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Sergio Denicoli explica como agem ‘robôs militantes’ e aponta final ‘infeliz’

Pós-doutor em comunicação publicou análise na revista Política Democrática Online de setembro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A guerra de narrativa na internet abre um grande campo de atuação para “robôs militantes”, principalmente, no período das eleições. “São eles os novos cabos eleitorais. E nós, eleitores, amamos os robôs, porque eles defendem nossos desejos, mas que os fatos insistem em atrapalhar”, analisa o pós-doutor em comunicação e diretor da AP Exata – Inteligência Digital, Sergio Denicoli, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de setembro.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, e todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, o especialista destaca como as narrativas ganham cada vez mais destaque e poder, principalmente, com a estratégica de mimética, reforço das repetições, provocados pelo conhecidos memes. T

“Há uma pandemia? Basta os robôs dizerem que não é verdade a gravidade da situação, e está decretado o fim da quarentena. A Amazônia está em chamas? Chamem os robôs e os orientem a dizer que isso é uma mentira baseada em um complô internacional, para nos roubar a floresta. Cientistas têm provas? Os robôs não acreditam nelas, porque tudo pode ser contestado com os mais básicos e convincentes argumentos”, exemplifica

Ele pondera que essa história de amor com os robôs pode levar, certamente, a um final “infeliz”. “Enquanto estivermos encantados pelos robôs, estaremos cegos de paixão. E, como Aristóteles mesmo nos disse, ‘a lei é a razão livre da paixão’. Ou seja, ainda estamos muito longe de voltarmos a avistar a firme terra do racional”, afirma. “Mas, quando a paixão acabar, sobrarão os corações despedaçados, ávidos pela verdade, que irá florescer em meio à terra arrasada, onde um dia os sofistas imperaram”, continua.

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RPD || Sergio Denicoli: Os robôs que nós amamos e que também nos amam

Na guerra narrativa das redes sociais, robôs militantes são os novos cabos eleitorais numa disputa de argumentos que passa pela repetição do meme. A narrativa que viraliza se sobrepõe às demais e, quanto mais disruptiva for, mais ela impressiona e ganha adeptos

Narrativa é a palavra do momento. Esqueçam memória, ciência, temporalidade. Esqueçam os fatos. Isso tudo foi eliminado pelo mais básico sofismo, que nunca esteve tão na moda. Faríamos inveja a toda a Grécia Antiga, sobretudo a Platão, que dizia que os sofistas não se preocupavam em estar certos, mas apenas em fazer com que todos estivessem de acordo com eles. Nos invejaria também Aristóteles, que definiu os sofismas como argumentos que parecem verdadeiros, mas não são.

Portanto, o que vemos nas redes sociais não é novidade alguma. É algo que há mais de dois mil anos já se sabia. A grande diferença é que hoje as tecnologias nos deram ferramentas de comunicação de grande alcance, que nunca estiveram tão acessíveis aos cidadãos comuns.

As figuras do editor, do professor, do curador, hoje não têm mais tanta importância. Qualquer um desfruta de credibilidade plena dentro de sua bolha de influência, mesmo que ela seja baseada em argumentos que não correspondam aos fatos.

É por isso que, ao analisarmos o que acontece na internet, temos que pensar sempre em guerra narrativa. E a disputa de argumentos passa pela magia da mimética, ou seja, da repetição, do meme. A narrativa que viraliza se sobrepõe às demais e, quanto mais disruptiva for, mais ela impressiona e ganha adeptos.

O problema é que a disrupção, quando chega à política, rompe com simbolismos que garantem a estabilidade baseada na diplomacia. Rompe, então, com a própria política, ao abrir mão dos seus rituais de negociação e sua representatividade democrática, para absorver o senso comum baseado em sofismas.

Em meio a essa guerra de pós-verdades narradas, entram em cena os robôs militantes. São eles os novos cabos eleitorais. E nós, eleitores, amamos os robôs, porque eles defendem nossos desejos, mas que os fatos insistem em atrapalhar. Há uma pandemia? Basta os robôs dizerem que não é verdade a gravidade da situação e está decretado o fim da quarentena. A Amazônia está em chamas? Chamem os robôs e os orientem a dizer que isso é uma mentira baseada em um complô internacional para nos roubar a floresta. Cientistas têm provas? Os robôs não acreditam nelas, porque tudo pode ser contestado com os mais básicos e convincentes argumentos.

E assim seguimos, nessa história de amor, com final certamente infeliz. Enquanto estivermos encantados pelos robôs, estaremos cegos de paixão. E, como Aristóteles mesmo nos disse, “a lei é a razão livre da paixão”. Ou seja, ainda estamos muito longe de voltarmos a avistar a firme terra do racional. Mas, quando a paixão acabar, sobrarão os corações despedaçados, ávidos pela verdade, que irá florescer em meio à terra arrasada, onde um dia os sofistas imperaram.

*Sérgio Denicoli é pós-Doutor em Comunicação e diretor da AP Exata – Inteligência Digital


Fernando Gabeira: O dilema das redes sociais

Em sua bolha, o indivíduo tem a sensação de tudo entender pelas teorias conspiratórias

Acabo de assistir ao documentário sobre as redes “The Social Dilemma”. É assustador mesmo para mim, que tenho tratado do tema, sobretudo pelo ângulo das fake news e teorias conspiratórias que impulsionam o tecnopopulismo de direita.

Uma das razões para ampliar minha abordagem do tema é contar com depoimentos de insiders, pessoas de dentro do universo tecnológico que trabalharam e ajudaram a construir plataformas como Twitter, Facebook, Instagram e YouTube.

A maior parte da crítica disponível até então era de observadores de fora desse universo. Outra limitação de meu enfoque era observar apenas as consequências negativas das redes sociais no universo político, gerando uma atmosfera de ódio e mentiras.

Ao ver o documentário, fica claro para mim que as consequências políticas foram apenas um subproduto diante da tarefa central: usar a insegurança e a ansiedade das pessoas para torná-las dependentes do uso das redes e, com o acúmulo dos seus dados, impulsionar vendas.

Isso não chega a ser uma descoberta. O interessante é ouvir de alguém que encontrou o Facebook nos seus primórdios e teve como tarefa descobrir uma forma de fazer dinheiro com aquilo.

Quase todos os talentos contratados no início viam nas redes sociais algumas de suas inegáveis qualidades: unir famílias, ampliar o conhecimento coletivo, facilitar a solidariedade.

O caminho para financiar era a publicidade. Ela seria mais eficaz quanto maior o tempo de permanência do usuário, e muito mais eficaz também, na medida em que, conhecendo sua personalidade, às vezes mais profundamente do que ele próprio, fosse possível ampliar seu consumo.

Essa é a matriz que acabou produzindo as aberrações político-sociais que vivemos hoje. A radicalização política é necessária para prender a atenção das pessoas. As fake news são atraentes diante de uma realidade tediosa.

Isolado em sua bolha, o indivíduo tem a sensação de tudo compreender pelas teorias conspiratórias. Se alguém diz que pedófilos se reúnem no porão de uma pizzaria, ele tenta invadi-la armado de um fuzil, apesar de a pizzaria nem ter porão.

Se alguém acredita que a Terra é plana, será alimentado com inúmeras interpretações que fortalecem essa ilusão. Na busca do Google, dependendo da região, o aquecimento global aparece como uma fraude ou uma tese científica.

O problema central é que, ao contrário da TV ou do cinema, a inteligência artificial tende a se modificar num ritmo cada vez mais alucinante. Alguns dos participantes do documentário preveem que o processo deve acentuar polarizações e produzir guerras civis. Mas é evidente que algo pode ser feito para atenuar esses imensos efeitos negativos do avanço tecnológico.

Certamente não é criando comissão da verdade, como queriam alguns parlamentares brasileiros. Apesar de assustador, ou por causa disso, o documentário nos estimula a buscar soluções.

Às vezes invejamos a intimidade das crianças com essas novas linguagens, um mundo fantástico se desenrolando com o simples toque de seus dedinhos. Mas nossa geração intermediária talvez possa contribuir com suas lembranças do mundo real. Outro dia, falando sobre o tema, lembrei-me de que muitos de nós foram influenciados pela filosofia do Pós-Guerra, o existencialismo. Uma de suas frases lapidares, de Jean-Paul Sartre, talvez fosse de utilidade para os jovens: o inferno são os outros.

Assim como é preciso estimular o estudo de ideias conflitantes, talvez compense retirar do armário o antigo conceito de autenticidade, que estimula a pessoa ser ela mesma, independente de likes, dislikes e ofensas grosseiras.

Voltando ao plano político, uma das questões básicas é achar o caminho para limitar o acúmulo de informações sobre as pessoas. Um dos entrevistados chegou a falar de impostos para reduzir o intenso consumo de dados pessoais pelas empresas. Não sei se é por aí.

Alguém no documentário lembrou que essas gigantes tecnológicas e a indústria das drogas são as únicas que chamam seus clientes de usuários. É um pouco exagerado, mas depois de ver “The Social Dilemma”, creio que todo mundo vai se perguntar até que ponto está viciado nas redes sociais e quais os caminhos da libertação.


Demétrio Magnoli: O lado bom do cancelamento

Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual

Na Ilustríssima, Rosane Borges cancelou pela milésima vez Lilia Schwarcz, num artigo caudaloso, balofo, que classifica o texto da cancelada como “ruim” mas jamais consegue preencher o qualificativo com um mísero argumento.

O texto é ruim porque Borges diz que é, do alto do seu pódio autoconstruído do “lugar de fala”. Wilson Gomes, na mesma Ilustríssima (16/8), explicou o mecanismo inteiro. Assim, adiciono apenas uma proposta dirigida às plataformas virtuais: dividam as redes em dois setores, separados pela fronteira da prática do cancelamento.

A dinâmica do cancelamento, destinada a produzir uma reserva de mercado, segue as lógicas sectárias típicas das cisões e expurgos dos partidos marxistas. Borges mirou a já canceladérrima Lilia para cancelá-la “melhor”, assegurando um lugar na dianteira da fila dos arautos da Verdade Identitária. Os canceladores, explicou Gomes, só cancelam eficientemente camaradas canceladores —ou seja, aqueles que comungam a mesma religião e, como Lilia, prestam-se ao papel de beijar os pés dos seus algozes.

Mas o “lugar de fala” não perdoa: é preciso pedalar sempre, como fazem os ciclistas. A prática tem que ser reiterada até o infinito, por meio de sucessivos cancelamentos voltados para eliminar concorrentes num mercado altamente competitivo. Como a seita de canceladores não controla um aparato estatal totalitário, a mera humilhação em rede substitui, teatralmente, os campos de trabalho forçado, as torturas e os fuzilamentos.

Aí, surge minha única divergência com Gomes, que declara-se triste diante do espetáculo. Acho, pelo contrário, que a pantomima tem o potencial de divertir os que não pertencem à seita. É como assistir aos folguedos de crianças no recreio. Pode ser intrigante, com a condição de que não percamos muito tempo.

Em vista disso, sugiro às plataformas a seleção prévia dos participantes de redes sociais baseada na auto-descrição. Os aderentes à prática canceladora ficam em redes exclusivas; os demais, que a rejeitam, inscrevem-se em redes assentadas no princípio da divergência civilizada. Desse modo, os adultos podem debater sem ruídos incômodos, enquanto as crianças brincam com seus pares.

Sofistico a sugestão: todos os participantes teriam o direito de visualizar passivamente o que acontece na rede à qual não pertencem. O recurso ofereceria aos adultos uma janela de entretenimento. Mas, sobretudo, daria às crianças canceladoras uma oportunidade de descobrir os benefícios do intercâmbio democrático de pontos de vista. Otimista, aposto na conversão de uma fração estatisticamente significativa dos canceladores.

Há que distinguir os fenômenos. A política identitária racialista, com seu cortejo de leis raciais e “racismo reverso”, é coisa séria. O rastro que ela forma envenena a luta antirracista, avoluma a onda de ressentimentos que nutre o racismo tradicional, ergue o picadeiro ocupado pelos Sérgio Camargos, alarga o eleitorado da extrema-direita. Já o cancelamento identitário em rede social não passa de uma ramificação periférica, uma disputa menor por prestígio, convites e financiamentos.

Os rituais de cancelamento só provocam prejuízos sociais quando escapam à esfera das redes, restringindo o debate plural na imprensa, no meio editorial ou nas universidades. Isso existe, extensivamente, nos EUA —e começa a se manifestar, ainda de forma embrionária, no Brasil.

A carta aberta publicada pela Harper’s, que reuniu figuras ideologicamente tão distantes quanto Salman Rushdie, Noam Chomsky, Wynton Marsalis e J. K. Rowling, alerta para esse perigo real.

Minha proposta contribui para minimizá-lo. Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual. Todos poderão cotejar os debates travados entre não-canceladores com as exibições purificadoras dos canceladores profissionais. Que tal?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Merval Pereira: Pensamento (a)crítico

A nota técnica da Controladoria Geral da União (CGU) que restringe atuação dos servidores públicos nas redes sociais, mesmo em caráter pessoal, é mais um avanço do governo Bolsonaro sobre as liberdades individuais. Fere a liberdade de expressão e transgride o Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário desde 1990.

A relativização do direito ao pensamento crítico e à liberdade de expressão do agente público está resumida em uma frase: “deve-se verificar se tais direitos não comprometem a reputação do órgão em que estão vinculados, quer desrespeitando ou expondo a instituição, quer praticando atos incompatíveis com os normativos éticos”.

Os deputados Alessandro Molon, do PSB, e Tabata Amaral, do PDT, estiveram ontem na CGU com os ministros Wagner Rosário e Augusto Heleno (GSI) para pedir a revogação da medida, que já está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).

Logo no início das conclusões, há a afirmativa que resume a ópera: “a divulgação pelo servidor de opinião acerca de conflitos ou assuntos internos, ou de manifestações críticas ao órgão ao qual pertença, em veículos de comunicação virtuais, são condutas passíveis de apuração disciplinar”.

Isso quer dizer, perguntou Molon, que um pesquisador do ministério da Saúde não pode criticar a orientação para uso de cloroquina no combate à Covid-19? Essa mesma atitude estaria enquadrada no “descumprimento do dever de lealdade” ressaltado pela nota técnica. Mas lealdade a quem, à Saúde Pública ou ao ministro da vez?

A professora da Universidade de Brasília (UnB) Laura Schertel Mendes, doutora em direito privado pela Universidade Humboldt de Berlim, com tese sobre proteção de dados na Alemanha, entende que a Nota Técnica da CGU “apresenta problemas sérios de constitucionalidade, ao violar a liberdade de expressão do servidor público”, pois determina que a Administração Pública Federal deverá adotar medidas disciplinares contra servidores que se manifestem em redes sociais de forma contrária ao órgão ao qual está subordinado.

Voltando-se à presença e à manifestação de servidores públicos em redes sociais e ambientes virtuais, mesmo que privados e sem qualquer relação com a atividade pública por ele desempenhada, a nota técnica representa “clara violação da liberdade de expressão do servidor público, dado que a Constituição Federal lhe assegura o direito à livre manifestação, à filiação partidária e ao exercício pleno de atividade política, sem qualquer limitação nos moldes previstos pela orientação da CGU”.

A professora Laura Schertel identifica “caráter intimidatório” na nota técnica, podendo até mesmo “configurar censura prévia”. Além disso, ela vê possível “um nefasto efeito colateral dessa orientação disciplinar, que é a inibição do agente público de expor suas críticas à atuação do órgão e, até mesmo, denúncias sobre ilegalidades no trato da coisa pública, o que viola os princípios da transparência e da publicidade da Administração Pública”.

O advogado Ronaldo Lemos, especialista em tecnologia e midias sociais, destaca que essas proibições contidas na nota técnica da CGU ferem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário, especialmente o artigo 19, que diz:

1 - Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.

2 - Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.

3 - O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:

a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.

Uma nota técnica não tem o poder de revogar um tratado internacional, e uma divergência quanto a uma medida governamental não parece alcançada pelas ressalvas acima.


Merval Pereira: Mau sinal

Nunca a liberdade de expressão foi tão discutida entre nós como nos últimos dias, o que é um mau sinal. Sempre que se tem que reafirmar uma das pedras fundamentais da democracia, significa que ela está em perigo. São muitas as razões para que o tema atual seja esse, e o santo nome da liberdade de expressão é usado em vão com frequência jamais vista. Começando pelo desenrolar do caso das contas que disseminavam notícias fraudulentas bloqueadas por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

O caso acabou destacando uma das muitas possibilidades tecnológicas dos novos meios que podem ser usadas para o bem e para o mal. As contas bloqueadas no Brasil foram transferidas para o exterior para continuar a atacar a democracia e suas instituições, mas o Facebook recusa-se a bloqueá-las novamente, alegando que a legislação brasileira não abrange outros países, e diz que assim está ajudando a manter a liberdade de expressão.

Essa é uma escusa marota, pois caso um pedófilo use o mesmo estratagema para se esconder atrás de um IP estrangeiro para continuar agindo no Brasil, certamente nenhum novo meio digital desses se recusará a auxiliar a Polícia para prendê-lo. Ou se alguém, para superar a legislação de direitos autorais, se registrar no exterior para ver uma série ainda não liberada no Brasil, poderá ser punido. Caso usasse o seu IP do Brasil, seria logo avisado que o vídeo não está disponível naquela região.

Da mesma maneira, se o Supremo Tribunal Federal (STF) considera que essas contas são utilizadas para cometerem crimes no Brasil, não cabe ao Facebook confrontar a decisão, mas impedir que elas sejam divulgadas aqui. Soa como uma censura, mas o ministro Alexandre de Moraes explica que não se trata de determinar que qualquer outro país cumpra uma decisão da Justiça brasileira, mas sim que o Facebook não permita que do Brasil se possa visualizar os perfis bloqueados, mesmo que, fraudulentamente, tenham mudado o IP para os EUA.

O ministro também explica em sua nova decisão que não há censura prévia, mas de fatos pretéritos. Os bloqueados poderão abrir novas contas, aqui mesmo no Brasil, não havendo nenhuma proibição para que continuem a se manifestar em novas contas e em entrevistas.Se praticarem crimes de novo, serão responsabilizados.

A liberdade de expressão também esteve sob ataque com algumas decisões recentes do governo. Um relatório sigiloso produzido pelo ministério da Justiça cita mais de 570 servidores públicos, muitos ligados à área de segurança, identificados como membros de movimentos antifascismo.

O governo alega não se tratar de investigação, mas admite que monitorou servidores contrários ao governo. O Ministério Público Federal (MPF) deu dez dias à Justiça para explicar a medida, que não se baseia em inquérito ou decisão do Judiciário.

Esta é uma diferença básica entre essa ação, que mais parece uma atividade de polícia política, e a do Supremo, que deriva de um inquérito que, se na sua origem foi questionado e usado abusivamente como no caso de censura à revista eletrônica Crusoé, hoje, depois de correções, está avalizada pelo plenário do STF e pela opinião pública, e se demonstrou um instrumento eficiente para conter essa avalanche de fake news organizada com objetivos claramente políticos ilegais.

Outra norma, esta editada pela Controladoria-Geral da União (CGU), defende punição a servidor público que critique o governo nas redes sociais. De acordo com a nota técnica, o funcionário público pode ser enquadrado por “descumprimento do dever de lealdade” se as mensagens divulgadas produzirem ‘repercussão negativa à imagem e credibilidade’ da instituição que integra. Um exemplo claro: se um funcionário de órgão da Saúde se manifestar contra a adoção de cloroquina no combate à Covid-19, poderá ser punido.


Pablo Ortellado: Receio de regular mídias sociais favorece o status quo

Celeridade da lei das fake news não permite pactuar as regras, mas regulação da moderação de conteúdo segue necessária

As regras que orientam o funcionamento das mídias sociais estão outra vez no coração do debate político. A regulamentação do seu funcionamento é um dos maiores desafios das políticas públicas e é efetivamente cheia de riscos —mas a inação, com a manutenção do status quo, é pior.

Há duas questões que são o cerne do problema. A primeira é que a liberdade de expressão, basilar para o funcionamento de uma democracia, às vezes entra em choque com outros direitos, como o direito das minorias, o direito à honra ou o direito à saúde. E esses direitos precisam ser equilibrados.

A segunda questão é que, na ausência de uma regulação pública, prevalece o autorregramento do setor privado, o que o jurista americano Lawrence Lessig imortalizou no slogan "code is law", ou seja, quem escreve o código do serviço regula o seu funcionamento.

Esse imbroglio está no centro do debate, tanto sobre as ações de moderação e fechamento de contas pelas plataformas de mídia social como sobre o PL das fake news. Em ambos os casos, há o argumento, que vem ganhando adesão, de que não se deve olhar para os conteúdos, mas para os comportamentos, aplicando medidas punitivas mais duras apenas para quem usa contas falsas ou tenta manipular os algoritmos.

Essa saída é boa apenas para as empresas, que desviam assim o foco do enorme poder que exercem sobre a moderação do debate público. Afinal, há vários conteúdos impróprios que circulam nas plataformas e que não vêm acompanhados do chamado "comportamento inautêntico". Nem sempre quem veicula discurso de ódio, por exemplo, se faz passar por outrem.

Se decidirmos então que é preciso olhar para os conteúdos, vamos ter que pactuar as regras do debate democrático. Se é bem verdade que a celeridade que os presidentes das casas legislativas impuseram à tramitação do projeto de lei das fake news não permite fazer agora essa pactuação com o devido cuidado, isso não significa que ela não precisará ser feita no futuro.

O processo de moderação de conteúdos nas mídias sociais precisa ser regulado.

Não podemos deixar que empresas privadas, agindo segundo regras inteiramente próprias e sem nenhuma supervisão, excluam, rotulem ou diminuam o alcance de postagens ou suprimam contas. Talvez seja preciso ir além e mitigar ou eliminar os incentivos que as plataformas oferecem para discursos delirantes, inflamatórios e divisivos.

Intervir nisso é perigoso e delicado, mas depois de tudo o que vivemos —da ascensão da extrema direita ao negacionismo da Covid— manter o status quo não deveria mais ser uma opção.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Facebook na berlinda

Derrubada de páginas pode não ter sido motivada apenas por comportamento inautêntico, mas para responder acusações de tolerância ao discurso de ódio

O Facebook derrubou na semana passada uma série de páginas e contas de sua plataforma e também do Instagram por comportamento inautêntico coordenado, ou seja, por se passarem por outras pessoas para enganar usuários ou o algoritmo das duas plataformas. Ao contrário de outras ocasiões em que conjuntos de páginas e contas foram derrubadas, desta vez a empresa deixou claro quem eram os alvos: Roger Stone, colaborador de Donald Trump, e assessores de membros da família Bolsonaro.

Como investigações desse tipo demoram semanas, elas provavelmente foram deflagradas num contexto diferente do atual. Apesar disso, não parece coincidência que tenham sido anunciadas no momento em que o Facebook é acusado de ser condescendente com discurso de ódio pela campanha de boicote “Stop Hate for Profit”.

A campanha foi montada por organizações de direitos humanos e conseguiu a adesão de grandes marcas globais que estão suspendendo anúncios no Facebook como meio de pressionar a empresa a rever uma posição considerada tolerante com discurso de ódio, incitação à violência, discriminação e negação do Holocausto.

Embora esses tipos de discurso sejam diretamente proibidos pelas regras da comunidade do Facebook, a empresa adotou uma política de excepcionalidade para quando o discurso emana de políticos.

O argumento é o de que o interesse dos usuários/cidadãos de saber o que diz um político —por exemplo, o presidente dos EUA ou do Brasil— prevalece sobre a necessidade de limitar a disseminação de um discurso nocivo.

Reportagens da imprensa americana mostraram, porém, que a motivação para a adoção da excepcionalidade foi tentar gerar equilíbrio ao aplicar as regras sobre agentes políticos da esquerda e da direita. Como havia o entendimento de que uma aplicação rigorosa das regras impactaria muito mais a direita e a empresa temia uma reação forte dos republicanos, optou pela excepcionalidade que geraria mais equilíbrio.

Embora as grandes marcas que aderiram ao boicote não representem uma parte significativa da receita do Facebook (que vem principalmente de médios e pequenos anunciantes), o barulho causado por essa adesão, assim como a publicação de um relatório de uma auditoria independente muito crítico aos efeitos das políticas sobre os direitos civis colocou grande pressão sobre a companhia que pode ter respondido com a derrubada de páginas e contas ligadas a políticos conservadores e pode vir a ser complementada com medidas como a suspensão de anúncios políticos no período eleitoral americano.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Marcus Pestana: Redes sociais, política e fakenews

O surgimento da Internet e das redes sociais promoveu uma verdadeira revolução na vida econômica, social e política do mundo contemporâneo.

Na política o impacto foi devastador. Muito da crise da democracia representativa clássica se explica pela expansão da Internet e das redes sociais, que limitou o papel intermediador dos partidos políticos, sindicatos e instituições, ao propiciar a comunicação direta e horizontal entre os cidadãos e dar vazão a multiplicidade de interesses presentes na sociedade. A combinação do potencial participativo das redes com as estruturas tradicionais de poder é uma obra em construção, já que as redes sociais podem até derrubar ou eleger governos, mas não são aptas a governar.

O problema é que qualquer inovação pode servir ao bem ou ao mal. Esta semana o Facebook, pressionado por mais de 900 anunciantes que suspenderam suas publicidades, desencadeou uma operação de combate às fakenews e à promoção do ódio em doze países, inclusive no Brasil. Aqui, foram removidos 88 contas, páginas e grupos ligados à base de apoio bolsonarista e ao já tristemente famoso “Gabinete do Ódio”, com dois milhões de seguidores Também foram suspensas 10 contas de WhatsApp ligadas ao PT por disparo maciço de mensagens.

Hoje, tornou-se vital debater como conciliar a liberdade de expressão e proteção à privacidade com o combate à desinformação deliberada através das fakenews e o uso das redes para manipular a opinião pública por instrumentos ilegítimos. Não é trivial construir boas políticas públicas em relação ao tema.

Foi isso que levou o Senado Federal brasileiro, em deliberação relâmpago, a aprovar a Projeto de Lei 2630/2020, apelidada de “Lei das Fakenews”. O projeto começa agora a ser debatido na Câmara dos Deputados e a polêmica já se instalou em alta temperatura.

Em sã consciência, nenhuma pessoa de bom senso pode ser contra a exclusão de robôs, perfis falsos ou que as empresas identifiquem na mensagem quem está patrocinando o impulsionamento de um determinado conteúdo e emitam relatório trimestral sobre posts censurados e contas canceladas. Ou contra a existência de um conselho nacional para acompanhar a transparência nas redes e as condutas inadequadas.

A polêmica reside na tipificação penal de condutas criminosas na Internet, hoje já cobertas parcialmente pelos crimes de calúnia, difamação e dano moral; na previsão da rastreabilidade em plataformas como WhastApp e Telegram, o que poderia ferir o princípio do direito à privacidade; e na definição do que é ou não fakenews em confronto com o estímulo à autocensura ou a restrição à liberdade de expressão. Há consenso que propagação do terrorismo, exaltação à pedofilia, desinformação grave sobre saúde pública, entre outros, devem ser expelidos sumariamente. Mas a partir daí há muitas controvérsias.

A discussão é tão complexa e delicada, que contraditoriamente setores que reivindicam a volta do AI-5 e da ditadura se levantaram contra o “PL das Fakenews” em defesa da liberdade de expressão, lado a lado, por razões opostas, a ONGs e pensadores progressistas.

A Câmara dos Deputados certamente saberá democraticamente construir um texto que combine o rigoroso combate aos abusos cometidos na Internet com a defesa dos princípios fundamentais da liberdade de expressão e do direito à privacidade.


El País: Tércio Arnaud, o “rapaz das redes” de Bolsonaro no centro da trama desbaratada pelo Facebook

Número dois da estratégia digital, atrás de Carlos Bolsonaro, é símbolo da rede suspensa que pode virar dor de cabeça para Governo no TSE e Supremo. CPI das 'Fake News' solicita dados

Afonso Benites, El País

Se trabalhasse em uma empresa privada, Tércio Arnaud Tomaz seria um daqueles raros casos que, em dois anos, sairia do cargo de estagiário para o de assessor direto do CEO, com aumento salarial de sete vezes. Entre 2017 e 2019 ele foi de secretário parlamentar de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, quando era chamado pelo chefe de o “rapaz das redes”, para assessor especial da presidência, com vencimentos de quase 14.000 reais. Nesse meio tempo, passou uma temporada no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro, no Rio, onde foi treinado para virar o número dois da estratégia digital da família. A promoção se deve à sua extensa ficha de serviços prestados, incluindo a tarefa, de acordo com especialistas e o Facebook, de disseminar desinformação pró-Bolsonaro pela Internet.

A conta de Tércio foi uma das 88 (entre perfis pessoais e páginas) no Brasil que foram suspensas pelo Facebook e pelo Instagram por infringir as regras de conduta dessas redes sociais. Em outros quatro países – EUA, Canadá, Equador e Ucrânia – foram mais 402, após extensa investigação feita pelo Laboratório Forense Digital do centro de estudos Atlantic Council, a pedido do próprio Facebook. O assessor íntimo do Planalto é um símbolo da ofensiva da rede social, que está sob pressão para deter a disseminação de conteúdo tóxico em meio a uma campanha global de boicote de marcas.

A suspensão da miríade de perfis é mais um elemento que joga luz na controversa estratégia digital do presidente de ultradireita brasileiro, que, no poder, segue acionando o apelidado “gabinete do ódio” para promover o presidente e moer reputações. A eficiente máquina de propaganda que o levou ao poder e o intenso uso das redes sociais pela militância digital já estavam sob escrutínio. Tramita no Supremo Tribunal Federal um inquérito que apura um esquema de disseminação de fake news que já pôs outros bolsonaristas na mira. O tema também é objeto de uma investigação no Congresso. Além disso, a conduta de Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018 ainda é alvo de uma lenta, mas perigosa ação no Tribunal Superior Eleitoral, que apura o uso do WhatsApp para envio ilegal de mensagens em massa. Todas as três frentes podem acabar sendo alimentadas pelas informações expostas pelo Facebook.

Bolsonaro, recolhido na residência oficial desde que informou ter contraído coronavírus na terça-feira, reagiu. Em sua transmissão ao vivo semanal pelo próprio Facebook, o presidente reclamou da ação da rede social. “Vemos que o Facebook derrubou páginas em todo o mundo. No Brasil, sobrou pra quem está do meu lado, pra quem é simpático à minha pessoa. A esquerda fica posando de moralista, mas olha aqui, blog me associando ao nazismo. Bolsonaro decapitado. Ninguém fala em derrubar essas páginas”, disse. Ao longo da semana, o aplicativo WhatsApp, que também pertence ao conglomerado de Marc Zuckerberg, derrubou contas vinculadas ao PT por disparo de mensagens em massa, o que infringe regras da companhia.

Procurado pela reportagem, o assessor presidencial não atendeu ao pedido de entrevista. Ele é apontado pela auditoria como o responsável pela página @bolsonaronewss, um canal de dispersão de conteúdos pró-Bolsonaro que atacava adversários políticos. Os alvos eram diversos. Desde seus antagonistas nas eleições de 2018 (principalmente do PT), passando por neo-opositores, como os governadores João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ), e chegando em antigos ministros, como Luiz Henrique Mandetta, Sergio Moro e Carlos Alberto Santos Cruz.

Dois ex-aliados de Bolsonaro relataram à reportagem que Tércio se aproximou do hoje presidente em 2017, quando ficou famoso como administrador do perfil Bolsonaro opressor 2.0. A página, hoje extinta, tentava transformar o então deputado federal em uma pessoa humilde e ironizava os discursos contra minorias, tão frequente ao longo dos 28 anos de mandato de Bolsonaro na Câmara. Foi quando Tércio acabou contratado para trabalhar como assessor de Bolsonaro. Mudou-se de Campina Grande, na Paraíba, para o Rio de Janeiro. Além do emprego, morou de favor em um apartamento do parlamentar. O que despertou ciúmes do filho 03, o vereador Carlos, o responsável pelas redes do pai. Para evitar uma eventual disputa interna, Tércio saiu do gabinete de Jair para o de Carlos, na Câmara Municipal.

Na campanha eleitoral de 2018, quando Bolsonaro não tinha um assessor de imprensa oficial, era Tércio quem respondia às questões básicas da imprensa, como a agenda do candidato ou sobre em que momento ele daria uma entrevista coletiva. Também era ele quem enviava as fotos mais banais do presidente, como quando ele comia um pão francês e tomava um café em um copo de reaproveitado de requeijão em uma mesa sem toalhas.

O cargo no Planalto veio como uma premiação. Tornou-se um dos membros do batizado gabinete do ódio, o grupo formado por outros dois assessores – José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz. Orientados por Carlos, são eles quem dão o norte da atuação de Bolsonaro nas redes e o que acaba mobilizando a militância digital.

Exemplos de memes criados pela página administrada por Tércio Arnaud, conforme o Laboratório Forense Digital do Atlantic Council.
Exemplos de memes criados pela página administrada por Tércio Arnaud, conforme o Laboratório Forense Digital do Atlantic Council.REPRODUÇÃO DO FACEBOOK

De ascensão meteórica à dor de cabeça

Depois dessa ascensão meteórica, Tércio pode tornar-se de fato a cara vísivel da dor de cabeça que o presidente terá de administrar em seu Governo. Nesta quinta-feira, após a ação do Facebook, o presidente da CPI das Fake News, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA), enviou um requerimento de informações à empresa para compartilhar os dados que havia nessas contas que foram bloqueadas. Se contatada irregularidades, Tércio deve ser denunciado criminalmente. “Não foi por crime que as páginas caíram. Foi por violar condutas internas da empresa Facebook. Agora, temos de saber se eles praticaram algum delito ou não”.

Um pedido de convocação de Tércio e dos outros dois membros do gabinete do ódio já foi aprovado. Assim que a CPI voltar, devem estar entre os primeiros a depor. “A retirada das páginas do ar mostra que a atuação do ‘gabinete do ódio’ seguia intensa. Isso reforça as denúncias que já vínhamos apurando na comissão”, disse a relatora do grupo, a deputada Lídice da Mata (PSB-BA).

Do Judiciário, também vieram reações. Em seu Twitter, o ministro Gilmar Mendes afirmou que o inquérito das fake news que tramita no Supremo e acossa a militância bolsonarista acabou sendo fortalecido. Disse ele: “A derrubada pelo Facebook de perfis envolvidos na divulgação de #fakenews demonstra a relevância do trabalho desenvolvido no chamado inquérito das fake news. Disseminar o ódio e incentivar ataques às instituições do país são atitudes que não podem ser toleradas em uma democracia”.

Enquanto assiste ao avanço das apurações contra o núcleo digital do Governo, Carlos Bolsonaro sinalizou, mais uma vez, que pode estar se afastando desse trabalho informal para seu pai. Em uma postagem em seu Twitter ele disse que aos poucos vai se “retirando do que sempre explicitamente” defendeu e que está “cagando pra esse lixo de fakenews e demais narrativas”. Também disse saber que ninguém é insubstituível, nem mesmo ele.

Entre os pesquisadores que rastreiam as redes de desinformação, há esperança de que o Facebook tenha começado a expor a ponta do iceberg que pode dar origem a outras investigações, mas também ceticismo. “Me parece que não acontecia apenas no Facebook e no Instagram. Quando alguém fala mal de Bolsonaro, a reação aparece em diferentes plataformas e em diferentes níveis”, diz ao EL PAÍS a pesquisadora Luiza Bandeira, que trabalha Digital Forensic Research Lab, da Atlantic Concil, e colaborou com o Facebook na investigação desses perfis. “Há muitas páginas e muitas contas que espalham essas coisas. Tem que usar [essa ação do Facebook] para começar a investigar outros autores que podem estar envolvidos”, completa. Já David Nemer, especialista em Antropologia da Informática que estuda o território virtual que abriga o bolsonarismo, é mais cauteloso: “A empresa tenta mostrar que está fazendo alguma coisa, tenta satisfazer várias frentes. Mas suspender 100 páginas não é nada”, argumenta o pesquisador. “É preciso ter cautela: essa ação não é nada mais nada menos que uma ação de relações públicas, sem efeito a longo prazo”.

Colaborou Felipe Betim.


Bruno Carazza: ‘O povo’ contra Zuckerberg

Redes sociais enfrentam resistência regulatória

Durante a segunda metade da década de 1990, a internet se popularizou e um mundo de possibilidades parecia se abrir. O índice Nasdaq, a bolsa de valores onde a maioria das pequenas e médias empresas de tecnologia emitiam seus títulos, saltou de 1.288,37 em janeiro de 1995 para 7.092 pontos cinco anos depois, quando nos demos conta de que o mundo não havia acabado por causa das profecias religiosas e nem pelo bug do milênio. Mas logo depois a bolha pontocom estourou.

Uma série de motivos levou a uma forte desvalorização das ações de empresas de tecnologia, como o aperto monetário promovido pelo Fed entre 1999 e 2000, a conscientização dos investidores de que muitas daquelas startups não tinham fôlego para transformar em lucros as promessas miraculosas de valorização e escândalos corporativos em que empresas forjavam seus resultados para atrair novos aportes de recursos.

A primeira menção ao Facebook nas páginas do Valor Econômico foi numa reprodução de uma reportagem da BusinessWeek que tratava justamente do renascimento das empresas do Vale do Silício. O texto trazia uma lista de novas firmas que poderiam ser alvo de aquisições pelas gigantes da época, como Microsoft, HP, SAP e (veja só!) Yahoo. Nele, especulava-se que “o site Facebook, especializado em confraternização de estudantes universitários, poderia ser atraente para uma empresa como a News Corp”.

Mark Zuckerberg e seus colegas de quarto em Harvard haviam lançado o TheFacebook em 4 de fevereiro de 2004. Quando o Valor publicou essa matéria, em setembro de 2005, a empresa havia acabado de perder o “The”, e o que se viu nos anos seguintes foi a pequena “rede social de estudantes” passar de caça a predadora, lançando-se numa sequência de aquisições de mais de 80 negócios, sendo as mais famosas o Instagram (2012) e o WhatsApp (2014).
Movimento similar foi realizado pelas outras quatro tech giants (Google, Microsoft, Apple e Amazon), que deglutiram criações promissoras como YouTube, Skype, Waze, LinkedIn, Picasa e GitHub. Somando essas incorporações aos produtos desenvolvidos internamente, esses conglomerados controlam hoje a forma como nos informamos, comunicamos, consumimos e até mesmo nos movimentamos por aí.

No mês passado Cielo e Facebook anunciaram ao mercado que pretendem lançar no Brasil uma ferramenta de pagamento diretos por meio do WhatsApp. Mas a associação entre a empresa líder em operações por cartões (com 40% do “market share” nacional) com o principal aplicativo de mensagens do mundo (que possui mais de 120 milhões de usuários ativos só no Brasil) foi suspensa preventivamente pelo Cade e pelo Banco Central - embora na última semana o órgão de defesa da concorrência tenha revisto provisoriamente sua posição.

Na queda de braços entre empresas e órgãos reguladores, são bilhões de reais em jogo e um dilema de princípios e objetivos de política econômica: de um lado, promessas de comodidade e facilidade para o usuário, com a possibilidade de realização de transações por um meio simples e acessível por todas as classes sociais; de outro, a preocupação em preservar o ambiente concorrencial, garantir a eficiência do sistema de pagamentos.

Esta não é a única frente de batalha do Facebook. Depois das acusações de quebra de privacidade e fornecimento de dados para a consultoria Cambridge Analytica desenvolver estratégias eleitorais para políticos como Donald Trump, a empresa de Zuckerberg agora é o principal alvo do movimento #StopHateForProfit. Uma mobilização de organizações sociais questiona o Facebook e outras mídias de serem lenientes com o discurso de ódio e o extremismo, em troca de cliques e tempo de tela de seus usuários. Sensibilizadas pela repercussão, grandes anunciantes como Pfizer, Microsoft, Starbucks e Unilever suspenderam a compra de espaço nas redes sociais durante o mês de julho numa tentativa de forçá-las a rever seus algoritmos e melhorar a política de moderação de comentários.

Aqui no Brasil, além dos ecos dessa mobilização nos Estados Unidos, há a discussão em torno do projeto de lei das “fake news”. De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e batizada com o pomposo nome de Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, a proposta acabou de ser aprovada no Senado e deve mobilizar os debates nas próximas semanas.

A leitura do artigo 3º do projeto revela o quão complexo é esse assunto. Afinal de contas, é virtualmente impossível equilibrar, na letra fria da lei, princípios e direitos tão fluidos e muitas vezes conflitantes como liberdade de expressão, respeito às preferências políticas individuais, privacidade, acesso universal aos meios de comunicação e informação e transparência.

Na sua essência, o projeto amplia a responsabilidade dos provedores de redes sociais (como Facebook, Instagram, Twitter, TikTok etc) e de mensagens privadas (WhatsApp, Telegram e Messenger, entre outros) em relação a identificação dos titulares das contas, restrições à atuação dos famosos “bots” que amplificam o alcance de mensagens e criação de procedimentos para a retirada de conteúdos ofensivos.

Enquanto a pandemia acelera uma tendência que já parecia irreversível de inserção dos negócios e das relações profissionais no mundo virtual, o projeto de lei nº 2.630/2020 determina que os provedores dos serviços devem limitar o envio de mensagens e adotar políticas de transparência quanto aos conteúdos impulsionados e à veiculação de publicidade. E nestes tempos em que os políticos elegem as redes sociais como o fórum para se comunicar com eleitores e representados, medidas ainda mais restritivas são direcionadas à propaganda política.

Não há dúvidas de que nossa vida se tornou bem fácil com o advento das maravilhas desse mundo tecnológico. Mas à medida que nossos relacionamentos, negócios e expressões políticas acontecem predominantemente no ambiente virtual, mais difícil se torna equilibrar interesses, objetivos e princípios divergentes - é alto o preço que temos de pagar por esse admirável mundo novo.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


BBC Brasil: Por que grandes empresas decidiram boicotar o Facebook

A marca de sorvetes Ben & Jerry's se juntou a uma lista crescente de empresas que, durante o mês de julho, decidiram retirar sua publicidade das plataformas comandadas pelo Facebook.

Além do próprio Facebook, a empresa que Mark Zuckerberg administra é dona do Instagram e do WhatsApp — o conglomerado também soma 80 outras empresas menos conhecidas.

Esse boicote faz parte da campanha Stop Hate For Profit (Pare de lucrar com o ódio, em tradução livre), que exige que o Facebook tome medidas mais rígidas contra a disseminação do ódio e de conteúdos racistas.

O Facebook tem uma receita anual de US$ 70 bilhões (cerca de R$ 371 bilhões) apenas em publicidade.

A campanha acusa a rede social de "amplificar as mensagens dos supremacistas brancos" e de "permitir mensagens que incitam violência".

A Ben & Jerry's, de propriedade da gigante britânica Unilever, tuitou que "vai parar de anunciar no Facebook e no Instagram nos Estados Unidos".

Outras marcas

No início desta semana, as marcas de equipamentos para atividades ao ar livre The North Face, Patagonia e REI se juntaram à campanha.

"Das eleições seguras à pandemia global e à justiça racial, os riscos são altos demais para que a empresa (Facebook) continue sendo cúmplice na disseminação da desinformação e no fomento ao medo e ao ódio", escreveu a empresa Patagonia no Twitter.

A Ben & Jerry's disse que concorda com a campanha. "Todo mundo pediu ao Facebook para tomar medidas mais rigorosas para impedir que suas plataformas de mídia social sejam usadas para dividir nossa nação, anular os eleitores, incentivar e alimentar o racismo e a violência e minar nossa democracia", escreveu a marca.

Após a morte de George Floyd por policiais brancos, em maio, o CEO da Ben & Jerry, Matthew McCarthy, disse que "as empresas precisam ser responsáveis" e implementou planos para aumentar a diversidade na companhia.

No início desta semana, a plataforma de trabalho independente Upwork e o desenvolvedor de software de código aberto Mozilla também se juntaram à campanha.

Por outro lado, o Facebook prometeu "promover a equidade e a justiça racial".

Manifestantes
Image captionApós a morte de George Floyd, centenas de manifestantes foram às ruas de Minneapolis para protestar contra o racismo

"Estamos tomando medidas para revisar nossas políticas, garantir diversidade e transparência ao tomar decisões sobre como aplicamos nossas políticas, além de promover a justiça racial e a participação dos eleitores em nossa plataforma", afirmou a rede social neste domingo.

A declaração também descreveu os padrões comunitários da empresa, que incluem o reconhecimento da importância da plataforma como um "lugar onde as pessoas podem se comunicar".

"Levamos nosso papel a sério para evitar abusos de nosso serviço."

'Não ao ódio'

A campanha Stop Hate for Profit foi lançada na semana passada por grupos de defesa dos direitos civis dos Estados Unidos, como a Liga AntiDifamação, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor e a organização Color Of Change.

O movimento afirma que a campanha é "uma resposta à longa história do Facebook de permitir que conteúdos racistas, violentos e falsos sejam disseminados em sua plataforma".

O Stop Hate for Profit pediu aos anunciantes que pressionem a empresa a tomar medidas mais rígidas contra o conteúdos de ódio e de racismo em suas plataformas, retirando o investimento em publicidade durante o mês de julho.

Mark Zuckerberg
Image captionMark Zuckerberg administra um conglomerado de negócios que inclui Facebook, Instagram e WhatsApp

Segundo a empresa de consultoria eMarketer, o Facebook é a segunda maior plataforma de anúncios digitais nos Estados Unidos, atrás apenas do Google.

O Facebook e seu CEO, Mark Zuckerberg, são frequentemente criticados ao lidar com questões controversas.

Neste mês, os funcionários da empresa se manifestaram contra a decisão da gigante da tecnologia de não remover ou marcar uma publicação do presidente Donald Trump.

No Twitter, a mesma mensagem de Trump foi classificada com uma etiqueta que alertava que o post "incentivava a violência".

A Unilever, empresa controladora da Ben & Jerry's, não respondeu aos questionamentos da BBC.