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Bruno Carazza: O tribunal do Facebook
Decisão de banir Trump é o maior fato político dos últimos tempos
Daron Acemoglu e James Robinson, autores do best-seller Por que as Nações Fracassam?, apresentaram uma hipótese bastante convincente para explicar o subdesenvolvimento econômico de povos e países. De acordo com os professores do MIT e da Universidade de Chicago, a concentração de poder nas mãos de elites política e econômica gera os incentivos institucionais para um ciclo vicioso difícil de ser rompido, em que se os mais ricos extraem renda da população e grupos políticos se perpetuam no poder.
Nos últimos anos, um novo debate tem agitado não apenas a academia, mas principalmente os meios políticos e empresariais, e tem a ver não diretamente com o funcionamento dessas engrenagens descritas com farta evidência empírica pelas pesquisas de Acemoglu & Robinson, mas com esse jogo de interação entre variáveis econômicas e políticas. Trata-se do incontrolável poder de influência das gigantes de tecnologia em nossas vidas.
Segundo levantamento do Global Digital Overview 2020, 5,2 bilhões de pessoas possuem celular, o que representa quase 70% da população mundial. 4,5 bilhões de terráqueos têm acesso à internet (59%) e 3,8 bilhões têm contas em redes sociais - praticamente a metade dos habitantes do planeta.
Além da ampla penetração, estamos cada vez mais conectados à rede. Em janeiro de 2020, as pessoas de 16 a 64 anos passavam em média 6 horas e 43 minutos por dia utilizando a internet. No caso brasileiro, estamos em terceiro lugar do ranking global, atrás apenas dos filipinos e dos sul-africanos. Em média, passávamos 9 horas e 17 minutos de frente para a tela - índice que deve ter aumentado ainda mais desde o início da pandemia.
As redes sociais nos fisgaram oferecendo tudo ao alcance de poucos cliques: a interação com familiares e amigos, a oportunidade de nos divertir e ler notícias de vários canais e até mesmo a possibilidade de participar de debates políticos num alcance nunca antes imaginado.
Do ponto de vista comercial, seu modelo de negócios é muitíssimo atraente. O acesso é gratuito, embora ao aderir você aceite abrir mão de seus dados pessoais. Afinal, redes sociais ganham dinheiro com os anúncios. E ele tornam-se melhores à medida em que compartilhamos nossos hábitos de consumo, nossas opiniões e preferências.
Para construírem seu incrível poderio econômico, as grandes corporações do Vale do Silício colocaram toda a tecnologia para explorar ao máximo todos os benefícios de conceitos econômicos há muito mapeados pela teoria. Em essência, as redes sociais são plataformas, também conhecidas como mercados de dois lados.
A ideia não é nova: de imobiliárias a empresas de cartões de crédito, passando pela publicidade de jornais, todos esses negócios buscam conectar compradores e vendedores. Nesses mercados, os efeitos de rede tornam a imobiliária, a empresa de cartão de crédito ou o jornal mais valiosos quanto mais gente recorre aos seus serviços.
No caso das redes sociais, quanto mais gente se conecta, mais elas se tornam valiosas para os usuários (afinal, não faria muito sentido aderir se a maioria dos seus amigos não estivesse lá) e também para os anunciantes. E quanto mais as usamos, mais insumos fornecemos para os algoritmos desenharem o nosso perfil, captarem nossos gostos e identificarem nossos desejos, impulsionando seu valor para a publicidade.
E aqui entram em campo as economias de escala; afinal de contas, quanto maior você se torna, mais atrai usuários. E aí começam a surgir os efeitos deletérios de seu poder econômico sobre os concorrentes. Da mesma forma que motoristas só vão migrar para um novo aplicativo de transporte urbano se houver muitos consumidores conectados a ele e, de maneira reversa, os consumidores só vão migrar se houver uma boa disponibilidade de motoristas perto de você, as redes sociais vão se tornando mais potentes à medida em que se tornam mais presentes no nosso dia-a-dia.
Por outro lado, graças às economias de escopo, esses grandes conglomerados têm maiores condições técnicas e econômicas de investir em mercados contíguos que sejam promissores e, assim, inibir o crescimento de seus rivais - ou simplesmente comprá-los. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a aquisição do YouTube pelo Google ou do Instagram e do WhastApp pelo Facebook. Ou pela decisão do Facebook de arrasar com o Snapchat ao lançar os stories no Instagram.
O grande problema dos tempos atuais surge quando o poder econômico se converte em poder político. Ao longo da história, grandes grupos econômicos sempre se valeram de mecanismos para defender seus interesses e obter benesses em termos de regulação ou tributação favoráveis, seja por meio de doações de campanhas, lobby ou captura de autoridades por dirigentes de grandes empresas.
No caso das redes sociais, sabemos que a política nos mobiliza, nos envolve, nos une e nos divide. A polarização nos mantém mais tempo conectados, seja brigando, seja interagindo com quem pensa semelhante a nós, nas nossas bolhas. E isso é tudo o que as redes desejam, pois quanto mais tempo gastamos discutindo política, mais informações são coletadas - e transmitidas aos anunciantes.
Donald Trump tinha 88 milhões de seguidores no Twitter e 35 milhões no Facebook antes de ser banido pelas duas plataformas. Cassar o seu direito de comunicação com o público levanta dúvidas sobre os limites das gigantes de tecnologia em mediar o debate político.
Redes sociais deveriam ser tratadas como uma infraestrutura digital, por onde transitam ideias, como as estradas ou ferrovias, e como tal deveriam ser reguladas para garantir condições mínimas de acesso a todos os participantes, independentemente de suas visões?
Redes deveriam ser o “livre mercado de ideias”, tão caro aos defensores do direito irrestrito à liberdade de expressão? Ou seria uma contradição defender a intervenção estatal sobre um negócio privado para garantir o direito à liberdade?
Quando grandes empresas conseguem transformar poder econômico em poderio político, nossas preocupações mudam de patamar. O banimento de Trump do Twitter e do Facebook inaugura um debate que vai nortear nossas vidas na próxima década.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Eliane Cantanhêde: No pântano da irracionalidade
Até o Twitter baniu Trump, mas Bolsonaro insiste em afundar com ele, levando o Brasil junto
"Errar é humano, mas insistir no erro é burrice." Esta velha máxima pode ser usada para o governo Jair Bolsonaro diante da ebulição política dos Estados Unidos, mas com acréscimos. Insistir no erro de apoiar Donald Trump acima de tudo e da razão não é burrice, ou não apenas burrice, é irresponsabilidade com o País e sugere más intenções.
Trump vem sendo condenado pelo mundo democrático por ter incitado sua milícia a atacar a maior democracia, maior economia e maior potência militar do planeta. Foi sob seu comando que a turba se armou, se fantasiou e se animou a ocupar o Capitólio, quebrando, destruindo, ameaçando os representantes do povo.
Até Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido e legítimo líder de direita, condenou a inconsequência de Trump, um homem incapaz de conviver com algo inerente à vida: derrotas. Isso mostra o quanto a condenação a Trump não é questão de ideologia, é mais do que isso. Não se trata de direita versus esquerda, mas sim de democracia versus barbárie, até de sanidade versus insanidade.
Um líder mundial banido do Twitter por incitação à violência! Foi isso que aconteceu a Trump, na reação em série que inclui Joe Biden falando em "terrorismo doméstico" (aliás, como escrevi na primeira hora) e a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, advertindo que Trump tem acesso até o dia 20 à "bola de futebol" e ao "biscoito" que podem acionar uma guerra nuclear. Até isso teme-se de Trump!
Assim, por ação do próprio presidente da República, os Estados Unidos foram reduzidos a "republiqueta de bananas", sofrerem um ataque terrorista interno e convivem com suspeitas e temores sobre guerras nucleares. Esse é o clima no País. Não são bobagens, nem meras piadas de mau gosto e, obviamente, preocupam o mundo inteiro.
O "pária" Brasil, porém, continua dentro de uma bolha incompreensível, em que o presidente, seu chanceler e seus filhos se mantêm firmemente agarrados ao Titanic Trump. Enquanto cidadãos, eles têm todo o direito de afundar, é um problema deles, uma decisão individual. Mas levar o Brasil junto para as profundezas dos delírios de Trump e para o perigo que ele representa?
Bolsonaro comprou sem pestanejar a versão de fraude na eleição americana, desmentida pela Justiça, fiscais independentes e... os próprios republicanos. O chanceler Ernesto Araújo, sem citar o grande culpado pelo ataque ao Capitólio, chamou os extremistas de "cidadãos de bem" e até justificou os atos, já que a sociedade "desconfia das eleições". Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, em vez de abrir, fechou ainda mais os canais com o novo governo. Nos EUA, confraternizou com os Trump (aliás, na semana da invasão) e não fez um mísero gesto para Biden.
Seria compreensível a pessoa Bolsonaro enviar um abraço para o “amigo” derrotado, mas o presidente do Brasil cutucar e negar Biden, como fez com China, França, Alemanha, Argentina, mundo árabe? Governantes não agem por impulso, emoção, conveniência pessoal, crença religiosa, certezas íntimas ou tititi de gurus e marcianos. Devem, ou melhor, são obrigados a agir de acordo com o interesse nacional, o desenvolvimento do País e o bem estar das populações.
Bolsonaro, porém, é de outra galáxia e insiste no erro de afundar com Trump no pântano da irracionalidade. Como toda ação corresponde a uma reação, o homem de Joe Biden para a América Latina no Conselho de Segurança Nacional é Juan Gonzales, que já mandou recados diretos para o presidente brasileiro e tem foco nos temas que mais opõem Biden a Bolsonaro: mudanças climáticas, direitos humanos, democracia... É péssimo para Bolsonaro, mas pode ser muito positivo, e oportuno, para o Brasil.
*COMENTARISTA DA RÁDIO ELDORADO, DA RÁDIO JORNAL (PE) E DO TELEJORNAL GLOBONEWS EM PAUTA
El País: Primavera Árabe completa uma década com desfecho em aberto
As sociedades do Oriente Médio e do norte da África estão menos livres do que antes do início das revoltas, mas elas acabaram com o medo e mostraram que a mudança é possível
Ángeles Espinosa, El País
No começo de 2011, o mundo árabe viveu uma onda de protestos contra a corrupção e por uma vida mais digna. A mídia internacional prontamente a batizou de Primavera Árabe, expressão que talvez tenha influenciado nas exageradas expectativas que despertou. Dez anos ― e meio milhão de mortos ― depois, a região, com a exceção da Tunísia, está menos livre e em piores condições do que antes. Mesmo assim, a queda de quatro ditadores rompeu o muro do medo e acabou com a ideia de que a democracia era incompatível com a cultura árabe. O status quo já não pode ser considerado inexorável.
“Dez anos não é um marco temporal suficiente para desenvolver mudanças de grande envergadura. As revoltas da dignidade não acabaram. Foram suprimidas, mas voltarão a ocorrer, talvez mais violentas, talvez não. O que está claro é que não há recuo à ordem política anterior a 2011”, resume Kawa Hassan, vice-presidente do programa do Oriente Médio e Norte da África do EastWest Institute, uma organização sem fins lucrativos que promove a resolução de conflitos. É uma ideia compartilhada por numerosos especialistas.
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Soava bem a ideia de uma Primavera Árabe, termo que comentaristas conservadores já haviam criado para se referir aos lampejos democráticos de 2005 no Oriente Médio. O professor Marc Lynch, da Universidade George Washington, recuperou a expressão em um artigo da Foreign Policy sobre os protestos aparentemente desconexos que seis anos depois se estendiam da Tunísia ao Kuwait, passando por Argélia, Egito e Jordânia, e mais tarde alcançariam Líbia, Síria, Bahrein e Iêmen. Transmitia uma imagem luminosa e positiva. Só que, nos meses seguintes, a contrarrevolução financiada pelas monarquias petroleiras acabaria com os sonhos de mudança.
“Prefiro chamá-las de revoltas da dignidade, porque milhões de pessoas saíram às ruas pedindo uma cidadania digna”, esclarece Hassan por telefone.
Os protestos populares e pacíficos, aos quais os manifestantes se referiam como intifada (rebelião) ou zaura (revolução), conseguiram derrubar aos autocratas da Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen. Apenas na Tunísia se consolidou uma frágil democracia. A eleição de um presidente islâmico no Egito (Mohamed Morsi) foi respondida com um golpe militar que aumentou a repressão. Líbia e Iêmen mergulharam em guerras civis, assim como ocorreu na Síria, onde o ditador Bashar al Assad conseguiu se manter a sangue e fogo. Nesses países, o Estado e a sociedade ficaram destruídos, pelo menos meio milhão de pessoas morreram, e 16 milhões tiveram que deixar seus lares.
“Os manifestantes se encontraram cercados entre Estados autoritários e atores não estatais autoritários. Os poderes contrarrevolucionários agiram inclusive em países nos quais não chegou a haver revoltas”, admite Hassan. Mesmo assim, mostra-se convencido de que “o fator medo desapareceu para sempre, e nenhum poder na região pode mais estar tranquilo”. Este cientista político constata que “as sociedades ainda insistem em desafiar a ordem política, como se viu em 2019 no Iraque, Líbano e inclusive, mais surpreendentemente, na Argélia e até no Sudão, onde [Omar al] Bashir foi derrubado e teve início uma frágil transição democrática”.
Haizam Amirah Fernández, pesquisador do Real Instituto Elcano, de Madri, afirma que esta segunda onda de protestos demarca o mal-estar árabe nos movimentos de descontentamento que sacodem outros países, como o Chile e a Tailândia. “Se o mundo árabe ficou à margem das transições democráticas ocorridas na década de oitenta [do século passado] na América Latina, Extremo Oriente e Leste Europeu, 2011 deixou clara a interconexão entre diferentes zonas do mundo pela situação econômica e social depois da crise financeira”, afirma Fernández ao EL PAÍS, referindo-se à mobilização dos indignados na Espanha e do Occupy Wall Street nos Estados Unidos.
Significativamente, a região do Oriente Médio e norte da África tem a maior desigualdade econômica do mundo. Por enquanto, a repressão foi capaz de suprimir os protestos. Mas Hassan defende que, “apesar da resistência dos regimes autoritários, as exigências de uma cidadania digna não desaparecerão”. De fato, destaca que “as causas que motivaram as revoltas, como a reivindicação de melhores serviços e o Estado de direito, não só continuam aí como se agravaram”.
É o que mostra uma recente pesquisa da empresa YouGov para o jornal britânico The Guardian, segundo a qual os sentimentos de desesperança e privação de direitos que alimentaram as revoltas continuaram aumentando. Uma maioria dos consultados em nove países árabes declara que suas condições de vida se deterioraram desde a autoimolação do jovem vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi, cuja morte ― o estopim dos protestos ― completa 10 anos na próxima segunda-feira.
Como era de se esperar, o descontentamento é maior onde a situação degenerou em guerras civis e intervenções estrangeiras. Nessa pesquisa, 75% dos sírios, 73% dos iemenitas e 60% dos líbios dizem estar pior do que antes da Primavera Árabe. Mas inclusive no Egito, Iraque e Argélia, embora menos da metade declare que sua situação piorou, apenas uma quarta parte diz estar melhor. “As reformas foram só de aparências, e a covid-19 exacerbou os problemas socioeconômicos”, aponta Hassan.
“Está sendo feito um experimento que põe a prova a resistência das sociedades árabes. Apesar das diferenças entre países, respondeu-se às demandas de tipo econômico e político com medidas de segurança, mão dura e repressão”, aponta Amirah Fernández. E não só por parte dos regimes questionados. “Do exterior, continuou-se favorecendo de forma descarada o modelo de estabilidade baseado no autoritarismo e na supressão de liberdades, em vez de experimentar qualquer sistema alternativo”, acrescenta.
As petromonarquias, que conseguiram comprar vontades e paz social com os dividendos dos hidrocarbonetos, apostaram no desenvolvimento econômico como substituto da democracia. Daí seu empenho na diversificação e na abertura social, ao mesmo tempo em que se restringem as liberdades políticas. Naquelas autocracias sem recursos relevantes, só há porrete. Até quando a panela a pressão vai aguentar? “Não está claro para onde vamos. Os atuais regimes são ainda mais repressivos e estão mais dispostos a usar a força. Lutarão até a morte para manter o poder”, manifesta o analista do EastWest Institute.
Fernández, do Real Instituto Elcano, remete à realidade demográfica como “o maior condicionante das sociedades árabes”. Com ligeiras diferenças, dois terços de seus 420 milhões de habitantes têm menos de 30 anos. Muitos eram jovens demais para participar dos protestos de 2011, mas “viram que era possível apesar do caos e as interferências que vieram depois”. De fato, a pesquisa mencionada detecta uma diferença geracional. Os mais jovens entre os adultos pesquisados (18-24 anos) são os que menos lamentam as revoltas, enquanto seus pais se mostram mais pessimistas com o resultado e consideram que as novas gerações confrontam um futuro mais difícil do que o de quem cresceu antes das primaveras.
“É muito cedo para dizer que a Primavera Árabe foi um fracasso. Precisamos deixar os jovens terem seu momento, e seu momento chegará”, dizia Lina Khatib, diretora do programa para o mundo árabe do centro de reflexão britânico Chatham House, durante uma recente conferência online. “Trata-se de um processo longo, com muitas desigualdades, que terá um montão de desencantos. Nenhuma revolução transformadora no mundo terminou em poucos anos e sem reação”, concorda Fernández.
Evandro Milet: Prefiro a imprensa às redes sociais
A frase é famosa. Thomas Jefferson, um dos pais da pátria americana, escreveu a um amigo em 1787: “Se tivesse de decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria em preferir a última opção”.
Nos embates das redes sociais, alguns alegam que a grande imprensa teria perdido a relevância por não ser mais fonte de informações confiáveis. Campanhas para cancelar assinaturas de jornais e revistas se espalharam por grupos ideológicos, insatisfeitos com a cobertura feita de temas políticos e principalmente com os colunistas de opinião. Alguns costumam repetir que determinados assuntos de interesse do governo Bolsonaro não são publicados na grande imprensa ou questionam porque ela não publicava nada contra Lula. Fico pensando como as pessoas se informaram sobre mensalão, petrolão ou lava-jato. Onde aprenderam sobre condução coercitiva, delação premiada ou prisão em segunda instância. Onde souberam da prisão de Lula, Marcelo Odebrecht ou Eduardo Cunha.
É uma ilusão achar que as pessoas têm mais informações pelas redes sociais que pela imprensa. As redes repercutem as notícias dadas em primeira mão pela grande imprensa com seus repórteres e colunistas de opinião ou pelos blogs de jornalistas que investem na captação de notícias originais mantendo contato permanente com as fontes primárias, os políticos em geral. Nas redes, colunistas de segunda mão, recém alfabetizados em política, apenas tentam reinterpretar as notícias veiculadas à luz de um embasamento precário, pouca história, e um acesso limitado às fontes primárias.
Os veículos de imprensa contratam jornalistas e investem na captação de notícias, e não só de política, mas também de economia, negócios, cultura, entretenimento e esportes. Os colunistas de opinião são isso mesmo, de opinião, e por isso analisam os fatos de acordo com sua interpretação e os colocam em um contexto amplo com base na sua experiência de anos. Gente que nunca leu jornal na vida, ou pelo menos que nunca acompanhou política, acha isso estranho, desconhecendo que funciona assim em todo o mundo democrático. Alguns chegam a afirmar, inocentemente, que os jornais deveriam apenas reportar os fatos e deixar a opinião para os leitores, como se todos tivessem a capacidade de enxergar a história e o contexto.
Quem quer formar a sua própria opinião pode ler ou ouvir vários analistas, de fontes diversas, e tirar sua conclusão, reduzindo eventuais vieses de cobertura, que ocorrem mesmo.
A grande imprensa realmente reduziu bastante a impressão de jornais e revistas, bem como caiu a audiência na TV, não porque perdeu credibilidade, mas porque foi atropelada pela velocidade da internet, que torna as notícias velhas rapidamente, pelas novas opções para entretenimento na TV e pela mudança do mercado publicitário acompanhando a maior presença das pessoas nas redes.
Os veículos procuram se adaptar às circunstâncias do mundo digital, aprendendo novas formas de se comunicar, seja com podcasts, lives, blogs, agências de checagem, diretamente nas redes ou colunas divulgadas aos pedaços ao longo do dia.
Quando vejo alguma notícia nas redes sociais, corro para os sites da grande imprensa para verificar se saiu ali. Caso contrário há grande chance de ser fakenews, essa praga difícil de ver na grande imprensa - pode até ocorrer -, assim como as doentias teorias da conspiração, que nunca vi na grande imprensa. Além disso, os algoritmos das redes sociais nos transformam em seus produtos, dirigindo nossas vontades subliminarmente, sem oportunidade de ouvir outras fontes como a imprensa permite.
No mais, é lembrar da frase de George Orwell: "Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade." Ou do nosso Millôr Fernandes: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”
Fernando Schüler: Esqueça um pouco a política e descubra as coisas interessantes que temos em comum
Ninguém tem a chave para desligar a geringonça na qual estamos todos enredados
Goste ou não dela, vale a pena ler a entrevista de Bari Weissà Folha, dias atrás. É bom escutar alguém que destoa da multidão. Alguém que ri sozinho enquanto todos dançam a Macarena (já me aconteceu). Todos conhecem a sua história. Ela foi contratada como uma das editoras do The New York Times por destoar da linha de pensamento hegemônica da Redação e caiu fora pelo mesmo motivo.
A Redação do Times, diz ela, como a de muitos jornais, passou gradativamente a responder a um agenda política. E o fez a partir dessa cisão típica dos tempos atuais, entre a gente bacana e esclarecida, "cujo trabalho é informar os outros", e os caipirões, basicamente definidos por qualquer coisa que diz respeito a Donald Trump.
Daí aparece uma jornalista que recusa a dicotomia fácil. Que acha risível pautar o jornalismo, todo santo dia, pelo milésimo texto enfileirando palavrões contra o "diabo laranja". Seu problema, por óbvio, nunca foi Trump ou qualquer político. O problema era a conversão do jornalismo em um campo retórico fechado e avesso às "ideias inconvenientes".
Foi o caso do editor James Bennet, banido por publicar artigo controverso do senador Tom Cotton. Ele provavelmente discordasse do senador, mas acreditava "dever aos leitores a exposição de contra-argumentos". Ingenuidade. Contra-argumentos são aceitos, na lógica do ativismo, nos limites de quem tem a hegemonia e o poder de impor danos aos que saem da linha.
O que Bari Weiss diz vale para qualquer posição política e vai além do jornalismo. Demétrio Magnoli tratou disso em coluna recente. Há um modus operandi da política atual, dado pela lógica tribalista das redes. O jornalismo, ou parte relevante dele, apenas foi junto com a maré.
Intuo que se trata de caminho sem volta. O Twitter se tornou bem mais do que o "editor último" do Times, como diz Weiss em sua carta-renúncia. Se tornou, junto com as redes, o editor do debate público, e o faz de modo anárquico, numa constante guerra civil em que cada um imagina ganhar, a cada momento, e todos perdem, ao longo do tempo.
Weiss diz que nos tornamos um grande campus, ou um grande departamento de estudos de gênero. Prefiro outra formulação: tornamo-nos uma sociedade de militantes. Nas redes, nas universidades, no jornalismo e, mais recentemente, na vida das empresas e hábitos de consumo.
É evidente que muita gente se mantém serena em meio à tempestade, para o horror das hordas de qualquer lado. Mas o espírito do tempo é outro. É o "espírito de partido", como disse Madame de Stäelsobre o clima intelectual francês à época da revolução e de quem me lembrei por estes dias.
O ponto é que isso não irá mudar. Nos anos 1930, Ortega y Gasset vaticinou que o homem-massa havia ingressado de vez na cultura. Cem anos depois, graças à internet, quem domina o palco é o cidadão-pregador, o cidadão-dedo-em-riste. Seu destino ainda é incerto. Ele pode conduzir mudanças positivas, mas pode também agir como uma nuvem de "Black Mirror".
É positivo que as pessoas façam promessas de fim de ano e apostem que a pandemia vai mudar as coisas e que voltaremos a agir com mais empatia e sentido de comunidade.
Quem sabe a esperança de Gabeira, a quem sempre leio, apostando que a politica, depois de ter nos afastado, possa novamente nos aproximar. Ele lembra que já fomos mais gentis uns com os outros, mesmo divergindo, como na época das Diretas.
Minha hipótese é que a política continuará a nos separar. A lógica da tribo, da reação imediata e baixa empatia veio pra ficar. Ninguém tem a chave para desligar a geringonça na qual estamos todos enredados.
Nossa melhor chance é fugir da querela política. Podemos experimentar isso nos encontros de hoje à noite. Fugir da postura do sujeito que um dia me disse que iria "perdoar" seu irmão por apoiar o político que ele detestava. Presunção tola. Vale muito mais um abraço e a descoberta de coisas interessantes que todos temos em comum. E elas não são poucas, podem acreditar.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Joel Pinheiro da Fonseca: É o fim da década, mas a instabilidade está só começando
Jamais voltaremos ao mundo pré-redes, e resta aos bons aprender a navegá-las
A década iniciada em 2011 e que se encerra neste fim de ano começou em clima de otimismo com a participação popular na política. Jovens árabes foram em peso para as ruas —na Tunísia, no Egito, na Síria, na Líbia e por diversos outros países árabes. Em grande medida, a mobilização e o chamado se dava pelas redes sociais. Se as redes sociais ajudaram a eleger Obama em 2008 e agora derrubavam autocratas pelo Oriente Médio, como não celebrar essa tecnologia tão obviamente do bem?
Não tardou para que o Brasil também visse sua explosão popular nas ruas, exigindo o fim da corrupção e um governo responsivo às demandas populares. Mais do que qualquer partido, eram as cores da bandeira que animavam a massa em 2013.
Poucos anos depois e o otimismo está abalado: no mundo árabe, a “voz do povo” não raro se traduziu em islamismo político e fundamentalismo, quando não em sangrentas guerras civis. No Brasil, por um tortuoso caminho —que passou pelo protesto dos caminhoneiros em 2018—, o desejo de ruptura com a velha política acabou levando a Jair Bolsonaro. Movimentos assombrosos na França, igrejas queimadas no Chile, Trump e brexit. O movimento popular de insurgência contra tudo que aí está —as instituições que regem a vida moderna, seja na ciência, na mídia, na política, nas relações internacionais — continua a rondar o mundo; só não temos mais nenhuma ilusão de que ele seja sempre bom.
As redes sociais, que se consolidaram nesta década, tiveram um papel relevante nesse processo. Pela primeira vez, a informação é verdadeiramente livre. Isto é, livre de qualquer filtro institucional que busque garantir qualidade ou razoabilidade no que é dito. Todos somos consumidores e geradores de informações e opiniões.
Nas câmaras de eco que a sociabilidade das redes produz —ao contrário do almoço de domingo com a família, nas redes eu interajo apenas com quem pensa como eu—, o sectarismo foi gestado e levado a pessoas que, em outros tempos, jamais sentiriam a tentação de aderir a teorias da conspiração e extremismo político. Mas com os olhos o dia inteiro grudados na tela do smartphone, recebendo supostas notícias, alimentando-se de notícias e vídeos de procedência desconhecida, formas de pensar que antes seriam restritas a uma franja antissocial viraram hábito cotidiano.
O coronavírus foi a oportunidade ideal para que o mundo resgatasse a importância da cooperação e da integração para melhor resolver problemas coletivos. Até agora, só promoveu mais discórdia. Apesar de termos cada vez mais provas da eficácia e segurança de diferentes vacinas, cresceu o número de pessoas que dizem que não pretendem tomar. A desinformação cresce livre e desimpedida (pelo menos na hora de responder pesquisa; se de fato ficarão longe da agulha é outra história…), promovida por grupos políticos mal-intencionados que aprenderam antes a surfar essa onda. Nesta década, eles foram os vencedores.
Justo nos meses finais, contudo, vem uma lufada de esperança: a vitória de Joe Biden nos EUA. Que o líder que encarne a esperança tenha idade já avançada, aspecto para lá de frágil e não inspire entusiasmo nem em seus próprios eleitores nos indica, contudo, que a nova era está apenas começando. Salvo uma hecatombe, jamais voltaremos ao mundo pré-redes. Resta aos bons aprender a navegá-las e vencer nelas também. Desafios para a década que vem.
Eugênio Bucci: O ‘cancelamento’ estatal e o Estado ‘lacrador’
O problema do presidente e asseclas nem é ideológico, é da ordem da cognição
Tem sido comum ouvirmos queixas sobre a prática do “cancelamento”. São procedentes. Na etiqueta sem etiqueta das redes sociais, o “cancelamento” consiste numa avalanche de turbas virtuais que, em questão de horas, derruba a lista de seguidores de uma pessoa e acaba com seu prestígio digital. Basta uma opinião fora da ortodoxia das turbas para o sujeito se expor ao “cancelamento”. Há exemplos diários. O “cancelado” é banido. Os que eram seus admiradores se convertem em seus “detratores” (guardemos essa palavra, pois ela vai nos pegar de tocaia alguns parágrafos adiante).
Trata-se de uma pena afetiva: “Ei, nós não gostamos mais de você, ponha-se daqui para fora!”. Podem sobrevir repercussões políticas e econômicas. Políticas porque o “cancelamento” destrói os laços virtuais pegajosos que davam popularidade à infeliz criatura “cancelada”, que se vê de repente degredada, como se tivesse sido expulsa do partido. As pessoas entram em depressão. E econômicas porque os influencers (e eu que achava que nunca escreveria tal barbarismo), que ganham dinheiro com o número de likes, engajamentos, retuítes e coraçõezinhos piscantes, perdem faturamento. As pessoas entram em inadimplência.
Estamos falando de um flagelo cultural. Escritores e intelectuais são vítimas desse empastelamento simbólico perpetrado por maiorias barulhentas, intolerantes e implacáveis.
Mas não se trata propriamente de uma novidade tecnológica. Parecerá incrível, mas Alexis de Tocqueville, que morreu em 1859, sem desfrutar os prodígios gozosos dos smartphones, anotou o germe de tudo isso em seu Democracia na América: “A maioria traça um círculo formidável em torno do pensamento. Dentro desses limites o escritor é livre, mas ai dele se ousar sair!”.
Portanto, a moda do “cancelamento” nada mais faz do que trazer a máxima de Tocqueville para os dispositivos interconectados que funcionam na velocidade da luz. Nos nossos dias, a tal América ocupa o epicentro dessa prática nefasta, seguida de perto pelo Brasil. Aqui, no entanto, além das pessoas físicas – de carne, osso, mas sem muita massa cinzenta –, a própria máquina de governo decidiu ingressar com estardalhaço no esporte de “cancelar” a reputação de cidadãos honestos.
Agora, nesta semana, o jornalista Rubens Valente, do UOL, descobriu e noticiou que uma agência de comunicação, a pedido do governo federal, preparou uma lista de 77 influencers (reincidi), entre os quais aparecem 44 jornalistas, e os dividiu em três grupos: os “detratores” (eis a palavra), que criticam o governo, os “neutros” e os “favoráveis” (que los hay, los hay). Pela legislação ordinária e pelos princípios constitucionais, o governo não pode discriminar cidadãos pela opinião que emitam, mas, como o atual governo não liga para a lei, promove discriminações a toda hora. A lista sugere que as autoridades adotem condutas diferentes para falar com uns e outros. Uns merecem “parcerias”. Quanto aos demais, bem, um pouco de “cancelamento” estatal talvez ajude.
Esse pessoal na Esplanada dos Ministérios não tem modos? Aliás, será que ninguém ali pensa? Aliás, de novo, o problema do presidente da República e de seus asseclas mais próximos não é nem ideológico – é da ordem da cognição. Há sentidos que eles não apreendem, independentemente de concordarem ou não com o postulado. Que conduzam os negócios públicos como se fizessem arruaça em redes sociais é apenas mais um sintoma da limitação cognitiva profunda.
O “cancelamento” estatal vem junto com o Estado “lacrador”. Expliquemos o adjetivo. Entre os adictos das redes, o termo “lacração” se refere àquele post ou àquela atitude performática que “causa”, mas “causa” muito, tipo “causa” assim demais, cara, você não tem ideia, e fere outras pessoas, mas, tipo assim, tudo bem. E daí? (Essa interrogação cairia bem de epitáfio.) O que conta é “lacrar”, tá ligado? O Estado “lacrador”, pilotado por “lacradores”, desconhece a diferença entre “curti” e “voto aprovado”. Lacra. Cancela.
Falando em diferenças não percebidas, o presidente não capta a que existe entre um gabinete clandestino que distribui calúnias anônimas e um órgão de imprensa registrado em cartório, que recolhe impostos, tem endereço certo e um diretor de redação com nome e CPF. Não é que, por motivações ideológicas, ele negue a distinção. Ele simplesmente não a alcança.
Em 28 de maio de 2020, na entrada do Palácio da Alvorada, quando protestou contra o inquérito do Supremo Tribunal Federal que desbaratou uma indústria ilegal de fake news e discursos de ódio, o presidente, sem querer, confessou que não tem ideia dessa diferença essencial para a democracia: “Querem acabar com a mídia que tenho a meu favor!”.
O governante brasileiro acha que as fake news são uma “mídia” como qualquer outra – e como usa as palavras “mídia” e “imprensa” como sinônimas, fica evidente: não consegue distinguir entre a mentira e a verdade factual, assim como não aprendeu o que separa a ditadura da democracia. Para ele, só o que conta é a histeria das redes e suas milícias digitais. Adeus, República. #cancelamentoestatal.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Monica de Bolle: O vírus da desinformação
Pessoas seduzidas pelo “like”, validadas pela “curtida”, cheias de segurança pela viralização do que publicam, não param para refletir se aquele tuíte ou post pode ser perigoso no contexto de uma pandemia
Altamente contagioso e letal, o vírus da desinformação chama-se “like” ou “curtida”. Ele circula sem constrangimento nas redes sociais e atinge milhões de pessoas todos os dias. Não quero dizer com isso que as pessoas que apertam o botão da mãozinha, às vezes de forma automática, sem pensar, sejam as principais transmissoras do patógeno. É pior. Pessoas cujo ofício é informar, ou pensar, ou às vezes até ensinar são os verdadeiros vetores de transmissão. Por quê? Seduzidas pelo “like”, validadas pela “curtida”, cheias de segurança pela viralização do que publicam, não param para refletir se aquele tuíte ou post pode ser perigoso no contexto de uma pandemia, de um Brasil prestes a cair de cabeça na chamada segunda onda, de um país governado por mentecaptos negacionistas. Já vi muita gente boa sucumbir ao vírus da desinformação, e isso me causa tristeza profunda. Dói, até.
Desde o início da pandemia defendo a necessidade de aprender um pouco de biologia, imunologia, virologia para dar conta do que se passa ao nosso redor.
Desde o início da pandemia tenho afirmado que esse conhecimento é importante em especial para aqueles que trabalham diretamente com a informação, tais como jornalistas, comentaristas, colunistas, professores e pesquisadores que participam do debate público, ou qualquer um que exerça ofício que alcance o público geral. Sem algum conhecimento de biologia, é impossível fazer o serviço mais importante de utilidade pública, depois, é claro, daquele prestado pelos profissionais de saúde: passar informação confiável e acessível para que as pessoas se orientem e se movimentem com consciência e segurança. No Brasil, isso implica afastar teorias conspiratórias e fantasiosas de um governo que oscila entre a demência e a mentira. Infelizmente, também requer desafiar a soberania das curtidas.
Pelas curtidas, propaga-se desinformação sobre as vacinas. Por exemplo: houve quem afirmasse que a vacina do laboratório Sinovac, a CoronaVac, com ensaios clínicos no Brasil, demonstrou eficácia de 97%, ou seja, uma eficácia maior do que as vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna. Algumas dessas pessoas corrigiram o erro, mas não se deram ao trabalho de explicar as origens do equívoco. Neste momento perigoso para o enfrentamento da pandemia, com um governo que despreza as ciências e pessoas em intensa campanha antivacinação, a confusão que esse tipo de equívoco gera é de irresponsabilidade indescritível. Em meu canal no YouTube fiz dois vídeos tentando desfazer parte da confusão. E vou explicar um pouco mais aqui.
O laboratório Sinovac não divulgou os resultados de eficácia da vacina, pois ela ainda não está nesse estágio, ao contrário da vacina da Pfizer e a da Moderna. O que o laboratório publicou foi a imunogenicidade da CoronaVac, isto é, a capacidade da vacina de suscitar uma resposta imune nos ensaios clínicos de Fase I/II. Noventa e sete por cento dos voluntários mostraram resposta, mas não se sabe se essa resposta é protetora contra a doença, e é essa evidência que buscam os ensaios da fase seguinte, os chamados ensaios de Fase III. Uma vez colhidos os dados sobre imunogenicidade, os ensaios de Fase III tratam de averiguar se a vacina é ou não eficaz.
Como? Voluntários são recrutados, protocolos são elaborados e grupos randomizados recebem a vacina ou o placebo usando o procedimento chamado duplo cego, no qual tanto os cientistas envolvidos quanto os participantes desconhecem se foram vacinados ou inoculados com placebo. Passado um tempo, algumas dessas pessoas vão se infectar no decorrer de suas atividades normais. Quando esse número é alto o suficiente, abre-se o duplo cego para avaliar quem se infectou mais. Caso mais pessoas do grupo placebo tenham se infectado do que as do grupo de vacinados, há eficácia. Ilustrando com números: se entre 100 pessoas infectadas 95 forem do grupo placebo e 5 do grupo de vacinados, a vacina tem eficácia de 95%, ou seja, ela protege 95% dos vacinados considerando-se uma margem estatística de confiança adequada.
A vacina eficaz é uma espécie de treino. Ela ensina as defesas de seu corpo — seu sistema imune — a reagir caso encontre o vírus causador da Covid-19. Ao fazer isso, a vacina gera proteção contra a doença, uma doença que pode matar, que pode deixar sequelas gravíssimas em pacientes “recuperados”. Vale a pena trocar essa valiosa esperança por uma curtida efêmera em rede social? Por milhares de seguidores desconhecidos que muitas vezes aplaudem sem saber o que estão aplaudindo? Vale a pena? Vale?
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Pedro Doria: O golpe de Trump e as redes
Nesta semana, um presidente americano tentou impedir que votos fossem contados. Isto tem nome. É golpe de Estado
É inevitável, nesta semana eleitoral americana, que nos debrucemos sobre a constatação de que mudou de vez a maneira como se portam as plataformas de redes sociais. Facebook, Instagram e Twitter agiram ativamente para conter a circulação e alertar os usuários a respeito das tentativas de inflamar a população e dos ataques frontais aos ritos democráticos pelo presidente americano, Donald Trump. A ação não surpreende — já haviam anunciado que fariam isso. A decisão é responsável. É também polêmica. Por um motivo muito simples: é uma decisão editorial. Uma decisão de editor.
A questão fundamental aqui é simples: o que é uma rede social? Melhor começar pelo que não é. Parece, mas não é a praça pública. Embora seja um ambiente no qual muitos de nós nos reunimos para conversar sobre o que é do interesse da sociedade ou mesmo nos informarmos, embora elas até pareçam com uma versão digital da praça pública, elas não são um bem coletivo. O problema não é nem que tenham dono, que sejam privadas. O problema é que seu controle é planetariamente concentrado nas mãos de poucos. O ideal é que tivéssemos muitas redes sociais e nenhuma fosse dominante, que todas fossem de donos distintos e que portanto seu impacto total fosse distribuído. Que a decisão de um destes donos não tivesse capacidade de estragos imensos na sociedade. Não é assim, infelizmente.
A praça pública é este ambiente coletivo que criamos, enquanto sociedade, no qual discutimos sobre o que é de nosso interesse conjunto. É onde, juntos, nos convencemos uns aos outros em diálogo constante para que possamos ir às urnas tirar conclusões. Mas a realidade é que este ambiente privado e com pouquíssimos donos, as redes sociais, é onde conversamos hoje sobre nossa política. Esta propriedade concentrada está diretamente ligada à ascensão de populistas autoritários e, em grande parte, isto ocorre porque o ambiente foi construído com inúmeros vícios. Um deles são os algoritmos que manipulam nossos cérebros para nos prender. Ficamos horas e horas perante estas telas. Outro é que estes mesmos algoritmos são susceptíveis a distribuir mais o que nos incita uns contra os outros. A reforçar tribalismo ao invés de união.
Muitos ativistas defendem que as redes não deveriam interferir manualmente para que notícias falsas circulem, para que líderes populistas possam atacar suas democracias. Afinal, se interferem nisto, podem interferir em qualquer coisa. É verdade. Podem mesmo. Mas interferência já existe. Edição já existe. É a dos algoritmos. A entrada ‘manual’, a decisão de entrar num post no qual Donald Trump incita sua militância a considerar fraude eleitoral a contagem de votos numa democracia não é apenas correta. É a medida responsável a se tomar.
Só que é uma medida que também redefine estas redes sociais. Elas não são meras plataformas, ambientes neutros nos quais conversas ocorrem. São veículos que definem o que pode e o que não pode ser dito nelas. Elas editam, como jornais e revistas. Assim como jornais e revistas, quando uma autoridade mente, elas informam a seus leitores — não usuários, leitores — que aquilo dito é mentira. E as redes como são muito poucas, sua propriedade é concentrada e têm escala planetária, oferecem às democracias um problema novo, muito grande e barbaramente complexo.
Isto tudo posto, é preciso reconhecer que houve avanço. Porque é importante não ter ilusão, esta semana o inimaginável ocorreu. Um presidente americano tentou impedir que votos fossem contados. Isto tem nome. É golpe de Estado. Não chegou perto de ter chances de dar certo. Em grande parte, porque as redes sociais atuaram como editoras. Corretamente. Que atuem com a mesma responsabilidade por aqui.
Cacá Diegues: O projeto das redes
A questão é revelar o lado sombrio dessa nova conquista, para que possamos tomar providências e evitá-lo
Para cinéfilos e cineastas que implicam com o streaming, como uma forma contemporânea de ver um filme, lembro que é bem possível que, não existindo essa plataforma, não tivéssemos como ver títulos que estão arrasando no gosto do pessoal durante a pandemia. Estamos vendo, no streaming, filmes realizados por diretores consagrados, como “Roma”, “Destacamento Blood” ou “O irlandês”, mas também e sobretudo filmes que, de outro modo, talvez jamais víssemos. Como “Lindinhas” ou “O dilema das redes”, alguns dos mais comentados, citados e criticados (que produzem análises) na temporada.
“Lindinhas” (Mignonnes), filme francês dirigido pela estreante Maïmouna Doucouré, trata de adolescentes, em geral de famílias imigrantes, que vivem em subúrbios parisienses, correspondentes às nossas periferias urbanas miseráveis e marginais. Como a Netflix se recusa a fornecer os números de sua programação, ficaremos sem saber quantas pessoas já viram esse filme. Mas, por sua repercussão escrita e falada, podemos considerá-lo um dos grandes sucessos do cinema francês contemporâneo. Não é de hoje que a imigração africana e árabe, na França, tem sido tema de filmes locais de grande qualidade. Agora são os próprios imigrantes, e sobretudo seus filhos, já nascidos no país, que tomam a câmera para contar suas histórias, como em “Lindinhas”.
Fico pensando em quando o cinema brasileiro de moradores de favelas estiver consolidado, quantas descobertas temáticas e de talentos terão sido feitas. Esse tipo de produção, no Brasil, não tem se desenvolvido à altura da qualidade de quem a pratica, pelo simples motivo de que faltam recursos para fazê-lo e estruturas que garantam o curso da vida dos filmes.
É claro que, nesse caso, o principal responsável por tais recursos e estruturas deve ser o Estado. Mas nosso governo não está nem um pouco interessado em ajudar a alavancar o cinema brasileiro já consagrado, imagine aquele que tem que ser descoberto e revelado. Dez anos atrás, num esforço de caráter privado, realizadores que hoje trabalham regularmente em cinema e televisão, como Luciano Vidigal, Fernando Barcellos, Luciana Bezerra, Gustavo Melo, Rodrigo Felha, Manaira Carneiro, Cadu Barcelos e outros foram revelados por “5XFavela, agora por nós mesmos”, projeto construído pelos próprios cineastas moradores de favelas. É inacreditável que nunca mais a experiência tenha se repetido.
Outro filme bombando no streaming é “O dilema das redes” (“The social dilemma”), documentário americano de Jeff Orlowski, lançado pela Netflix no início de setembro e até hoje batendo recordes de acesso e visibilidade. Fruto do esforço de jovens gênios e gênias da cultura digital, dando entrevistas e palpites sobre o tema e o sentido do filme, esse documentário nos põe diante da maravilha tecnológica das redes sociais e dos danos que elas têm causado à sociedade, seja no controle do consumo, seja na condução de políticas nacionais.
A mais espantosa constatação de “O dilema das redes” é que o bem-sucedido apelo obsessivo de uma rede social não é nunca um efeito colateral, mas o próprio projeto e propósito de sua criação. Não é à toa, lembra um dos técnicos no filme, que “as duas únicas indústrias que chamam seus clientes de usuários (users) são a de drogas e a de software”. Entrevistando ex-funcionários do Facebook, Google, Twitter e Instagram, Orlowski nos faz imaginar, pelo que dizem os que estão arrependidos do inferno que criaram, o que devem estar pensando e planejando os que persistem na invasão de nossas mentes, produzida por pequenas e grandes redes sociais.
Não se trata de combater a importância das redes, seu potencial papel de encontro solidário de informação e conhecimento entre seres humanos, de um modo rápido e imediato, um modo mais eficiente. Trata-se de revelar o lado sombrio dessa nova conquista, para que possamos tomar providências e evitá-lo. “O dilema das redes” me faz pensar também no incrível documento de denúncia, escrito por Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook, que ela chamou de “Tenho sangue em minhas mãos”. Mas essa já é outra história.
Marcus Pestana: O dilema das redes e o futuro de todos nós
Ninguém ousa negar a centralidade das plataformas digitais e das redes sociais na vida contemporânea. Mas, cada vez mais se ascende a polêmica sobre a crescente capacidade de manipulação das gigantes da comunicação digital. Os efeitos positivos das redes sociais são inegáveis. Mas a polêmica que ganha corpo é: a que custo? Quais são os efeitos colaterais? As disfunções estariam superando os benefícios?
Já recomendei aqui dois filmes da NETFLIX, o documentário “Privacidade hackeada” sobre a manipulação de dados do Facebook na eleição de Trump em 2016, e o drama polonês “Rede do Ódio”, sobre consequências dramáticas da manipulação política das plataformas. Agora em setembro foi lançado o documentário de Jeff Orlowsky, “O dilema das redes”, que vem despertando enorme polêmica. Para alguns, exagerado e sensacionalista. Para outros, um grave alerta sobre o futuro que estamos construindo.
O “Dilema das redes” não se atém à perspectiva política. Vai além, denuncia dos aspectos psicossociais da influência nas mudanças dos padrões de comportamento, principalmente nas novas gerações. A partir de depoimentos de ex-executivos do Facebook, Google, Twitter e da teatralização de uma família impactada pela exacerbação do uso da internet, há uma exposição nua e crua das vísceras das redes sociais. Fora os exageros, é assustador. Todos os pais deveriam assistir para interagir melhor com seus filhos sobre o tema.
O documentário revela como a lógica das redes é nos capturar, nos tornar compulsivamente dependentes, viciados mesmo, a partir de uma associação entre psicologia humana e tecnologia da informação. Rolagem automática e sem fim, notificações, curtidas, falsas recompensas, likes, são mecanismos desenvolvidos para nos tornar “prisioneiros das redes”, com graves repercussões na saúde mental e no bem estar de todos nós. “Apenas dois tipos de indústria chamam clientes de usuários: a de drogas ilegais e a de tecnologia da informação” é uma frase forte do filme. Penso nas mesas de bares e restaurantes com todos ligados em seus smartphones e ninguém conversando.
Outra afirmação contundente é: “Se você não paga por algo, saiba que você é o produto”. As grandes redes faturam bilhões de dólares em publicidade e fazem isso pelos dados que têm. O produto certo para a pessoa certa. Senti isso pessoalmente. Foi só fazer três compras por e-comerce numa mesma importadora de vinhos, para meu timeline do Facebook ficar coalhado de ofertas de outras importadoras. Tudo indica que “fui vendido”. Isto aconteceu com produtos relacionados ao Flamengo, a imóveis e até artistas.
Mas há consequências mais graves: o aumento da depressão e dos suicídios infantis e juvenis, a explosão de fakenews que se propagam seis vezes mais que a verdade “que é chata”, o tempo gasto que impede a relação humana direta com a família e amigos ou o deleite com a boa arte, o bullyng virtual opressivo, a alimentação do discurso do ódio e de teorias da conspiração, o estímulo à radicalização da polarização política, a deformação do processo de formação da autoestima e o nascimento de uma cultura rasa, superficial e agressiva.
Precisamos urgentemente conversar sobre isso. Ou teremos um mundo cada vez mais perigoso e desinteressante.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
‘Lista de perdedores é imensa’, diz Everardo Maciel sobre propostas de reforma tributária
Em entrevista à revista online e mensal da FAP, especialista lembra que até o livro pode ser prejudicado
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
As propostas de reforma tributária não são nada animadoras para a população em geral, conforme avalia o consultor jurídico e professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal. “A lista de perdedores é imensa”, alerta o especialista, em entrevista que concedeu à revista Política Democrática Online de setembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
Acesse aqui a edição de setembro da revista Política Democrática Online!
Existem hoje três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para a qual se solicitou tratamento de urgência no Congresso Nacional.
“[A lista de perdedores] começa com os mais de 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais”, afirma. “Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médica”, ressalta.
Na avaliação de Maciel, para justificar o aumento da tributação dos serviços de educação e saúde, argumenta-se que quem faz uso desses serviços são ricos, desconhecendo a imensa demanda da classe média. “De mais a mais, essa oneração haveria de sobrecarregar o SUS e a rede pública de ensino, gerando custos para o setor público”, analisa.
Na longa lista de perdedores, até o livro foi incluído. “Desde 1946, o livro é desonerado de tributos. A remuneração de um escritor corresponde a 10% do preço de capa. A CBS pretende taxar os livros com uma alíquota de 12%, o que equivale a confiscar aquela remuneração”, critica ele. Além disso, os livros didáticos representam cerca de 50% do total comercializado, sendo que grande parte é adquirida pelos governos. Trata-se, portanto, de uma ideia estapafúrdia. Mais grave, sem nenhum valor arrecadatório.
Outro alvo desse aumento de carga tributária, segundo o ex-secretário da Receita Federal, é o agronegócio, precisamente o setor quem tem sustentado o modesto desempenho do PIB brasileiro. “Pretende-se tributar o setor pesadamente, na contracorrente do que se faz no resto do mundo”, afirma.
No Brasil, 98% dos produtores rurais são pessoas físicas equiparadas a jurídicas, que produzem e vendem para a indústria processadora sem transferir crédito. Segundo o consultor jurídico, a indústria processadora de produtos de origem animal e vegetal toma um crédito presumido, na apuração do PIS/COFINS, que varia de 40 a 60%.
“No projeto da CBS, o crédito presumido é reduzido para 15%, e se elimina a isenção dos insumos. Em decorrência, haveria redução da margem do produtor ou da indústria ou então elevação dos preços para o consumidor final, o que é lamentável.
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