reeleição
Zeina Latif: Haverá apoio para aventuras?
A eleição presidencial está distante, mas contamina o cenário econômico. Mostra disso é que não cessam as pressões por mais gastos na novela do orçamento, em meio à crescente fragilidade do governo.
Difícil é distinguir o que é fruto da intenção de alavancar Bolsonaro e o que são os interesses paroquiais de parlamentares que reconhecem o risco político de ser aliado do presidente.
Os presidentes que buscam a reeleição costumam ser os favoritos nas corridas eleitorais. Contam com o poder de usar a máquina pública em seu benefício e têm maior potencial de apoio, que se traduz em arrecadação de recursos de campanha e tempo de TV.
Bolsonaro, que ainda procura um partido para chamar de seu, provavelmente não contará com as mesmas vantagens, a depender do cenário de baixa aprovação em 2022. O cacife de um político decorre de sua perspectiva de poder.
Seu ponto de partida é bem menos favorável. A avaliação positiva do governo estava em 30% em meados de março (Datafolha), inferior aos cerca de 42% dos ex-presidentes em período equivalente.
Em termos líquidos, o degrau é maior: -14% (30% menos 44% de ruim/péssimo) ante cerca de +25% dos antecessores. E a aprovação seguiu em queda, segundo a pesquisa Exame-Ideia: 23% para avaliação bom/ótimo no dia 22 de abril ante 27% em 25 de março.
O espaço para melhora adiante parece limitado. O presidente pouco conseguirá capitalizar o avanço da vacinação, pois esta nunca foi sua bandeira, pelo contrário. Além disso, a Coronavac de João Doria e a CPI da Covid poderão atrapalhar suas pretensões.
Na economia, mesmo considerando um cenário otimista de controle da pandemia até 2022 – algo improvável segundo muitos especialistas -, há limites para uma puxada do mercado de trabalho, variável chave para a aprovação de qualquer governo.
Mesmo com a renovação de medidas de socorro, não será possível repetir, nem de longe, a dose de estímulos de 2020, que totalizaram 10% do PIB, incluindo recursos do Tesouro e crédito direcionado. Vale notar que, em sua maioria, são medidas de curto alcance para preservar o consumo de famílias e evitar demissões.
Nada que gere ganhos mais perenes, como no caso de ações para treinar a mão de obra ou financiar a inserção tecnológica de pessoas e empresas. Soma-se a isso a necessária alta de juros pelo Banco Central, cujo efeito máximo sobre a economia se dará em 2022.
É verdade que o relaxamento do isolamento social irá beneficiar os segmentos de serviços que mais contratam, mas muitos indivíduos estarão à margem do mercado de trabalho por falta de qualificação adequada às exigências da tecnologia.
Difícil reverter o quadro observado em 2020, quando o número de ocupados com ensino superior completo cresceu 7,6%, enquanto os demais amargaram com o recuo de 13,2%. Está contratada a piora adicional dos indicadores de desigualdade, um combustível extra para a insatisfação social.
Adicionalmente, a busca de ganhos de produtividade pelas empresas reduz o potencial de contratações no curto-médio prazo. A indústria, por exemplo, retomou os patamares de produção pré-crise, mas pouco contratou.
Fevereiro registrou recuo de 10,8% no número de ocupados na comparação anual. O mesmo ocorreu em outros setores, como apontou Naercio Menezes Filho, no Valor.
A baixa popularidade tende a afastar mais apoiadores e aliados. Não à toa o mercado financeiro especula precocemente como seria o governo Lula.
Os mares também serão revoltos em outras frentes. Com o desgaste de Paulo Guedes, incluindo as polêmicas que pululam nas redes sociais, talvez o presidente busque outro Posto Ipiranga, repetindo o gesto de Dilma na campanha ao descartar Guido Mantega em seu segundo mandato.
Qualquer que seja o desfecho, é improvável que consiga repetir a fórmula de 2018, com um futuro ministro amealhando o apoio de investidores e empresários. Seu descompromisso com reformas afasta bons nomes.
A bronca no exterior com Bolsonaro tampouco ajuda. Constrangimentos e retaliações ao governo poderão crescer. Não haverá sua foto ao lado de líderes de países com interesses no Brasil.
São muitos pratos a equilibrar. Na falta de malabaristas competentes, cresce o risco fiscal, com terrível legado para o próximo governo. Fica a dúvida: quanto o Centrão vai topar a aventura para apoiar um candidato mais fraco do que supunha, em meio ao escrutínio de investidores?
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/economia/havera-apoio-para-aventuras-25003196
O Estado de S. Paulo: Nas redes, economia afeta confiança em Bolsonaro, diz pesquisa
Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – A confiança que usuários de redes sociais depositam no presidente Jair Bolsonaro tem registrado queda acentuada desde novembro. Apesar das contestações na forma como o presidente conduz o combate à pandemia no País, o declínio é influenciado pelo contexto econômico de fim do auxílio emergencial somado à alta da inflação.
O diagnóstico está em monitoramento feito pela AP Exata e obtido pelo Estadão. A consultoria coleta publicações nas redes que mencionam Bolsonaro desde o primeiro dia do governo e, com algoritmos e inteligência artificial, classifica as mensagens como expressões de sentimentos específicos.
O tombo nas manifestações de confiança não é influenciado pela gestão da crise sanitária porque, de acordo com o estudo, esta frustração se manifestou na oscilação de postagens que expressam medo e tristeza. Além disso, a confiança começou a oscilar negativamente em setembro, quando a alta dos preços começou a se tornar mais visível.
Naquele mês, a variação mensal da inflação havia saltado de 0,24% para 0,64%. A sequência de subidas seguiu até dezembro, com o pico de 1,35%.
Até agosto passado, as publicações em redes sociais que manifestaram confiança em Bolsonaro eram cerca de 24%. A partir de setembro, o índice desenvolvido pela AP Exata começou a registrar queda. Em novembro, ficou em 20%. Em dezembro, quando foram pagas as últimas parcelas do auxílio emergencial de R$ 300, foi a 16%.
Nos meses seguintes, as menções a Bolsonaro que expressavam confiança continuaram baixando. Agora, o índice está em 14%. Por outro lado, postagens que expressavam medo e tristeza saltaram de 16% e 14%, respectivamente, para a casa dos 18%.
“A percepção da inflação começou no fim do ano e isso deu início ao processo de perda de confiança, que se acentuou a partir de dezembro com o fim do auxílio emergencial quando tínhamos um quadro de recessão. É um cenário explosivo para a popularidade de qualquer governo”, analisou Sérgio Denicoli, diretor da AP Exata.
Nesse cenário, a atuação do ministro Paulo Guedes atrapalhou a percepção das pessoas. “As previsões de Guedes hoje são tidas como folclóricas nas redes e as idas e vindas do presidente tiraram dele credibilidade. O desafio do governo é recuperar a confiança do eleitor”, ponderou Denicoli.
Antes mesmo de mergulhar nas polêmicas sobre o “vírus chinês” e sobre bolsa em universidades para “filho do porteiro”, o “Posto Ipiranga” de Bolsonaro vem sendo criticado por frustrar a promessa liberal que prometera quando assumiu o ministério. Estão em aberto grandes compromissos, como o de obter R$ 1 trilhão com privatizações e zerar o rombo do Orçamento.
Procurado, o Palácio do Planalto disse que não vai se manifestar sobre o levantamento.
Metodologia
A pesquisa da AP Exata contempla publicações geolocalizadas, feitas nas principais redes sociais, com menções ao presidente Jair Bolsonaro. Os dados foram coletados entre 1º de janeiro de 2019 e 30 de abril de 2021, a partir de usuários localizados em 145 cidades de todos os Estados.
A consultoria usa um amplo acervo de palavras que podem expressar emoções. A partir daí, usa inteligência artificial para fazer a chamada análise de sentimentos nas publicações feitas por internautas.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Folha de S. Paulo: Câmara aprova projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional
Daniele Brandt, Folha de S. Paulo
A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (4) o projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional e prevê punição para quem atentar contra o Estado democrático de Direito.
Após aprovação do texto-base em votação simbólica, os deputados rejeitaram sugestões de modificação ao projeto, que, agora, será submetido ao Senado.
A proposta aprovada prevê até cinco anos de prisão para quem contratar empresas para disseminar notícias falsas que possam comprometer o processo eleitoral no país.
Texto substitutivo da relatora Margarete Coelho (PP-PI), o projeto revoga a LSN, resquício da ditadura militar (1964-1985), que vem sendo usada com mais frequência nos últimos anos.
Reportagem publicada pela Folha mostrou que a Polícia Federal disse ter aberto 77 inquéritos com base na lei em 2019 e 2020, número que supera o registrado nos quatro anos anteriores, quando a corporação diz ter instaurado 44 inquéritos.
O ex-ministro da Justiça André Mendonça, hoje chefe da AGU (Advocacia-Geral da União), pediu que a PF investigasse jornalistas e opositores do governo Jair Bolsonaro, como o youtuber Felipe Neto.
Já o STF (Supremo Tribunal Federal) usou a mesma LSN para prender o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) e organizadores de manifestações antidemocráticas.
A discussão sobre a revogação da LSN foi retomada no início de abril pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Com a votação, o Congresso tenta se antecipar à análise da legislação pelo Supremo.
O substitutivo de Margarete tomou como base projeto apresentado em 2002 por Miguel Reale Júnior, então ministro da Justiça do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002).
O texto insere um título dentro do Código Penal. A relatora retirou dispositivos relacionados a terrorismo, associação discriminatória e discriminação racial, que já possuem leis próprias. Também excluiu conspiração e crimes de atentado à autoridade.
Por outro lado, ela incluiu um capítulo sobre crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral. Um dos artigos inseridos pela deputada criminaliza a comunicação enganosa em massa.
O ato é descrito como “promover, ofertar, constituir, financiar, ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos capazes de colocar em risco a higidez do processo eleitoral, ou o livre exercício dos poderes constitucionais”.
Ou seja, pune quem contratar empresa que divulgar notícia que sabe ser falsa. A pena prevista é de reclusão de um a cinco anos e multa.
Outro dispositivo inserido trata da interrupção do processo eleitoral, como no caso de ataque hacker ao sistema da Justiça Eleitoral. A punição prevista é de três a seis anos de reclusão e multa.
Além disso, a relatora incluiu o crime de violência política, que seria “restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual, ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
A pena prevista é de de três a seis anos de reclusão e multa, além da pena correspondente à violência.
Margarete incluiu dispositivo que afirma não ser crime a manifestação crítica aos Poderes constituídos, nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais.
Essa era uma preocupação da oposição, que temia ter o direito de protestar tolhido.
O projeto também criminaliza a incitação à animosidade entre as Forças Armadas ou entre elas e Poderes legitimamente constituídos, as instituições civis ou a sociedade.
Além disso, Margarete acrescentou um dispositivo sobre abolição violenta do Estado democrático de Direito, que seria a tentativa, com emprego de violência ou grave ameaça, de abolir o Estado de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes constitucionais.
É o que buscaram, por exemplo, apoiadores do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com a invasão do prédio do Capitólio, em janeiro. A pena prevista é de quatro a oito anos de reclusão, além da pena correspondente à violência.
A relatora estipulou ainda aumento das penas se o crime for cometido por funcionário público, que perderia o cargo ou função pública, ou por militar.
Na discussão do projeto, bolsonaristas criticaram a votação e disseram que o debate havia sido açodado. “É uma lei que deve ser estudada, é fato, mas da forma açodada que essa lei vem para este plenário, nós não podemos aceitar”, disse Carlos Jordy (PSL-RJ).
“Se o objetivo da nova Lei de Segurança Nacional, ou Lei do Estado democrático de Direito, um termo que foi expressamente prostituído para poder alegar todo tipo de questões que estejam violando a própria democracia. Se é para torná-la melhor, ela deveria estar sendo melhorada, aprimorada. Da forma como está, traz consigo diversos dispositivos ruins da antiga Lei de Segurança Nacional e também traz questões muito piores para a nova legislação.”
Já a oposição defendeu a revogação da lei.
“Temos que acabar com a Lei de Segurança Nacional, aquilo que ainda vem da época sombria da nossa história que este país viveu, infelizmente, da ditadura, que alguns ensaiam, estimulam condutas para que volte e defendem como se aquilo fosse o melhor dos mundos, como se aquele período fosse democrático, não tivesse sido violento”, afirmou o deputado Alencar Santana (PT-SP) .
“Com base nessa lei, muitas pessoas foram punidas, injustamente. Eu acho que esse novo marco que nós podemos aprovar hoje é condizente com o Estado democrático que nós defendemos. O Judiciário vai ter melhores parâmetros para poder agir quando provocado. Não é justo que legislações como essas ainda sejam utilizadas”, acrescentou Santana.
A votação dos destaques expôs um racha na esquerda. O PSOL considerou o texto aberto. “Sabemos bem, como esses tipos penais abertos, e aí eu quero me permitir divergir dos meus colegas da oposição, podem levar à criminalização, sim, de movimentos sociais”, afirmou a líder do partido na Câmara, Talíria Petrone (RJ).
“Sabemos o quão seletivo é o estado penal, que cada vez mais é reforçado por esta Casa e cada vez mais é utilizado para perseguir os mesmos corpos de sempre.”
O deputado Orlando Silva (PC do B-SP) divergiu e negou que a lei fosse ser instrumento para perseguir o movimento social.
“Não seríamos nós que iríamos escrever uma lei que perseguisse os movimentos sociais. Sem autorização, quero dizer que o PT também não o faria, o PSB também não o faria, o PDT, a Rede e tantos outros partidos, só para falar do nosso campo citei alguns deles, nós nunca iríamos subscrever uma lei que perseguisse movimentos sociais”, disse.
Silva disse que entendia a dificuldade de o PSOL explicar por que votou com o governo e o PSL, “mas o argumento não pode ser que a lei pode ser instrumento para perseguir movimento social”.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Vinicius Torres Freire: Reforma tributária mexe no bolso, mas pode morrer na praia poluída de Bolsonaro
Em uma reforma tributária que preste, alguns tipos de empresas vão pagar mais imposto, outras menos, assim como os consumidores de bens e serviços afetados. O objetivo é uniformizar o quanto possível o custo dos tributos. A uniformização de carga tributária por setor ou empresa e a simplificação de normas será tanto maior se incluir impostos centrais para estados (ICMS) e municípios (ISS). Quanto menos uniformizar e simplificar, menos a reforma vai prestar.
As contas dessas perdas e ganhos nem foram detalhadas, embora se estime que serviços como saúde, educação, telecomunicações e serviços profissionais (como advocacia e consultorias, a depender do regime: se não estão no Simples) devam pagar mais, seja na mudança parcial proposta pelo governo seja na mudança geral que vinha sendo analisada pela Comissão Mista do Congresso.
Com dinheiro na mesa, a discussão engrossa. Se houver rolo político anterior mesmo ao debate de quem paga a conta e quanto, o caldo engrossa e entorna. Voltou a entornar nas últimas três semanas e nesta terça-feira (4) escorreu pelo chão.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-SE), que entre outras coisas quer ser o líder-mor do governo no Parlamento, por ora deu fim à Comissão Mista que unificava projetos (de Câmara e Senado) de uma reforma ampla, geral, que trata de todos os impostos relevantes e inclui estados e municípios na mudança. Lira quer tocar a reforma de Paulo Guedes ou do governo, embora Jair Bolsonaro não tenha ideia do que se trata e tende a fazer alguma besteira assim que começar a ouvir queixas de setores afetados. Ainda mais se for relembrado de que, no fim do caminho da reforma de Guedes tem uma espécie de CPMF.
Em tese, o “imposto sobre transações” de Guedes, jamais explicado, serviria para reduzir impostos sobre a folha salarial de empresas, carga que seria redistribuída pela sociedade, em particular, diz gente do governo, sobre setores novos ou que pagam pouco de imposto. Na proposta original do governo, “fatiada”, também tem pedaços de reforma do IR da pessoa física, com redução geral de alíquota e fim de isenções para saúde e educação —justo, mas rolo na certa.
A aversão a alguma CPMF pode acabar com a reforma do governo que não trata de PIS/Cofins. O assunto, então, estaria morto até 2023, pelo menos.
Lira deu seu tiro na reforma geral quando o parecer sobre a emenda constitucional, aliás bem razoável, era lido pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).
Guedes não quer a reforma geral. Quer aprovar a mudança e simplificação do PIS/Cofins, que vem de Michel Temer.
Embora ainda dê rolo (quem paga a conta), é de fato mais simples fazer essa mudança (em termos técnicos e legislativos). Tem também a vantagem de, talvez, mudar um pouco de assunto na política, dominado pela CPI da Covid. A cortina de fumaça deve ser furada, mas o governismo atropelado pela CPI não tem alternativa. Nem mesmo a ameaça dos comícios golpistas bolsonarianos do final de semana recebeu atenção.
Uniformizar impostos é necessário para que se tenha uma economia de mercado funcional. Impostos definem custos e, pois, podem distorcer investimentos. Trocando em miúdos bem simples e grossos, um investimento pode ser decidido não porque é rentável (com uso eficiente do capital), mas porque recebe algum favor (redução de impostos).
Jogar fora as emendas constitucionais da reforma tributária é desperdiçar um trabalho de anos. Mas tal reforma exige acordos sociais, econômicos e políticos complexos. Logo, não parece coisa de governo Bolsonaro.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Cristovam Buarque: Olhe a responsabilidade, gente
Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo
Nesta semana, a reforma ministerial mostrou que Bolsonaro já está trabalhando para o pós-segundo turno, enquanto os líderes e partidos de oposição continuam no pré-primeiro. Com o novo Ministro da Defesa, ele deseja controlar as Forças Armadas; com o novo Ministro da Justiça busca o controle sobre as polícias estaduais; com a liberação da compra e porte de armas, equipa sua milícia paralela. Com Forças Armadas, polícias e milícias, Bolsonaro passa a ter forças armadas nas ruas, para contestar derrota por pequena margem de eleitores, caso não consiga argumento para contestar o resultado na Justiça Eleitoral.
Enquanto isto, as oposições continuam divididas entre os possíveis candidatos que depois disputarão entre eles qual vai ao segundo turno. Estes embates deixam marcas que poderão levar outra vez a abstenções e votos nulos no segundo turno, como aconteceu em 2018. Difícil imaginar os eleitores do PT votando em Ciro ou outro candidato, e eleitores do Ciro e de outros candidatos votando no Lula ou outro do PT, salvo se fosse construída uma aliança ampla de todos desde o primeiro turno.
Felizmente, tudo indica que o exército não está aceitando o papel de milícia do Bolsonaro, e alguns dos candidatos pela oposição assinaram um manifesto conjunto em defesa da democracia. Mas todos que percebem as consequências da reeleição do atual governo sobre o futuro do Brasil, deveriam se encontrar em um debate franco sobre qual deles tem mais chance de vencer a eleição; também quais as qualidades, erros e méritos que se reconhecem; em que princípios estariam unidos no governo seguinte. Esta reunião poderia ter a participação de entidades da sociedade civil, como ocorreu em momentos decisivos da história. Poderia inclusive ser presidida por uma ou mais destas entidades.
Pena que a política é mais dominada pela arrogância do otimismo do que pela consciência dos riscos. Cada candidato já se considera com um pé no segundo turno, e tem confiança que unirá os eleitores dos que ficaram para trás. Imaginaram isto em 2018, mas nem a boa qualidade do candidato do PT foi suficiente para evitar a rejeição que o partido tinha. Pode ser diferente agora, se o candidato for Lula e o PT tiver rejeição menor, sobretudo depois da anulação Lava Jato de Curitiba; ainda mais com o reconhecimento oficial de que houve parcialidade do juiz contra Lula. Mesmo assim, não é claro se ele e o PT teriam menos rejeição. É possível que mesmo sabendo o que Bolsonaro representa, muitos eleitores ficarão em casa, ou viajarão para não votar, ou votarão nulo, induzidos pela ideia divulgada pela própria oposição, de “nem Bolsonaro, nem PT”. Possível também que eleitores do PT façam agora o que foi feito com Haddad em 2018, anulando o voto e se abstendo.
Estes líderes precisam entender que, divididos, dificilmente qualquer deles tomará o lugar do candidato do PT, mas o PT deve entender que, solitário, dificilmente ganhará no segundo turno se não tiver o apoio dos outros candidatos e partidos. Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo.
Os candidatos e líderes de partidos que se opõem à estratégia da reeleição de Bolsonaro têm diante deles a imensa responsabilidade de não falharem por arrogância, por vaidade, preconceito. Não podem neste momento colocar seus partidos e suas propostas na frente do interesse maior da democracia e do futuro do país. É preciso unidade com um candidato de baixa rejeição que leve a uma vitória expressiva, cale os fanáticos e desarme as milícias, oficiais ou não.
*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro
Vladimir Safatle: Este Governo tem que cair. Preservá-lo é ser cúmplice
Há um ano, movimentos exigiam impeachment de Bolsonaro, mas foram desqualificados pois era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia. O tempo passou e ficou claro que a verdadeira crise brasileira é o próprio presidente, que trabalha para aprofundá-la
Na última sexta feira, a imprensa noticiou que “um homem”, “um idoso” morreu no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento em Teresina. O “homem” apresentava problemas respiratórios, mas a UPA não tinha maca disponível, não tinha leito e muito menos vaga em UTI. Ao fim, ele morreu de parada cardíaca. Sua foto circulou na imprensa e redes sociais enquanto o Brasil se consolidava como uma espécie de cemitério mundial, pois é responsável por 25% das mortes atuais de covid-19. País que agora vê subir contra si um cordão sanitário internacional, como se fôssemos o ponto global de aberração.
O “homem” em questão era negro e vinha de um bairro pobre na zona sul de Teresina, Promorar. Ele morreu sem que veículos de imprensa sequer dissessem seu nome. Uma morte sem história, sem narrativa, sem drama. Mais um morto que existiu na opinião pública como um corpo genérico: “um idoso”, “um homem”. Não teve direito à descrição de sua “luta pela vida”, nem da dor em “entes queridos”. Não houve declarações da família, nem comoção ou luto. Afinal, “um homem” não tem família, nem lágrimas. Ele é apenas o elemento de um gênero. Dele, vemos apenas seus últimos momentos, no chão branco e frio, enquanto uma enfermeira, com parcos recursos, está a seu lado, também sentada no chão, como quem se encontra completamente atravessada pela disparidade entre os recursos necessários e a situação caótica em sua unidade hospitalar. Reduzido a um corpo em vias de morrer, ele repete a história imemorial da maneira com que se morre no Brasil, quando se é negro e se vive na em bairros pobres. A foto de seus momentos finais só chegou até nós porque sua história tocou a história da pandemia global.
Enquanto “um homem” morria no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento, com o coração lutando para conseguir ainda encontrar ar, o Brasil assistia o ocupante da cadeira de presidente a ameaçar o país com estado de sítio, ou “medidas duras” caso o STF não acolhesse sua exigência delirante de suspender o lockdown aplicado por governadores e prefeitos desesperados. Não se tratava assim apenas de negligencia em relação a ações mínimas de combate a morte em massa de sua própria população. Nem se tratava mais da irresponsabilidade na compra e aplicação de vacinas, até agora fornecidas a menos de 5% da população geral. Tratava-se, na verdade, de ameaça de ruptura e de uso deliberado do poder para preservar situações que generalizarão, para todo o país, o destino do que ocorreu em Teresina com “um homem”. Generalizar a morte indiferente e seca. Ou seja, via-se claramente uma ação deliberada de colocar a população diante da morte em massa.
Enquanto nossos concidadãos e concidadãs morriam sem ar, no chão frio de hospitais, a classe política, os ministros do STF não estavam dedicando seu tempo a pensar como mobilizar recursos para proteger a população da morte violenta. Eles estavam se perguntando sobre se Brasília acordaria ou não em estado de sítio. Ou seja, estávamos diante de um governo que trabalha, com afinco e dedicação, para a consolidação de uma lógica sacrificial e suicidária cujo foco principal são as classes vulneráveis do país. Um governo que não chora pela morte de suas cidadãs e seus cidadãos, mas que cozinha, no fogo alto da indiferença, o prato envenenado que ele nos serve goela abaixo. Não por outra razão “genocídio” apareceu como a palavra mais precisa para descrever a ação do governo contra seu próprio povo.
Um governo como esse deve ser derrubado. E devemos dizer isto de forma a mais clara. Preservá-lo é ser cúmplice. Esperar mais um ano e meio será insanidade, até porque há de se preparar para um governo disposto a não sair do poder mesmo se perder a eleição. Vimos isso nos EUA e, no fundo, sabemos que o que nos espera é um cenário ainda pior, já que este é um Governo das Forças Armadas.
Cabe a todas e todos usar seus recursos, sua capacidade de ação e mobilização para deixar de simplesmente xingar o governante principal, gritar para que ele saia, e agir concretamente para derrubá-lo, assim como a estrutura que o suportou e ainda o suporta. A função elementar, a justificativa básica de todo governo é a proteção de sua população contra a morte violenta vinda de ataques externos e crises sanitárias. Um governo que não é apenas incapaz de preencher tais funções, mas que trabalha deliberadamente para aprofundá-la não pode ser preservado. Ele funciona como um governo, em situação de guerra, que age para fortalecer aqueles que nos atacam. Em situação normal, isso se chama (e afinal, o vocabulário militar é o único que eles são capazes de compreender): alta traição. Um governo que não tem lágrimas nem ação para impedir que “um homem” morra no chão de um hospital, que age deliberadamente para que isso se repita de forma reiterada perdeu toda e qualquer legitimidade. Não há pacto algum que o sustente. E toda ação contra um governo ilegítimo é uma ação legítima.
Na verdade, esse governo já nasceu ilegítimo, fruto de uma eleição farsesca cujos capítulos agora veem à público. Uma eleição baseada no afastamento e prisão do candidato “indesejável” através de um processo no qual se forjou até mesmo depoimentos de pessoas que nunca depuseram. Ele nasce de um golpe militar de outra natureza, que não se faz com tanques na rua, mas com tweets enviados ao STF ameaçando a ruptura caso resultados não desejados pela casta militar ocorressem influenciando as eleições.
Há um ano, vários de nós começaram movimentos exigindo o impeachment de Bolsonaro. Não faltou quem desqualificasse tais demandas, afirmando que, ao contrário, era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia, que mais um impeachment seria catastrófico para a vida política nacional, entre outros. Um ano se passou e ficou claro como o sol ao meio-dia que a verdadeira crise brasileira é Bolsonaro, que não é possível tentar combater a pandemia com Bolsonaro no governo. Mesmo assim, setores que clamavam por “frentes amplas” nada fizeram para realizar a única coisa sensata diante de tamanho descalabro, a saber, derrubar o governo: mobilizar greves, paralisações, bloqueios, manifestações, ocupações, desobediência civil para preservar vidas. Como dizia Brecht, adaptado pelos cineastas Straub e Huillet, só a violência ajuda onde a violência reina.
A primeira condição para derrubar um governo é querer que ele seja derrubado, é enunciar claramente que ele deve ser derrubado. É não procurar mais subterfúgios e palavras outras para descrever aquilo que compete à sociedade em situações nas quais ela está sob um governo cujas ações produzem a morte em massa da população. Há um setor da população brasileira, envolto em uma identificação de tal ordem, que irá com Bolsonaro, literalmente, até o cemitério. Como já deve ter ficado claro, nada fará o governo perder esse núcleo duro. Cabe aos que não querem seguir essa via lutar, abertamente e sem subterfúgios, para que o governo caia.
Celso Lafer: As fronteiras e seu significado
Synesio Sampaio Goes Filho lança obra sobre ‘o estadista que desenhou o mapa do Brasil’
Fronteiras têm grande importância na vida internacional. Definem o espaço da competência jurídica e política própria dos Estados nacionais. Diferenciam o “externo” do “interno”, no âmbito do qual cabe a um Estado, por meio de suas instituições, a responsabilidade de deliberar sobre rumos de uma sociedade. Nessa esfera também se situa o desafio de se orientar no mundo, pois na realidade contemporânea as fronteiras são porosas.
Faço essas considerações para destacar que a definição das fronteiras com reconhecimento internacional é o que configura “o corpo da pátria”, para me valer do sugestivo título do livro de Demétrio Magnoli. Por isso, o primeiro item da pauta da política externa de um país é o de buscar configurar o “corpo da pátria”. Nesse item, a diplomacia brasileira teve sucesso exemplar em obra que teve início com o Tratado de Madri de 1750.
O Brasil é um país de dimensão continental, como a China, a Índia e a Rússia. Em contraste com esses e outros países grandes, médios e pequenos, não enfrenta contenciosos territoriais e suas tensões, presentes em tantas regiões do mundo. Não tem ambição de expansão territorial.
O Brasil, na lição de Rio Branco, é um país “que só ambiciona engrandecer-se pelas obras fecundas da paz, com seus próprios elementos, dentro das fronteiras em que fala a língua dos seus maiores e quer vir a ser forte, entre vizinhos grandes e fortes”. É de pertinente atualidade a afirmação de Rio Branco. Explicita uma pacífica dimensão de nossa inserção internacional.
Pela ação das bandeiras e das monções, a ocupação do território hoje brasileiro foi muito além dos limites previstos no Tratado de Tordesilhas, de 1494, pelo qual Portugal e Espanha buscaram dividir o que estava por se descobrir no “mar oceano”. Por isso, de fato e de direito, eram indefinidas as fronteiras entre os domínios da Espanha e de Portugal na América do Sul. Esses espaços passaram a ser estabelecidos pelo Tratado de Madri, que delineou a fisionomia do nosso país e é ponto de partida da grande obra da definição das fronteiras do Brasil.
O seu grande negociador foi o paulista Alexandre de Gusmão, nascido em Santos em 1695, considerado como o avô da diplomacia brasileira, pois com ele teve início a formação de um capital diplomático, que, a partir da herança portuguesa, vem favorecendo o nosso país.
Sobre Gusmão acaba de ser publicado iluminador livro de Synesio Sampaio Goes Filho: Alexandre de Gusmão (1695-1753) – o estadista que desenhou o mapa do Brasil.
Synesio, com a qualidade de escritor e a profundidade de consagrado estudioso das fronteiras do Brasil, logra transmitir ao leitor contemporâneo o significado do equilíbrio e da razoabilidade das teses defendidas por Gusmão, consagradas no Tratado de Madri. Desvenda ao mesmo tempo o perfil de uma personalidade de intrépido vigor intelectual.
O objetivo do tratado era “estreitar a cordial amizade” entre Portugal e Espanha, eliminando os embaraços das incertezas dos limites dos domínios das duas Coroas na América, para assim “manter os seus vassalos em paz e sossego”. Os critérios estabelecidos para a fixação dos limites foram os seguintes: 1) suas balizas devem ser as paragens mais conhecidas (“origem e curso dos rios e os montes mais notáveis”) para obstar disputas, valorizando assim fronteiras naturais, e 2) “cada parte há de ficar com o que atualmente possui” – é o que veio a ser a tese do uti possidetis –, “à exceção das mútuas cessões as quais se farão por conveniência comum e para que os confins fiquem, quanto possível, menos sujeitos a controvérsias” – o que levou à cessão para a Espanha da Colônia do Sacramento, origem do que veio a ser o Uruguai e a cessão para Portugal da área das missões, que vieram a configurar os contornos do Estado do Rio Grande do Sul.
As teses de Gusmão exigiam o conhecimento do Brasil da época, incluídas as incertezas amazônicas. Daí a importância dos mapas de que se valeu nas negociações. Essa é a sólida origem das bases de uma diplomacia do conhecimento que norteou as negociações do Brasil em matéria de fronteiras levadas a cabo pelo Império e completadas na República por Rio Branco, e que com seus desdobramentos esteve a serviço da construção do Brasil. Daí a relevância do livro de Synesio e sua dimensão de atualidade, pois dá destaque ao acervo de realizações da política externa brasileira e ao soft power do seu capital simbólico.
É esse capital simbólico – que permite a adequada orientação no mundo – que a diplomacia do governo Bolsonaro se dedica cotidianamente a dilapidar. Ela alcança até o Tratado de Madri, pois foi a Fundação Alexandre de Gusmão do Itamaraty, na gestão Ernesto Araújo, que se recusou a patrocinar a publicação do livro, ora editado pela Record, por conta da mensagem do prefácio de Rubens Ricúpero, que, ao realçar os indiscutíveis méritos do trabalho de Synesio, insere-o no âmbito do profícuo papel da diplomacia brasileira nos destinos do Brasil.
*Professor Emérito da USP, foi ministro das Relações exteriores (1992 e 2001-2002)
Janio de Freitas: A pandemia não matou a doença do golpismo
Medidas duras contra governadores só podem ser intervenções. Não terá sido ocasional a presença da expressão estado de sítio antes da ameaça
O ressurgimento de Lula da Silva, prestigiado até pela atenção da CNN americana, simultâneo a outros fatos de aguda influência, levam Bolsonaro ao estado de maior tensão e descontrole exibido até agora.Sua conversa com o ministro Luiz Fux e as palavras que a motivaram, centradas em referências dúbias a estado de sítio, tanto expuseram uma situação pessoal de desespero como o componente ameaçador desse desvairado por natureza. O pouco que Bolsonaro disse ao presidente do Supremo em sentido neutralizador conflita com a adversidade que cresce, rápida e envolvente, contra seu projeto.
Embora lerda como poucas, a investigação das tais "rachadinhas" de Flávio, além de outra vez autorizada, afinal vê surgir a do filho Carlos e encontra o nome Jair. O filho mais novo, ainda com os primeiros fios no rosto, inicia-se como investigado por tráfico de influência.
"Com crise econômica, o meu governo acaba" é a ideia que orienta Bolsonaro mesmo nos assuntos da pandemia. Nos quais não deu mais para manter a conduta de alienação e primarismo diante do agravamento brutal da crise pandêmica.
A reação de Bolsonaro foi a tontura do desesperado. Lula pega a bandeira da vacina, então é urgente pôr a vacina no lugar da cloroquina. Põe máscara. Tira máscara. Volta à cloroquina. Culpa os governadores. Mas o empurrado é Pazuello. Escreve carta solícita a Biden e recebe uma resposta de cobrança sobre meio ambiente. Volta à vacina. Falta vacina.
Se 300 mil mortes não importam a Bolsonaro, é esmagador o reconhecimento inevitável de que a vacina de João Doria veio a ser um pequeno salvamento e uma grande humilhação para o governo. E a economia decisiva? Inflação, necessário aumento dos juros, ameaça às exportações, fome, socorro em algum dinheirinho a 45 milhões e contra as contas governamentais.
Bolsonaro corre ao Supremo, com uma ação contra os governadores, pretendendo que sejam proibidos de impor confinamento e reduzir a atividade econômica ao essencial. Não sabe que o regime é federativo e isso o Supremo não teme confirmar.
"É estado de sítio. Se não conseguir isso [êxito no Supremo], vem medidas mais duras." Medidas duras contra governadores só podem ser intervenções. Não terá sido ocasional a presença da expressão estado de sítio antes da ameaça. Tudo no telefonema e no que foi dito depois reduz a uma ideia: golpe.Bolsonaro não se deu conta, no entanto, da variação já captada pelo Datafolha. Sua persistência contra a redução da atividade urbana não atende mais à maioria da sociedade. Sua demagogia perdeu-se nas UTIs. Apenas 30% dos pesquisados, nem um terço, recusam agora o isolamento, em favor da economia. E já 60% entendem que o confinamento é importante para repelir o vírus. O que é também repelir Bolsonaro.Volta-se ao risco maior: a pandemia não matou a doença do golpismo.
Tudo em casa
O corporativismo, conhecido nas ruas por cupinchismo, arma um lance espertinho para livrar-se de uma decisão entre duas possíveis: reconhecer que Sergio Moro levou à violação do processo eleitoral de 2018 pelo próprio Judiciário ou carregar, para sempre, o ônus de tribunal conivente com a violação, para salvar o que resta de Moro. Nessa armação, Kassio Nunes Marques faz sua verdadeira estreia no Supremo.
Os ministros Edson Fachin e Nunes Marques propõem que o plenário do Supremo examine primeiro a anulação das condenações de Lula. Se aprovada, seria cancelada a apreciação final, que deveria vir antes, sobre a imparcialidade ou parcialidade de Sergio Moro. Com essa inversão da agenda, Marques não precisaria dar o voto incômodo que protela. E Moro e suas ilegalidades, que Gilmar Mendes relatou, iriam para o beleléu. Com o necessário cinismo, a anulação das condenações seria dada como solução para o problema Moro. Complicado, mas esperteza óbvia não é esperta.
Ocorre, no entanto, que a ação à espera do voto de Nunes Marques é sobre a conduta de Sergio Moro como juiz, se cumpriu ou transgrediu as normas a que estava obrigado e agiu com ética judicial (a pessoal teve julgamento público). Disso a decisão de Fachin não trata, mas a moralidade judicial não pode dispensar.
Hélio Schwartsman: A tragédia poderia ter sido evitada
Sem citar Bolsonaro ou Covid, André Nemésio dispara um asteroide contra a política sanitária do atual governo
A ficção científica tem uma legião de fãs dedicados. Não estou entre eles. Embora leia de tudo, eventualmente até ficção científica (e quase sempre com prazer), não sei de cor todos os títulos de Asimov, Bradbury e Clarke —e nem acho que tenha assistido a todos os episódios de “Jornada nas Estrelas”.
É estranho que a ficção científica não goze de grande prestígio literário, já que o gênero convida os autores a trabalhar com ideias em estado puro. Ela não é limitada pela ditadura da realidade nem pelos acidentes da geografia espacial e do estado tecnológico em que calhamos de viver.
No fundo, a única restrição que a ficção científica impõe é a de não violar sistematicamente as leis da física, as quais deixam enorme latitude para a imaginação. É um gênero perfeito para a crítica social, pois permite apontar problemas desvinculando-os de paixões presentes.
Faço essas considerações a propósito de “Crônicas do Cretáceo”, livro de estreia de André Nemésio, biólogo com o qual troco e-mails já há vários anos. A história gira em torno do asteroide que caiu sobre o que é hoje a península de Yucatán, 66 milhões de anos atrás, provocando uma extinção em massa. A tragédia poderia ter sido evitada. Não avanço mais para não cometer um “spoiler” sideral.
Impressionou-me a quantidade de discussões científicas fascinantes que André conseguiu reunir num enredo que prende a atenção. Quão comum é a vida no Universo? E a vida inteligente? Dinossauros poderiam ter criado uma civilização? Ainda entram debates sobre epistemologia, feminismo e, principalmente, sobre os riscos de ignorar a ciência. Sem nem mencionar Bolsonaro ou Covid-19, André dispara um asteroide inteiro contra a mortífera política sanitária do atual governo.
Detalhe revelador do rigor científico com que o autor trata os temas abordados, “Crônicas...” é um livro de ficção com notas de rodapé e bibliografia.
Bruno Boghossian: Espera inútil por moderação garante impunidade a Bolsonaro
Negacionistas da delinquência presidencial, políticos e juízes aceitam radicalismo mortífero
No penúltimo domingo de maio, Jair Bolsonaro provocou aglomeração durante um protesto contra o Congresso e o STF. Na terça, Rodrigo Maia fez na Câmara um "convite à pacificação dos espíritos". Dois dias depois, o presidente foi à portaria do Palácio da Alvorada e, aos gritos, lançou sua infame advertência ao Supremo: "Acabou, porra!".
A eterna ilusão de que Bolsonaro se tornaria um governante moderado circula há dois anos em Brasília. Na pandemia, essa fantasia ainda engana autoridades que aguardam pacientemente uma mudança de comportamento na gestão da crise. Essa esperança inútil legou ao país a tragédia impulsionada pelo radicalismo mortífero do presidente.
Rodrigo Maia não foi um negacionista da delinquência bolsonarista, mas eles estão por aí. No fim de 2020, um dos principais líderes do centrão dizia que a imagem desastrosa do governo na pandemia era "má vontade da mídia" e que o presidente havia abandonado o extremismo. "Ele notou que aquilo era um erro", disse o senador Ciro Nogueira.
Esses sócios do governo também viram sinais positivos quando Bolsonaro passou a falar bem da vacina e decidiu trocar um ministro da Saúde incompetente. Pouco depois, o presidente mostrou que não mudaria as diretrizes da gestão, voltou a defender a cloroquina e acionou o STF contra governadores que tentam conter o colapso de seus hospitais.
Ainda há quem espere mudanças. No auge da crise, o presidente do Senado disse que é hora de "sentar à mesa" e pediu "a coordenação do presidente da República". O chefe da Câmara afirmou que é preciso "evitar essa agonia e esse vexame internacional". Os dois estão atrasados.
No STF, Luiz Fux telefonou para o Planalto ao saber que Bolsonaro havia citado um cenário de estado de sítio ao ameaçar uma “ação dura” contra governadores que implantaram medidas de restrição. O autor da bravata disse que aquilo não era verdade, e o ministro se deu por satisfeito. Bolsonaro sabe que os negacionistas vão deixar por isso mesmo.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro tem de renunciar a si mesmo ou ao governo
Presidente, centrão e amigos encenam a farsa da união nacional na semana que vem
Imagine-se que, na semana que vem, Jair Bolsonaro renuncie a si mesmo. Que abdique da alma monstruosa que reina sobre o país da morte.
Nesse universo paralelo, Bolsonaro acaba por se render na guerra civil que luta contra estados e cidades, contra a vida e a razão. Passa a apoiar o distanciamento social. No Ministério da Saúde, saem generais e coronéis brucutus, terraplanistas e negacionistas em geral. Entra gente capaz de organizar a distribuição de UTIs, remédios para intubações, oxigênio etc.
O governo federal convoca um comitê de cientistas que coordenará pesquisadores dedicados a entender as novas variantes do vírus e outras virologias, infectologias e epidemiologias que permitam inventar estratégias capazes de conter a disseminação da doença. Outro grupo prepara o plano para cuidar dos sobreviventes com sequelas do coronavírus etc. O delírio é livre.
É tudo imaginável, claro.
Bolsonaro arranjou para a semana que vem uma reunião em que espera receber apoio da cúpula de Judiciário e Legislativo para criar um “gabinete de crise” da epidemia (vai ocupar a sala do gabinete do ódio?). Será uma farsa, faltando saber apenas o tamanho da presepada. Para que não o fosse, Bolsonaro teria de renunciar a si mesmo.
Bolsonaro quer ganhar tempo, assim como seus cúmplices no comando do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Fará a pose do governante, no que tem sido ainda mais diminuído por prefeitos, governadores e até por Lula da Silva, que não governa coisa alguma.
Tentará sufocar conversas sobre CPIs ou coisa pior. Quem sabe ocorresse uma estabilização do número de mortes até o fim do mês. Seria resultado do trabalho de governadores e prefeitos, mas Bolsonaro, como o grande parasita que é, sugaria o esforço alheio.
Com uma mão grande, Bolsonaro afana a faina dos outros. Com a mão pesada do ferrabrás, Bolsonaro de novo volta a fazer ameaças de golpe, como em meados do ano passado. Para sua massa, seria o líder contra o caos social que adviria das políticas de distanciamento social. Para começar, sugere um estado de sítio.
Pacheco e Lira também ganham tempo até que o diálogo com Bolsonaro pela união contra a epidemia acabe por se revelar a farsa que é —ou até que as pessoas comecem a agonizar sufocadas nas calçadas dos hospitais.
O objetivo comum é conter com custo baixo a ira crescente contra o genocida. O acordão Bolsonaro-centrão não se sustenta com fúria popular crescente. Os colaboracionistas do empresariado, assim como os cúmplices por omissão, esperam também essa água na fervura que começa.
Para que a farsa durasse pelo menos um ato, Bolsonaro teria de engolir por uns dias as imundícies que cospe sobre as políticas de distanciamento, violência agora acompanhada de ações do governo na Justiça contra estados que adotam lockdowns (fajutos, mas ok). Seria também o mínimo para não desmoralizar logo de cara o ministro da Saúde que nem assumiu, esse que anuncia que a ciência irá para o governo.
Quanto mais tempo levar a farsa, melhor para a sustentação do grande acordo de morte entre centrão, Bolsonaro e o grosso da elite econômica.
Em abril, começa a ser pago o auxílio emergencial. Há uma chance de estados e cidades conterem a explosão contínua de mortes na virada do mês, a tal estabilização do horror. Neste mundo sem Deus e em um país que aceita quase 3.000 mortes por dia, tudo é possível. O tombo da economia e os 100 mil cadáveres extras até o fim de abril já estão no preço da política e da elite.
Elio Gaspari: Jennifer Doudna, a Decodificadora
Livro é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza.
Está nas livrarias “A Decodificadora”, de Walter Isaacson (foto). Num tempo de Covid, Bolsonaro, cloroquina e “gripezinha”, é uma vacina para a alma. Conta a vida da cientista americana Jennifer Doudna, prêmio Nobel de Química do ano passado.
Quando parece que o mundo vai acabar, algo de bom acontece. Em junho de 1940, os alemães haviam entrado em Paris, mas a americana Sylvia Beach resolveu reabrir sua livraria Shakespeare & Co. Vendeu apenas um exemplar de “...E o Vento Levou”. Dias depois, Hitler visitou a cidade, mas alguém estava lendo uma boa história.
Jennifer Doudna pesquisou um método de edição de genomas chamado CRISPR. Em português, “Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas”. Felizmente, mesmo com um tema agreste, Isaacson é capaz de lidar com essas coisas de forma compreensível. Com sucesso, já contou a vida de Steve Jobs e Albert Einstein. Grosseiramente, o CRISPR é um método de “copia e cola” de sequências genéticas. Graças a ele, criaram-se vacinas contra a Covid em menos de um ano.
“A Decodificadora” é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza. Quando criança, no Havaí, ela viu o mistério das plantas “não me toques”, aquelas que abrem e fecham suas folhas ao passar dos dedos.
Num mundo em que um presidente de Harvard disse que mulheres não têm aptidão para a ciência, Doudna ralou, mas mostrou o tamanho da bobagem. (O economista Larry Summers perdeu o emprego.)
Isaacson publicou sua biografia de Steve Jobs quando todo mundo estava familiarizado com os computadores. “A Decodificadora” apareceu no meio de uma pandemia e explica o mundo das vacinas, mas ainda parece difícil entender um universo com DNA, RNA de interferência ou as bactérias que se defendem de vírus. Mesmo assim, algum esforço ajuda as pessoas a se proteger de algo pior: a superstição.
No dia 12 de março do ano passado, Jennifer Doudna ia buscar o filho num torneio de robótica, quando recebeu uma mensagem avisando que o evento havia sido cancelado e todos os jovens deviam voltar para casa. Era o lockdown.
Naquele mesmo dia, o presidente Jair Bolsonaro dizia, no Palácio da Alvorada:
— Eu acho... Eu não sou médico, não sou infectologista. Do que eu vi até o momento, outras gripes mataram mais do que essa. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo.
Quando Bolsonaro expunha suas crenças, na Alemanha, o casal de médicos Ugur Sahin e Ozlem Türeci firmou uma parceria com a Pfizer para produzir uma vacina que transporta informações genéticas, o tal RNA Mensageiro. A dupla sabia que o Coronavírus resultaria em algo muito diferente das “outras gripes”. Sua vacina já foi aplicada em cerca de 20 milhões de pessoas. Em novembro, a empresa fundada pelos dois valia US$ 21 bilhões. Tornaram-se uma das famílias mais ricas do país e continuam no mesmo apartamento. O casal contará sua história num livro que sairá no fim do ano.
(O Ministério da Saúde brasileiro só comprou vacinas da Pfizer na semana passada.)
Boa ideia
Corre no Conselho da Justiça Federal do STJ uma ideia que parece boa, simples e barata. É a criação de Varas de Inquérito.
Sem precisar criar um só cargo, separam-se nas ações penais os juízes que cuidam de inquéritos e aqueles que prolatam sentenças. Na prática, se o Sergio Moro estivesse numa vara de inquérito, poderia fazer tudo o que fez, mas quando chegasse a hora da ação penal, o caso iria para outro juiz.
Essa mudança pode ser feita sem grandes sobressaltos e sem novas despesas. Tem a vantagem de impedir o surgimento de novas repúblicas de Curitiba ou, pelo menos, tornar mais difícil o seu aparecimento.
Santos Cruz
Para quem sonha com a possibilidade de trazer o general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz para uma disputa eleitoral, vale a pena lembrar que lhe foi oferecida a candidatura a prefeito do Rio, e ele recusou.
General em armação política é coisa que não acaba bem. O vice-presidente Hamilton Mourão não é metade do que lhe disseram que seria.
Há cerca de meio século, um pedaço da oposição transformou o general Euler Bentes Monteiro em candidato na eleição (indireta) de 1978.
Euler era um oficial de vitrine, rigoroso, cordial e bom administrador. Perdeu, foi para seu sítio e morreu em 2002. A oposição que havia cortejado estava no poder e mal se lembrou dele. Seu obituário foi noticiado abaixo do registro da morte da inesquecível porta-bandeira Mocinha, da Mangueira.
Bolsonaro x Lula
Quando Jair Bolsonaro disse, com toda naturalidade, que Lula ficará inelegível, mostrou que acredita num salto triplo carpado, partindo das virtudes contorcionistas do ministro Nunes Marques.
Se ele pular logo, ficará feio. Se demorar, poderá ser tarde.
Datafolha no Planalto
Até a divulgação da última pesquisa do Datafolha, Bolsonaro e seu pelotão palaciano estavam certos de que o combate ao isolamento aumentava seu capital eleitoral.
Talvez a valentia tivesse algum valor, mas as estatísticas da pandemia abalaram essa crença.
Com 79% dos entrevistados achando que a peste esta fora de controle, ir para um segundo turno com um passivo de mais de 300 mil mortos deixou de ser boa ideia.
Bolsonaro e o sítio
Bolsonaro flerta com o Apocalipse desde o início da pandemia. Anteviu saques e desordens que não aconteceram. Os saques que ocorreram em alguns estados, como no Rio do governador Witzel, não miravam em supermercados e sim na bolsa da Viúva, afanando verbas de hospitais de campanha.
No caso das desordens, basta olhar em volta: quatro ministros da Saúde, as vacinas de Manaus foram para Macapá, e o Exército recebeu ordens para fabricar cloroquina.
Tudo teria sido melhor se o capitão tivesse olhado de outro jeito para a pandemia, mas a vida é como ela é.
No seu último surto apocalíptico, Bolsonaro tirou da gaveta o absurdo fantasma estado de sítio.
As desordens que não aconteceram podem ocorrer. Num delírio de cloroquina pode-se imaginar alguns milicianos atacando lojas ou depredando ônibus.
Em 1981, procurou-se atribuir a uma organização terrorista de esquerda que não existia mais a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento, dentro do carro de um capitão lotado no DOI.
Anos antes, um maluco que via discos voadores juntou-se a policiais, assaltou um banco e botou bombas em São Paulo. Preso, contou que recebia ordens de poderosos.
Isolamento social
Jair Bolsonaro pode ter suas razões ao achar que o isolamento social abala a economia.
Com certeza, não há economia que ande direito se o presidente detona em menos de um mês os presidentes da Petrobras e do Banco do Brasil.
Isso para não se falar na desidratação dos frentistas do Posto Ipiranga. Pelo menos 15 já foram embora.