Raul Jungmann
RPD | Raul Jungmann: Congresso Nacional, Defesa e Forças Armadas
O Parlamento deve assumir suas responsabilidades e definir os rumos da Defesa Nacional e das Forças Armadas, sob pena de amanhã ser qualificado como agente omisso do nosso destino e dos destinos da defesa e da democracia, avalia Raul Jungmann
À minha Casa de origem, onde durante três mandatos de deputado federal fui membro da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, permito-me dirigir um apelo em favor de um tema premente que volta à pauta legislativa para apreciação parlamentar.
A Presidência da República enviou ao Congresso Nacional a terceira revisão da Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco da Defesa Nacional. Revisados a cada quatro anos, os textos em questão contêm as mais importantes decisões sobre a defesa do país e o papel das Forças Armadas na manutenção da soberania, interesses nacionais, território, recursos, povo e identidade.
A Política estabelece os objetivos da Defesa Nacional; a estratégia, os meios e ações para alcançá-los; e o Livro Branco é um grande inventário – efetivos, equipamento, disposição e recursos – das nossas Forças Armadas, dando transparência à sua estrutura, organização, recursos e promovendo a confiança junto às demais nações.
Tornados norma pela lei complementar 136 /2010, da qual fui relator na Câmara, as três peças visam submeter ao poder político da Nação os objetivos e meios necessários para a dissuasão de ameaças externas, de sustentação ao nosso desenvolvimento e de projetação do poder nacional onde for preciso, em apoio à política externa e à capacidade de dizer não em nome da nação quando for necessário.
Até aqui, o Congresso Nacional tem-se omitido na definição do papel das Forças Armadas nesse abrangente contexto. Exemplo disso, a política e a estratégia anteriores, de 2016 a 2020, foram aprovadas pelo Senado e Câmara em votação simbólica, sem a realização de uma audiência pública sequer, sem debates e sem participação da sociedade.
Aliás, a política de defesa e a estratégia de defesa de 2016, enviadas em 18 de novembro daquele ano, só lograram aprovação em 17 de dezembro de 2018, dois anos após. Não sancionadas pelo presidente Temer, de saída, também não o foram pelo presidente atual, ficando o Brasil com oito anos de defasagem nessa área, contando apenas como os textos de 2012.
A política e a estratégia de 2020 são políticas de Estado que agora já contemplam possíveis conflitos armados na América do Sul; a situação do Atlântico Sul, por onde passam 97% de nossas exportações, atrai interesses de nações ao norte pela descoberta de petróleo no Golfo da Guiné.
A Amazônia segue sob pressão, e o Ministério da Defesa reivindica que seu orçamento passe dos atuais 1,5% do PIB para 2%. Esse cenário precisa ser analisado, debatido, modificado, ou não, e aprovado pelo Congresso Nacional.
Num mundo com riscos de conflito em alta, em que armas baseadas em tecnologias disruptivas são desenvolvidas, em que o sistema de contenção da corrida nuclear vem sendo desmontado e no qual países incrementam seus orçamentos de defesa, nos imaginarmos uma ilha de paz perpétua é ilusão suicida.
Reafirmemos nosso caráter pacífico e o respeito às demais nações. Nossa observância às regras do multilateralismo e aos acordos e tratados internacionais dos quais somos signatários, e à nossa Constituição. Mas é inexorável que nossa ascensão como nação nos conduza a maiores responsabilidades globais em que restrições e ameaças venham a tentar tolher nossos passos.
No momento em que os militares estão no centro do debate, é hora de o poder político assumir suas responsabilidades e definir os rumos da defesa nacional e das Forças Armadas, sob pena de amanhã ser qualificado como agente omisso do nosso destino, defesa e democracia.
*Raul Jungmann é ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança PPública do governo Michel Temer. Escreve no Capital Político.
Raul Jungmann: Internet: regulação ou democracia ameaçada
Ou regulamos a Internet ou a democracia será destruída. Não há meio termo. Do total de 7,6 bilhões de seres humanos que habitam o planeta, 59%, ou 4,5 bilhões, estão nas redes todos os dias. No Brasil, para uma população de 210 milhões, são 231 milhões de celulares, o quarto lugar no mundo.
Enquanto a nossa vida real obedece a normas, sobretudo na esfera pública, a Internet permanece com baixíssimo grau de regulação e é dominada por plataformas gigantes, verdadeiros monopólios em seus nichos de mercado.
Mais que ouro ou petróleo, a posse de dados é o maior ativo da nossa época. E é isso que faz dessas plataformas as companhias mais valiosas do planeta.
Para manterem suas posições de líderes e ampliarem continuamente seus lucros, elas possuem uma ferramenta poderosa, a inteligência artificial, que identifica, reconhece, seleciona e conecta usuários das redes às mensagens dos seus anunciantes – independentemente do conteúdo -, sejam falsas, verdadeiras, racistas, de ódio, fascistas ou manipuladoras.
A verdade, como regra consensual para se conviver em sociedade, é a primeira vítima. Ela não mais existe, mas se multiplicam em versões que viram várias verdades em choque. Em seguida, temos o assassinato da esfera pública, pelo seu contínuo estilhaçamento, além da perda progressiva da vida privada e, por fim, da própria democracia.
Soa, portanto, como escárnio as palavras do Facebook, Google e Twitter sobre a Lei Brasileira de Responsabilidade e Transparência na Internet, conhecida como a lei das fake news, ora em tramitação no Congresso: “o projeto promove a coleta massiva e dados das pessoas (…), pondo em risco a privacidade e segurança de milhões “. Acusam os legisladores justo do delito que cometem!
A principal trincheira na defesa de seus interesses é o direito à liberdade de expressão, como algo absoluto, intocável. De pronto, é preciso lembrar que inexistem direitos absolutos, sem restrições, pois todos as têm. Em segundo lugar, é possível deslocar o debate do direito de expressão para o “alcance do direito à expressão”, o que as companhias também não aceitam, porque afeta negativamente os seus lucros.
Por emponderar os indivíduos, aumentar a produtividade e permitir acesso amplo ao conhecimento, a Internet veio para ficar. Mas, ou ela é regulamentada, e não há como esperar uma solução global, ou o ódio massificado, o extremismo político, a negação da ciência e da cultura via redes (in) sociáveis triunfará.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
O Globo: Relatório sobre opositores ‘é crime muito grave’, afirma Raul Jungmann
Para ele, este tipo de monitoramento é vedado pela lei, e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tem estrutura suficiente para produzir informações de qualidade
Vinicius Sassine, O Globo
BRASÍLIA — O ex-ministro Raul Jungmann afirma que a produção de um dossiê contra opositores do presidente Jair Bolsonaro é um “crime muito grave” e que é preciso identificar e punir a “cadeia de responsabilidade que está acima”. Para ele, este tipo de monitoramento é vedado pela lei, e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tem estrutura suficiente para produzir informações de qualidade.
Por que gasta-se mais com ações de inteligência e de segurança na Presidência da República, na sua visão?
Os protocolos de segurança presidencial elevam o nível de exigência. Numa tentativa de interpretação minha, no caso do presidente Bolsonaro, o fato de ter sofrido um atentado contra a vida dele efetivamente fez com que se ampliassem os dispositivos e o pessoal na área de segurança.
E com inteligência?
Há dois tipos de inteligência. Uma voltada a gerar informações para decisões, para o uso pelo presidente. Isto é feito pelo GSI, com o suporte da Abin. E há a inteligência policial. Isto está na própria lei do Sistema Brasileiro de Inteligência. O controle desta última é feito pelo Ministério Público Federal. Já a inteligência como suporte à tomada de decisão não tem a característica policial, portanto não pode monitorar grupos de pessoas, a não ser com autorização judicial. E está sob controle de comissão do Congresso.
Os dois tipos de inteligência são passíveis de controle.
Sim. O relatório da secretaria do Ministério da Justiça (de monitoramento de grupos antifascistas) só poderia ter ocorrido com autorização e controle judicial. A lei de criação da Abin, que é o órgão central do sistema, não permite monitoramento. Não há autorização. Eles não podem grampear, monitorar, nem com autorização judicial.
Quão grave é a elaboração desse relatório?
Um órgão de inteligência transgrediu a lei, cometeu um delito. É preciso identificar os responsáveis, em que nível houve essa ordem política. Esta ordem claramente atenta contra direitos e garantias constitucionais e, portanto, contra a própria democracia. É um crime muito grave. É preciso identificar a cadeia de responsabilidade. É algo que tem de ser exemplarmente identificado e punido. Preocupa por ter se dado dentro do aparato de Estado.
O presidente fez mudanças na Abin. Havia necessidade?
Não tenho em mãos a avaliação, mas acredito que a Abin, até o momento em que estivemos no governo, tinha uma estrutura. Dispõe de quadros qualificados e gera informações eficientes. Aquela estrutura era suficiente. O que é fundamental é que essa estrutura tem de estar sob o controle do Congresso, obedecer a lei e jamais se confundir com inteligência policial.
Raul Jungmann: O Congresso e a Defesa Nacional
A Presidência da República enviou ao Congresso Nacional a terceira revisão da Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional. Revisados a cada quatro anos, os textos em questão, contêm as mais importantes decisões sobre a defesa do país e o papel das Forças Armadas na manutenção da soberania, interesses nacionais, território, recursos, povo e identidade.
O primeiro dos textos estabelece os objetivos da defesa nacional, o segundo, os meios, e ações, e o terceiro é um grande inventário – efetivos, equipamento, disposição e recursos – das nossas Forças Armadas.
Tornados efetivos pela lei complementar 136 /2010, da qual fui relator na Câmara, as três peças visam a submeter ao poder Político da Nação os objetivos e meios necessários para a dissuasão de ameaças externas, de sustentação ao nosso desenvolvimento e projetar o poder nacional onde necessário em apoio à política externa e à capacidade de dizer não em nome da nação, quando necessário.
Até aqui, o Congresso tem se alienado de assumir suas responsabilidades em dialogar com as Forças Armadas para a definição de seu papel nesse abrangente contexto. Exemplo disso, a política e a estratégia anteriores, de 2016 a 2020, foram “aprovadas” pelo Senado e Câmara em votação simbólica, sem a realização de uma audiência pública sequer, sem debates e sem participação da sociedade.
Aliás, a política de defesa e a estratégia de defesa de 2016, que tiveram minha coordenação, enviadas em 18 de novembro daquele ano, só lograram aprovação em 17 de dezembro de 2018. Não sancionadas pelo presidente Temer, de saída, também não o foram pelo presidente atual, ficando o Brasil com oito anos de defasagem nessa área, pois baseado nos textos de 2012.
Os textos de 2020 são políticas de Estado e têm um alto fator de continuidade com os anteriores, com algumas mudanças. Já contemplam possíveis conflitos armados na América do Sul, a situação do Atlântico Sul, por onde passam 97% de nossas exportações, atrai interesses de nações ao norte pela descoberta de petróleo no Golfo da Guiné. A Amazônia segue sob pressão e o Ministério da Defesa reivindica que seu orçamento passe dos atuais 1.3% do PIB para 2.0.
Num momento em que os militares estão no centro do debate, é hora de o poder político assumir as suas responsabilidades e definir os rumos da defesa nacional e das nossas Forças Armadas, sob pena de amanhã ser qualificado como agente omisso do nosso destino, defesa e democracia.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
O Estado de S. Paulo: 'Armar a população é desqualificar as Forças Armadas', diz Jungmann
Ex-ministro critica medidas armamentistas e cobra debate sobre Política de Defesa, que deve ser entregue nesta quarta, 22, ao Congresso
Ricardo Brandt, O Estado de S.Paulo
Ministro da Defesa em 2016, quando o governo federal elaborou a mais recente Política Nacional de Defesa (PND), Raul Jungmann diz que o presidente Jair Bolsonaro promove um contrassenso com sua política armamentista: “Propor o armamento da população é desqualificar o papel das Forças Armadas”.
Ao avaliar a PND que o governo deve entregar nesta quarta-feira, 22, ao Congresso, Jungmann afirma que o poder político tem se esquivado desse debate e lembra que o texto elaborado no governo Michel Temer nunca foi sancionado - o projeto passou dois anos praticamente parado na Câmara e no Senado, foi aprovadas em dezembro de 2018, mas nunca sancionado. “É a demonstração conclusiva e cabal de que o Poder Político se aliena das suas responsabilidades de definir os rumos, ou seja, as políticas para a Defesa e as Forças Armadas.”
Além da PND, o governo deve entregar nesta quarta-feira a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de Defesa, que traçam diretrizes para a Defesa e o papel das Forças Armadas. Por lei, tem que ser revisados a cada quatro anos.
No documento, o governo Bolsonaro aponta que a América do Sul não é mais considerada “área livre” de conflitos, como revelou o Estadão, no dia 16.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:
Qual a importância da Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa?
Dentre as decisões mais cruciais e de mais alto nível que cabem ao poder político de uma nação está definir a sua estratégia de defesa e o papel das Forças Armadas nessa política, que está sendo enviada agora. O grande problema é que o Congresso se aliena dessa responsabilidade, porque não tem dado a atenção, não tem debatido, não tem dialogado com os militares e trazido a sociedade para essa discussão que é vital para a soberania e para a sobrevivência de uma nação e do próprio Brasil. A expectativa é de que essa alienação seja revertida. Estive com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, conversando para que tenhamos um envolvimento do Congresso diferenciado.
O que o senhor destaca da atual PND?
Em política de Estado não se pode dar cavalo de pau. Aproximadamente 90% do que ali está é continuidade e manutenção do plano em curso, áreas estratégicas, os eixos, os objetivos nacionais de Defesa, as ações estratégicas que são mais de 100, elas têm mudanças, mas têm muito mais continuidade. O que chamou atenção foi exatamente a percepção de maior tensão na América do Sul. É verdade que o Brasil não se envolve há mais de um século e meio em conflitos interestatais. Temos que ter Forças Armadas preparadas, balanceadas e modernizadas.
O governo tem criado cargos exclusivos para militares no Executivo, tem elevado valores de adicionais pagos a militares. Isso é um problema, necessidade ou só política de governo?
Militares sofreram durante muito tempo defasagem salarial. A necessidade de recomposição salarial dos militares era reconhecida, era algo de direito. Precisamos olhar o momento fiscal e econômico do País, tem a questão da pandemia. Então talvez não seja o momento mais adequado, mas é preciso observar os direitos e as condições.
Como o senhor vê a política armamentista do governo?
Infelizmente, recentemente, a divisão de produtos controlados emitiu três portarias fundamentais para o rastreamento de armas, para o controle de armas, para elucidação de crimes e de combate ao contrabando de armas a facções criminosas que foram derrubadas. Isso é um caso clássico, como também se propor o armamento para a população. Ora, qualquer Estado para se constituir tem que ter o monopólio da violência. Da violência legal. E esse monopólio vem exatamente das Forças Armadas. Então propor o armamento da população é desqualificar o papel das nossas Forças Armadas, em relação ao pilar da capacidade posta de defesa da soberania.
O senhor é contra dar armas à população?
O governo tem que prestar mais atenção às questões de segurança pública, o que não se confunde de modo algum, com flexibilização na posse e porte de armas. Isso não é política pública. Muito pelo contrário. Essa é uma política contra a vida. Uma política séria é dar armas a quem precisa e tem habilidades, com o controle, que tem que ser feito e ao mesmo tempo desenvolver um sistema único de segurança pública, que envolva, por exemplo, o Ministério Público, a Justiça, policiais civis, militares, os guardas, as Forças Armadas, estados, municípios, em um esforço coordenado. Porque o crime se nacionalizou e transnacionalizou. Como podem os estados aguentar isso sozinhos? Não tem como.
A falta de recursos e o contingenciamento de verbas são um problema para a Defesa. O governo Bolsonaro muda esse cenário?
O presidente Bolsonaro, do qual fui contemporâneo na Câmara, era o que podemos chamar de parlamentar de nicho. Ele tinha dois nichos: defesa da corporação policial e defesa dos militares. Quando ele chega ao governo, ele não pode preencher o governo a partir do nicho policial, porque eles têm uma formação voltada para o espaço territorial do Estado. Já os militares têm uma formação e preparo nacional. Eles têm conhecimento prático e acadêmico do País. A convivência e o fato de o presidente ser militar e ter certos valores e conceitos trazem para dentro do governo uma quantidade expressiva de militares. Se isso pode ser um problema, a pergunta é, por que o poder político não regulamentou isso? Outra questão em que há uma crítica, e essa eu endosso, é ter militares na ativa em grande quantidade. Chegamos a ter quatro generais oficiais dentro do governo. Aí a possibilidade do problema com a forte presença militar é criar uma correia de transmissão nos quartéis. Mas essa correia de transmissão não aconteceu. As Forças Armadas continuam impecavelmente adstritas aos seus papéis constitucionais. Mas não se pode negar que os quartéis, os militares, estão na política. Acredito que isso não é bom para as Forças Armadas.
O problema de facções criminosas, de milícias, é de Defesa?
Fiquei 22 meses à frente do Ministério da Defesa e tive 11 GLOs (Garantia da Lei e da Orde), 80% delas relativas a crises de segurança. A de maior gravidade foi a que aconteceu no Espírito Santo. Ali foram amotinados que se fecharam dentro dos quartéis armados e estivemos muito próximos de uma situação que eu diria crítica. As Forças Armadas têm essas funções subsidiárias, como as de garantia da lei e da ordem, seja ela em questões de segurança, ou desastres ambientais. Temos um problema crônico que precisa ser enfrentado. Segurança Pública desde a época das províncias até os tempos atuais é responsabilidade dos Estados. Se você não tem responsabilidade constitucional do governo central, também não tem uma política nacional de Segurança Pública. Outro problema é o sistema prisional do Brasil. Uma superpopulação insustentável de se manter, que é controlado por 77 facções criminosas. O sistema não dá condições, é disfuncional. Precisa de reforma para o sistema prisional. Precisa de reforma da política de drogas, mas a sociedade não se interessa por isso. O interesse dela, e com razão por estar vulnerável, apavorada, é com a repressão. Como se mais carro, mais polícia, mais bala, resolvessem o problema. Repressão, aumento de pena, não tem como. Não é por aí.
O fato de ter militares no governo significa que as Forças Armadas estão com Bolsonaro?
É só o uso político e simbólico das Forças Armadas. Elas não estão com Bolsonaro, assim como não estavam com Lula, nem com Dilma, nem com Fernando Henrique, nem com o Itamar. As Forças Armadas estão com a Constituição. E o problema é que, como tem um grande número de militares (no governo), a fala deles é tomada como (se fosse) da instituição. Mas não é. O presidente nunca contou e tenho certeza de que nunca contará com as Forças Armadas para a hipótese dele, ou outro, buscar um atalho autoritário.
Capital Político: Jungmann fala sobre militares, controle da PF e defende semiparlamentarismo
Em entrevista ao Capital Político, o ex-ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, defendeu a autonomia da Polícia Federal, mas com uma reforma no sistema de controles interno e externo da instituição. Ele defende a indicação de um diretor-geral pelo presidente da República, sabatinado pelo Congresso Nacional e com mandato fixo, entre outras mudanças.
Também ex-ministro da Defesa, ele considera que a numerosa presença militar no atual governo tem duas faces. A positiva é o preparo consistente dos quadros profissionais das Forças Armadas, que empresta qualidade à gestão. A negativa é o risco de contaminação política com as presenças de quadros ainda na ativa.
Jungmann acha que o sistema presidencialista brasileiro, conhecido como de coalizão, esgotou-se, tornou-se de colisão, e é preciso começar o debate de alternativas, como o parlamentarismo ou um semipresidencialismo. A sucessão de 2022 estará condicionada à conta dos efeitos da pandemia: “Vamos ver no colo de quem cai essa conta”, disse, depois de considerar que é forte a chance de ser cobrada ao presidente da República.
O ex-ministro acha que o ressurgimento de uma força política mais ao centro pode demorar ainda, pois sofreu mais os efeitos do desgaste político trazido pelo advento das redes sociais e do questionamento da representatividade tradicional.
Considera que a política externa é o grande déficit do atual governo e que o caso Queiroz e os inquéritos sobre as Fake News podem trazer desgaste ainda maior ao presidente Bolsonaro. O ex-ministro disse que o gabinete do ódio, enfim, restou comprovado.
Vê com preocupação a ruptura da União com os Estados no plano da segurança pública, agravada pela extinção do ministério que comandou no governo Temer, e a consequente descontinuidade dos pilares de uma política de integração que deixou concluída e patrocinada para seu sucessor.
Veja no vídeo abaixo a íntegra da entrevista:
Segurança Pública é tema de webconferência do Ciclo Diálogos, Vida e Democracia
Série de webconferências chega a sua 21ª edição. A FAP faz a retransmissão em seu site, página no Facebook e em seu canal no Youtube
O Ciclo Diálogos, Vida e Democracia, uma série de videoconferências promovidas pelo Observatório da Democracia (OD), realiza nesta quarta, 15/07, às 14h30, a mesa Segurança Pública e Cidadania. O Ciclo chega a sua 21ª edição. A mesa será coordenada por Felipe Espírito Santo, que é presidente da Fundação da Ordem Social (FOS). Participam ainda o ex-ministro da justiça José Eduardo Cardozo; o ex-secretário Nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares e o ex-ministro de Segurança Pública Raul Jungmann.
Assista ao vivo!
O debate será transmitido on-line e gratuitamente pelo canal no Youtube do Observatório (clique aqui). Em seu site, na sua página no Facebook e em seu canal no Youtube, a FAP (Fundação Astrojildo Pereira) fará a retransmissão da webconferência.
Segurança Pública é um tema que ganhou enorme relevância nos últimos anos no Brasil e se destaca mais ainda com as múltiplas crises vividas pelo País. De um lado, há um governo que quer atribuir à população a responsabilidade pela segurança pública, na medida em que se propõe a armar os cidadãos e usou isso como mote de campanha; de outro, a necessidade de que se garanta a segurança da população, sem cometer abusos e ultrapassar a linha dos direitos humanos.
Além disso, há a possibilidade de utilização política das estruturas institucionais da segurança pois especula-se que o atual governo se prepara para recriar o Ministério da Segurança para ter policias como sua base de sustentação. Para debater esses e outros temas foi selecionado um grupo de debatedores altamente qualificados com extensa experiência administrativa.
O Observatório da Democracia é formado pelas Fundação Perseu Abramo (PT), Fundação João Mangabeira (PSB),Fundação Mauricio Grabois (PCdoB), Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (PSOL), Leonel Brizola-Alberto Pasqualini (PDT), Fundação da Ordem Social (PROS) e Fundação Claudio Campos e Fundação Astrojildo Pereira (Cidadania).
Raul Jungmann: O colapso do presidencialismo de coalizão e de colisão
Desde a retomada das eleições diretas pelo poder civil em 1985 que todos os presidentes eleitos optaram por construir uma ampla coalisão multipartidária no Congresso Nacional para governar. Os motivos eram, e continuam sendo, a fragmentação partidária, a necessidade de reformas constitucionais exigirem quorum qualificado de três quintos e o fato de o partido do Presidente jamais exceder a 20% dos deputados.
A esse método ou sistemática de governar deu-se o nome de “presidencialismo de coalizão”. Isto porque, sinteticamente, em troca dos votos necessários para fazer passar seu programa de governo, o chefe do Executivo deve abrir espaços na administração pública não só para representantes dos partidos que compõem a sua base, mas também ampliar apoios.
Esse modo de governar foi duramente atingido por uma série de escândalos, cujo ápice se deu na operação Lava Jato. Porém, dada a estrutura e dinâmica da política brasileira, permanece impossível governar sem lançar mão dele, à falta de uma ampla reforma política.
O Presidente Jair Bolsonaro decidiu abrir mão do sistema, dispensando a alternativa habitual de uma ampla coalisão multipartidária para governar. Eleito num momento de ampla rejeição da política, dos políticos e dos partidos, entendeu que não deveria alinhar-se com a “velha política” e seus métodos, incluído o “presidencialismo de coalizão”.
Ainda assim, há que governar e entregar o que prometeu, o seu programa de governo, o que só é possível com votos suficientes no parlamento. Como fazê-lo? Emerge então o “presidencialismo de colisão”, cujos alicerces básicos são os seguintes:
(I) proclamar ter o apoio da espada (militares) e do povo (seus seguidores) para constranger o Congresso e o Judiciário;
(II) manter em constante stress os adversários, reais ou imaginários, considerados “inimigos”;
(III) mobilizar continuamente os seus seguidores/apoiadores para pressionar as instituições e adversários;
(IV) e organizar e empregar uma estrutura digital, via redes sociais, para fins de mobilização e ataque a oposição, instituições, mídia e adversários, inclusive com ameaças, como alternativa ao apoio do Congresso, em uma espécie de democracia direta
Esse “presidencialismo de colisão” dá sinais que entrou em colapso, e estão à vista os determinantes do seu esgotamento em tempo mais curto do aquele que o precedeu.
As Forças Armadas se mantêm refratárias a qualquer uso político que se queira fazer delas, sendo impossível acreditar que apoiariam o Presidente em uma aventura autoritária, pois seu compromisso democrático tem se mantido impecável. O emprego das mídias digitais para manter mobilizados seus seguidores, ameaçar adversários, Congresso e Supremo Tribunal Federal foi desarticulado pelos inquéritos em curso na Corte e no Parlamento sobre as chamadas fake-news, e que alcançaram toda a estrutura de financiadores, propagadores e seus robôs, e o “gabinete do ódio”.
Mais além, o “presidencialismo de colisão” teve sua exaustão acelerada pela eclosão da pandemia, dado que os seguidos ataques aos governadores, prefeitos e academia geraram conflitos em série e quase nenhuma coordenação, com as consequências que aí estão em termos de mortes, carências de pessoal e equipamentos.
A exaustão também se verificou na economia, onde o projeto liberal do ministro Paulo Guedes foi paralisado pela crise do coronavírus, com o consequente adiamento da agenda das reformas e a reversão, ainda que provisória, da política de redução do Estado.
Por fim, os inquéritos e investigações em curso que alcançam o Presidente da República e família, tiveram o condão de enfraquecer seu apoio na sociedade, levando a necessidade irônica de organizar uma base parlamentar nos moldes do “presidencialismo de coalizão” – justo ele que o negara – para fins preventivos e defensivos, no caso de um processo de impeachment.
Viu-se assim o presidente da República virar o promotor da volta triunfal da “velha política”, num retorno pela porta dos fundos do loteamento em larga escala, sem seletividade curricular, de cargos na administração para parlamentares visando formar justamente uma ampla coalizão multi-partidária.
Essa guinada apresenta riscos, dentre os quais a perda de parte dos seus fies seguidores de raiz, e a sua nova e improvisada base, alicerçada no Centrão, pouco resistente às pressões decorrentes de uma queda de popularidade.
O colapso do “presidencialismo de colisão”, aponta para o resgate de uma política cujo contorno é menos conflitivo e mais negocial. Mas inexistem evidências de que veio para ficar ou mesmo que mantenha alguma consistência. Até porque, parte dos conflitos provocados pelo Presidente e os processos em curso que o ameaçam estão longe de um desfecho e, pelo potencial corrosivo que detêm, provocarão novas e sucessivas crises.
Estamos, portanto, no fim de um ciclo político caracterizado por um sistema presidencialista que nas suas diversas faces, esgotou-se. Em retrospecto, olhando para os últimos 30 anos, dois impeachments e crises recorrentes, talvez seja o caso de iniciar a discussão e o amadurecimento de uma alternativa real ao que aí está, como o parlamentarismo ou, mais adequado à nossa história e geografia política, o semipresidencialismo.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Raul Jungmann e Mauro Marcondes Rodrigues: Um presidente americano no BID?
A terça-feira, dia 16 de junho de 2020, pode ficar marcada na história pela ruptura de um acordo não escrito entre os países latino-americanos e caribenhos e os Estados Unidos, para a condução de uma das instituições financeiras multilaterais mais importantes para os países da Região.
Neste dia, a administração Trump decidiu indicar um cidadão americano, Mauricio Claver-Carone, diretor de assuntos latino-americanos no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, para presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID.
Embora semelhante ao Banco Mundial, o BID, fundado em 1959, fruto de uma muito bem-sucedida negociação com os americanos, foi estruturado com base numa arquitetura institucional e de governança equilibrada entre os membros beneficiários dos empréstimos (latino-americanos e caribenhos) e os EUA, Canadá e demais membros não regionais.
Os latino-americanos e caribenhos detém, em conjunto, a maioria do capital do BID (50,015%) e, pela regra não escrita desde sua criação, indicam seu Presidente, enquanto os EUA, com 30% do capital votante, sempre ocuparam a posição de Vice-Presidente Executivo da Instituição.
Para se ter uma ideia do porte do banco, consta do seu Relatório Anual de 2019, empréstimos ativos no montante de US$ 96,7 bilhões, sendo quase US$ 13,0 bilhões de novos empréstimos aprovados no ano passado, principalmente para o setor público, mas também para empresas privadas.
São projetos de desenvolvimento em diferentes setores: transporte, saneamento, saúde, reforma e modernização do Estado, desenvolvimento urbano e habitação, educação, ciência e tecnologia, investimento social, energia, agricultura e desenvolvimento rural, meio-ambiente e turismo sustentável. Para os países menos desenvolvidos da Região, o BID oferece empréstimos não reembolsáveis e apoio através de cooperação técnica.
No caso do Brasil, o banco possui uma carteira ativa de 77 operações de empréstimo no valor de US$10,7 bilhões, muitos deles concedidos para Estados e Municípios, constituindo-se numa fonte importante de crédito de longo prazo para esses entes da Federação.
Nos 60 anos de existência, o BID teve quatro presidentes, todos latino-americanos. O primeiro foi o economista chileno Felipe Herrera (1960-971), seguido por outro economista, o mexicano Antonio Ortiz Mena (1971-1988). Em 1988, o Presidente Ortiz Mena teve um desentendimento com o Tesouro americano e saiu do Banco.
Mesmo naquele momento de crise, foi encontrada uma solução dentro do marco pactuado entre os EUA e os latino-americanos e caribenhos. Foi nomeado o economista uruguaio Enrique Iglesias, que liderou o BID por 17 anos (1988-2005), numa fase de importante expansão e mudanças operativas. Em 2005, assumiu a Presidência do BID o cidadão colombiano Luiz Alberto Moreno que encerrará seu terceiro mandato em outubro deste ano.
Desde 1959, o banco passou por várias transformações e cresceu não só em termos de capacidade de concessão de empréstimos e de outros instrumentos de apoio à região, como na incorporação de novos sócios, notadamente não regionais.
A presença de um latino-americano na presidência do BID jamais foi impedimento na obtenção de recursos para o banco cumprir seu papel no apoio ao desenvolvimento dos nossos países. Além disso, um presidente latino-americano sempre foi fator de equilíbrio entre os sócios regionais e não regionais e, em especial, na mediação entre os interesses e posicionamento dos EUA e dos demais sócios regionais. Outro aspecto importante da presidência latina é a garantia da proximidade com os países beneficiários do apoio do banco e a melhor compreensão de suas demandas.
Por óbvio, os Estados Unidos não estão isolados nesta empreitada de ter um americano na presidência do BID. E não devem ser com os europeus, pois se a moda pega os americanos podem querer assumir o FMI. Pelo que se sabe, contam com o apoio, entre outros, do segundo maior acionista, o Brasil (11,354%).
Logo o Brasil, que teve um papel fundamental na criação do BID. Foi justamente a ação decisiva do Presidente Juscelino Kubitschek, ao enviar uma carta ao Presidente americano, Dwight Eisenhower, datada de junho de 1958, em que o exortava a rever as relações dos EUA com o continente, somada à ideia de criação da Organização Pan-Americana, que viabilizou, como desdobramento das tratativas com o governo americano, a constituição do Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID, no ano seguinte.
Em resumo, esta indicação do governo Trump não é positiva para o futuro do nosso principal banco de desenvolvimento regional. Não faz sentido algum se abandonar uma arquitetura institucional e um acordo que contribuíram para uma trajetória de bons serviços prestados para o desenvolvimento dos nossos países, em nome de uma promessa de maior compromisso americano com o BID e os países da região.
O Brasil tem história e presença importantes na instituição. Não pode desconhecer este fato e se alinhar aos interesses imediatos dos EUA, abandonando seus compromissos com os demais países beneficiários, alguns inclusive com candidaturas postas.
Há tempo de se construir consensos em torno de um candidato latino-americano ou caribenho que una a todos e leve os americanos a voltar ao pacto fundacional do BID. Caso contrário, veremos o Brasil dando mais um passo e abrindo mão da sua visão diplomática histórica para se tornar peça da engrenagem diplomática dos EUA.
*Mauro Marcondes Rodrigues – Ex–Secretário de Assuntos Internacionais do Ministério do Planejamento e ex-Diretor Suplente do Banco Interamericano de Desenvolvimento
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Raul Jungmann: Quem fala pelas Forças Armadas é a Constituição
O conflito ou inobservância das leis é resolvido pelo Judiciário
A recente nota à nação, subscrita pelo presidente da República, merece uma exegese das ideias e conceitos que nela constam, em especial o seu terceiro parágrafo, que diz o seguinte: “As Forças Armadas/FAs do Brasil não cumprem ordens absurdas, como por exemplo a tomada do Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos.”
Inicio nossa análise pela primeira das frases. Como as Forças Armadas, pelo artigo 142 da Constituição, estão sob a autoridade suprema do presidente da República e, por iniciativa dos poderes da República, são responsáveis pela garantia da lei e da ordem, de onde viria a “ordem absurda” para a tomada do Poder da República?
Constitucionalmente, de um dos três Poderes. Logo, a nota pressupõe que um ou mais Poderes estariam agindo ou viriam a agir de modo “absurdo”, portanto, inconstitucional. Ainda que abstrata, essa é uma suposição gravíssima e requer que seja demonstrada com fatos e provas à nação. O que não aconteceu.
Na sequência, ao afirmar que as Forças Armadas “não aceitam tentativas de tomada de um Poder por outro Poder”, os signatários elevam as Forças à condição de intérprete e árbitro final de disputas entre Poderes da República.
Algo que não é previsto em nenhum dos artigos da atual Constituição, nem em decisões do Supremo, além de ser essa competência privativa da Corte. A conclusão da frase segue o mesmo caminho: “Ao arrepio das leis ou de julgamentos políticos”.
Ora, quem decide sobre o conflito ou inobservância das leis é o Judiciário, jamais outro Poder, como se encontra cristalinamente no artigo 105 da Carta. Nesse caso, pelo texto da nota, recairia sobre os militares (e o Executivo, do qual fazem parte) o assenhoramento de competências de um outro Poder, o Judiciário.
Por fim, a referência a “julgamentos políticos”, que não seriam aceitos pelas Forças Armadas, as coloca na esfera da política. Cabe a pergunta: onde se encontra o mandato, atribuição ou competência delas para decidir que um julgamento é político ou não?
Nada, na sua destinação constitucional, as habilita, salvo como cidadãos, a decidir se um julgamento é ou não político. Valendo lembrar que o impeachment, competência do Congresso Nacional, é um julgamento político. Ergo, seria incavíbel às Forças Armadas não aceitá-lo, ainda que tal processo esteja fora de questão no momento.
Constitucionalmente, pelas Forças falam o presidente da República, seu comandante supremo, e o ministro da Defesa. Ambos têm afirmado, reiterada e publicamente, que as Forças Armadas não opinam, nem interferem na esfera da política.
Donde se conclui que as mesmas não foram consultadas sobre algo que não é de sua competência. Assim, é inescapável que presidente e ministro falaram por elas, mas não com elas, que não participam, corretamente, do jogo político.
Sendo pertinente concluir que os signatários da nota se manifestaram pelas Forças sem seu conhecimento, consentimento ou anuência, lhes atribuindo juízos políticos que elas ignoram, e objetivos que lhes são estranhos, em frontal colisão com o que determina a Carta e sua natureza como instituição de Estado, jamais de governo.
Nossas Forças Armadas têm sido democraticamente impecáveis e não cabe à oposição, muito menos ao governo, desviá-las desse rumo, pois é através do seu compromisso e postura que nos fala a Constituição.Raul Jungmann
*Ex-ministro da Reforma Agrária (governo FHC), Defesa e Segurança Pública (governo Temer)
Raul Jungmann: Agonia e morte do Sistema Nacional de Segurança Pública
Em algum arquivo do Palácio da Justiça em Brasília jazem o Sistema Nacional e a Política Nacional de Segurança Pública/Susp, ambos tornados lei por decisão soberana do Congresso Nacional, e que esta semana completariam dois anos de vida.
Aprovado em junho de 2018, o Susp tem uma longa história que se inicia, como proposta, no primeiro governo Lula, e torna-se lei no governo Temer.
Saudado como um histórico avanço no combate à violência e à insegurança, o Susp veio corrigir uma falha que nos acompanhava desde nossa independência enquanto nação. Afinal, da primeira das nossas sete constituições – de 1824, até a última, de 1988 -, jamais o poder central, no Império ou na República, teve atribuições constitucionais na área da segurança pública.
O que significa dizer que jamais tivemos um sistema ou uma política nacional de segurança pública. Em contrapartida, o crime organizado de há muito se nacionalizou e transnacionalizou, enquanto a segurança pública permaneceu uma atribuição dos estados, segundo a Carta de 1988, artigo 144.
Promulgada a Lei do Susp em outubro de 2018, reunimos, em sessão inaugural, o Conselho Nacional de Segurança Pública que discutiu e formalizou a primeira Política Nacional de Segurança Pública (PNSP) – ambos, Conselho e Política, exigências da lei que criou o Sistema Único.
Iniciado o atual governo, em janeiro do corrente ano e extinto o Ministério da Segurança, refundido ao Ministério da Justiça, este então envia, cinco meses após, em maio de 2019, a PNSP para análise da Controladoria Geral da União (CGU). Esta sentencia, em agosto, que em linhas gerais, a PNSP padeceria das mesmas fragilidades dos planos anteriores: genérico; em desalinho com os objetivos da Política; com uma carteira numerosa de projetos (não necessariamente articulados entre si), com ações pontuais e fragmentadas; planos de difícil replicação pelos entes federados; sem elementos gerenciais mínimos (estratégias, responsáveis, prazos, indicadores e metas); e governança de complexa coordenação.
A impressão que fica é que a CGU não entendeu a PNSP, ao lhe cobrar respostas ex-ante para questões que ela se propõe a responder após implantada.
Ora, a prioridade número um da PNSP é justamente o programa de superação do déficit de dados e indicadores e de padronização do registro de ações e projetos, que deveria ter sido realizado com o auxílio do Banco Mundial, o que foi suspenso pela atual administração. Ela enfatizava a necessidade de ações voltadas à realização de diagnóstico dos recursos existentes e das necessidades decorrentes para o pleno atendimento do Susp.
O que se traduz em ações voltadas à identificação de metas interinstitucionais e à criação de grupos de trabalho operacionais, envolvendo áreas técnicas de diferentes órgãos, para garantir os resultados que envolvem múltiplas instituições e poderes.
Em resumo: o que era um trabalho em construção foi interrompido, a título de não estar consolidado; o que demandava adoção de medidas imediatas para a superação de dados inconfiáveis e elaboração de modelos de definição de prioridades, acompanhamento de execução e avaliação de metas foi ignorado; o que se revelava urgente, foi tornado desimportante: instalar o Sistema Nacional de Acompanhamento e Avaliação das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social, o Sinaped, a efetividade do Conselho Nacional, promover a aproximação com estados e municípios e critérios claros e bem executados de aprovação de projetos, acompanhamento de execução e avaliação de resultados de programas e projetos.
Ou seja, tudo ficou como estava, com enorme prejuízo para a efetividade, a eficiência e a economicidade e, o que é mais grave, para a transparência.
Supondo que essa consulta à CGU fosse de fato necessária, ela ficou disponível desde agosto de 2019, portanto há oito meses e, segundo o cronograma, o “Novo Susp”, deveria ter entrado em operação em fevereiro de 2020, após audiência pública. Desde então, passados quatro meses, isso não aconteceu. Nesse período, o Conselho Nacional de Segurança Pública reuniu-se apenas uma vez, em lugar das seis previstas.
Integrado pelo Ministério Público, Judiciário, Forças Armadas, polícias civil e militar, Polícia Federal, universidades, entidades civis, guardas municipais, ONGs, representantes das categorias profissionais afins e bombeiros, o Conselho é a maior e mais ampla força-tarefa jamais formada para reunir esforços de todos os poderes, da União, estados e municípios e da sociedade para combaterem homicídios, violência e insegurança.
O Sinaped, auditoria interna e independente do Susp, jamais se reuniu para enfrentar a obscuridade e o apagão de dados vigentes na área da segurança, avaliar programas, resultados, dados e informações e dar ao país uma radiografia do setor. A Ouvidoria Nacional, assim como a Corregedoria Nacional das Polícias, com poder de supervisionar todas as corregedorias estaduais das polícias, jamais foram implantadas.
E os conselhos estaduais e de segurança, que deveriam ser instalados em todos os estados e municípios, verdadeira espinha dorsal de uma rede nacional de coletivos envolvendo toda a sociedade e o poder público numa ampla coalisão pela vida e contra a violência, seguem inexistindo, afora inciativas de alguns estados.
Desenvolvida com a participação da sociedade civil, objeto de amplas discussões na Câmara e no Senado da República, na academia e órgãos públicos de todos os níveis, a PNSP tinha por foco, dentre outros, os homicídios, a juventude vulnerável, a reforma e aprimoramento das nossas polícias, o enfrentamento da tragédia do nosso sistema prisional, uma nova política de combate a drogas e a produção de dados e estatísticas sobre nossa segurança como jamais tivemos, além de metas para cada uma dessas ações que pudessem ser por todos avaliadas.
Noutro nível e em articulação com o programa Pro-Segurança do BNDES, com dotação de R$ 40 bilhões em cinco anos (encerrado), e os recursos das loterias esportivas da CEF para o Fundo Nacional de Segurança Pública (contingenciados), era grande a expectativa de enfim iniciarmos um novo tempo de crescente segurança para todos os brasileiros. Infelizmente, não foi assim.
Hoje, é com imensa tristeza que vemos os homicídios, que vinham despencando desde 2017, voltarem a crescer 11% em 2020, ceifando vidas e levando sofrimento e dor as suas famílias, enquanto toda uma política democrática de controle de armas e munições vai sendo destruída.
Dois anos são passados desde a criação pelo Congresso Nacional do Sistema Único de Segurança Pública. Dois anos perdidos, nada foi implantado. Triste réquiem para a mais ambiciosa e abrangente Política em defesa da vida e contra a violência já gestado em nosso país.
*Raul Jungmann, ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Raul Jungmann: A responsabilidade que nos cabe
Ao poder político cabe definir a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, os objetivos, estrutura e meios das nossas Forças Armadas. Mas ele, o poder político, não o faz, se aliena. A Política e Estratégia vigentes, elaboradas em 2016 quando era Ministro da Defesa, foram votadas na Câmara e no Senado sem audiências públicas, sem emendas, debates e por voto simbólico.
Política e Estratégia contêm as mais altas decisões referentes à defesa da nação, do seu território, da nossa soberania, povo, recursos e interesses nacionais. Fui o relator da Lei Complementar 136 de 2010, e autor das emedas que introduziram tanto a Política quanto a Estratégia, além do Livro Branco da Defesa Nacional dentre as competências do Congresso, de comum acordo com o então Ministro da Defesa, Nélson Jobim.
Nossa expectativa era a de que com base naqueles documentos, o Congresso Nacional iniciasse um diálogo histórico com a sociedade, os partidos e, sobretudo, com as Forças Armadas, sobre o seu papel, estrutura, composição, organização e formação, vis a vis a defesa da nação e o seu papel em um projeto nacional de desenvolvimento. Isso jamais aconteceu.
Hoje somos demandados para responder perguntas recorrentes sobre nossas Forças Armadas em infindáveis “lives”. Sobretudo, o que pensam, qual seu papel no atual governo e se embarcariam num atalho autoritário ou golpe. A todos respondo, com convicção, que nossas Forças Armadas são disciplinadas, capacitadas e não se afastarão do respeito à Democracia. Que os generais palacianos não falam por elas, e que elas não estão com o atual Presidente, nem com nenhum dos seus antecessores, mas com a Constituição.
Em tempos normais, pouca atenção é dada às Forças Armadas por parte da nossa elite civil e política, salvo quando temos desastres, grandes eventos ou crises na segurança pública. Usualmente, se atribui esse alheamento de responsabilidades das nossas elites ao fato de há 150 anos não termos guerras, sendo a última a do Paraguai; nossas fronteiras não serem objeto de litígio e nossas dimensões, população e economia desestimularem conflitos ou ameaças em nosso entorno. Nada disso, porém, é justificativa para que o Congresso Nacional e nossos representantes se omitam de suas responsabilidades de definir a Política Nacional de Defesa e das nossas Forças Armadas.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.