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Vladimir Safatle: Uma revolução molecular assombra a América Latina
O termo veio pelas mãos de Álvaro Uribe, ex-presidente da Colômbia e líder efetivo da direita linha dura que hoje Governa o país. Diante das inéditas manifestações que tomaram as ruas da Colômbia, fazendo o Governo abandonar um projeto de reforma tributária que mais uma vez passava para os mais pobres os custos da pandemia, não lhe ocorreu ideia melhor do que conclamar os seus à luta contra uma “revolução molecular dissipada” que estava a tomar conta do país. No que, há de se reconhecer, Uribe tinha razão. Normalmente, são os políticos de direita que entendem primeiro o que se passa.
A América Latina, ou ao menos uma parte substantiva do continente, está a passar por um conjunto de levante populares cuja força vem de articulações inéditas entre recusa radical da ordem econômica neoliberal, sublevações que tensionam, ao mesmo tempo, todos os níveis de violência que compõem nosso tecido social e modelos de organização insurrecional de larga extensão. As imagens de lutas contra a reforma tributária que tem à frente sujeitos trans em afirmação de sua dignidade social ou desempregados a fazer barricadas juntamente com feministas explicam bem o que “revolução molecular” significa nesse contexto. Ela significa que estamos diante de insurreições não centralizadas em um linha de comando e que criam situações que podem reverberar, em um só movimento, tanto a luta contra disciplinas naturalizadas na colonização dos corpos e na definição de seus pretensos lugares quanto contra macroestruturas de espoliação do trabalho. São sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social.
De fato, o século XXI começou assim. Engana-se quem acredita que o século XXI começou em 11 de setembro de 2001, com o atentado contra o World Trade Center. Essa é a maneira como alguns gostariam de contá-lo. Pois seria a forma de colocar o século sob o signo do medo, da “ameaça terrorista” que nunca passa, que se torna uma forma normal de governo. Colocar nosso século sob o signo paranoico da fronteira ameaçada, da identidade invadida. Como se nossa demanda política fundamental fosse, em uma retração de horizontes, segurança e proteção policial.
Na verdade, o século XXI começou em uma pequena cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid, no dia 17 de dezembro de 2010. Ou seja, começou longe dos holofotes, longe dos centros do capitalismo global. Ele começou na periferia. Nesse dia, um vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi decidiu ir reclamar com o governador regional e exigir a devolução de seu carrinho de venda de frutas, que fora confiscado pela polícia. Vítima constante de extorsões policiais, Bouazizi foi à sede do Governo com uma cópia da lei em punho. No que ele foi recebido por uma policial que rasgou a cópia na sua frente e lhe deu um tapa na cara. Bouazizi então tacou fogo em seu próprio corpo. Depois disso, a Tunísia entrou em convulsão, o Governo de Ben Ali caiu, levando insurreições em quase todos os país árabes. Começava assim o século XXI: com um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava assim a Primavera Árabe. Com um ato que dizia: melhor a morte do que a sujeição, com uma conjunção toda particular entre uma ação restrita (reclamar por ter seu carrinho de venda de frutas apreendido) e uma reação agonística (imolar-se) que reverbera por todos os poros do tecido social.
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Desde então o mundo verá uma sequência de insurreições durante 10 anos. Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, Gillets Jaunes, Tel-Aviv, Santiago: são apenas alguns lugares por onde esse processo passou. E na Tunísia já se via o que o mundo conheceria nos próximos 10 anos: sublevações múltiplas, que ocorrem ao mesmo tempo, que recusam centralismo e que articulavam, na mesma série, mulheres egípcias que se afirmavam com seios a mostra nas redes sociais e greves gerais. A maioria dessas insurreições irá se debater com as dificuldades de movimentos que levantam contra si as reações mais brutais, que se deparam com a organização dos setores mais arcaicos da sociedade na tentativa de preservar o poder tal como sempre foi. Mas há um momento em que a repetição acaba por gerar uma mudança qualitativa. Dez anos depois, ela ocorreu e foi possível de ser vista no último domingo, no Chile.
No último domingo, o Chile elegeu uma nova Assembleia Constituinte. Depois de manifestações massivas em outubro de 2019 que fizeram as ruas chilenas queimarem até o Governo parar de matar sua própria população e aceitar convocar um processo constitucional, o Chile elegeu 155 deputados constituintes, dos quais 65 são independentes, ou seja, não vinculados a estrutura partidária alguma, mas unidos, como os 24 constituintes da Lista del Pueblo, por um “Estado ambiental, igualitário e participativo”; 79 constituintes são mulheres, sendo a única Assembleia Constituinte da história mundial a ter maioria de mulheres; 18 são povos originários, sendo que todos estão presentes (desde os Rapanui da Ilha da Páscoa até os Mapuches). A direita, que ansiava alcançar ao menos um terço para poder barrar as modificações constitucionais, terá apenas 37 deputados.
O caráter absolutamente único do processo chileno encontra-se no fato de ele se produzir como institucionalização insurrecional. Ele foi resultado de uma insurreição que exigiu imediatamente uma nova institucionalidade. Os islandeses tentaram isso, quando a crise econômica produziu profundas mobilizações populares que terminaram por produzir uma nova constituição. No entanto, o Parlamento não reconheceu a nova carta, abortando o processo.
Tal excepcionalidade andina deve ser compreendida à luz do que foi a via chilena para o socialismo. O Governo de Salvador Allende (1970-1973) procurou realizar um programa marxista através de uma mutação progressiva da vida social que preservava largas partes da estrutura da democracia liberal. Muitos criticaram tal estratégia depois do golpe, mas há de se lembrar de suas razões. Era a maneira dos chilenos e chilenas impedirem a militarização da vida social, como normalmente ocorreu em todos os processos revolucionários até agora. Havia uma questão real que o Chile procurou resolver inovando.
De certa forma, esse processo interrompido retoma agora 47 anos depois. Desde as revoltas estudantis no Governo Bachelet, o Chile viu lideranças estudantis se tornarem deputados e deputadas para arrancar do Congresso uma reforma que tornava gratuito o sistema público de ensino. Agora, eles fizeram o movimento inédito de só saírem das ruas com uma constituinte nas mãos, o que os tunisianos só conseguiram anos depois da formação do primeiro Governo pós-ditadura. Ao acoplar os dois processos, o Chile permitiu que o entusiasmo insurrecional comandasse o processo constitucional, institucionalizando sua revolução molecular.
O espectador que vê tudo isso do Brasil pergunta-se o que ocorre conosco. No entanto, erram aqueles que pensam que tal dinâmica não chegará no Brasil. Ocorre que ela encontrará uma situação muito mais dramática. Pois o Brasil é o país no qual as forças da reação organizaram-se de forma insurrecional. São setores expressivos da população que foram e irão às ruas pedir golpe militar e defender o fascismo de quem nos governa. Dentro da lógica da contrarrevolução preventiva, o Brasil, à diferença de outros países latino-americanos, foi capaz de mobilizar as dinâmicas de um fascismo popular. Por isso, o cenário tendencial entre nós é o de uma insurreição contra outra insurreição. Uma revolução fascista contra uma revolução molecular dissipada. Melhor seria estarmos preparados para tanto.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-19/uma-revolucao-molecular-dissipada.html
Malu Gaspar: Nas redes bolsonaristas, Pazuello vira ‘herói’ do governo na CPI da Covid
Se não convenceu boa parte do público, pode-se dizer que o depoimento de Eduardo Pazuello funcionou em pelo menos um universo: os grupos bolsonaristas no WhatsApp e no Telegram. Entre esses seguidores, a decisão de não usar o habeas corpus fornecido pelo STF para ficar calado e até confrontar os senadores em alguns momentos fez sucesso.
Ao longo de todo o depoimento, as listas pró-Bolsonaro no WhatsApp foram inundadas com mensagens que indicavam a narrativa a ser reproduzida nas redes. “A primeira farsa dos opositores caiu hoje. Apostaram no silêncio, mas o ministro veio preparado e falou muito”, disse um dos textos disseminados nas redes. “O ex-ministro Pazuello está destruindo todas as narrativas fabricadas contra o governo federal naquele circo que está acontecendo no Senado”, diz outra mensagem.
Para o zap bolsonarista, Pazuello – que várias vezes se referiu às declarações e ordens de Bolsonaro durante a pandemia como “coisa de Internet” – “detonou” senadores acusados de corrupção e “provou” que o governo não tem responsabilidade pela tragédia pandêmica.
Solidários ao ex-ministro várias vezes chamado de “herói”, muitas postagens diziam ter sido um ultraje até mesmo a convocação do general, que esteve à frente do Ministério da Saúde no período em que morreram mais da metade das 445 mil vítimas da Covid-19 no Brasil.
“Humilhante para o general Pazuello, um homem sério, ser sabatinado por esses crápulas!”, desabafou um bolsonarista em um grupo do Telegram. “Quero deixar minha indignação aqui com essa CPI. Estão a todo o momento denegrindo (sic) a imagem do ministro Pazuello e do nosso presidente”, escreveu uma apoiadora.
O fato de Pazuello blindar completamente o presidente da República de qualquer responsabilidade pelo fracasso na pandemia também pesou a favor do ex-ministro nas redes. Para os seguidores, o general foi um “guerreiro” que defendeu Bolsonaro de conspiradores.
Dentre eles, o mais atacado foi o relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), mas também sobrou para o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), e outros parlamentares.
“General Pazuello, um oficial general extremamente bem preparado, conseguiu com sua exposição dos fatos, relacionados à sua atuação como Ministro da Saúde, provocar um golpe certeiro nas armações e manipulações de Renan Calheiros ao longo da CPI”, disse uma mensagem assinada por um suposto comandante militar.
No Telegram, cada vez mais frequentado por bolsonaristas, uma lista de apoiadores de Eduardo Pazuello foi criada na tarde de quinta-feira, enquanto ele falava à CPI.
Setenta pessoas já aderiram e passaram a receber artes e cards com as inscrições #Somos Todos Pazuello e ilustrações já com visual de campanha eleitoral. Até o agravamento da pandemia sacá-lo do cargo, Pazuello cogitava concorrer ao governo de Roraima ou do Amazonas. O grupo também criou um perfil no Instagram para homenageá-lo.
Fonte:
O Globo
Malu Gaspar: Nas redes bolsonaristas, suposto complô para matar o presidente vira denúncia bombástica
O vídeo em que a jornalista Leda Nagle repercute a postagem de um perfil falso do diretor-geral da Polícia Federal sobre uma suposta conspiração do STF e de Lula no atentado contra Jair Bolsonaro em 2018 incendiou as redes bolsonaristas nesta segunda-feira.
O vídeo de pouco mais de 2 minutos surgiu nas redes logo pela manhã, quando Leda leu os tuítes da conta falsa de Paulo Maiurino, já suspensa pelo Twitter, em uma live privada.
"Minha Nossa Senhora do perpétuo socorro (…) Eu não sei o que fazer, fico tão assustada com isso tudo! Porque isso não é política, né? Isso é tudo, menos política", disse a jornalista, depois de ler toda a postagem falsa em nome de Mairuino.
Imediatamente, foram disparadas mensagens em massa reproduzindo a fake news, e apontando Leda Nagle como a responsável pela suposta apuração.
“A ordem para matar Bolsonaro partiu do STF e Lula! Diretor da Policia Federal Paulo Maiurino fez declaração que pode provocar uma intervenção no país, assistam! Fonte: Jornalista Leda Nagle”, diz um texto replicado em vários grupos.
No início da tarde, Polícia Federal informou que o perfil do diretor, Paulo Maiurino, havia sido falsificado. Leda Nagle chegou a se desculpar publicamente por ter divulgado a informação falsa, mas era tarde.
A narrativa da conspiração foi multiplicada ao longo de todo dia, acompanhada de memes e reproduções de mensagens com apelos por uma ruptura institucional e ataques críticas ao STF e ao PT.
Numa delas, Adélio Bispo, preso pela facada que deu em Bolsonaro durante a campanha de 2018, aparecia dizendo "eram 11, mas só um deu a ordem".
“Estamos neste momento em guerra. Conforme o chefe da Polícia Federal, foi o STF quem mandou matar Bolsonaro. Exigimos o fechamento e a prisão de todos os membros do STF que estão por trás desse crime”, escreveu um bolsonarista em caixa alta.
“As suspeitas de envolvimento do STF na tentativa de assassinato do presidente, se confirmadas, poderão levar a uma reviravolta completa na atual organização política do Estado Brasileiro. E muitas, muitas prisões serão efetuadas”, apostou outro apoiador do presidente, com mais de 10 mil seguidores no Twitter, em publicação replicada em vários grupos do WhatsApp.
No Telegram, um áudio apócrifo contava sobre um suposto relato do senador Roberto Rocha (PSDB-MA) e de um integrante “barra pesada” do Gabinete de Segurança Institucional que "revelava" outros mandantes da falsa conspiração: Jean Wyllys, José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso.
À noite, quando diversas reportagens denunciando as fake news já haviam sido publicadas, o teor das postagens se inverteu.
Aí, o link mais compartilhado era o de uma postagem em um site bolsonarista acusando "gabinete de ódio" da esquerda de “linchar” Leda Nagle e promover fake news a respeito dela.
Em outro vídeo bem popular, o jornalista Alexandre Garcia, também ligado a Bolsonaro, defende a colega. "A ironia disso é que muita gente que está caindo de pau sobre ela inventa notícia todos os dias. Não tem moral para gozar alguém que foi enganada."
Junto com as postagens, uma mensagem bastante reproduzida dizia: "Leda Nagle, o Brasil te Ama".