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Eliane Cantanhêde: PSDB ataca Doria, DEM tira o tapete de Huck, Lava Jato engole Moro. E Luiza Trajano?

Quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas

Se parece pato, anda como pato e grasna como pato, pato é. Se o novo ministro da Cidadania, João Roma, fez toda a sua carreira no DEM, colado em ACM Neto e era seu chefe de gabinete, ACM Neto ele é. Jura que foi parar no colo do presidente Jair Bolsonaro pelo Republicanos e por Marcos Pereira, ninguém acredita. Depois de Sérgio Moro, em 2019, o maior troféu de Bolsonaro é ACM Neto, que perde o status de uma das grandes promessas nacionais e arrasta junto o DEM.

Além de, novamente, garantir mais armas e mais balas para civis, Bolsonaro está soltando fogos. O Centrão transformou o Congresso em puxadinho do Planalto e o DEM cala Rodrigo Maia, voz decisiva da resistência ao autoritarismo e ao atraso, imobiliza Luciano Huck, obrigado a procurar outra sigla, e desarticula uma saída da catástrofe pelo centro – que está descambando para a extrema direita.

Num movimento combinado, o PSDB segue o desastre do DEM, como um piloto que, em meio a forte tempestade, entra em estado de desorientação espacial. Trancado na cabine (no caso, na bolha), não enxerga nada à frente, não sabe mais se está subindo ou descendo e acelera até se esborrachar no solo logo ali. É mesmo estonteante o DEM e o PSDB elegerem João Doria e Maia como inimigos prioritários.

É hora de atacar Doria? Goste-se ou não dele, e muita gente não gosta, ele é governador do principal Estado do País, ocupa a mais importante vitrine nacional dos tucanos e merece aplausos pela visão, diligência e decisão ao providenciar as vacinas. Com legitimidade, fazia uma dupla fundamental com Rodrigo Maia para dizer “não” a investidas golpistas e medidas retrógradas.

O que seria do Brasil sem as “vacinas chinesas do Doria”? Em fevereiro, teríamos dois milhões de doses para 210 milhões de habitantes, com 9,8 milhões de contaminados, 238 mil mortos e novas variantes mais ameaçadoras, enquanto o presidente insiste no “e daí?”. E, sem Maia na Câmara e Doria no PSDB de São Paulo, quem dará voz e cara à oposição? Bolsonaro torce para Lula e Fernando Haddad.

O tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, tem lá suas qualidades, mas não pode ser séria a articulação do seu nome para a Presidência. Muito jovem, está no primeiro mandato relevante, num Estado que se especializou em torrar seus quadros políticos e nunca reelegeu um único governador. Logo, a caravana tucana pode tê-lo convencido, mas a ninguém mais.

Chutar Doria para pôr Leite no lugar tem cara de blefe, para dissimular uma outra jogada: a aproximação com Bolsonaro. Consolida, assim, a análise de que o melhor que pode acontecer ao PSDB é pôr ponto final na sua bela história, antes de um triste fim - que pode estar perto. Depois do ministro de ACM Neto, Bolsonaro busca nomes vistosos do PSDB e do MDB para o governo.

Com PSDB e DEM se autodestroçando, Bolsonaro corre sozinho, cada vez mais lépido, fagueiro, sem noção e sem escrúpulos, sustentado por Forças Armadas, polícias, milícias, os reinos de Deus, Centrão, Congresso e “oposição”. Não pensem o PT e a esquerda que isso é bom para Lula, Haddad ou quem quer que seja. Na implosão do centro, a debandada é para Bolsonaro.

Doria, Huck, Moro e Luiz Henrique Mandetta são torpedeados antes de alçar voo, mas, como não há vácuo em política, quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas, como cotas, vacinas, menos ideologia e mais resultados. Sim, Luiza Trajano, sem partido e sem traquejo político, mas instada a botar o bloco na rua e, num carnaval tão atípico, animar e atrair um grande aliado de Bolsonaro: o eleitor desiludido, ou desesperado, que só vê o buraco aumentando.


Cacá Diegues: Uma nova adolescência

Deixem o esquecimento em paz, ele é a garantia de uma existência mais alegre para idosos feito nós

Estamos perdidos, o Supremo acaba de proibir o esquecimento. Não sei se a sábia decisão inclui questões de foro privado, como fracassos pessoais e amores insanos, essas coisas que fazem de nossa vida inevitável sequência de frustrações dolorosas. Vou ler o documento com atenção, deve haver um parágrafo redentor dizendo que, a partir de certa idade, temos o indiscutível direito de não mais lembrar tristes momentos.

Em vez de nos condenar à memória, bem que o Supremo podia nos ajudar no suplício do que preferíamos que não tivesse acontecido. Valorizar nosso empenho em esquecer por respeito a nós mesmos. Não temos mais como reparar o desastre da juventude. Mas temos o direito de não darmos atenção aos que, nos salões, balbuciam nosso nome com trejeitos e risadas. Esquecer é uma bênção dos céus; rejeitá-la é um grave pecado masoquista de orgulho e pretensão.

Em certo momento adiantado da vida, começamos a nos conformar com o que somos. Seguimos vivendo a combinação patética de euforia e depressão, marca da existência, mas sabemos que o que somos dificilmente deixará de ser o que é. Ninguém vai nos reavaliar. O que foi já foi, não temos como consertar. Para que lembrar de tudo, mesmo que tenhamos sido campeões do mundo ou namorados de princesas? Sempre haverá algo de desagradável, em cada um desses sucessos.

Para a nova humanidade, não existem mais “velhos”, coisas gastas e desnecessárias. Agora somos “idosos”. O que, convenhamos, é muito mais conveniente e impõe um certo respeito. Outro dia, li na internet um post, encaminhado por meu amigo Walter Lima, o cineasta baiano, dizendo que os jovens estão achando nos idosos sinais de adolescência. Somos uma nova faixa social, idolescentes vivendo de um jeito peculiar, inventivo e agitado, capaz de renovadas provocações civilizatórias. A adolescência foi uma invenção de meados do século XX, para dar identidade demográfica e cultural a um desabrochar humano original, depois da Segunda Guerra Mundial. O desabrochar dos idosos é uma invenção desse século XXI, posterior à Guerra Fria, sei lá pra quê.

Como muitos de minha idade, esses que chamo de idolescentes, faço exercícios físicos para manter certa forma. Meu mestre em fisioterapia e shiatsu, o doutor Sashide, me garantiu que o idoso pode fazer tudo que um jovem faz. A diferença é que o idoso tem que fazer uma coisa de cada vez, concentrado no que está fazendo. Se você estiver subindo uma escada, por exemplo, se concentre só nisso, esqueça para onde vai, quem está a seu lado ou que música está tocando mais adiante. Preste atenção apenas a cada degrau, ao espaço em que, no próximo, você vai colocar o pé. A vida talvez fique mais lenta e mais chata, mas certamente mais segura e comprida.

Um amigo meu, cuja jovem filha morreu recentemente de mal incurável, me disse que, mesmo aos 79 anos de idade, só depois desse evento trágico começou de fato a envelhecer. Ele não desejou morrer por causa da morte da jovem e bela menina, a vida apenas perdeu para ele grande parte de sua graça. Agora estou tentando transformar esse meu amigo, com todo o respeito por sua dor, num idoso disposto a viver. Mas, para isso, ele precisa esquecer. Não necessariamente tudo. O rosto de sua filha sem vida, por exemplo, nunca mais deixará sua memória.

Por favor, senhores ministros do Supremo, defendam com ardor a liberdade e a democracia, deem a vida pelas duas. Mas deixem o esquecimento em paz, ele é a garantia de uma existência mais alegre para idosos feito nós.


Pedro Doria: A febre

Cancelamentos são uma febre, um dos muitos sinais de que o debate público quebrou

Por conta do Big Brother, cancelamentos voltaram ao debate. Mas, como tudo no ambiente de polarização, não conversamos o suficiente sobre eles. Sobre como a dinâmica de redes sociais e algoritmos os tornam mais agressivos e, por vezes, inevitáveis. Vai além: como focamos demais naqueles cancelamentos promovidos por militantes identitários, com frequência não percebemos que seu impacto é mais amplo e tem um custo muito alto para o debate público. Em todas as correntes políticas, as conversas estão travadas.

É só prestar atenção: quando é que, no meio de uma conversa, somos surpreendidos por um argumento novo? É cada vez mais raro. As identidades ideológicas se cristalizaram. Desta forma, se uma deputada ligada à esquerda considera necessária uma reforma da Previdência, ela é imediatamente atacada pelos seus próprios. Se uma militante trans se declara liberal é também atacada pelos seus. Como o conservador favorável a educação sexual na escola pública é de presto lapidado nas redes. São, todos, exemplos reais.

A cristalização das identidades transforma o debate político num pacote fechado. Quem carrega uma determinada etiqueta ideológica deve, quando conversando sobre política nas redes, repetir todas as opiniões pré-formatadas sob o risco de cancelamento. Mudar de opinião é, igualmente, um risco.

O fenômeno não é natural — é construído. Faz parte da transformação de política em tribalismo e tem duas origens. Começa nos algoritmos — o software que decide aquilo que aparecerá para nós no Twitter, no Face, no YouTube. Como o objetivo desta inteligência artificial é que fiquemos a maior quantidade de tempo na plataforma, ela mostra aquilo que, acredita, vai nos deixar ligados. Sempre acerta.

Na sequência há nossa interação com o software. Como buscamos likes, como buscamos atenção, aprendemos que tipo de mensagem devemos escrever para levantar a onda.

O resultado final é pasteurização. E à pasteurização dos argumentos no debate público se segue a intolerância com qualquer desvio. Daí a patrulha ideológica.

Mas esta não é aquela patrulha ideológica dos anos 1970 — é nova. Funciona como pegar uma onda no mar. Vemos uma, duas, três pessoas atacando uma quarta. Os argumentos para o ataque — sempre os mesmos. E, claro, o crime costuma ser de desvio ideológico. É ver que a onda está crescendo. No quinto ataque, fica óbvio que basta se juntar àquelas vozes e muita gente lerá seu tuíte, dará um like. É pegar a onda.

Com frequência, muitos argumentam que são só ‘críticas’. É um ‘debate’ ocorrendo. Não é. Há uma moeda corrente nas redes sociais que é a do like, dos curtires diversos, o polegar para cima, o coração clicado. Ícones positivos, muitas vezes, para simbolizar a aprovação a uma torrente que expressa emocionalmente raiva ou ódio. Aquela curtida vale muito psicologicamente, assim como a pedra lançada na forma de tuíte — ou vídeo, ou post — sinaliza outra coisa muito importante. Sinaliza, para quem é do grupo, que quem apedrejou subscreve os argumentos congelados e imutáveis. Sinaliza virtude.

Não é debate por um motivo muito simples. Quem é cancelado não vê argumentos. Vê, isto sim, num longo deslizar do dedo contra a tela uma lista infindável de ataques. Não dá pra ler. E não há chance de uma resposta agradar. Ou ajoelha no milho ou se cala e espera passar. Não houve um convite à reflexão, não há a possibilidade de diálogo.

Acontece todos os dias. Cancelamentos são uma febre, um dos muitos sinais de que o debate público quebrou. Estamos nos transformando numa sociedade movida pela pulsão de morte e incapaz de se fascinar com novas ideias.


O Globo: Redes sociais entram na mira de parlamentares bolsonaristas

Projetos de lei tentam impedir a remoção de conteúdos de redes sociais e até pedidos de explicação e investigação sobre bloqueios de contas

Marlen Couto, O Globo

RIO — As grandes plataformas de tecnologia entraram na mira de parlamentares e autoridades alinhados ao presidente Jair Bolsonaro da chamada “ala ideológica”. A ofensiva ocorre por meio de projetos de lei para impedir a remoção de conteúdos de redes sociais e até de pedidos de explicação e investigação sobre bloqueios de contas.

Sonar:Após suspensão de conta de bolsonarista, Mário Frias quer explicação do YouTube

O movimento ocorre após plataformas como Facebook, Twitter e YouTube adotarem medidas para restringir publicações desinformativas ou que incitem a violência. Em um mês, foram excluídos perfis do ex-presidente americano Donald Trump após publicações incentivando o ataque ao Congresso dos EUA, postagens de Bolsonaro e do Ministério da Saúde receberem selos do Twitter com aviso de conteúdo desinformativo e o canal bolsonarista Terça Livre foi excluído do YouTube.

Como mostrou O GLOBO na última segunda-feira, a atuação das redes também motivou uma reação do governo Bolsonaro para pressionar as empresas de tecnologia em fóruns internacionais. Em território nacional, a estratégia ficou a cargo principalmente de parlamentares da ala governista do PSL.  

Desde que canais do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, entre eles o Terça Livre, foram removidos por violar regras da plataforma, aos menos três projetos de lei já foram protocolados na Câmara para limitar o poder das redes na moderação de conteúdo. O primeiro foi apresentado no mesmo que dia que os canais foram excluídos pelos deputados Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL/SP), Filipe Barros (PSL/PR) e Helio Lopes (PSL/RJ). 

O texto propõe ao alterar o Marco Civil da internet para condicionar a decisões judiciais a remoção de postagens ou redução de seu alcance. Na prática, as plataformas não teriam mais autonomia para seguir suas próprias políticas de uso.

Os deputados Caroline de Toni (PSL/SC) e Daniel Silveira (PSL-RJ) também apresentaram projetos. O da deputada permite a responsabilização civil de provedores que “rotularem conteúdos que expressem a opinião do usuário”. Já o de Silveira veda a retirada de mensagens “em desacordo com as garantias constitucionais de liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento”. Ao GLOBO, o deputado argumenta que propôs o projeto porque houve uma “rápida escalada de perseguição seletiva nas redes”. 

— Não foi proposto que elas não possam remover. Elas podem, desde que, exista um caso concreto que afete o ordenamento jurídico e moral. O que vem ocorrendo é que estas empresas apenas agem em detrimento de perfis com ideologias políticas antagônicas as de seus CEOs — defendeu.

Leia: Droga Raia é alvo de bolsonaristas nas redes após cancelar anúncios no Terça Livre

Em outra frente, a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) acionou na última quinta-feira a Procuradoria Geral da República (PGR) para que abra um inquérito civil e ingresse com ações judiciais, com pedido de liminar, para o imediato restabelecimento dos canais de Allan dos Santos. No dia seguinte, sem citar o blogueiro, o secretário de Cultura, Mário Frias, determinou que a Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual (SDAPI), vinculada ao órgão que comanda, notifique o YouTube para que explique os atos de suspensão de usuários da plataforma.  

Allan dos Santos é investigado nos inquéritos que apuram a disseminação de fake news e a organização e financiamento de atos antidemocráticos. O YouTube afirma que os conteúdos do canal Terça Livre não seguiram suas diretrizes. A conta já havia sido notificada duas vezes sobre o descumprimento, uma delas por postar um discurso de Trump sobre o Capitólio, e tentou utilizar uma conta reserva para burlar as políticas da plataforma. Apesar das remoções, Allan dos Santos já voltou a postar vídeos no YouTube utilizando uma conta pessoal que soma mais de 70 mil inscritos.

Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD), João Guilherme Bastos destaca que a reação bolsonarista ganhou força principalmente com a remoção dos canais de Allan dos Santos pelo impacto financeiro que a medida pode provocar na rede de apoio ao presidente nas redes, enquanto as plataformas adotam políticas pouco transparentes para remover conteúdos. 

— Essa reação aparentemente desproporcional tem uma raiz material muito nítida, que é o financiamento de toda uma rede de extrema direita que vai perder fonte de renda. Por outro lado, embora no caso do Terça Livre você tenha um ator que de forma recorrente violou políticas e termos de uso, essas políticas não são claras. É simples falar que vai remover postagens de quem divulgar fake news, mas a questão é decidir quem vai determinar ou não o que é uma fake news — alerta Bastos.

Pedro Doria: O Terça Livre é só o começo

Marco Aurelio Ruediger, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP/FGV), vê a reação de parlamentares bolsonaristas como uma estratégia voltada para as próximas eleições presidenciais e também critica a falta de transparência das empresas do setor: 

—  As políticas não são claras e alimentam a possibilidade desse tipo de manobra. Ao mesmo tempo, há um temor de ação mais duras das plataformas. Esse é um movimento preventivo da base do presidente já pensando em 2022 para garantir que seu espaço de atuação fique desobstruído nas redes. O que querem no fundo é que não haja nenhum tipo de moderação.  

Procurados para comentar as reações de autoridades alinhadas a Bolsonaro, Facebook, Twitter e YouTube não quiseram se manifestar. Sobre a remoção de canais do Allan dos Santos, o YouTube reiterou que se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios.


Cora Rónai: A sensação de alívio com o silêncio de Trump

'New York Times' publicou lista dos insultos que o ex-presidente postou na hoje banida conta do Twitter

Na semana passada, na esteira da posse de Biden, o “New York Times” publicou uma extensa lista dos insultos que o ex-presidente postou, desde a sua campanha, na hoje banida conta do Twitter: “The complete list of Trump’s Twitter insults (2015-2021).” É uma lista imensa, dividida por assuntos e nomes de desafetos, que pode ser consultada cronologicamente ou em ordem alfabética — e é um documento histórico inestimável, não tanto pela espantosa capacidade de um único homem em produzir desaforos, mas pela não menos espantosa paciência do corpo político em tolerá-los.

Algum dia, no futuro — isso se tivermos futuro, e chegarmos a tempos menos distópicos —, alguém vai se deparar com essa lista e vai se perguntar como um país do tamanho e da grandeza dos Estados Unidos aceitou tanta besteira, tanta estupidez e tanto ódio; mais ou menos como hoje nos indagamos como os romanos toleraram figuras como Calígula, Nero ou Domiciano. (Ou nos indagávamos, pelo menos, na época em que se estudava o Império Romano; mas o nosso passado anda tão distante hoje quanto qualquer futuro.)

No momento, a melhor coisa a fazer é aproveitar a sensação de alívio que reina nas redes sociais livres da presença nefasta do ex-presidente. Ela me lembra o momento em que as obras do metrô terminaram aqui perto de casa, depois de um tempo interminável de britadeiras. Não é um silêncio real, apenas o fim de um barulho insuportável.

Emissoras de televisão jamais repetem nomes de estabelecimentos ou marcas comerciais porque sabem o valor da publicidade, e não estão aí para fazer propaganda de graça para ninguém. O público frequentemente se irrita com a prática — “um hotel da Zona Sul do Rio de Janeiro”, “um shopping de São Paulo” — mas ela continua, assim como a pixelização de logotipos e de etiquetas. Deve haver um bom motivo para isso.

Nomes próprios, porém, são marcas.

(No caso do ex-presidente dos Estados Unidos, literalmente, e hoje ainda afixada a dez hotéis, 19 clubes de golfe e mais de 30 prédios residenciais ao redor do mundo: vai ser curioso observar os efeitos da política sobre esse mundo cafona de ostentação e dourados.)

Eu me pergunto se nós, jornalistas, não deveríamos seguir o exemplo das emissoras em relação a produtos, e deixar de mencionar com tanta frequência os nomes dos idiotas perversos que nos governam.

Será que precisamos mesmo repercutir tudo, sempre, o tempo todo? Será que precisamos repetir à exaustão nomes que se tornaram tóxicos?

Quando um decreto é assinado pelo presidente da República, por exemplo, é óbvio de quem se trata: só há um presidente em exercício. Só há um governador em exercício em cada estado, um prefeito em cada cidade e assim por diante.

Um antigo samba de Ataulfo Alves já resumia o caso:

“Fale mal / Mas fale de mim / Não faz mal

Quero mesmo assim / Você faz cartaz pra mim / O despeito seu / Me põe no apogeu.”

Eu sei, eu sei. A sugestão não é prática nem exequível; mas bem que podíamos tentar diminuir a cacofonia e retomar as rédeas das nossas pautas sequestradas.

No fundo, só estou pensando em voz alta, sonhando com o dia em que as britadeiras vão ser desligadas aqui também.


Hélio Schwartsman: O que fazer com as sandices que líderes populistas publicam nas redes sociais?

Mesmo longe de uma boa solução, banimento é preferível à censura estatal pura e simples

Uma das características da onda de extrema direita que varre o mundo é a instrumentalização da liberdade de expressão para propagar notícias falsas e discursos virulentos. A reação de muitos dos democratas tem sido a de defender uma relativização das proteções à liberdade de expressão. Será que é esse mesmo o caminho?

Vale lembrar que, durante ao menos dois séculos, versões razoavelmente fortes da liberdade de expressão desempenharam papel central na consolidação de algumas de nossas melhores instituições, como a democracia e a ciência. Não penso que devamos correr o risco de retrocesso nessas áreas só porque experimentamos um quinquênio de dissabores.

O que fazer, então, com as sandices que líderes populistas como Donald Trump e Jair Bolsonaro publicam em suas redes sociais? A pior solução seria atribuir a algum órgão de governo o poder de decidir o que vai ou não ser publicado. Felizmente, não há muitos defendendo esse caminho.

Uma saída mais popular tem sido pressionar as big techs para que exerçam seu poder de edição e banam ou ao menos reduzam a visibilidade dos discursos mais radicais/violentos. Isso é decerto preferível à censura estatal pura e simples, mas fica ainda longe de uma boa solução.

A reclamação de trumpistas e bolsonaristas de que a exclusão das redes também configura censura procede só em parte. Se o cidadão deve ter a liberdade de dizer o que quer, empresas devem ter a de escolher o que vão ou não publicar. Melhor ainda se elas forem muitas, ideologicamente diversas e se pautarem por regras racionais, claras e previamente anunciadas.

A principal dificuldade desse arranjo é que ele concentra poder demais nas mãos dos hoje poucos atores empresariais. Mas não deixa de ser um avanço trocar o quase impossível paradoxo da tolerância (precisamos tolerar os intolerantes?) pelo problema mais tratável de como lidar com monopólios.


Demétrio Magnoli: Progressistas que celebram cancelamento da conta de Trump buscam pacto com plutocratas da internet

É hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo as mídias sociais às mesmas regras de responsabilidade da imprensa

 “Não me diga que ele foi banido por violar as regras do Twitter”, tuitou o opositor russo Alexey Navalny sobre Trump, “eu recebo aqui ameaças de morte todos os dias, há anos, e o Twitter não bane ninguém (não que eu peça isso)”. Twitter, Facebook e congêneres são veículos de crimes contra a humanidade. Em Mianmar, serviram à campanha de limpeza étnica dos militares contra a minoria rohingya e, na Índia, à operação oficial de anulação da cidadania dos muçulmanos de Assam. Os progressistas que celebram o cancelamento da conta de Trump buscam uma aliança faustiana com os plutocratas da internet.

Navalny erra apenas ao definir como censura o gesto do Twitter. Censura é, sempre, um ato estatal contra a liberdade de expressão. O princípio da liberdade de expressão abrange também o direito de empresas privadas de se dissociar de discursos que consideram intoleráveis. Mas que ninguém se engane: no caso das plataformas globais de mídias sociais, os banimentos seletivos não derivam de padrões éticos mas de cálculos de negócio.

O ato extremo do Twitter, bem como a suspensão temporária imposta a Trump pelo Facebook, inscrevem-se numa estratégia defensiva.

Nos EUA, por razões distintas, as gigantes das mídias sociais entraram na mira de democratas e republicanos. No horizonte, encontra-se a hipótese de fragmentação legal dos oligopólios da internet. O “cancelamento” do presidente que termina seu mandato à sombra da invasão do Capitólio destina-se a lustrar a imagem das big techs perante o novo governo democrata e sua maioria parlamentar.

Um jorro celebratório acompanhou o banimento de Trump —e não só nos EUA. Os progressistas brasileiros não ocultaram suas esperanças de que o cancelamento virtual siga seu curso até Bolsonaro. No fundo, acalenta-se a perspectiva de grande barganha: vocês excluem as vozes odientas da direita nacionalista; nós evitamos a derrubada da muralha que protege o vosso castelo.

O nome da muralha é impunidade, o privilégio que separa as big techs dos veículos tradicionais de imprensa. As empresas jornalísticas estão sujeitas à responsabilização judicial pelos discursos que publicam. Se, nesta coluna, calunio ou difamo alguém, a Folha compartilha a responsabilidade pelo discurso criminoso —e, por isso, um editor supervisiona meu texto. Twitter, Facebook et caterva, pelo contrário, não devem explicação alguma sobre as mensagens difundidas por seus usuários. São, portanto, livres para auferir lucros de campanhas de ódio movidas por governantes, partidos, igrejas ou organizações extremistas. Para eles, o crime compensa.

O privilégio da impunidade ancora-se na alegação de que as empresas de mídias sociais não exercem funções editoriais: suas páginas eletrônicas seriam folhas em branco preenchidas por usuários soberanos. Desde sempre, as regras de uso sinalizaram a falsidade. Há um “editor oculto”, um software, que demarca os limites da palavra permitida. Mas o banimento de Trump escancarou a paisagem. As big techs fazem curadoria de conteúdo, de acordo com critérios políticos de conveniência. No império de Putin, ninguém bloqueia as ameaças à vida de Navalny; nos EUA do triunfo democrata, cancela-se a conta do presidente em desgraça.

Jack Dorsey, do Twitter, e Mark Zuckerberg, do Facebook, os Editores Supremos, deixaram impressões digitais na escrivaninha, na tela, nas paredes e no teto.

É hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo-os ao mesmo universo de regras de responsabilidade que regula a imprensa. Ah, isso implodiria o modelo de negócio dos gigolôs da xenofobia e do extremismo? Que pena...

Desconfio, porém, que os progressistas preferem a aliança faustiana. Quem liga para Navalny, os rohingya ou os muçulmanos de Assam? Eles são, afinal, um preço baixo a pagar pela exclusão de Trump e Bolsonaro.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Cora Rónai: As redes sociais concentram poder demais

Sua ação trouxe à luz o debate que, há tempos, elas tentam evitar

O presidente dos Estados Unidos é, em tese, o homem mais poderoso do mundo. Entre outras coisas, ele tem acesso a um aparato de comunicação sem igual: jornalistas das principais organizações de mídia do planeta cobrem a Casa Branca 24 horas por dia, ávidos por ver o que faz e ouvir o que tem a dizer. Seu nome é pronunciado incontáveis vezes por dia em boa parte dos 7.117 idiomas falados por seres humanos. O que não lhe falta é palanque. Mas Donald J. Trump considera-se mudo sem as suas redes sociais — e, de certa forma, está mudo mesmo.

Ele foi expulso da ágora contemporânea, da praça onde se travam hoje as discussões, onde se marcam encontros informais e ataques terroristas, passeatas e golpes de Estado.

Não tem mais conta no Twitter, e suas contas no Facebook, no Instagram, no Snapchat e até no Shopify e Pinterest estão suspensas. O Parler ainda o tolera — mas a rede foi banida das lojas do Google e da Apple e, mais importante, dos servidores da Amazon, o que a tirou efetivamente do ar.

As redes sociais demoraram muito para tomar uma decisão em relação a Trump e, quando tomaram, erraram a mão. O que acabaram fazendo foi chamar a atenção para o poder descomunal que está concentrado em meia dúzia de empresas. Tinham outra saída? Objetivamente, não: a democracia dos Estados Unidos estava sob ameaça. Mas a sua ação trouxe à luz, de maneira espetacular, o debate que, há tempos, elas tentam evitar — afinal, qual é o grau de responsabilidade que têm em relação ao que é postado nas suas páginas?

Ninguém ainda descobriu a resposta exata para essa pergunta. As redes sociais são um fenômeno recente, e estão se desenvolvendo de forma complexa demais para caber em moldes conceituais e legais antigos. Elas não podem ser responsabilizadas por tudo o que publicam, mas também não podem ser irresponsáveis socialmente no grau em que tem sido.

Onde traçar a linha?

Antes de convocar seus apoiadores para “protestos selvagens”, Trump escreveu muita mentira no Twitter, atacou muita gente, gerou muito ódio; a invasão do Capitólio não foi consequência de apenas 240 caracteres. No dia 26 de maio do ano passado, o Twitter pela primeira vez marcou dois tuítes de Trump com advertências sobre a sua confiabilidade: ele estava pondo em questão os votos enviados pelos correios, e desmoralizando o processo eleitoral. Mas foi pouco, e foi tarde.

Como deveriam ter agido?

Ninguém sabe. Não há fórmula. Não há legislação. Onde fica a fronteira entre a liberdade de expressão e a ameaça pública? Até que ponto podemos ser tolerantes com a intolerância?

Uma boa providência para começar seria proibir chefes de Estado de ter contas individuais tout court. Quem assume um cargo desses representa um país, e um país não pode correr o risco, interno ou externo, de ficar submisso aos caprichos de um único tuiteiro maluco. Trump não é o Fulano Trump, é — até o próximo dia 20, ou até ser impichado, o que vier antes — o representante máximo dos Estados Unidos. Assim como Jair Bolsonaro não é (infelizmente) apenas um bolsonaro qualquer.

As redes sociais concentram poder demais; o que era óbvio agora está escancarado, e a discussão sobre a sua regulamentação está na ordem do dia.


Alon Feuerwerker: E o interesse nacional?

O debate público sofre quando é inteiramente capturado pela fratura política, e daí a independência do pensamento entra em bloqueio. Uma consequência é o efeito-manada, as pessoas são arrastadas pela turba e frequentemente acabam indo contra o próprio interesse.

Acontece agora, no episódio do cartão vermelho das big techs para Donald Trump.

Alguns até pararam para pensar “o que eu ganho se as big techs, sob a batuta - ou com medo - da Casa Branca e do Capitólio, tiverem o poder de eliminar qualquer um do espaço de formação da opinião pública?”. Entretanto são poucos os sinceramente preocupados. A esmagadora maioria do campo antitrumpista, lá e aqui, vibrou.

Mas e nós? Se o Brasil fosse um jogador potente na corrida global da alta tecnologia, ainda vá lá. Poderíamos ser sócios minoritários da inédita concentração de poder pelos monopólios tecnológicos sediados nos Estados Unidos.

Porém neste jogo nós temos força apenas relativa. Interessa ao Brasil que decisões de tamanha gravidade sejam tomadas sem que ninguém mais no mundo, além da Casa Branca e do Capitólio, possa influir?

Trump não foi apenas banido das redes. Sites e aplicativos ligados ao campo político que ele representa passaram a ser excluídos do acesso ao hardware indispensável às operações. E a gravidade da coisa foi tanta que levou líderes como Angela Merkel, insuspeita de simpatia ao trumpismo, a demonstrar insatisfação.

Um ponto de quem apoia o banimento é as redes sociais serem propriedade de empresas privadas, podendo portanto decidir o que vão, ou não, deixar postar. Mas se as empresas devem ter essa liberdade, junto deve vir a responsabilidade pelo conteúdo que elas permitem veicular em suas plataformas.

Além do mais, elas operam em regime de monopólio. Não cabe aqui o argumento do livre-mercado.

As big techs querem ser tratadas estritamente como empresas de telecomunicações e tecnologia? Então o jogo será outro. A companhia telefônica não pode ser responsabilizada pelos que dizemos ao telefone, ou escrevemos nas mensagens de texto. Em compensação, tampouco pode cortar a linha do assinante por discordar do que ele diz ou escreve.

Só o Estado, por meio da Justiça, deve ter tal poder. Exatamente pelo fato de Estado e a Justiça não serem propriedade privada. Pelo menos na teoria.

Talvez seja ilusão pedir que este debate aconteça aqui no Brasil em torno de princípios e convicções, num tempo em que eliminar o adversário é a única regra válida do jogo político, um jogo aliás no qual ambos os lados se pretendem gladiadores em defesa da liberdade. Seria cômico se não fosse trágico.

Então que pelo menos não sejamos inteiramente submissos como nação a um poder que nos escapa.

Somos um país grande, com território, população e recursos econômicos suficientes para pretender um bom grau de autonomia nacional e projeção global. Mas este episódio exibe qual é talvez nosso principal obstáculo: a absoluta incapacidade de enxergar por cima das momentâneas disputas políticas e entender onde está o interesse nacional.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

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Publicado originalmente na revista Veja 2.721, de 20/01/2021


Fernando Schüler: As big techs assumiram a curadoria. Civilização ou distopia?

Ideia da liberdade de expressão nasceu do ceticismo moderno; quem detém a verdade e quem são seus juízes?

Por um bom tempo alimentamos a ideia de que a internet as redes sociais forjariam uma imensa ágora digital. Ainda do projeto Gwan, que conheci nos anos 1990, quando estudava em Barcelona. Tudo funcionava no sótão de um velho prédio no bairro Gótico. A ideia era forjar música misturando sons de todo o planeta para ser transmitida em todos os meios, nas primeiras horas do ano 2000.A ideia era ótima. Bach se fundiria com o nosso samba de roda e todos dançaríamos de mãos dadas, durante um minuto, no que seria o primeiro ato da "sociedade civil mundial". Era isso que embalava a turma nas madrugadas frias de Barcelona, naquele sótão empoeirado e forrado de computadores.Na largada do novo milênio nada aconteceu e nunca mais ouvi falar daquela música. Mas as redes sociais explodiram e de algum modo mantiveram viva a ideia da ágora universal.

As redes funcionariam com base na neutralidade, no mais amplo pluralismo, e as regras não envolveriam discriminação de conteúdos. Viria daí diálogo e aproximação dos divergentes.

O resultado, todos sabemos, foi o contrário. Ao invés da aproximação veio a guerra digital. Mesmo assim se preservou a ideia de que as redes manteriam sua neutralidade. E resistiriam aos grupos difusos e cada vez mais fortes na opinião pública e nas empresas.

Intuo que chegamos a um ponto de virada. As redes parecem ter jogado a toalha. É o que sinalizam os desligamentos recentes. Eles envolvem um claro juízo político e vão muito além da punição que precisa ser feita, dentro da lei, para quem promove violência, morte, suicídio, ódio racial ou religioso e afins, seja de que lado político for.

As redes agiram assim porque podem. São empresas privadas, suas regras, vagas e passíveis de ampla interpretação. Um amigo tentou me convencer que deveríamos confiar na sua curadoria e "bom senso" e que cortar estas e não aquelas contas seria sempre o melhor para a civilização e para democracia.

Não sei por que (talvez seja a idade), tornei-me cético demais para acreditar nessas coisas. Aliás, depois de anos lendo sobre as origens da liberdade de expressão, descobri que ela nasceu precisamente do ceticismo com a "verdade" e a infalibilidade de seus juízes.

É o sentido da frase desconfiada da chanceler Angela Merkel, dizendo "problemático" o banimento do presidente americano das redes e afirmando a liberdade de expressão como um "bem fundamental", a ser disciplinado pela esfera pública, não por um punhado de empresas.

É provável que o caminho à frente seja o da segmentação. Políticas de exclusão incentivam o surgimento de novas redes. As empresas, é previsível, agirão para preservar seu quase monopólio, e o estrangulamento do Parler é mostra disso. A longo prazo, não creio que seja possível. Difícil imaginar três ou quatro empresas funcionando eternamente como curadoria do mundo.

Há algo inútil nisso tudo. Este tema já era discutido por John Milton na sua crítica à censura de livros, na Inglaterra do século 17. A liberdade corre como água e vai buscando novos caminhos. A forte migração para novas plataformas, como o Signal e o Telegram, é um sinal. Como disse a jornalista Elizabeth Brown, "os problemas e as ideias que animam as pessoas não vão embora, apenas vão para o subsolo".

Doses crescentes de vigilância social para impor a verdade trazem o velho problema da ladeira escorregadia. É preciso continuamente fechar cada espaço que se abre. No fim você precisa de uma ilha cercada por tubarões para manter tudo sob controle. Não é assim que as coisas funcionam em nossas sociedades abertas.

A ideia das ágoras universais vai naufragando ao sabor da radicalização e intolerância de um mundo que elas ajudaram a criar. Talvez elas tenham sido, desde sempre, uma ideia fácil demais para um mundo complicado como o nosso.

A melhor aposta é a pluralidade de redes. A liberdade, no zigue-zague da história, vem sempre ganhando o jogo. Pode-se desligar uma conta, aqui e ali. Mas não pode desligar o cérebro das pessoas nem o seu direito de pensar com a própria cabeça.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Ana Carla Abrão: Antes tarde

Além da autorregulação é preciso regras que inibam lá e cá atitudes como as de Trump

Numa decisão polêmica, mas acertada, o Twitter decidiu encerrar em caráter definitivo a conta do presidente americano Donald Trump. O motivo alegado foi o risco potencial de incitamento à violência dado o uso da plataforma pelo presidente para disseminar falsas notícias (fake news) e promover as mobilizações que levaram à invasão do Capitólio por manifestantes pró-Trump. Tardia, a decisão reflete uma reação que deverá aquecer as discussões já em curso sobre a necessidade de se regular as grandes empresas de tecnologia, em particular as plataformas de mídias sociais e seus algoritmos de curadoria.

Ao contrário do que querem fazer crer os defensores do presidente americano ou os críticos às ações do Twitter – e também do FacebookSnapchat e Instagram – lá e aqui, é a defesa da democracia o pano de fundo nessa discussão. Muito além das questões antitruste ou dos temores legítimos em relação ao tamanho (e ao poder de mercado) que as plataformas digitais adquiriram ao longo do tempo, é a capacidade de desinformar e de serem usadas como ferramenta de manipulação em massa a grande preocupação. 

Não surpreende, portanto, que os mais indignados e vocais contra as ações de banimento sejam os mesmos que se posicionam em favor dos nossos tristes anos de ditadura, marcados pela censura e pela tortura, negada por eles. Parece paradoxal, mas não é. Afinal, a capacidade de produzir fake news e de disseminá-las de forma rápida e em grande escala são o caminho para a manipulação e, consequentemente, para se colocar em xeque o regime democrático. A história – atual e pregressa – está cheia de exemplos analógicos de situações semelhantes.

Não são poucos os estudos e artigos acadêmicos que têm se debruçado sobre o tema. Um deles foi divulgado há cerca de um mês pelo Centro de Filantropia e Sociedade Civil da Universidade Stanford. Elaborado sob o um programa que estuda “Democracia e a Internet” o relatório, que tem como um dos autores o cientista político Francis Fukuyama, faz uma ampla discussão sobre a escala e o papel das plataformas digitais. Ao final, o trabalho sugere um caminho inovador – e de implementação mais rápida. Fugindo (sem eliminar sua necessidade) das receitas tradicionais de fomento à competição, emerge a proposta de abertura dessas plataformas para que empresas independentes de tecnologia possam acessá-las diretamente e fazer a curadoria de notícias, sob orientação do próprio usuário e em contraposição aos algoritmos internos de inteligência artificial que hoje fazem essa escolha de forma automática. Devolve-se assim ao cidadão o controle sobre aquilo que ele lê.

A urgência dessa agenda vem dos efeitos da escala e do poder de alcance dessas empresas, que vão muito além dos aspectos econômicos. Eles são também políticos. A curadoria de notícias, via amplificação ou supressão de mensagens – e a consequente possibilidade de alavancar e rapidamente disseminar a desinformação – pode ter efeitos diretos sobre as escolhas políticas, influenciando as decisões e o comportamento dos cidadãos. Daí o impacto deletério sobre a democracia, que deixa de ter como eixo a decisão livre e informada dos eleitores e passa a ser subjugada por processos pouco transparentes – senão falsos – e reações dirigidas. Mais, conforme definido por David Lazer e autores no artigo A ciência das fake news, a disseminação de notícias falsas por um presidente da república que toma emprestada a credibilidade – não a sua (quando a tem), mas a da instituição (a Presidência da República) – para distribuir como verdade aquilo que não é, valida a desinformação e garante sua amplificação.

Sim, a decisão de banir o presidente Trump e evitar que ele continue a manipular cidadãos por meio da desinformação é uma decisão correta do Twitter. Fazê-lo só agora corrobora que ele foi longe demais e esteve livre demais para usar as plataformas digitais (e seu posto de presidente dos Estados Unidos) para desinformar, incitar o ódio e avançar contra as instituições americanas. Mas isso também significa que precisamos, além da autorregulação que agora surge, de uma regulação que iniba de forma estrutural atitudes como essas – lá e cá. 

A maior das motivações não é a econômica e tampouco o combate a uma eventual afronta à liberdade de expressão, argumento falacioso de bolsonaristas órfãos de seu guru abjeto. A motivação principal para a regulação e a abertura dessas plataformas é a necessidade de se definir critérios que vão muito além das atuais boas intenções das empresas. Elas hoje podem estar se guiando pela premência de interromper um processo nefasto e inaceitável de ameaça à democracia. Mas há que se lembrar que boas intenções não são substitutos para uma boa regulação e menos ainda para as instituições que a defendem. 

Essa é uma constatação que pode ter vindo tarde nesse campo. Mas tarde é sempre melhor do que nunca. 

*Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.


Joel Pinheiro da Fonseca: Redes sociais aceitaram sua responsabilidade, mas precisam de critérios mais claros

Se critério das empresas for a preferência ideológica ou pressões sociais do momento, coitada da liberdade de expressão

invasão do Capitólio por extremistas, apesar de sem precedentes, não foi inesperada. É resultado preparado por anos de fake news, desinformação, discurso de ódio e teorias de conspiração nas redes sociais. Depois da longa negligência, a resposta das redes foi rápida. Donald Trump está banido da maioria delas, assim como, aparentemente, centenas de outros influenciadores de extrema direita.

Com a consolidação de um oligopólio nas redes —Google, Facebook e Twitter controlam todas as principais— essas empresas passam a ter um poder similar ao de grandes grupos de mídia no passado: o poder de varrer uma opinião ou pessoa do debate público pelo mero silêncio. Basta não dar espaço para alguém se expressar que essa pessoa desaparecerá da discussão e das mentes do público. Sem Twitter e fora da presidência, o dano que Trump pode causar é drasticamente reduzido. Quanto a influenciadores que nunca tiveram altos postos na política ou na mídia, sua capacidade de influenciar o debate cai a próximo de zero quando são banidos das redes.

Há, no entanto, diferenças. Na mídia tradicional, o poder de dar voz e silenciar era exercido na seleção de quem teria o limitado espaço da página de um jornal ou na grade de uma TV. A rede social, ao contrário, seleciona os poucos que não terão espaço, pois nela cabe todo mundo.

A decisão de excluir alguém de algo a que todos têm acesso exige uma justificativa muito mais sólida do que a de dar a alguns privilegiados algo que é escasso. No caso de Trump, sobram justificativas válidas: seus tuítes pregavam o descrédito de instituições fundamentais da democracia americana, encorajavam sedição e insurreição. Além disso, por seu cargo e número de seguidores, sua voz é poderosíssima em termos de possíveis consequências práticas. Se um zé-ninguém conclama a derrubada do Congresso, ninguém dá ouvidos. Se é o presidente da República, as mesmas frases se tornam armas perigosas.

Num primeiro momento, a perda de espaço nas redes sociais principais indicava que os extremistas iriam para redes sociais menores, como o Parler. Lá, embora a radicalização seja levada a níveis verdadeiramente alucinados (muitos dos que invadiram o Capitólio são figuras do Parler), a capacidade de influenciar as massas é muito menor. Só que mesmo esses redutos de extremismo estão sendo desbaratados: com boicote de Google, Apple e Amazon, o Parler não sabe se continuará a existir.

O sentimento de vitória esmagadora contra as forças do mal é uma delícia. Mas não é um bom guia. Há indícios de que as redes sociais são muito mais intolerantes com o extremismo de direita do que com o de outras variantes. Que Donald Trump tem sido tratado de maneira mais dura até do que o aiatolá Khamenei, cuja conta de Twitter já pregou o fim de Israel e, mesmo assim, não foi suspensa.

As redes estão se conscientizando da responsabilidade de não permitir que qualquer loucura —ainda mais com consequências perigosas— seja veiculada em suas plataformas. Mas para que isso seja feito de forma justa e evite abusos, precisam desenvolver critérios e mostrar transparência e isonomia em sua aplicação. Se o critério das empresas for a preferência ideológica de seus diretores somadas às pressões sociais do momento, coitada da liberdade de expressão. Hoje, o alvo é justo. Amanhã pode não ser.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.