reforma administrativa

Fernando Schüler: Reforma administrativa é desafio do país, e não do governo

Cabe ao Congresso fazer os ajustes que o projeto requer

A reforma administrativa demanda uma análise ponderada. É evidente que o projeto apresentado pelo governo exige ajustes e deve ser aperfeiçoado. É exatamente para isso que existe o Congresso e o debate em curso na sociedade.

Há itens que me parecem insustentáveis na proposta. Um deles é uma quase unanimidade. O presidente não pode decidir sozinho se extingue uma autarquia ou fundação pública criada por lei, no Congresso. É certo que a máquina pública brasileira precisa de um processo de revisão e enxugamento. Mas precisa fazer isso com os instrumentos da República, discussão e decisão no Parlamento.

Outro ponto é a exclusão da possibilidade de redução de jornada e vencimentos em carreiras de Estado. Por que cargas d’água isso deveria valer para um médico, mas não para um diplomata? Há um problema elementar de equidade aí, e não percebo como plausível uma reforma desatenta a estas coisas.

Há muitos pontos. O projeto explicita a autorização para que setor público e privado cooperem na execução de serviços públicos, determinando que isso seja regulamentado por lei. O ponto é que já existem diversos instrumentos nesta direção, em especial o marco regulatório da sociedade civil (lei 13.019/14), hoje em plena utilização país afora.

A não inclusão dos atuais servidores e demais Poderes na reforma é evidentemente um problema. Mas é preciso evitar o discurso fácil. Se a reforma do jeito que está já vem produzindo um barulho enorme, imagine o volume do som se os atuais servidores estivessem no jogo.

Diferenciar servidores na mesma carreira não é uma boa ideia. O correto seria unificar as regras para quem entra e para quem já está no serviço público. Será ótimo se o Congresso quiser caminhar nesta direção. E melhor ainda se o STF topar a parada.

Quem estiver preocupado com a “superelite” do setor público e com ganhos fiscais de curto prazo, sugiro prestar atenção aos ajustes na PEC do Pacto Federativo. Pelas indicações já oferecidas pelo relator, senador Márcio Bittar, o Congresso terá a chance de ouro de mostrar que realmente leva a sério fazer valer o teto salarial do funcionalismo e os gatilhos fiscais, incluindo-se a possibilidade de redução salarial, para todos os Poderes.

A reforma avança em pontos importantes. Ela estabelece com nitidez a distinção entre funções de Estado e demais carreiras do serviço público. Isso pode ser aperfeiçoado pelo Congresso e demandará uma lei especifica para o enquadramento das carreiras.

Isso nada tem a ver com dividir o setor público entre carreiras de primeira e de segunda classe. Tem a ver com o perfil das funções e o tipo de proteção que elas devem ter, no interesse da sociedade e do pagador de impostos.

A reforma também põe a meritocracia e a avaliação de desempenho no centro da gestão pública. O ponto é como fazer isso. Se o governo nunca soube avaliar servidores em estágio probatório, e nem mesmo regulamentar as avaliações de desempenho, por que daqui pra frente saberia avaliar quem cumpre seu “vínculo de experiência”?

Aqui vale uma nota sobre o tema da estabilidade no emprego. O texto constitucional (art. 41º) já autoriza a demissão de servidores por insuficiência de desempenho. O detalhe é que devido à omissão legislativa (a qual o Supremo nunca prestou atenção) o tema nunca foi regulamentado.

A reforma diz apenas que atividades típicas de Estado supõem um tipo de proteção distinta das atividades concorrenciais. Mas todas as funções públicas prosseguirão submetidas ao princípio da impessoalidade e não há espaço para demissões que não atendam a uma razão pública e resultem de um procedimento publicamente controlado.

É preciso ter uma visão construtiva sobre a reforma. Ela é uma proposta aberta ao debate público e pertence ao país, não ao governo. Maus humores políticos podem divertir a multidão de hooligans que flutua na internet, mas não servem pra nada nesse debate.

*Fernando Schüler, Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Cristiano Romero: Estabilidade não evitou corrupção no Estado

“Pedalada fiscal” é exemplo de interferência

Preocupados com a interferência partidária na gestão de políticas públicas, os constituintes consagraram na Constituição de 1988 a estabilidade dos funcionários públicos no emprego. O ambiente em que o assunto foi debatido não poderia ser pior. O país vivia grande efervescência política, partidos de esquerda e entidades da sociedade civil saíram da clandestinidade - a UNE (União Nacional dos Estudantes) foi legalizada em cerimônia no Palácio do Planalto - e a imprensa respirava ares mais democráticos.

Estávamos no governo de José Sarney (1985-1990), o primeiro presidente civil depois de 21 anos de ditadura militar. O momento era de transição de regime, uma vez que Sarney fora o vice da chapa eleita pelo Congresso Nacional. Tancredo Neves, o cabeça de chapa, adoeceu na véspera da posse (15 de março de 1985) e não assumiu, vindo a falecer em 21 de abril.

Pausa para o cafezinho: Tancredo não tomou posse, mas, oficialmente, sim; ele foi o primeiro presidente da Nova República. Sua eleição resultara de acordo firmado entre os generais e a oposição, na ocasião liderada pelo então deputado Ulysses Guimarães. Este os militares não admitiam que assumisse a Presidência na transição, por isso, rejeitaram a possibilidade de eleição direta naquele momento. No fim, a candidatura da oposição era encabeçada por um integrante da chamada resistência democrática (Tancredo, do PMDB) e por um prócer da ditadura (Sarney). Com a impossibilidade de posse de Tancredo, generais da linha-dura quiseram impedir que Sarney tomasse posse. Por pouco, o epílogo do regime militar não foi postergado…

Com a liberdade que lhe foi suprimida durante longos 21 anos, a imprensa cumpriu papel crucial no início da Nova República. Brasileiros tomaram conhecimento todo dia pelos jornais, canais de televisão e rádios de casos de corrupção. A impressão, absolutamente equivocada, era a de que, num governo civil, isto é, no regime democrático, a corrupção grassa com desprendimento.

A resposta dos constituintes foi estabelecer na lei máxima do país o direito de todos os funcionários, e não apenas dos ocupantes de carreiras típicas de Estado (diplomata, auditor da Receita Federal, funcionário do Banco Central, juiz, procurador etc), à estabilidade no emprego. Esta vale, portanto, para servidores da atividade-meio dos órgãos públicos e prestadores de serviço (segurança, limpeza etc).

Além da estabilidade, a Constituição premiou o funcionalismo com o direito à aposentadoria integral e à paridade, que garante a aposentados os mesmos reajustes salariais de quem está na ativa. A aposentadoria integral foi extinta pela reforma proposta pelo governo Lula (2003-2006 e 2007-2010) e regulamentada pela gestão Dilma Rousseff (2011-2014 e 2015-2016).

A Carta Magna prevê a demissão de funcionários estáveis, mas todos sabemos que isso só ocorre em casos de comprovado envolvimento do servidor com corrupção.

A estabilidade assegurada após estágio probatório de dois anos é privilégio e não direito adquirido ou benefício concedido por mérito. Estabilidade deveria ser conquistada ao longo da carreira, cumpridos critérios objetivos de desempenho.

A pergunta que não cala é a seguinte: a estabilidade no emprego evitou a corrupção e a interferência de inquilinos do poder em políticas típicas de Estado? A resposta é não.

Duas instituições de excelência viveram, recentemente, situações de interferência política, sem que tenham reagido a tempo de evitar os problemas decorrentes da ação governamental. Foi no caso das chamadas “pedaladas fiscais”, expressão cunhada pelo jornalista e colunista Ribamar Oliveira, do Valor, para a prática irregular usada pelo governo Dilma Rousseff.

A pedalada consiste no seguinte: em vez de transferir aos bancos federais recursos orçamentários para o pagamento de programas federais, o governo ordenou que as instituições bancassem essas despesas; agindo dessa forma, o então Ministério da Fazenda escondia a verdadeira dimensão do déficit das contas públicas, uma vez que esses pagamentos não apareciam como despesa primária; por conseguinte, isso lhe permitia gastar mais, com vistas a melhorar o desempenho da economia, o que por sua vez atenderia ao objetivo político de reeleição da presidente em 2014.

Essa manobra foi realizada durante dois anos. O distinto público só tomou conhecimento da verdadeira situação das finanças governamentais depois do período eleitoral, em novembro de 2014. Num seminário promovido em São Paulo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, mostrou tabela com os “novos” números do déficit fiscal. Este saltou de 3% para 7% do PIB.

Como até o dia anterior, o conhecido eram os 3%, um ilustre integrante da mesa daquele evento - o ex-ministro e ex-deputado Delfim Netto - comentou ao ouvido do titular desta coluna: “O Guido errou. O número não é esse”. Infelizmente, tendo tomado conhecimento do valor correto um dia antes, o colunista disse: “Está certo, ministro, é isso mesmo”. Delfim fez silêncio por um instante, olhou para Mantega e comentou baixinho, com seu forte sotaque paulistano-italiano: “Eles quebraram o país”.

Pano rápido. Nos bastidores da tragédia, uma grande lição: a estabilidade no emprego não fez com que funcionários do Tesouro Nacional, do Banco Central, do Banco do Brasil (BB) e da Caixa denunciassem a manobra feita nas contas públicas com objetivos político-eleitorais. Antes que se afirme que empregados do BB e da Caixa não tenham à estabilidade, pense duas vezes. De fato, a lei não lhes assegura estabilidade, mas é o que eles têm de fato. Alguém já testemunhou a dispensa de algum funcionário do BB, da Caixa, do BNDES, do Banco do Nordeste e do Banco da Amazônia por incompetência?

A cultura patrimonialista da Ilha de Vera Cruz é tão arraigada que servidores públicos agem como se fossem donos do Estado. Isso precisa mudar, do contrário, o nobre projeto de nação inscrito na Constituição de 1988 jamais será implementado.


Carlos Andreazza: Reforma pastel de vento

O governo apresentou uma carta de intenções

O governo apresentou a reforma administrativa. Apresentou? Que reforma? Li. Reli. E só achei capa. Ou melhor: só encontrei sumário. Estão lá, enunciados, os capítulos; inclusive os impopulares — que a turma do Ministério da Economia chamou de “politicamente sensíveis”. Há até boas ideias; bons princípios sobre a necessidade de redimensionar um Estado obsoleto, de existência atual não injustamente percebida como para tão somente se autossustentar. Mas é apenas isto o que se anunciou como reforma remetida ao Parlamento: um índice do que virá. Um dia. Porque carne mesmo, matéria — os capítulos do livro: não vieram.

Já sabíamos que a reforma prometida há mais de ano — travada e boicotada pelo próprio presidente corporativista da República —só atingiria os servidores do futuro. Impacto fiscal imediato: zero; e bote década até que algum efeito haja. Ok. Sabia-se. Soubemos na semana passada, porém, que a reforma administrativa prometida há mais de ano, e desde então prontíssima como parte de operosa linha de montagem de projetos — vendida como pujante e revolucionária —, não estava pronta. Ou, se um dia pronta esteve, mais não está.

O governo apresentou uma carta de intenções. O programa de uma reforma administrativa adiada. O Ministério da Economia tem se especializado nisto: em lançar fatia; a primeira sendo sempre mui modesta. Foi assim também com a tributária. Não deixa de ser estratégia politicamente esperta. Mostra-se aquele pedaço miúdo — com a promessa de que o bolo todo virá à mesa. Um dia. E o pessoal engole. Para o funcionamento intestinal do mercado: mata a fome e faz girar.

“Você está sendo muito duro com a proposta” — dirá um leitor. Não estou. (Que proposta, aliás?). “A reforma cria categorias e limita as carreiras que terão mantida a estabilidade” — argumenta-se. Jura? E onde está a lista que discrimina os que serão prejudicados e os protegidos? “Calma. Isso virá numa etapa posterior.” Entendi. “A reforma reduz salários iniciais, define formas para avaliar desempenhos e reestrutura cargos.” Uau! Que capitalista! Regras para mérito e para otimizar funções. E ainda reduz os salários de partida. Onde está isso? Quero ler. “Calma. Apenas numa fatia adiante.” Certo.

Compreendi. Temos a ousada reforma vou enfrentar os problemas e tocar em questões delicadas, mas só depois de amanhã; o sumário indicando que, quando (e se) baixar, a lâmina liberal-guedista cortará apenas dos futuros servidores, como médicos e professores, que não compõem carreiras ditas de Estado; resguardados todos os tipos graúdos, os que ganham mais. Coragem padrão.

Ante toda a propaganda sobre a robustez do que seria um projeto, o que se apresentou foi uma palestra sobre reforma administrativa, destinada a jogar para a galera. Soprou-se o apito. Evidente está que essa é a PEC de um governo que lava as mãos. “Me pressionaram para entregar. Aí está. Fiz a minha parte. Agora é com vocês.” Um movimento narrativo para alimentar a tia do zap.

Uma jogada que, na prática, cria um sistema de travas primoroso. Conforme explicaram os técnicos do ministério: se a primeira fase andar, envia-se a seguinte. Mas como se avançará na aprovação do sumário de um livro sensível, sem que se conheça a íntegra do texto? Quem passa cheque em branco assim? Como se levantam os fundamentos de uma casa sobre terreno pantanoso, se ignorados são os cálculos de engenharia para a construção que virá acima? Difícil fazer progredir o que se desconhece.

Qual é, a propósito, a lógica de não entregar de uma vez os projetos de lei complementar — que regulamentarão o edifício —, senão para ou disfarçar a incompetência (a incapacidade de formular um projeto complexo) ou, tendo dado já o recado para inglês ver e operar, garantir que a coisa avance lentamente, ou mesmo não avance? Diga-se que gente muito boa defende que não seria necessária uma PEC para tratar dessa matéria; sendo também certo que, por sua própria natureza, uma PEC exigirá mais tempo…

Mas o governo fez a sua parte, né? Não. Não fez. Sua parte seria entregar um projeto de reforma que não fosse parte acanhada. Há um ano, quando se falava em estoque de projetos e fila para execução imediata, engatando uma reforma na outra, jamais se mencionou que esse desfile seria em fatias. Trata-se de novidade. Algum vigor se perdeu. Alguma baixa hormonal na libido liberal houve. Fato. A realidade se impõe. Essa não é — nunca foi — a agenda do governo. (Mas o governo fez sua parte.)

A única concretude deste manifesto de adiamentos é aquela porção — aquele queijinho (azedo, no caso) caído lá no fundo do pastel de vento —que dá poder ao presidente para manipular, sem o aval do Congresso, autarquias e fundações federais, aí incluídos Banco Central, Cade, agências reguladoras e universidades. Ou seja: o que não é promessa concentra força na mão do Executivo e consiste numa espécie de reforma administrativa liberal a serviço da autocracia.

Menos Brasília. Mais Planalto. Parabéns.


Míriam Leitão: Teoria e prática de uma reforma

A proposta de reforma administrativa dá ao presidente o poder de extinguir órgãos, reorganizar autarquias e fundações. Isso teoricamente parece razoável, porque daria ao gestor mais flexibilidade para uma administração mais eficiente. O problema são os atos do próprio governo Bolsonaro. Eles conspiram contra a ideia de concentrar tantos poderes no presidente da República. Bolsonaro quis entregar a demarcação de terras indígenas aos ruralistas, o cuidado com os índios a religiosos, esvaziar o Coaf, calar o Inpe, tirar autonomia da Polícia Federal e espionar as tendências políticas de servidores. Isso dá poder ao chefe do executivo sobre a administração direta ou indireta. As universidades são fundações.

O Brasil está numa situação estranha. É claro que é preciso limitar os altos salários, acabar com aumentos automáticos, dar mais flexibilidade ao gestor, reduzir o número de servidores com estabilidade, diminuir as disparidades de salários para as mesmas funções e reformar o Estado para que ele seja mais eficiente. Mas esta administração nos lembra quão corrosivo pode ser o poder de destruição de um governo ideológico se não houver limites para a sua atuação. Imagine o que Bolsonaro faria, se pudesse, com o Ibama, ICMBio, Funai. Pense no que ele já fez à Fundação Palmares.

O governo decidiu fatiar a reforma, por isso não se sabe exatamente que perfil da administração ele tem em mente. Ontem foi divulgada a PEC que acaba com o Regime Jurídico Único, cria as cinco formas de vínculo e apenas para os futuros servidores. Só depois virão os projetos de lei que entrarão nos detalhes. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) acha que essa estratégia foi inteligente.

— Eles acertaram. Não vai resolver o problema fiscal, mas pelo menos garante alguma coisa para o futuro. A decisão de ser apenas para os novos servidores diminuirá a resistência. Não haverá servidor na porta falando sobre o seu direito adquirido. Os princípios e a essência vão para a Constituição. Mas a regulamentação vem por PLs e Lei Complementar. Quanto à questão da extinção de órgãos, não acho que o Congresso vai abrir mão do poder de veto, seja em relação a esse governo ou qualquer um. Você vai dar essa autonomia para o presidente de plantão? Nosso poder é fiscalizar o executivo — diz a senadora.

Os secretários que apresentaram a reforma falaram em princípios de impessoalidade, transparência, meritocracia, proteção do servidor contra o governante e separação entre governo e Estado. Bom ouvir isso. O que destoa é a realidade. O secretário de desburocratização e gestão, Caio Paes de Andrade, abriu a entrevista negando na prática essa separação:

— Hoje estamos aqui para vencer o atraso. Esse é um momento histórico. O presidente Bolsonaro cumpre uma promessa de campanha. Hoje vocês vão conhecer mais uma mudança estrutural proposta pela dupla Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Para mim é uma honra servir ao presidente e ao ministro da Economia numa agenda reformista que coloca o Brasil no caminho da vitória contra o atraso. Eu pessoalmente odeio o atraso com todas as minhas forças —disse o secretário.

Pouco tempo antes, o presidente ao qual ele serve estava descendo com helicóptero da Força Aérea para se encontrar com um grande grupo de pessoas aglomeradas, muita gente sem máscara, inclusive ele, no meio da pandemia, num ato típico de campanha eleitoral.

A última reforma no serviço público foi feita pelo ministro Bresser Pereira no governo Fernando Henrique, em 1999. Ela aprovou na época o fim da licença-prêmio, dos anuênios. Criou o período probatório de três anos antes da estabilidade. A proposta agora é transformar esse prazo de experiência em um prolongamento do concurso. A demissão por insuficiência de desempenho foi criada na reforma de 99, mas nunca foi regulamentada. Até hoje existe progressão automática, que é uma ideia esquisita de avanço na carreira apenas porque o tempo passou.

Há muita coisa a aperfeiçoar na administração pública. Na Constituinte, celetistas foram transformados em estatutários. Isso foi um erro que custou caro aos cofres públicos. Mas antes de concentrar poderes no presidente, sob o argumento da agilidade e eficiência administrativa, é preciso que se saiba a resposta para a pergunta: como proteger o Estado do mau governo?


El País: Reforma administrativa poupa elite do funcionalismo e pode dar “cheque em branco” a Bolsonaro

Fatiada, proposta prevê que presidente possa extinguir fundações e autarquias sem a autorização prévia do Congresso. Texto restringe carreiras do Estado, mas não define quais são

Afonso Benites, do El País

Para enviar sinais ao mercado financeiro e mostrar ao Congresso Nacional que tem interesse em reduzir os gastos com a máquina pública, o presidente Jair Bolsonaro enviou nesta quinta-feira a sua reforma administrativa. O documento foi entregue pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O deputado disse que pretende acelerar a sua votação para ser aprovada ainda este ano, mesmo que as sessões sejam remotas e as comissões que fazem uma análise prévia dos projetos de lei não estejam em pleno funcionamento. Representantes do servidores, no entanto, apostam que o texto só será votado no ano que vem.

Além das incertezas políticas, o aguardado texto não agradou completamente nem os que defendem há anos das mudanças dentro do funcionalismo público, como o fim da estabilidade para todas as funções. Conforme especialistas ouvidos pela reportagem, da forma como foi elaborada, fatiada e sem detalhamentos de carreiras ou financeiros, o texto traz instabilidade para o funcionalismo, privilegia o alto escalão dos servidores e pode passar um “cheque em branco” para o presidente, pois permite que acabe com órgãos do Executivo sem o aval do Parlamento.

A reforma, uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que precisa passar pela Câmara e também pelo Senado, abrange, em tese, funcionários públicos em todas as esferas, ou seja, atualmente cerca de 11,4 milhões de pessoas, mas não valerá para os atuais ocupantes dos cargos, apenas para os que entrarem nas carreiras. Apesar do discurso liberal e de corte de privilégios, o Governo Bolsonaro preferiu não comprar a briga com o atual quadro.

A proposta não fala nada sobre cumprimento do teto salarial para servidores, uma regra sempre desrespeitada, e também poupou das mudanças os militares e representantes das carreiras do topo do funcionalismo público, como deputados, senadores, juízes, promotores, procuradores e desembargadores. A justificativa dada por técnicos da Economia é que os militares não são considerados servidores públicos e já tiveram suas alterações no regime alterada em recente reforma enviada ao Legislativo. Sobre os demais funcionários, afirmaram que eles são membros dos seus Poderes, e não servidores. Portanto, caberia ao próprio Poder apresentar suas reformas.

O argumento é questionado por opositores. “Essa reforma administrativa aprofunda desigualdades e não reduz os gastos públicos, não toca nos privilégios. Se o Parlamento quer fazer alguma mudança, tem primeiro dar o exemplo”, diz o líder da oposição ao Governo no Senado, Randolfe Rodrigues (REDE-AP).

Na apresentação que detalhou a PEC, os técnicos do Governo informaram que a preocupação do Executivo é financeira, mas não detalharam o tamanho da economia com as alterações legislativas. Afirmaram que isso viria em uma segunda etapa, quando medidas complementares fossem enviadas. Pelo que chegou ao Legislativo, as alterações só valem para novos servidores, não para os atuais.

A proposta estava pronta havia dez meses, mas o presidente estava reticente em enviá-la por entender que entraria em confronto com uma boa parte da população. Ainda assim, não a enviou por completo. O Ministério da Economia disse que outras duas fases devem ser mandadas nos próximos meses, de maneira fatiada, assim que as discussões começarem a avançar no Legislativo.

Outra alteração na PEC é a possibilidade de, por um simples decreto, sem a necessidade de debate com o Congresso, o presidente extinguir ou modificar autarquias e fundações, desde que não gere impacto financeiro. Neste grupo estão órgãos como as agências reguladoras (ANEEL, ANCINE, ANATEL, ANVISA) e institutos como o Ibama e ICMBIO ―responsáveis pela fiscalização ambiental – ou Incra― que trata da reforma agrária.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, faltou o Governo estabelecer um diagnóstico sobre o funcionalismo público e intensificar o debate com as carreiras antes de se enviar a sua PEC. “É uma reforma muito abstrata”, ponderou a professora e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas, Gabriela Lotta. “O Governo não conseguiu dimensionar o impacto orçamentário nem demonstrar em que medida essa proposta vai melhorar o serviço público”, complementou o presidente do Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), o auditor Rudinei Marques.

Para a professora Lotta, quando os detalhes não são apresentados, passa-se um “cheque em branco para o presidente fazer o que bem entender”. A proposta acaba com o regime jurídico único dos servidores e cria cinco distintos. Também prevê a manutenção da estabilidade apenas para carreiras de Estado, ainda que não defina quais seriam essas carreiras. Na prática, quem não for da carreira de Estado não tem a garantia de emprego. “No Ministério das Relações Exteriores, todos os funcionários são estáveis. Do agente de portaria até o diplomata. Isso não faz sentido”, afirmou o secretário-adjunto de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Gleisson Rubin. Lotta questiona: “Ele não detalha, por exemplo, quais são as carreiras de Estado. Só dizem que elas existem. Mas quem deveria definir quais são essas carreiras é o Congresso, não o Executivo”, afirma Lotta.

O representante da Fonacate, Marques, por sua vez, diz que, se aprovada da maneira que está, a reforma vai ajudar na precarização do trabalho público. “Do jeito que está, os funcionários do Ibama, da Receita Federal, da Polícia Federal, dos órgãos de controle não teriam a estabilidade adequada para exercerem suas funções”, afirmou. E completou: “Teríamos muita interferência e um serviço público aparelhado para atender determinados interesses políticos e pessoais”.

Daniel Ortega, especialista sênior para o setor público do Banco Mundial, diz que a reforma apresentada por Bolsonaro toca em quatro pilares fundamentais para qualquer mudança na área: fiscal, flexibilidade das contratações, gestão das carreiras e a avaliação de desempenhos. “São temas complexos para se debater porque tem muitas partes interessadas”, aponta.

Ortega, contudo, diz que o Governo tem de tomar o cuidado para não transformar os servidores públicos em vilões da máquina pública. “Quando se valoriza o trabalho do servidor público, se tem um impacto diretamente na prestação de serviços que todos os brasileiros recebem. Eles não podem ser vistos só como uma questão fiscal”. No ano passado, o Banco Mundial apresentou um estudo para o Planalto que tinha como objetivo embasar a reforma.

Só no âmbito federal, a folha de servidores representa o segundo maior gasto da União, 337,3 bilhões de reais, ou 22% do orçamento anual. Fica atrás apenas dos gastos com Previdência Social. Ainda assim, a distribuição é muito desigual, com servidores federais ganhando bem mais, na média, que os municipais, por exemplo. Apesar dos discursos de que há uma profusão de servidores, os dados mais recentes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que o Brasil tem 12% de sua força de trabalho no poder público. A média dos 32 países pesquisados por esse organismo internacional é de 21%. No topo, está a Dinamarca, com 35% e, na base, a Colômbia, com 4%. Os dados são de 2015.

O texto agora entra na batalha de lobbies do Congresso. Mesmo com a pressa em se aprovar a PEC, há dois cenários que dificultam a sua rápida tramitação: a pandemia que faz com que as sessões sejam virtuais, o que dificulta a realização de audiências públicas, e as eleições municipais, quando boa parte dos deputados e senadores se ausentam das sessões para se dedicarem a campanhas eleitorais próprias ou de seus aliados. Entre os servidores públicos, a conta é que a proposta deve ser votada só no ano que vem.


César Felício: Administrativa em alta; tributária em baixa

Frente Parlamentar comemora o simples envio da matéria

A maior qualidade da reforma administrativa apresentada pelo governo é o simples fato de ela ter se materializado. Não se esperava nem mesmo isso do governo de Jair Bolsonaro. Afinal, foi exatamente pela falta de prioridade ao tema que o ministro Paulo Guedes perdeu um importante auxiliar há menos de um mês.

Concorreu para o cavalo de pau o beco sem saída proporcionado pelo teto de gastos. Muitas enormidades são ditas e praticadas em defesa de âncoras de expectativas. Assim foi no passado com a âncora cambial, no Brasil e em outros países, assim é com esta âncora fiscal que um dia - esta é uma questão de fé, mais do que de resultados aferidos - trará a relação dívida/PIB para um nível inusitadamente baixo.

Em nome da âncora fiscal, o Congresso hoje se depara com um conjunto de PECs e propostas, em que estão não só a reforma administrativa como a PEC dos gatilhos (que, em si, embute uma minirreforma do funcionalismo), e, por que não?, uma reforma tributária em que o aumento da carga está claro. Também foi essa âncora fiscal que impulsionou a reforma da Previdência.

Se o teto de gastos foi ou não um grande erro é uma discussão que não cabe neste espaço. O fato é que detonou um sentido de urgência que move toda a agenda reformista dos últimos anos.

A partir do momento da chegada da reforma administrativa, ela só avançará se profundamente modificada pelo Congresso. É inapelável diante do fato de que este é um governo de minoria parlamentar, com maiorias circunstanciais organizadas por um conjunto amorfo e fragmentado de legendas a que se convencionou chamar Centrão.

Do texto apresentado ontem, de pronto não é razoável acreditar que o Legislativo abrirá mão de prerrogativas. Portanto são escassas as chances de se aprovar uma norma para que Bolsonaro possa extinguir ou fundir autarquias por decreto, sem passar pelo Congresso. Essa é uma novidade que tem todo o aspecto de estar lá apenas como moeda de troca.

Se depender da frente parlamentar que está envolvida no tema, a reforma administrativa terá acréscimos. Na véspera do envio, a senadora Kátia Abreu (PP-TO) preconiza, por exemplo, a criação de uma agência reguladora, com mandato, para organizar todas as regras do funcionalismo de ora em diante. Seria algo como um super-Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), órgão criado no Estado Novo, com grande autonomia, que tinha como missão dar racionalidade e método às máquinas governamentais. “Nós temos que ter o servidor ao nosso lado. Fazer um muro de contenção da interferência política, depois do fim do regime jurídico único”, comentou.

Essa e outras questões, como a possibilidade de ter contratações diferentes para carreiras diferentes, corte de vantagens absurdas e ofensivas para quem está no setor privado, a vinculação da remuneração a uma análise de desempenho, serão temas de exclusivo debate parlamentar. Bolsonaro e Guedes participarão delas do mesmo modo como participaram da reforma previdenciária. Foram coadjuvantes. “O que precisamos de Bolsonaro é que apenas assine o projeto e o envie”, dizia na véspera da entrega o deputado Thiago Mitraud (Novo-MG), também integrante da frente.

Haverá também pressão parlamentar para que a proposta seja desidratada. “Este governo age de certa forma de uma maneira lunática”, comentou a presidente da CCJ do Senado, Simone Tebet (MDB-MS), horas antes da divulgação da proposta. “É preciso ter em mente que a autonomia dos Estados e municípios precisa ser integralmente respeitada e que tudo que o servidor atingido puder judicializar, ele o fará e o juiz vai dar”, disse.

Simone vê um entrelaçamento da reforma administrativa de ontem, de impacto fiscal ainda desconhecido, com as PECs que criam gatilhos para cumprimento do teto de gastos, de uso imediato, e com a reforma tributária, que em sua opinião deveria caminhar para o segundo plano.

“A imensa maioria dos servidores é estadual ou municipal e não ganha muito. Você acha que um senador vai votar alguma coisa que possa levar à redução de vencimentos de um servidor municipal? Esse povo não conhece o Brasil. Eles acham que podem tudo e não conseguem nada”, fala a emedebista.

Para Simone Tebet, tanto a reforma administrativa quanto a dos gatilhos para o teto avançam melhor se o Congresso criar uma barreira que preserve os que ganham até R$ 5 mil, ou algo assim.

Em um ano em que as campanhas eleitorais estão começando exatamente nesta semana, a realidade política deve se impor ao Congresso. É uma circunstância que ameaça sobretudo a reforma tributária. Não é um tema popular.

É difícil divulgar que a reforma trará ganhos futuros com a racionalização do sistema. E muito fácil, por outro lado, provocar terror projetando impacto nos preços do fim da isenção da cesta básica, e na renda dos setores médios com disparadas das mensalidades escolares, dos planos de saúde e das tarifas de transporte com o aumento da oneração de serviços. O mal é bem visível. O bem, intangível.

Isso não sugere que a reforma tributária será simplesmente abandonada, mas o tema é agreste e o que passar na Câmara terá bastante dificuldade de ser endossado no Senado.

A entrada do governo com a proposta da CBS, em regime de urgência, só tornou tudo mais nebuloso. “Matou a reforma”, na opinião da emedebista. Parece um exagero, mas permite se ter um certo ceticismo em relação à aprovação do tema este ano.

Saudade
Um dos maiores empreiteiros do Brasil, delator ilustre da Lava-Jato, andou tendo encontros com articuladores políticos no momento mais agudo de crise de popularidade do presidente Jair Bolsonaro. Procurava medir a chance de um impeachment e especulava sobre quem seria digno de sua aposta na eleição presidencial de 2022. Ele se queixava de não ter mais interlocução no governo federal. Elogios foram feitos, entretanto, ao ministro Tarcísio Freitas.


Eliane Cantanhêde: Guerra aos penduricalhos

A minoria usufrui dos privilégios, mas todos pagam. Inclusive você!

Que a reforma administrativa é absolutamente fundamental para reduzir gastos e garantir eficiência, qualidade e produtividade no serviço público, ninguém tem dúvida e isso fica ainda mais flagrante diante do impacto dramático da pandemia nas empresas e empregos do setor privado e nas contas da União, Estados e Municípios. Mas que reforma? Para quem? Com que abrangência? Em que prazo?

Engavetada por dez longuíssimos meses pelo presidente Jair Bolsonaro, que pensa mais na reeleição do que na Presidência, a reforma tardou, é preciso saber se não falhou. E ainda tem muito chão pela frente. Assim como Bolsonaro pressiona por cima, as poderosas corporações públicas pressionam por baixo para manter tudo como está. Quem tem de resistir é o Congresso Nacional – que é parte interessada.

A maior crítica à proposta (inclusive no Ministério da Economia) é não atingir os atuais, só os futuros servidores. Mas a reação é favorável, por atacar privilégios incompreensíveis: promoção por tempo de serviço, licença-prêmio, acúmulo de salários, aposentadoria compulsória como punição e a principal delas, a estabilidade. Os servidores têm o “direito adquirido” de manter o emprego, o que é injusto com os péssimos, com os ótimos e com quem paga: nós todos. E um estímulo à ineficiência.

A proposta faz distinção entre “servidores” e “agentes” públicos. Atinge os servidores dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, e dos três níveis federativos, União, Estados e Municípios, mantendo a estabilidade para carreiras de Estado, como diplomatas, auditores fiscais, policiais federais e também militares, que têm regime diferenciado de trabalho, como de Previdência.

Para os futuros servidores “sem-estabilidade”, não bastará um concurso para garantir salário e renda pelo resto da vida. Será preciso mostrar trabalho desde o início, com estágio comprobatório de três anos, e quem apresentar “desempenho insuficiente” correrá risco. Neste ponto, porém, haverá intensas discussões sobre o perigo de “triagem político-ideológica” dos jovens servidores pelos governos de plantão. Vai que alguém goste de rock e o chefe ache o rock “demoníaco”. Nunca se sabe…

Já os agentes públicos, não servidores, ficam de fora: deputados, senadores, magistrados, procuradores, promotores e ministros de tribunais, já que o Executivo não pode determinar a organização e as regras para Legislativo e Judiciário, onde se concentram caríssimos “penduricalhos” que eu, tu e nós pagamos. Como férias de 60 dias.

Além disso, há muitas dúvidas quanto a estabelecer que o céu é o limite para o presidente da República criar, acabar e remanejar órgãos públicos, sem aval do Congresso. Se, com as atuais restrições, o presidente já pode fechar o Ministério da Cultura, por exemplo, imaginem com um super poder para moldar a administração federal ao seu gosto ideológico?

Todas essas questões deixam de gerar embates entre Bolsonaro e o ex-super ministro Paulo Guedes e caem no colo de deputados e senadores, que formarão uma comissão conjunta para estudar a proposta, tirar uns exageros e acrescentar outros, cobrir vácuos e criar outros. Diferentemente do governo, eles trabalharão sob intensa pressão da opinião pública, do setor privado e de corporações que têm apoio da esquerda e da direita. Sem falar nos eleitores….

Assim como Bolsonaro, parlamentares só pensam em eleição e, entre o interesse público e os seus votos, nem sempre o vitorioso é o interesse público. Tão impopular quanto necessária, a reforma administrativa depende da ampliação do debate para além das corporações e do convencimento da sociedade de que, como a da Previdência, ela é essencial para o País.


Fernando Schüler: Não existe bala de prata

O problema fiscal exige encarar a 'tirania das pequenas decisões'

Muita gente boa gastou um tempo danado, nos últimos meses, tentando encontrar algum “espaço fiscal” para garantir uma renda mínima de R$ 300 a famílias muito pobres, no que seria o Renda Brasil.

Ninguém encontrou. A proposta orçamentária foi para o Congresso sem o benefício. Nesse meio tempo, não obstante, deu tempo para a AGU avalizar o acúmulo de vencimentos de militares acima do teto salarial; deu tempo também para o Congresso autorizar a criação do novíssimo TRF-6, em Minas Gerais.

Deu tempo para o STF proibir a redução de jornada e salário de servidores públicos, ao mesmo tempo que autorizava o acúmulo de vencimentos e jetons por participação em conselhos de estatais, acima do teto. E para o Congresso confirmar e reconfirmar nosso generoso fundão eleitoral para as campanhas do final de ano. Só não deu para arrumar o dinheiro para os R$ 300. Como se costuma dizer no jargão de Brasília, governar é eleger prioridades.

No fundo, esta é a força da regra do teto. Ela obriga o país a fazer escolhas. Nos impõe a dureza do realismo fiscal e põe a nu o jogo de pressões da política “sem romance”, como gostava de dizer James Buchanan.

Fazer um ajuste estrutural do setor público é complicado por muitas razões. Uma delas é que não há bala de prata para resolver o problema. Sua solução depende de um amplo leque de decisões, sendo que nenhuma, isoladamente, irá resolver o problema. É o que nos dizem os exemplos que mencionei acima. Terminar com o financiamento eleitoral? Dois bilhões resolvem o problema fiscal? Seria razoável pedir aos políticos para cortar seus cabos eleitorais e carros de som só por causa disso?

O mesmo vale para a “PEC dos penduricalhos”, do deputado Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), e projetos similares que tramitam no Congresso. Alguns milhares de servidores terão que se virar com R$ 39,3 mil? Para que mesmo? Uma enorme confusão para cortar R$ 2 ou 3 bilhões do Orçamento?

Eliminar as “licenças-prêmio”? Cortar os quinquênios? Promoções por mérito? Será que isso compensa? No mercado, a competição gera um incentivo automático para que coisas assim sejam feitas. No setor público, é preciso encarar a “tirania das pequenas decisões”. Fazer um sem número de escolhas, todas difíceis e incapazes de resolver o problema, mas que no conjunto, e no longo prazo, podem funcionar.

Há também um problema de ação coletiva. Podemos até conceber, em tese, que todos os grupos organizados ganhariam alguma coisa com um ajuste abrangente das contas públicas. Mas quem tomaria a iniciativa? Deputados topam reduzir despesas de gabinete no segundo Parlamento mais caro do planeta? Quem sabe cortar um pedaço das emendas parlamentares?

O governo agora envia ao Congresso a proposta de reforma administrativa. A notícia é boa, mas é preciso ficar esperto. A pergunta, no fundo, é se o sistema político vai levar isso a sério ou se é apenas mais um projeto pra inglês ver, como sempre foi o tema da reforma política e vai se tornando a reforma tributária.

Muitos dos temas mencionados aqui simplesmente não dependem de um projeto de reforma (teto salarial, avaliação de desempenho, redução de jornada). Por que eles não avançam? Corporações, em regra, ganham o jogo contra os interesses difusos e desorganizados, no mercado político.

É isso que assistimos neste Brasil triste de 2020. Bastou sair de cena a emergência (e o gasto por conta) e passar a valer o jogo de soma zero do teto orçamentário que os 20 milhões que teriam o benefício dos R$ 300 dançaram fácil. A turma do andar de cima ocupou rapidinho as cadeiras vazias.

O desafio é isso não se repetir com a reforma administrativa. Não é de todo ruim que ela se aplique aos futuros servidores. O ajuste que precisamos fazer em nosso contrato político será mais fácil se tivermos que lidar apenas com direitos ainda não “adquiridos”.

Talvez seja este o custo a pagar para mover a imensa inércia brasileira e fazer alguma reforma no setor público andar pra frente.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Bruno Boghossian: Remédio do governo para acalmar investidores era só placebo

Desidratação precoce da reforma administrativa reforça esvaziamento de Guedes

Jair Bolsonaro foi à porta do Palácio da Alvorada na terça (1º) e anunciou que finalmente apresentaria uma proposta com novas regras para o serviço público. A ideia era acalmar investidores que estavam em pânico com o caminhão desgovernado pilotado por ele. Faltou dizer, no entanto, que aquele remédio para a ansiedade era só placebo.

O projeto de reforma administrativa que chegará ao Congresso nesta quinta (3) será mais brando do que queria a equipe econômica. As novidades valerão apenas para futuros servidores, o que já era esperado, mas a proposta também não deve mexer agora com os salários ou a estabilidade desses funcionários.

Essas eram ideias centrais no gabinete de Paulo Guedes, mas o ministro foi obrigado a dar um passo atrás. Se ainda havia dúvidas, a desidratação precoce provou que o novo consórcio entre Bolsonaro e os parlamentares do centrão passou a dar as cartas também nessa área.

O governo ainda não quis estabelecer as regras mais sensíveis do plano e resolveu mandar ao Congresso apenas parâmetros gerais. Para que as normas tenham efeito e façam diferença nas contas públicas, como queria Guedes, ainda seria necessário aprovar uma outra lei.

O fatiamento vai exigir uma base parlamentar coesa, algo que o governo ainda não demonstrou ter. O caminho tende a ser mais acidentado por se tratar de um tema que os deputados preferem evitar, já que o funcionalismo é uma ferramenta de poder em suas bases eleitorais. Além disso, a ideia de acabar com a estabilidade enfrenta resistências porque abre caminho para perseguições políticas no serviço público.

O próprio Bolsonaro, que fez carreira como uma espécie de líder sindical de militares, brigou contra a reforma por quase um ano. Em novembro, ele disse que a proposta do governo seria “a mais suave possível” e mandou o projeto original de Guedes para a gaveta. Agora, o presidente até fez um aceno ao fiador de sua política econômica, mas deu a palavra final. Mais suave, impossível.


Merval Pereira: Enfim, a reforma

A Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa aguarda a remessa da reforma pelo governo, prometida para hoje, para dar concretude às diversas propostas que já estão em discussão. O senador Antonio Anastasia, vice-presidente da Frente, que é presidida pelo deputado Tiago Mitraud, considera que, entre os temas mais importantes, o principal é a questão do vínculo jurídico dos servidores, com o fim da universalidade do regime único, a permissão de contratação por outros regimes jurídicos, que precisa de mudança constitucional.

Significaria mudança da estabilidade, eventual mudança de tipos de concursos públicos, permitiria também tornar ainda mais explícita a questão do teto remuneratório, das vantagens, e dar diretrizes gerais sobre as carreiras.

A proposta do governo deve ir ao encontro do que pensam os membros da Frente, permitindo que novos concursados sejam contratados sem previsão de estabilidade, com exceção das chamadas “carreiras de Estado”, como diplomatas. Hoje, a Constituição prevê que todos os servidores se tornam estáveis após um “estágio probatório” de três anos.

O senador mineiro acha que esse estágio hoje é “uma ficção”, e a proposta do governo deve conter um período de mais sete anos para os servidores públicos ganharem estabilidade. A Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa acha que, em se tratando de organização, é preciso dar mais flexibilidade, especialmente ao Executivo, desde que não se criem despesas.

O senador Anastasia lembra que, no ano passado, “ficamos aqui no Congresso discutindo se o Coaf é do Ministerio da Justiça ou da Fazenda. Não é matéria de lei, o órgão não está sendo criado, no mundo todo, o Executivo decide onde deve alocar”.

Além de temas que necessitarão de emendas constitucionais, Anastasia lembra que vai ser preciso também “uma infinidade de leis que vão tratar de avaliação de desempenho, remuneração variável, a questão das carreiras, valor de ingresso, forma de progressão”.

Os membros da Frente temiam que não viesse nada sobre a reforma administrativa este ano e consideram que o provável envio de uma proposta de emenda constitucional (PEC) “já é um bom início, o assunto começa a ser debatido”. Ao contrário das reformas tributária e previdenciária, que se exaurem praticamente numa lei só, o senador Antonio Anastasia diz que, no caso da administrativa, “é um processo dinâmico”.

O Brasil ficou muito tempo parado, com as corporações impedindo alterações. Exemplo disso é a lei do teto remuneratório, que foi votada no Senado em 2016 e está na Câmara parada até hoje.

O senador Anastasia acha que o ministro da Economia, Paulo Guedes, “foi sábio, política e tecnicamente” ao destacar que a reforma administrativa não atinge os atuais servidores, mas abre uma perspectiva de futuro. Assim, “não vai ter contra si os funcionários públicos. Muitas vezes a pessoa é contra sem nem saber o que é. A reforma administrativa é a favor dos bons funcionários, que são a maioria. Ela é contra os abusos, as desigualdades, privilégios”.

Sobre as críticas de que a reforma deveria atingir o sistema atual, Anastasia lembra que “colocando daqui para a frente, evita a questão do direito adquirido, evita questões judiciais, não fere nada de ninguém”. Se tivéssemos feito isso 20 anos atrás, hoje estaríamos muito melhor, ressalta.

Outra área que precisa entrar na reforma são as agências reguladoras, nascidas de uma boa ideia no governo Fernando Henrique Cardoso que foi “violentada”, segundo Anastasia. “As agências foram cooptadas por uma estrutura política, infelizmente.”

A Frente Mista defende uma agência nova, concebida para formar servidores de uma boa gestão pública. O senador Antonio Anastasia lembra o papel do Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), “que, de 1938 a 1985, foi uma referência nacional de alta qualificação técnica. Nada foi colocado no lugar quando foi extinto, e esse tema da gestão pública ficou órfão, não tivemos uma cultura consolidada”.

Pelo conceito da Frente Mista, temos que criar uma agência técnica, com gente preparada, blindada da política, como vários países têm, exatamente para dar as diretrizes do serviço público brasileiro. “Temos que formar quadros, fazer avaliação, critérios de participação social, atuação cidadã.”


William Waack: Luta abandonada

Na prática, o governo desistiu de controlar despesas via reforma administrativa

Talvez por sentir que não tem forças políticas para uma briga difícil. Por falta de apetite para enfrentar uma corporação organizada e que sabe defender seus interesses, direitos ou privilégios adquiridos (cada um nomeia como quiser). Ou ambos. Mas o fato é que a principal luta política de Bolsonaro foi abandonada.

O governo prometeu entregar hoje ao Congresso uma reforma administrativa que trata apenas dos servidores de amanhã, e não toca no sistema de interesses, direitos ou privilégios adquiridos (nomeie como quiser) atuais. Na prática, não vai pegar de frente a questão do controle do crescimento de despesas públicas, nas quais as folhas de pagamento do funcionalismo figuram com tanto destaque.

Chega a ser fascinante observar como o atual governo, que ia reformar o Estado e mudar o Brasil, trata obstáculos formidáveis no seu caminho como se o tempo fosse resolver tudo. Nenhum governo recente se revelou capaz (e este segue do mesmo jeito) de controlar o crescimento real de gastos públicos. Nenhum conseguiu escapar (e este vai na mesma toada) de um orçamento ridiculamente engessado: 94% do Orçamento são despesas obrigatórias.

Um consenso abrangente reina entre academia, economistas, cientistas políticos, parlamentares experientes e o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes. É sobre o tamanho do imbróglio. Arrumar dinheiro para gastar depende de reforma tributária, que depende de um pacto federativo para acomodar todos os interesses contraditórios, que depende de uma reforma tributária que enfrente renúncias e isenções, que depende de uma reforma administrativa que controle despesas públicas e tudo isso depende de vontade e lideranças políticas.

É igualmente notável a ausência de uma resposta clara e direta quando se pergunta por onde e como o governo quer atacar a questão. Seu eixo estratégico – a reforma administrativa e o pacto federativo tinham sido declarados como tais há quase dois anos – se perdeu por fatores que o governo controlou ou minorou apenas parcialmente (a crise de saúde pública e a recessão) aliados ao ambiente político que colocou Bolsonaro claramente na defensiva.

É evidente que o impulso inicial por reformas, se autêntico alguma vez, substituído foi pela necessidade de sobrevivência política. Por sua vez, subordinada às questões jurídicas e policiais que afetam o clã Bolsonaro, mas, também, pela urgência trazida pela imperiosa obrigação de acudir milhões de necessitados. Não há qualquer outra prioridade: sobreviver para se reeleger.

O presidente reconhece que não tem recursos para pagar indefinidamente um coronavoucher que chegou a custar R$ 50 bilhões por mês. Que não está disposto a topar uma briga para mexer em interesses, direitos ou privilégios adquiridos, ou seja, tem graves dificuldades para reduzir aumento de gastos. E que ainda aguarda uma “fórmula”, a cargo da Economia, para compensar perda de arrecadação de um lado com necessidade de gastar por outro.

Se havia nesse governo eleito para “mudar o Brasil” uma visão de longo prazo, a crise atual a destruiu. É possível identificar no cálculo político do presidente a esperança de que a tal “recuperação em V” propalada por Guedes (que até aqui os números desmentem), impulsionada por marco do saneamento, agronegócio, lei do gás e liquidez internacional, abra o espaço fiscal para os programas de renda e de crescimento.

Mas foi jogando para frente, para o próximo mês, para a próxima semana, para o próximo dia, o enfrentamento das questões fundamentais que Bolsonaro caiu na situação atual, da qual não tem opções fáceis de saída do ponto de vista político nem econômico (como “salvar” o PIB distribuindo ajuda emergencial).

Pode-se atribuir a Bolsonaro muitas coisas, mas cinismo não figura no alto da lista. Talvez isso dificulte a ele entender que são efêmeras a lealdade política de partidos do Centrão e a popularidade compradas com emendas, cargos e ajuda emergencial.


Merval Pereira: Reforma necessária

Agora que a reportagem da Rede Globo sobre funcionários fantasmas na Assembléia Legislativa do Rio foi indicada para o Emmy, o maior prêmio internacional da televisão, ao mesmo tempo que a investigação sobre o sistema de “rachadinha” salarial dos funcionários de diversos gabinetes de deputados estaduais, entre eles o hoje senador Flavio Bolsonaro, vai chegando a resultados concretos, é mais que hora de repisar a necessidade de uma revisão da organização dos gabinetes parlamentares em todos os níveis, do federal ao municipal.

Por sua própria natureza, a “rachadinha” demonstra que os parlamentares têm assessores em excesso, cujos salários são também supervalorizados diante do praticado pelo mercado profissional. O assessor Fabricio Queiroz era, segundo está sendo demonstrado nas investigações, o responsável por receber e redistribuir parte dos salários dos funcionários do gabinete de Flavio Bolsonaro.

O valor total da soma dos vencimentos mensais de cada gabinete da Assembléia Legislativa do Rio é de R$ 160 mil, para ser distribuído entre possíveis 40 assessores. Até mesmo auxílio-alimentação é fraudado, segundo denunciou o deputado Luiz Paulo. Segundo ele, seria melhor adotar o ticket-refeição, para evitar o que muitos servidores fazem: devolvem o dinheiro referente ao auxílio-alimentação aos deputados que os empregam, ou para a “caixa” do partido.

A reportagem da Globo mostrou que vários assessores não aparecem para trabalhar, alguns foram flagrados pela reportagem em casa em dia de semana, e uma funcionária mora em Orlando, na Flórida. Depois de a reportagem ser exibida, foram abertas duas investigações, uma da própria Assembléia e outra do Ministério Público estadual, e até agora, oito meses passados, nada foi resolvido. Marli Regina de Souza Costa continua vivendo na Flórida e, mesmo à distância, trocou de deputado, mantendo a mordomia de R$ 23 mil mensais.

Dois dos servidores denunciados aposentaram-se, ganhando mais do que na ativa e com uma vantagem, não precisam mais dar parte de seu salário para ninguém. Na Câmara dos Deputados em Brasília o valor mensal da verba de gabinete é R$ 111.675,59, e cada deputado pode contratar de 5 a 25 secretários parlamentares para “prestar serviços de secretaria, assistência e assessoramento direto e exclusivo nos gabinetes dos deputados, em Brasília ou nos estados”.

Foi num desses cargos que Nathalia Melo, filha de Queiroz foi registrada no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, embora trabalhasse no Rio como personal trainer. No Senado, a questão é mais complicada, um “emaranhado de leis” segundo o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, que impede que se tenha noção clara dos critérios e salários.

A Transparência Brasil dividiu estados e capitais em grupos de maiores e menores PIBs per capita, e confrontou os tamanhos das economias com os gastos parlamentares – que incluem salários, verbas e auxílios diversos a deputados estaduais e vereadores. “O que se revelou foi uma inversão lógica: segundo dados coletados junto a Assembléias e Câmaras, estados mais pobres gastam em média 20% mais do que os ricos; capitais mais pobres, 16% a mais”.

O Pará, por exemplo, que tem um terço do PIB per capita de São Paulo, gasta 30% a mais por deputado estadual. “A irracionalidade é a mesma quando se comparam as capitais: Natal tem a metade do PIB per capita de Curitiba, mas empenha com seus vereadores o dobro da capital paranaense. No entanto, as Câmaras Municipais destas gastam por vereador 16% a mais com salários, auxílios e verbas indenizatórias do que as capitais com os maiores índices de PIB per capita”.

O mesmo ocorre, segundo o relatório da Transparência Brasil, nas Assembleias Legislativas. Enquanto os 12 estados da base seus gastos com salários e verbas são 20% mais altos do que os dos 12 estados do topo.

Na reforma administrativa que se pretende fazer, este seria um tema prioritário, não apenas para impedir que esse sistema de “rachadinha” se perpetue com o desvio do dinheiro público para os partidos políticos ou o bolso do parlamentar. Também como exemplo de que prevalecerá entre os representantes do povo a postura ética que lhes é exigida pelos cargos para os quais foram eleitos.