo não chegaram nem a 60 votos. “É uma reforma difícil, mas necessária, que chega ao Congresso num momento em que o Governo está desarticulado, sem interlocução no ambiente da Câmara e entre os poderes”, afirmou o líder do DEM, Elmar Nascimento (BA).
Os opositores, por sua vez aproveitaram para ressaltar a dificuldade em unificar sua base. “Articulação? Talvez o presidente consiga alguma articulação quando ele conseguir articular três frases seguidas”, criticou a líder da minoria na Câmara, Jandira Feghali (PCdoB-RJ). Ao lado de outros parlamentares oposicionistas, ela reclamou principalmente do pagamento de apenas 400 reais para os cidadãos miseráveis, com mais de 60 anos, que passariam a receber o benefício de prestação continuada (hoje esse valor é de um salário mínimo a partir de 65 anos). Apontando a linha de combate da oposição à esquerda, ela também criticou a definição da idade mínima de mulheres que se aposentarem aos 62 anos de idade e da fixação da idade de 60 anos para os trabalhadores rurais e professores (independentemente do gênero).
Sobre essa divisão da base e da dificuldade em aprovar a proposta, o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), quis soar otimista. Disse que o Governo conseguirá se unir novamente. “Não há um racha. Há muita unicidade e vamos estar juntos de toda a base aliada do Governo”.
Um dos estrategistas centrais na tramitação, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) seguiu na mesma linha. Ele amenizou as queixas dos opositores, que alegam que as mudanças no benefício de prestação continuada criarão um “país de idosos pobres”. “O eixo principal da reforma tenho certeza que, daqueles que sabem fazer conta, terá apoio de todo mundo”. Maia estima que até junho o projeto deve ser pautado para ser votado na Câmara –onde precisa de ao menos 308 votos em dois turnos para ser aprovado e enviado ao Senado. O secretário Marinho, contudo, é mais otimista. Ele estima que até julho, tanto os deputados quanto os senadores já terão se debruçado sobre o assunto e votado a PEC.
Vera Magalhães: Reforma em campo minado
As sucessivas e acachapantes derrotas do governo ontem foram um recado claro: Jair Bolsonaro não sabe o que o espera se insistir em lidar com o Congresso de forma desorganizada ou, pior, impositiva. Na mesma tacada, ficou claro que 1) deputados e senadores não vão deixar virar moda a história de se governar por decretos, 2) ainda não existe articulação política que se possa chamar desse nome e 3) as brigas na base isolam o PSL, que não tem coesão interna nem influência sobre os demais partidos.
A data para que a derrota fosse carimbada na testa do governo não poderia ser mais eloquente. No mesmo dia, Sérgio Moro e Paulo Guedes, as duas principais estrelas do governo, acompanhados de outros ministros, fizeram questão de levar em mãos o pacote anticrime do titular da Justiça. A ideia era, como sempre, baseada na imagem: mostrar coesão de um governo que, na verdade, hoje é um queijo suíço.
E hoje, dia seguinte da comprovação de que a Câmara é atualmente um campo minado para o governo, será a vez de Bolsonaro enviar (levar pessoalmente, dizem alguns) a reforma da Previdência, pedra de toque de seu governo, à mesma Casa.
A crise da demissão de Gustavo Bebianno e as derrotas impingidas ao governo mostram que, ao contrário do senso comum do otimismo inicial, a reforma da Previdência não é um dado da realidade. Precisará ser construída com política, o artigo em falta na gestão Bolsonaro. Não basta ao presidente colocar o projeto debaixo do braço e posar para fotos. Terá de arregaçar as mangas e negociar a aprovação da medida.
PACOTE ANTICRIME
Caixa 2 vira bode na sala de projeto de Sérgio Moro
O desmembramento da criminalização do caixa 2 do restante das medidas do pacote anticrime de Sérgio Moro mostra que a proposta, antes menina dos olhos do ministro da Justiça e Segurança Pública e tema constante de entrevistas e palestras dele quando era juiz federal, virou um bode na sala do projeto: pode ser sacrificado em prol da aprovação do restante. Deputados e integrantes do governo admitem que a aprovação é quase impossível, mas que o importante era “salvar” as outras medidas.
HOMEM-BOMBA
Bebianno fica no presente e poupa, por ora, passado
Gustavo Bebianno é, por ora, um homem-bomba de explosão controlada. Na entrevista que deu à Jovem Pan, fez elogios a Bolsonaro, a quem chamou o tempo todo de “meu presidente” e “capitão”, concentrou a borduna em Carlos Bolsonaro e se ateve a fatos ligados à sua exoneração. Nada falou sobre o período de 2 anos em que foi próximo ao clã e cuidou de assuntos como advogado, coordenador de campanha e presidente do PSL.
CONTENÇÃO
Generais blindam Planalto contra a volta de Carlos
Diante de uma crise que completa uma semana hoje, os generais estão concentrados em assegurar que o afastamento do filho mais explosivo de Bolsonaro das questões de governo não seja apenas momentâneo, até a poeira assentar. A escolha do general Floriano Peixoto para a Secretaria-Geral foi condição deles para que o vereador não aproveitasse a derrubada de Bebianno para colocar alguém sob sua influência no cargo.