Real

Inflação e dívidas | Foto: Denys Kurbatov/Shutterstock

Nas entrelinhas: A insensatez e o efeito manada

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

A Marcha da Insensatez, da historiadora Barbara Tuchman, que venceu o prêmio Pulitzer por duas vezes, trata de situações nas quais seus protagonistas contrariaram seus próprios interesses, nos casos da Guerra de Tróia, da Reforma Protestante, da Independência dos Estados Unidos e da Guerra do Vietnã. Nesses episódios, as lideranças políticas mais poderosas tomaram decisões catastróficas. Por isso, o livro é um clássico da política.

Tuchman descreve a desastrosa atuação dos papas do fim do século XV e início do XVI, a arrogância da aristocracia inglesa frente às colônias americanas e, por fim, a cegueira da elite político-militar dos EUA na Guerra do Vietnã. O mundanismo — o enriquecimento do alto clero — dividiu a Igreja e embalou a Reforma de Lutero e Calvino. A inflexibilidade e a cobiça da aristocracia inglesa resultaram na perda de suas Colônias na América do Norte. A Guerra do Vietnã levou os Estados Unidos a uma de suas mais profundas e longas crises políticas.

No Brasil, estamos vivendo um momento parecido. Estão em xeque nossa ordem democrática e a institucionalidade da economia. Ulysses Guimarães, o grande patrono da nossa Constituição Cidadã, quando alguém se queixava do Congresso, costumava dizer que a safra de parlamentares seguinte seria pior. Sua pilhéria virou uma maldição, porque o grau de deterioração das práticas políticas no Congresso só aumenta.

Depois que os políticos do Centrão, aliados ao presidente Jair Bolsonaro, passaram a dar todas as cartas no nosso Parlamento, um câncer corrói as entranhas da política brasileira, o chamado orçamento secreto, que cedo ou tarde será mais um caso de polícia. Para completar, o bilionário fundo eleitoral destinado aos partidos nas eleições está se transformando num obstáculo à renovação dos costumes políticos.

Criou-se uma situação de absurda desvantagem entre quem tem mandato, e usufrui de verbas do Orçamento da União, estruturas de gabinete e recursos abundantes de campanha, e aqueles que serão candidatos e não têm as mesmas possibilidades. Como se não bastasse, agora vem o pacote de bondades da PEC da Eleição, que será a bandeira eleitoral de quem pleiteia a reeleição.

Seu objetivo seria mitigar os efeitos da inflação na vida da população de mais baixa renda, mas isso é apenas uma cortina de fumaça para o que realmente está acontecendo. São medidas de curto prazo, de caráter populista, que não vão resolver os problemas da população, porque o rombo fiscal que provocará será um fator acelerador da própria inflação, corroendo os seus benefícios.

Mais graves são as consequências em termos institucionais, como o desrespeito ao calendário eleitoral e o abuso do poder econômico nas eleições, de um lado, e a ruptura na institucionalidade de nossa economia, devido à falta de responsabilidade fiscal, de outro. A insegurança jurídica provocada por emendas à Constituição casuísticas, aprovadas à toque de caixa, ampliam o cenário de incertezas em relação ao futuro da própria moeda, o real.

A três meses das eleições, essas medidas que estão sendo aprovadas no Congresso desnudam um descolamento dos partidos políticos e seus representantes dos verdadeiros interesses da sociedade. São um fator de enfraquecimento da própria democracia. Já passamos por outras situações semelhantes, ao longo da história, que nos levaram a profundas crises.

A hiperinflação da década de 1980, que coincidiu com a transição à democracia, ainda hoje nos cobra pedágios, pois nunca mais conseguimos ingressar num ciclo longo e sustentável de crescimento, mesmo depois de o Plano Real ter estabilizado a nossa moeda e as privatizações terem se realizado, para restabelecer o equilíbrio das contas públicas. A Lei de Responsabilidade Fiscal está sendo rasgada.

Encenação

O preço desse fracasso está anunciado: é a iniquidade social que explode nas ruas e não será superada na campanha eleitoral com esse pacote de medidas proposto pelo governo. O Senado aprovou a PEC das Eleições com apenas um voto contrário, o do senador José Serra (PSDB-SP), um economista experiente, que governou São Paulo, conhece as contas públicas e entende de política de desenvolvimento.

Casa de ex-ministro e ex-governadores, muitos dos quais candidatos nestas eleições, o Senado protagonizou um acordão sem precedentes entre o presidente Bolsonaro, o Centrão e a oposição, num pacto do tipo “nos locupletemos todos”. Com toda a certeza, não será a Câmara que irá restaurar a moralidade.

O misancene que está sendo feito pela oposição, cujos parlamentares estão docemente constrangidos, apenas disfarça o efeito manada. A palavra de origem francesa — “mise en scène” — significa encenação. É o que está acontecendo nas manobras de obstrução da votação na Câmara. É muito difícil para um parlamentar com mandato em risco votar isoladamente contra as benesses anunciadas no pacto. Não teria como explicar aos eleitores.

O presidente Jair Bolsonaro aposta todas as fichas na PEC da Eleição para reverter a desvantagem em que se encontra em relação à preferência das parcelas mais pobres da população, principalmente no Nordeste. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva acredita que as medidas o beneficiarão, porque estão sendo adotadas de última hora, diante do risco de derrota eleitoral do governo. É a marcha da insensatez.

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Pedro S. Malan: Apesar de tudo, a esperança não morre

Espero que não nos deixemos abater por desalento, desencanto e excessivo ceticismo

"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço” (Ítalo Calvino, "Cidades Invisíveis"). Angústias acerca do Brasil de hoje me levam a recorrer a Calvino, a quem voltarei ao final deste artigo.

Há mais de 26 anos temos uma moeda dotada de relativa estabilidade de poder de compra. Há mais de 21 anos temos um regime cambial de taxas flutuantes que vem servindo bem ao Brasil, bem como um regime monetário de metas de inflação que também vem servindo bem a este país, que até o Real detinha o desonroso título de campeão mundial da inflação acumulada (do início dos 1960 ao início dos 1990).

Há mais de 20 anos deveríamos também ter um regime fiscal sólido. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada pelo Congresso Nacional em maio de 2000, consolidava relevantes avanços dos anos 90: a renegociação das dívidas de 25 Estados e cerca de 180 municípios, a reestruturação do sistema financeiro por meio do Proer e do Proes, este último voltado para os bancos estaduais, então mais de 30. E a implementação rigorosa do programa fiscal para 1999-2001, anunciado pelo governo federal ainda em 1998.

A LRF foi, desde o início, contestada por aqueles, numerosos, que acreditam que a responsabilidade fiscal é incompatível com responsabilidade social e com crescimento econômico. Trata-se de grave equívoco, traduzido de forma eloquente na famosa expressão “gasto é vida”. É a ideia de que a maior parte do gasto público, na verdade, não é gasto, mas um “investimento no futuro” – ainda que se trate de custeio, salários, isenções, deduções e desonerações de impostos e gastos financiados com créditos subsidiados. É a crença de que a expansão da demanda promovida pelo governo cria sempre sua própria oferta doméstica. Esse caminho foi definido em 2006, acentuado na crise de 2008-2009 e levado ao extremo em 2014 para assegurar a reeleição.

As consequências foram contundentes: a taxa de crescimento médio anual do PIB nesta segunda década do século 21 será praticamente zero, a renda per capita do brasileiro em 2020 será inferior à de 2010. Não foi, está claro, por falta de aumento do gasto público, que superou em muito a inflação e o crescimento real da economia.

Já discuti neste espaço as causas subjacentes à pressão por aumento dos gastos públicos no Brasil. Não pode haver dúvida de que essas pressões continuarão, até porque incluem razões legítimas, que têm que ver com nossas deficiências nas infraestruturas física e humana (educação e saúde) e com a necessidade de combater a pobreza e a assimetria de oportunidades que está na raiz da desigualdade social que caracteriza o Brasil, tão dramaticamente escancarada pela covid-19.

Sem a pandemia, a situação fiscal, que constitui nosso calcanhar de Aquiles macroeconômico, já era precária. A covid exigiu respostas emergenciais, e justificadas. O estado de calamidade aprovado pelo Congresso tem vigência até o fim deste ano, mas não tenhamos ilusões: as pressões por maiores gastos, novos programas (não apenas o Renda Brasil) e novos investimentos não cessarão com o fim do ano-calendário e, com ele, talvez, do estado de calamidade. A expressão “pós-covid”, usada para expressar o elusivo desejo de uma volta, tão rápida quanto possível, ao normal, é enganosa. O mundo pós-covid começou, na verdade, no início de 2020; suas consequências, aí incluídas as respostas de governos, e as expectativas que estas possam ter gerado, estarão conosco por muitos e muitos anos. A margem para velhos ou novos erros diminuiu de forma drástica.

Os três níveis de governo estão próximos do limite de sua capacidade – de tributar, de bem gastar, de se endividar, de reformar, de gerir, de investir. Os governantes hesitam em empreender ações dolorosas, mas necessárias, para assegurar o rumo apropriado para o crescimento de longo prazo. Os problemas se agravam e se acentuam as incertezas sobre a sustentabilidade da dívida e dos déficits públicos.

Volto a Calvino: a citação da abertura é precedida da fala de outro interlocutor: “É tudo inútil se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito”. Espero que um número expressivo de brasileiros – suficiente para fazer a diferença – se recuse a acreditar que “é tudo inútil”, que nosso último porto como país só pode ser a cidade (polis, política) infernal para a qual a corrente nos estaria levando. Que não nos deixemos abater por desalento, desencanto e excessivo ceticismo. E que escolhamos – ao longo dos próximos e cruciais dois anos, e ainda muito adiante – o segundo dentre os caminhos contemplados por Calvino: reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC


Folha de S. Paulo: Liberalismo primitivo de Guedes não leva a crescimento, diz Lara Resende

Um dos formuladores do Real, economista sustenta em livro que debate econômico no país está superado

Vinicius Torres Freire e  Marcos Augusto Gonçalves, da Folha de S. Paulo

Em meio a resultados ruins da economia e ao pânico do coronavírus, André Lara Resende lança livro com teses inovadoras, critica a política econômica e afirma que o debate macroeconômico no país está superado.

Atropelada pela pandemia do novo coronavírus, a recente divulgação do PIB brasileiro de 2019 (1,1%), que selou uma sequência de três anos de crescimento irrisório, após dois de recessão, levantou questões incômodas para os defensores do atual receituário econômico. O fiasco não foi nenhuma surpresa para o economista André Lara Resende: “A atual política econômica baseia-se num liberalismo primitivo, o ‘laissez-faire’ de Milton Friedman dos anos 1960/70”, diz em entrevista à Folha, concedida em São Paulo.

Com passagem pela vida acadêmica e experiência como diretor do Banco Central, negociador da dívida externa, presidente do BNDES e um dos formuladores do Plano Real, ele considera um erro acreditar que basta retirar o Estado da economia e equilibrar as contas públicas para que a confiança dos investidores privados seja recuperada e a economia volte a crescer.

“Não há recuperação possível nessas condições”, afirma.

Se a situação da economia já se mostrava desalentadora, a ameaça do novo coronavírus tornou o cenário dramático. O pânico nos mercados financeiros e a possível recessão mundial suscitam apelos de ação dos governos —proposta que encontra eco nas ideias do economista.

“Está claro que o coronavírus vai provocar uma parada brusca da economia mundial”, diz Lara Resende, que vê pouco espaço para a ação dos bancos centrais em relação às taxas de juros, mas prescreve atuação “inteligente” do Estado. “O tema do coronavírus ressalta a imperiosa necessidade de aprovar verbas emergenciais para a saúde. Cortar num momento como esse, ‘para compensar as perdas de receitas do petróleo’ [como foi aventado], beira o surto psicótico”, diz.

Pintado por guardiões do “status quo” econômico como uma caricatura de defensor quase incondicional do gasto público, ele expõe em seu recém-lançado “Consenso e Contrassenso: Por uma Economia não Dogmática” teses que questionam os mitos da austeridade inscritos nas tábuas da teoria hegemônica. Em seus textos, traça uma história crítica do pensamento e de fatos econômicos e explica por que a disciplina precisa ser repensada a fundo. Não são teses inventadas por ele, mas que teriam sido silenciadas e agora retornam ao debate internacional.

Na visão do autor, Estados que emitem a própria moeda não têm, sob determinadas condições, restrições financeiras. Podem gastar quanto quiserem, por meio de emissão monetária ou por endividamento a uma taxa de juros que têm como controlar. Pergunta-se: em decorrência, não haveria inflação, disparadas de juros e fugas de credores do governo, que deixariam o país ou buscariam outros ativos que não títulos da dívida pública?

Não, dentro de certos limites, responde o economista, que fez seu doutorado no MIT, na mesma turma de Ben Bernanke, presidente do Fed à época da crise de 2008. O governo —argumenta— poderia gastar até o limite em que consumo e despesas de investimento não pressionassem a capacidade de produção.

O país também teria de limitar com muita prudência o endividamento externo, pois não poderia emitir para cobrir esse passivo. De resto, o gasto tem de ser eficiente, definido talvez por uma agência independente. “O que desancora a inflação é crise, o Estado se desorganizar, tanto financeira quanto politicamente, o déficit em conta corrente, o aumento populista do salário mínimo, os choques de preço de energia”, diz.

E os credores, “o mercado”, não cobrariam mais para financiar a parte da despesa coberta por endividamento, com o que a dívida pública cresceria sem limite? Não. O Banco Central tem o poder de definir a taxa de juros abaixo da taxa de crescimento econômico. Com isso, a dívida cresceria menos do que a economia, e os donos do dinheiro não teriam para onde fugir, a bom preço.

De onde saiu a intuição ou a demonstração para a tese de que não haveria inflação? Da reação dos BCs à quebradeira de 2008. Na sequência do desastre, observou-se uma gigantesca expansão monetária nos EUA e na Europa, quando os bancos centrais, na prática, direta ou indiretamente, financiaram instituições e financistas quebrados e, a seguir, empresas e mesmo seus governos, com emissão de moeda. O resultado de tal política não foi inflacionário.

Segundo Lara Resende, há um ponto cego na teoria econômica, incapaz, há décadas, de explicar as relações entre moeda e atividade econômica. A sombra se tornou um mito, em parte por interesse, em parte por incompreensão do caráter histórico da teoria econômica. Na verdade, a história mudou faz alguns séculos, com a criação da moeda fiduciária. E os bancos criam moeda ao concederem empréstimos.

Se haveria tantos ganhos e tão poucos perdedores, porque a resistência à mudança? O establishment da teoria econômica resiste, bem como os emissores de moeda privada, ou seja, o sistema financeiro.

Lara Resende evita entrar em detalhes sobre como poderia ocorrer na prática a mudança para um tal regime de política econômica, transição que no caso do Brasil teria de superar traumas históricos de endividamento hiperinflacionário, um quase consenso prático e teórico a favor da austeridade e um edifício constitucional e legal em tese erigido para promovê-la, aliás sem muito sucesso, para dizer o menos.

Um problema seria que o “país vive um estresse pós-traumático com os planos de investimento do período do PT, incompetentes ou corruptos”, diz o economista.

Acredita, no entanto, que a mudança de visão é inevitável, tanto por pressão da quarta revolução tecnológica quanto pela previsível absorção do debate internacional mais atualizado, “como costuma acontecer em praças colonizadas”.

Certamente que tal projeto exige tempo e um debate que não interdite a divergência —ele acredita que ocorra hoje um obstáculo para tal, inclusive na mídia, “que subscreve a política em vigor”.

O economista não se mostra disposto a assumir funções públicas, mas se sabe que tem mantido conversas com lideranças políticas, em especial o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Leia trechos da entrevista.

A atual política econômica preocupa-se com o aspecto fiscal, mas na sua visão está orientada por pressupostos equivocados, como a expectativa de que o crescimento virá como consequência de um ajuste das contas públicas. Formou-se, no entanto, um certo consenso de “liberais” em torno do ministro Paulo Guedes. O que isso nos diz sobre o estágio do debate macroeconômico no Brasil?

A política econômica atual baseia-se num liberalismo primitivo, o “laissez-faire” de Milton Friedman dos anos 1960/70, no qual o monetarismo simplório da Teoria Quantitativa da Moeda foi substituído pela tese da “austeridade fiscal expansionista”. Sustenta-se que basta retirar o Estado da economia e equilibrar as contas públicas para que a confiança dos investidores privados seja recuperada, e a economia volte a crescer. Trata-se de um duplo equívoco.

Primeiro, porque no mundo contemporâneo, mais do que nunca, um Estado competente é condição para o crescimento. Tanto para garantir serviços públicos de qualidade, como para o bom funcionamento da economia competitiva, a ação do Estado é indispensável. Segundo, porque a tentativa de equilibrar as contas públicas, a curto prazo e a qualquer custo, asfixia o setor privado com impostos distorcidos, inviabiliza os investimentos públicos e paralisa serviços básicos. Não há recuperação possível nessas condições.

O pânico gerado pelo novo coronavírus agrava o cenário. O que esperar?

Está claro que o coronavírus vai provocar uma parada brusca da economia mundial. Os bancos centrais não têm mais muito espaço com a taxa básica de juros, mas podem minorar uma nova crise de contração do crédito privado, através de recursos para compra de dívidas privadas.

Mais uma vez, o que faria diferença seria a ação coordenada das políticas monetária e fiscal. É imperiosa a necessidade de aprovar verbas emergenciais para a saúde. Cortar, num momento como esse, “para compensar as perdas de receitas do petróleo” [como foi aventado], beira o surto psicótico.

Em sua visão, a reação dos bancos centrais à crise de 2008 demonstrou que as visões macroeconômicas em vigor no Brasil estão ultrapassadas. Por quê? 

A reação à crise de 2008 deixou patente que não existe uma restrição natural para a emissão de moeda. Ao menos quando há capacidade ociosa e o crédito bancário (isto é, a emissão de moeda privada) está contido, a emissão de base monetária não provoca inflação. Os principais bancos centrais emitiram como nunca, multiplicando a base monetária por fatores superiores a 15 vezes, sem provocar vestígio de inflação. Pelo contrário, mais de uma década depois, as economias avançadas continuam perigosamente próximas da deflação. Não pode haver prova mais cabal de que a emissão de moeda não provoca inevitavelmente inflação. O experimento do chamado “quantitative easing” salvou o sistema financeiro e implodiu a macroeconomia estabelecida.

A restrição à emissão de moeda pelo Estado sempre foi uma restrição política. Trata-se de uma opção política por restringir os gastos públicos e abrir espaço para os gastos privados. O comércio e a indústria sempre pressionaram pela expansão da liquidez na economia, mas ao mesmo tempo procuraram impor freios aos gastos considerados conspícuos e ilegítimos do Estado.

Enquanto prevaleceu o padrão-ouro, resolvia-se o problema sem liberar o Estado para emitir sem lastro. Com o fim do padrão-ouro e a desmoralização definitiva da Teoria Quantitativa da Moeda, depois de 2008, uma nova restrição para os gastos públicos precisava ser criada. Os economistas passaram, então, a defender que haveria um limite superior para a relação entre a dívida pública e o PIB.

O livro de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, “This Time Is Different”, de 2009, sustenta que, a partir de uma dívida equivalente a 70% do PIB, a economia se desorganizaria. Inúmeros países, entre eles o Japão, os EUA, e mesmo o Brasil, já passaram desse limite, sem qualquer sinal de apocalipse econômico.

Alberto Alessina, da Universidade Harvard, cunhou a expressão “austeridade expansionista” para defender, contra toda a evidência histórica, que o corte das despesas públicas e do aumento dos impostos não seria recessivo, mas ao contrário, estimularia os investimentos e a economia. Agências internacionais, como a Comissão Europeia e o FMI, subscreveram a nova tese e passaram a prescrever os programas de ajustes fiscais como o único caminho para a retomada do crescimento.

Suas teses parecem não evidenciar um perdedor, embora atinjam o establishment científico da economia e assustem quem teme populismos. Quais os motivos para tamanha resistência? 

Toda mudança de paradigma enfrenta grandes resistências. Ordenamos o mundo segundo as histórias que contamos e que se tornam de aceitação generalizada. A disrupção, para usar um termo em moda, das narrativas estabelecidas é profundamente perturbadora e ameaça seus titulares e beneficiários. Reconhecer que o governo não tem restrição financeira e que deveria fazer uso dessa faculdade para investir, de forma inteligente e produtiva, quando há desemprego, capacidade ociosa e uma flagrante carência de todo tipo de serviços públicos não é exatamente uma pauta revolucionária. Muito pelo contrário, é a receita keynesiana clássica, que pautou a política econômica do pós-guerra.

Nova é a consciência de que a taxa de juros básica está sob controle dos bancos centrais e que pode ser fixada abaixo da taxa de crescimento da economia, garantindo assim que a relação dívida/PIB não irá explodir, ainda que haja déficits fiscais a curto prazo. Nova é a evidência de que a dívida interna pode ser emitida com juros muito baixos ou até mesmo negativos.

Grande parte das teses que sustento tem longa tradição na história do pensamento econômico. Embora intelectualmente superiores, foram politicamente derrotadas e relegadas ao esquecimento. Diferentes concepções do que é a moeda e de como controlar os gastos do Estado estão por trás das duas grandes vertentes da teoria monetária ao longo dos últimos séculos. Schumpeter, em sua história do pensamento econômico, chamou a primeira dessas vertentes de teorias monetárias do crédito e a segunda de teorias creditícias da moeda. Enquanto as primeiras sustentam que a moeda é uma mercadoria com valor intrínseco, as segundas argumentam que é uma unidade abstrata de crédito.

A vitória política das teorias monetárias do crédito foi uma vitória política da necessidade de impor uma restrição ao financiamento do Estado. Como disse Keynes, no seu clássico “Teoria Geral”, a vitória dos metalistas, liderados por David Ricardo, nas controvérsias monetárias do século 19, conquistou “a Inglaterra tão completamente quanto a Santa Inquisição conquistou a Espanha”. A sua aceitação pelos homens públicos e pela academia suprimiu a controvérsia.

As teorias alternativas deixaram de ser ensinadas e foram de tal forma esquecidas que, ao serem trazidas de volta à discussão, justamente quando toda moeda é fiduciária e está a caminho de se tornar apenas escritural, parecem revolucionárias.

Reação tão virulenta é evidência de que o tema é, como sempre foi, politicamente carregado. O espaço para o gasto público e o gasto privado não é ilimitado, está condicionado à capacidade produtiva da economia. Quando há desemprego e capacidade ociosa, o aumento do gasto público não compete com o gasto privado, pelo contrário, pode levar à recuperação do emprego e da renda. Essa é a essência da tese de Keynes na “Teoria Geral”. Nesse caso, não há efetivamente perdedores, todos teriam a ganhar.

Infelizmente, isso não é verdade quando a economia se aproxima do pleno emprego e o gasto público compete efetivamente com o gasto privado. Além de competir pela capacidade produtiva, o gasto público beneficia setores diferentes da sociedade. É, portanto, uma opção política. Abrir espaço para os gastos privados, pautados pela busca de resultados financeiros, também é uma opção política, mas que a teoria econômica pretende transformar numa opção científica. Como lembra Robert Skidelsky em seu último livro, “Money and Government: The Past and Future of Economics”, nada mais agradável aos homens práticos do que encontrar os seus preconceitos travestidos de ciência. Para deixar claro, os perdedores seriam os emissores privados de moeda, o sistema financeiro.

Essas ideias pedem um aggiornamento da profissão e da opinião pública tamanho que pode parecer prematuro perguntar sobre os problemas operacionais de uma mudança desse porte. Parece necessário que esse programa venha com um novo governo, com credibilidade e robustez política. Como você vê essa perspectiva? 

Para o aggiornamento da profissão e da opinião pública, é preciso antes de mais nada que o debate não seja interditado. Diante do questionamento do velho paradigma, a reação da maioria dos economistas tem sido a de desqualificar a priori as críticas. Sem contestá-las racionalmente, esperam que, com o silêncio dos cardeais, as críticas aos dogmas sejam desconsideradas e acabem esquecidas.

Por isso é tão importante que novas lideranças, tanto acadêmicas quanto políticas, entendam e divulguem a crítica à macroeconomia convencional. A apresentação de um programa coerente de revisão teórica e institucional, baseado no novo paradigma, seria fundamental para dar-lhe visibilidade e credibilidade.

Quais os requisitos econômicos e institucionais para dar início a um plano tal qual o senhor propõe? 

A consciência de que o Estado não tem restrição financeira deve vir acompanhada da imperativa necessidade de torná-lo competente. O Estado não precisa, necessariamente, levantar recursos, via impostos ou emissão de dívida, para gastar. Esta é uma decorrência lógica da moeda fiduciária. É ao mesmo tempo liberadora e assustadora.

Liberadora porque deixa claro que gastos, desde que justificados pelo aumento da produtividade e do bem-estar, podem ser feitos sem a preocupação de equilibrar o Orçamento a curto prazo. Perigosa porque sem a disciplina do Orçamento equilibrado, a vocação patrimonialista do Estado, a tentação populista para gastar de forma irresponsável, corporativista e corrupta, pode se tornar incontrolável.

Por isso é tão importante estabelecer limites rígidos para o gasto na operação do próprio Estado e critérios racionais para os investimentos públicos. A tecnologia já permite criar um Estado desburocratizado, com um custo de operação muitíssimo mais baixo.

A plataforma digital nacional, que proponho no meu livro e que já existe na Estônia e na Índia, é o caminho a ser seguido. Deve-se manter, de toda forma, a exigência de que os gastos correntes do Estado sejam sempre cobertos por receitas tributárias, mas abrir exceção para que os investimentos públicos possam ser aprovados fora do Orçamento. Para isso, deveriam ser avaliados e ordenados por uma agência independente, com base em critérios técnicos de retorno. O problema é que o o país vive um estresse pós-traumático com os planos de investimento do período do PT.

O temor de que a democracia representativa não seja capaz de lidar com o fato de que o Estado não tem restrição financeira é compreensível. Por isso, é preciso adaptar as instituições e rever as regras para a aprovação de gastos públicos.

BC e Tesouro devem ser mantidos como agências à parte, mas teriam de ser coordenados. Como se resolve essa coordenação na manutenção da estabilidade de preços? O senhor poderia precisar qual seria o papel de uma autoridade monetária nessa nova configuração? 

Está comprovado que a taxa de juros é menos eficaz do que se imaginava para o controle da inflação. Quando sistematicamente mantida acima da taxa de crescimento da economia, transforma-se num dos principais fatores de desequilíbrio fiscal. Juros mantidos acima do crescimento potencial da economia são um equívoco de graves consequências.

As políticas monetária e fiscal não são independentes, são intimamente interligadas. Um BC independente que ponha a taxa de juros sistematicamente acima do crescimento potencial da economia sabota o equilíbrio fiscal. O BC é, antes de mais nada, o banqueiro do Tesouro e precisa trabalhar a favor e não contra o Tesouro. Com mercados financeiros líquidos e juros próximos de zero, a distinção entre moeda e dívida pública é menos importante do que parece. Tanto a moeda como a dívida interna são passivos financeiros do Tesouro que requerem uma gestão coordenada.

O controle da inflação é essencialmente uma questão de coordenação das expectativas. A desancoragem das expectativas é quase sempre decorrência da combinação de grandes desvalorizações cambiais, quando o financiamento externo é bruscamente interrompido, com ajustes populistas de salários e a desorganização recessiva da economia. Também do controle artificial de preços, como os de energia. Déficits fiscais transitórios, ainda que expressivos, não provocam necessariamente inflação.

O Tesouro poderia gastar, atendidos os pressupostos de eficiência etc., até o limite em que sua despesa não pressione além da conta a capacidade de produção, que não provoque excesso de demanda. Como se verifica esse limite? 

O principal sinal de que a economia está superaquecida e de que há pressão excessiva da demanda é o desequilíbrio das contas externas. Enquanto houver superávit comercial, há espaço para o crescimento da demanda.

O senhor observa os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo, da corrupção etc. As agências seriam instrumento suficiente para conter o esbulho da nova política? 

A experiência demonstra que o Estado é mau empresário, e as empresas estatais, ainda que possam começar bem, sempre envelhecem mal. Por outro lado, acreditar que seja possível ter uma economia capitalista competitiva sem um Estado competente é uma ilusão. Exatamente porque o setor privado procurará sempre capturar o Estado e as agências reguladoras é que o Estado precisa ser competente em todas as suas dimensões. O Estado despreparado, inchado e corporativista é presa fácil dos interesses específicos e dos “rent-seekers”.

Como diz David Graeber, antropólogo da London School of Economics, em seu “Dívida: Os Primeiros 5.000 Anos”, a ideia do mercado sem o Estado é o mito fundador da teoria econômica. A história da moeda-mercadoria, como uma geração espontânea dos mercados, ensinada nas escolas, não tem fundamento.

O Estado deve ser voltado para o bem-estar da sociedade, não um criador de benesses para os seus ocupantes e de dificuldades para o cidadão. Esta não é, como se sabe, uma tarefa fácil. O Estado brasileiro, apesar de ainda ter alguns focos de excelência, é inchado, burocrático e patrimonialista. Mas asfixiá-lo não é a solução. Acreditar que o Estado jamais poderá ser competente, que deva ter as suas mãos atadas, é um grave equívoco. Trata-se de uma visão forjada durante os anos da Guerra Fria, hoje flagrantemente anacrônica.

No Brasil corremos o risco de um processo de “failed state”. Presenciamos uma situação em que o crime se politiza e a política se criminaliza. Podemos caminhar para uma Venezuela.

*Vinicius Torres Freire, mestre em administração pública pela Universidade Harvard e colunista da Folha;

*Marcos Augusto Gonçalves, editor da Ilustríssima e editorialista da Folha.


Luiz Paulo Vellozo Lucas: O mercado, a política e a cidade

O colapso do projeto de poder lulopetista levou o Brasil para uma crise que se arrasta e se aprofunda em muitas dimensões desde a reeleição de Dilma Roussef em 2014. A necessidade de reformas estruturais no estado brasileiro é reconhecida por todas as forças democráticas que trabalham na politica contra o populismo. Todos sabemos que o abismo fiscal é apenas a ponta visível do iceberg.

Um brutal déficit de confiança institucional foi gradativamente tomando conta dos três poderes e das três esferas federativas. A violência do cotidiano urbano escalou e tornou-se pavor para as pessoas de todas as classes sociais, testemunhando a derrota do sistema de segurança publica. As corporações e grupos de interesse que colonizaram o estado brasileiro vivem em permanente disputa por espaços de poder e renda capturada da sociedade. A luta pelo poder foi ficando selvagem e sem princípios ao mesmo tempo em que as fragilidades éticas e contradições do sistema político e jurídico assim como seus principais personagens foram expostas sem pudor `a sociedade perplexa e indignada.

Reconstruir a confiança no voto e nos mandatos eletivos é uma tarefa complexa e sofisticada, comparável `a reconstrução da moeda depois da hiperinflação. Não se trata de aprofundar a faxina moral de expurgo dos corruptos da política afim de purifica-la. A Operação Lava a Jato faz bem ao Brasil e deve ser apoiada mas, definitivamente, não será através dela que vamos nos salvar da crise. Acreditar na faxina moral e na cruzada contra a corrupção como caminho principal é uma perigosa ilusão que nos tira esperança no futuro e desqualifica o esforço politico no rumo das reformas e por conseguinte no resgate da confiança perdida na democracia.

Precisamos buscar inspiração na ultima grande obra de edificação institucional empreendida pela democracia brasileira que foi o Plano Real. A construção de uma moeda confiável e de um sistema de preços livres e estáveis onde a subida ou queda de preços acontecem sempre em função de variações na oferta e na demanda, pareceu ser, por dez anos desde o fim do regime militar, uma tarefa impossível. Aprendemos errando que não seria com controle de preços, com a Polícia Federal caçando boi no pasto, prendendo gerentes de supermercado e criminalizando a atividade empresarial que o Brasil sairia da hiperinflação. Foi aprendendo a confiar no funcionamento dos mercados e aperfeiçoando continuamente sua regulação que saímos da hiperinflação, construímos uma moeda estável e chegamos ao ponto de possuirmos hoje uma economia monetária moderna, integrada a economia mundial sem ameaça de crise de balanço de pagamentos. Tudo isso foi conquistado com um “hardware” econômico precário em termos de infraestrutura e grandes ineficiências sistêmicas que ainda persistem e que compõem o chamado “custo Brasil”.

Sabemos hoje que a hiperinflação não era causada por comportamentos antiéticos tais como lucros abusivos, ganância ou especulação. O padrão moral das pessoas envolvidas nas atividades de produção e comercialização de bens e serviços tampouco era o culpado pela escalada inflacionaria e pelo descontrole da economia. O Brasil soube evitar o caminho populista de culpar supostos sabotadores, especuladores ou outros vilões, reais ou fictícios, das crises de abastecimento e descontrole inflacionário para empreender a exitosa construção de mercados saudáveis a partir do Plano Real.

O voto está para a política assim como a moeda está para a economia de mercado. Ambos são os “tijolos” do sistema. Reconstruir a credibilidade do voto e a confiança nos mandatos eletivos dependem de uma reforma estrutural do sistema político e partidário em nosso país. Penso que deveríamos adotar uma estratégia gradualista, “de baixo para cima”, a partir das cidades, começando pelas eleições municipais de 2020.

O novo sistema político deveria se basear num tripé: Voto distrital para vereador, candidaturas avulsas e financiamento eleitoral privado de pessoas físicas com limites controlados. Vereadores distritais nas cidades mudarão a logica da governança nas prefeituras enobrecendo o papel das Câmaras Municipais e dando capilaridade ao poder publico local. Candidaturas avulsas, registradas a partir de petições assinadas por um percentual mínimo de 1% dos eleitores do distrito atrairão lideranças genuínas da sociedade para a vida publica promovendo uma renovação da política pela base diluindo a força das máquinas partidárias e enfraquecendo o patrimonialismo. Financiamento privado da campanha, exclusivamente por pessoas físicas, reforça o voluntariado e a dimensão comunitária da politica local. A regulamentação eleitoral e o controle pela Justiça deveriam se concentrar na prevenção e na repressão ao empreguismo e `as relações de clientela com os governos locais.

A regulamentação das regiões metropolitanas e das estruturas de governança compartilhada multimunicipais são fundamentais no sentido de conferir protagonismo e resolutividade ao poder local. Se o governo e o Congresso eleito em 2018 forem capazes de reestruturar a politica e as estruturas de governo subnacionais com logica territorial , a reconquista da confiança será imediata e o reformismo se fortalecerá.

A agenda das reformas é extensa. A reforma politica deve prosseguir com o distrital misto nos estados e em nível nacional. Se houver força politica para reformar e fortalecer o poder local, já para as eleições de 2020, as repercussões no processo reformista mais geral serão extraordinárias.
Temos que começar pela cidade. Imediatamente !

* Luiz Paulo Vellozo Lucas é engenheiro de Produção e professor universitário. Ex-Prefeito de Vitória-ES. Candidato a Deputado Federal pelo PPS-ES.


‘Nosso vício é a dependência do Estado’

Entrevista com André Lara Resende, economista

Alexa Salomão, O Estado de S.Paulo

Para economista, maior problema do País não é inflação, mas a incapacidade de equilibrar as contas públicas

No início do ano, o economista André Lara Resende levantou uma polêmica em torno da relação entre taxa de juros e inflação. A regra prega que juro alto é como a Novalgina: um remédio eficiente para baixar a inflação. Mas o artigo de Lara ia contra esse princípio: taxas de juro altas por muito tempo - como ocorre no Brasil - teriam o efeito inverso e sustentariam a inflação. E mais: a taxa de juros não cede porque o Estado gasta demais. Haveria aí um ciclo vicioso.

Nesse contexto, a reforma da Previdência é essencial. Agora, Lara lança o livro Juros, Moeda e Ortodoxia, em que aborda o tema de maneira mais extensa e mantém a posição: “Nosso vício não é a inflação, mas a dependência excessiva de um Estado patrimonialista e incompetente que é levado a se endividar em excesso”.

A seguir, trechos de sua entrevista.

O sr. poderia explicar o princípio de sua teoria sobre juros e inflação que tanta polêmica causou entre os economistas?

Antes de mais nada, não se trata de uma teoria, mas de uma conjectura. A teoria sempre postulou a existência de uma relação inversa entre a taxa de juros e a inflação. Ou seja, que a elevação da taxa de juros reduz a inflação e vice versa. A teoria monetária predominante - que pauta os bancos centrais - está baseada em metas para a inflação e uma regra para a fixação da taxa de juros.

Simplificadamente, se a inflação sobe acima da meta, o banco central deve elevar a taxa de juros mais do que proporcionalmente a aceleração da inflação. É uma espécie de regra de bolso, que parece funcionar na prática. Acontece que com a ameaça da deflação nos países avançados depois da grande crise financeira de 2007/2008, os bancos centrais se viram impossibilitados de continuar baixando a taxa de juros quando elas chegaram a zero. A teoria levaria a crer que, diante das mãos atadas dos bancos centrais, a deflação se aceleraria. Não foi o que ocorreu. A inflação, assim como a taxa de juros, se estabilizou perto de zero.

E o que isso quer dizer?

Inverte a convencional relação inversa entre a taxa de juros e a inflação. Por isso é tão polêmica. Abre-se a possibilidade de que seja a alta taxa de juros que sustente a inflação. As razões para isso seriam basicamente duas. Primeiro, altas taxas de juros mantidas por longo tempo, sobretudo quando a dívida pública é alta, agravam o desequilíbrio fiscal e levantam dúvidas sobre a solvência a longo prazo do Estado. Segundo, a taxa de juros funcionaria como sinalizador das expectativas de inflação.

O fato de a inflação ter sido tão resistente no início da recessão é um sinal de que talvez essa “conjectura” possa estar acontecendo no Brasil: taxa de juros funciona como sinalizador de inflação?

Sim, é uma possibilidade. Não apenas no Brasil, mas em toda parte hoje, há sinais de que o efeito da recessão e do desemprego sobre a inflação é muito mais fraco do que parecia.

O Brasil, então, no que se refere a inflação é como um alcoólatra: não pode cheirar um copo de álcool que tem recaída?

A inflação não é um vício, mas o sintoma de vícios. Que vícios seriam esses? O principal deles é a incapacidade de garantir o equilíbrio a longo prazo das contas públicas, a tentação permanente de levar o Estado a gastar mais do que ele é capaz de extrair via impostos da sociedade. Nosso vício não é a inflação, mas a dependência de um Estado patrimonialista e incompetente que é levado a se endividar em excesso.

E por que a taxa de juros é tão resistente no Brasil? Desde o Plano Real, nunca foi abaixo de 7%.

Essa é a pergunta que há anos, desde a estabilização do real, tem causado perplexidade e levado os analistas a quebrar a cabeça. A possibilidade de que na raiz da questão esteja um desequilíbrio fiscal estrutural, diante do qual a alta taxa de juros contribua para agravar o problema. É justamente a tese da dominância fiscal.

Mas existe mesmo a chamada “dominância fiscal”: a perda de efeito da taxa de juros sobre o controle da inflação quando o Estado gasta mais do que pode?

Dominância fiscal é uma situação anormal, que se torna tão mais provável quanto mais alta for a percepção da probabilidade de insolvência do Estado e de calote na dívida pública. O Estado brasileiro é muito deficitário, sua dívida como proporção do PIB é alta e cresce rapidamente. Reunimos portanto as condições para o caso de “dominância fiscal”.

“Reunimos” em que sentido? Podemos vir a sofrer dessa anormalidade ou já estamos nela?

Reunimos, no sentido de que as condições para a dominância fiscal estão aí. Se estamos ou não em dominância fiscal é algo que não se pode afirmar categoricamente. Só uma análise aprofundada, a mais longo prazo, pode ajudar a responder à pergunta.

Há uma defesa incondicional da reforma da Previdência para equilibrar as contas e a dívida pública. Qual seria o efeito da reforma sobre os juros?

Como está, o sistema previdenciário é insustentável. O problema não é novo. Quando destacado para estudar a questão no governo FHC, já estava claro que o sistema iria explodir antes de 2020. Algumas modificações foram feitas na idade mínima e chegamos até aqui, mas a queda brusca da taxa de natalidade e o rápido envelhecimento da população tornaram a previdência insustentável. O desequilíbrio é grave e afeta todo o sistema, mas é na Previdência dos funcionários públicos onde a crise é mais aguda. Grande parte do desequilíbrio das contas públicas, sobretudo estaduais e municipais, vem da Previdência dos servidores. Sem dúvida, a aprovação de uma reforma coerente, que garantisse a saúde e a solvência das contas públicas no longo prazo, é fundamental para viabilizar a queda da taxa básica de juros.

 

Fonte: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,nosso-vicio-e-a-dependencia-do-estado,70001846449