Raul Jungmann
Raul Jungmann: Soberania versus clima, embates da COP-26 em Glasgow
Dois caminhos são possíveis. O da diplomacia e o da força – este, com consequências negativas e trágicas
Raul Jungmann / Capital Político
Na Conferência das Partes (Cop-26), a ser aberta neste domingo em Glasgow, Escócia, o pano de fundo dos embates sobre a crise climática, suas repercussões e medidas para evitá-la, será o choque entre soberania e clima.
O conceito de soberania afirma-se na Conferência de Paz de Westfália, em Münster, na Alemanha, após a Guerra dos 30 Anos que devastou a Europa no século XVII, que desenhou o atual sistema internacional das nações e que permanece o mesmo em seus fundamentos.
Desde então, além do conceito de não-intervenção de um país sobre o outro e do respeito às escolhas religiosas das partes, o Estado-Nação moderno passou a ser reconhecido com base em território, povo e soberania. Entendendo-se por esta última a capacidade autônoma de um ente jurídico-político de não reconhecer nenhum outro poder, seja interno ou externo, acima do seu.
De lá para cá o mundo diminuiu, fruto da revolução industrial, nas comunicações e nos transportes, subprodutos de outra revolução, a tecnológica, passando a atividade humana a impactar e pressionar crescentemente o meio ambiente.
Alcança-se assim uma nova compreensão do conceito secular, pois se o território é eminentemente nacional, o clima não o é. Ou seja, ele é global em suas causas e efeitos, donde se instala o inevitável conflito entre soberania e crise climática. Mas a regra ainda é a preeminência da soberania, delimitada exclusivamente pelo território e ancorada no Estado Nacional.
Diante desse impasse, dois caminhos são possíveis. O da diplomacia e o da força – este, com consequências colaterais negativas e eventualmente trágicas.
Na primeira das opções, a saída para a assimetria sócio-econômica entre países ricos – historicamente responsáveis pelo aquecimento global-, e países pobres, repousa num compromisso dos primeiros em transferir fundos e tecnologia aos segundos, dos segundos em reduzir suas emissões – e de ambos em transitar de uma economia lastreada em energia fóssil para uma outra, baseada em energias renováveis.
À falta de um consenso as consequências podem ser devastadoras – – desde elevação dos oceanos, secas, temporais, e tufões, com reflexos em migrações, pandemias, violência social, conflitos, confrontos e guerras por recursos naturais mais e mais escassos, conforme previsto pelo VI Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas da ONU.
Por isso a expectativa é grande em relação ao encontro de Glasgow. Mas as metas expressas nas NDCs – Compromissos Nacionalmente Determinados, de redução de emissões de dióxido de carbono, já feitos por 75 países, responsáveis por 30% das emissões, deixam a desejar.
As desconfianças mútuas ainda imperam, com os menos desenvolvidos supondo uma trapaça com cores e narrativa ambiental dos países ricos, para desfazer as suas vantagens competitivas.
Estes, por sua vez, bloqueiam recursos e tecnologia para os primeiros, sem que compromissos e metas sejam antecipadamente firmados e cumpridos sob monitoramento de instituições independentes, porém com maioria dos países desenvolvidos.
Superar essas assimetrias e desconfianças será a árdua tarefa de todos em Glasgow, o que exigirá um esforço sério e democrático de compartilhamento e coordenação entre soberanias, amparado em mecanismos de governança global justos, democráticos e eficazes.
Enquanto nos resta tempo.
Fonte: Capital Político
https://capitalpolitico.com/soberania-versus-clima/
Raul Jungmann: “Sistema prisional é o home-office do crime organizado”
Ex-ministro da Defesa e Segurança Pública analisa os desafios governamentais e da sociedade para a segurança e comenta Lei Antidrogas
Pode o poder público se omitir do direito democrático de todo cidadão à segurança? Essa foi uma das principais questões debatidas no seminário “Um novo Rumo para o Brasil”, que teve como tema “Segurança pública e democracia” no início desta semana. O evento virtual, organizado pelas fundações e institutos ligados ao MDB, PSDB, DEM e Cidadania, segue até 27 de setembro.
Para aprofundar um pouco mais sobre os desafios da segurança pública no Brasil, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) conversa com Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa e Segurança Pública.
O colapso do sistema prisional, o avanço do crime organizado e a politização das polícias estão os temas do podcast. Jungmann também analisa os 15 anos da Lei Antidrogas e critica a proposta do governo federal de criação da Autoridade Nacional Contraterrorismo. O episódio conta com áudios da TV Câmara, TV Senado, Fantástico, da TV Globo, Roda Viva e CNN Brasil.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
Raul Jungmann: “Sistema prisional é o home office do crime organizado
Com o tema “Segurança pública e democracia”, seminário virtual foi coordenador pelo presidente do Conselho Curador da FAP, Luciano Rezende
João Rodrigues, da equipe da FAP
Na noite desta terça-feira (20), foi realizado mais um encontro virtual do seminário “Um novo Rumo para o Brasil”, organizado pelas fundações e institutos ligados ao MDB, PSDB, DEM e Cidadania. O ex-ministro da Defesa Raul Jungmann alertou que o sistema prisional é o “home office do crime organizado”, pois dá às facções a possibilidade de recrutamento de novos integrantes. “Há uma funcionalidade entre violência, criminalidade e o sistema prisional brasileiro. Estamos gastando dinheiro para jogar jovens dentro da criminalidade organizada”, destacou Jungmann.
O evento on-line também contou com os debatedores Murilo Cavalcanti e Coronel Julio Cezar Costa, além da presença do senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE). A coordenação foi do presidente do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), Luciano Resende.
Clique aqui e confira o vídeo na íntegra.
Raul Jungmann: Contraterrorismo stalinista
Projeto bolsonarista cria uma Autoridade Nacional Contraterrorista, sob supervisão do Gabinete de Segurança Institucional (GSI)
Raul Jungmann / Capital Político
“Que os nossos amigos saibam que quem tentar erguer a mão contra a vontade do nosso povo, contra a vontade do partido de Lenin, será impiedosamente esmagado e destruído”.
Corria ao ano de 1937, época dos grandes expurgos na União Soviética, e o sombrio autor da frase, Laurent Béria, era chamado pelo ditador Stalin de “meu Himmler” – um dos líderes do partido nazista e psicopata.
Béria tornou-se conhecido por comandar a NKVD, a polícia política de então, por sentir prazer sádico na tortura e de espancar e violar mulheres e garotas. O Comissariado do Povo Para Assuntos Internos, a NKVD, era a extensão do ditador, diretamente subordinada a ele, e um verdadeiro Estado dentro do Estado soviético. Sua principal tarefa era administrar o terror em campos de concentração, tortura e supressão de adversários ou ex-aliados do regime.
Oito décadas depois, um PL no Brasil – o de número 1565, de autoria do deputado Victor Hugo, tenta (re) criar, entre nós, um órgão similar, através de uma Autoridade Nacional Contraterrorismo, dos Sistema Nacional de Contraterrorismo e da polícia de igual nome.
Como na NKVD, a Autoridade subordina-se diretamente ao chefe da nação, possui mandato para acessar toda e qualquer informação, sigilosa ou não, além de dados de qualquer um de nós brasileiros. O órgão que se quer criar invade competências de polícias, governos estaduais, órgãos de controle e até das Forças Armadas.
Fragmenta a estrutura de coordenação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), idem o Sistema Brasileiro de Inteligência e passa ao largo do controle do Congresso Nacional. Reintroduz o excedente de ilicitude nos moldes e na extensão rejeitados anteriormente pelo Poder Legislativo.
Mais grave, propõe codificar crimes com tal amplitude, que torna quaisquer manifestações públicas, alvos de ação da Autoridade Nacional Contraterrorismo, em um claro atentado aos direitos e garantias constitucionais e aos direitos políticos.
Não por acaso, 10 associações representantes de policiais civis, militares e federais se posicionaram contra, com críticas contundentes ao projeto de lei. Idêntico protesto partiu do Judiciário e do Ministério Público, em razão da proposta afastar o controle jurisdicional e restringir o papel de fiscalização legal do MP.
Não se discute a necessidade de combater o terrorismo e já existe uma Lei para esse fim – a 13.260/2016. Porém, o projeto de lei de Victor Hugo é um atentado irreversível ao estado democrático de direito. Não deve, nem pode prosperar.
*Raul Jungmann é ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Fonte: Capital Político
https://capitalpolitico.com/contraterrorismo-stalinista/
Jungmann: “Bolsonaro não detém força para promover golpe'
Raul Jungmann descarta um cenário de ruptura institucional, mas não o risco de episódios similares à invasão do Capitólio nos EUA
Por Isabella Marzolla / O Estado de S. Paulo
“Nesse clima permanente de crispação, em algum momento ocorrerá uma derrapagem, isto é, um conflito. Espero estar errado, mas é a consequência lógica de todo esse processo”.
“Não sei se aqui teríamos algo similar à invasão do Congresso, como ocorreu nos EUA. Mas o risco existe, sobretudo se o Presidente vier a perder as eleições no primeiro ou segundo turno”.
“O Presidente, ao propor armar os brasileiros, sem nenhuma ameaça que justifique, poderia levar a um conflito de brasileiros contra brasileiros e desembocar numa guerra civil, algo remoto, sem dúvida. É uma hipótese você chegar nesse nível de confronto, mas existe”.
“Se Lula ou qualquer outro for eleito, os militares permanecerão fiéis ao seu compromisso constitucional. Não haverá veto”.
Com experiência política e bom trânsito entre as Forças Armadas, o ex-ministro da Defesa e ex-ministro da Segurança Nacional (governo Temer) Raul Jungmann, descarta um cenário de ruptura institucional, mas não o risco de conflitos armados e episódios similares à invasão do Capitólio nos EUA.
Quanto às manifestações marcadas para amanhã, ele as enxerga com apreensão: “Quando a política entra numa instituição armada, seja ela militar ou policial, a hierarquia e a disciplina saem pela janela. As FFAAs, enquanto instituições e/ou corporações, não estão se manifestando politicamente. Alguns militares, sim. É a quebra de regulamentos e protocolos”.
Raul Jungmann, 69, foi Ministro da Defesa e da Segurança Pública no governo Temer, e Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária no governo FHC.
*
Amanhã estão marcadas manifestações pró-governo nas principais capitais e cidades do País. Alguns coronéis e policiais militares expressaram apoio às manifestações. O que pensa a esse respeito?
Quando a política entra numa instituição armada, seja ela militar ou policial, a hierarquia e a disciplina saem pela janela. Policiais ou militares se pronunciarem politicamente é a quebra de regulamentos e protocolos que regem a ação de forças policiais ou militares, enquanto agentes de Estado.
Qual a gravidade de coronéis e policiais militares se manifestarem abertamente sobre suas preferências políticas e partidárias?
As FFAAs, enquanto instituições e/ou corporações, não estão se manifestando politicamente. Alguns militares, sim. O que se choca com o regulamento disciplinar das forças e tem que ser contido.
Como vê a presença maciça de militares em cargos administrativos do governo?
A “presença maciça” de militares no executivo não é de agora, embora esse governo tenha ultrapassado em quantidade todos os anteriores. Porém, a responsabilidade por esse estado de coisas é do Congresso Nacional, que é parceiro da crise, ao não regulamentar a participação de militares, sobretudo da ativa, no executivo. Idem, ao não estabelecer que militares e policiais que forem para a política não retornem a suas corporações, além de fixar uma quarentena de alguns anos.
Dados os recentes ataques do Presidente ao Poder Judiciário, o quão ameaçada está a democracia brasileira e o quanto, como imprensa e sociedade, devemos nos preocupar?
O Presidente encontra-se mais e mais isolado. Não detém força para promover um golpe de Estado. Mas, de promover distúrbios, conflitos e violência, sim. Todos devemos nos preocupar com isso. Porém, as instituições, a mídia, a sociedade e o empresariado têm reagido crescentemente.
É possível que o Brasil presencie algo semelhante à invasão do Capitólio nos EUA?
Não sei se aqui teríamos algo similar à invasão do Congresso, mas o risco existe, sobretudo se o Presidente vier a perder as eleições no primeiro ou segundo turno. A narrativa dele é de não aceitação de um resultado negativo e de incitamento ao conflito.
Em carta ao Supremo, o senhor sugeriu que a proposta de armar os brasileiros poderia levar a um conflito. Comente.
O Presidente, ao propor armar os brasileiros, sem nenhuma ameaça que justifique, poderia levar a um conflito de brasileiros contra brasileiros e desembocar numa guerra civil, algo remoto, sem dúvida.
Pode desembocar nisso, aponta para isso, é uma hipótese, porque o que ele está propondo é armar brasileiros. Armar contra quem? Não tem ameaça, nem externa e nem interna, ninguém está atentando contra a democracia, não temos nenhum país ameaçando invadir o Brasil, então por que armar brasileiro? Para não ser escravo? Não ser escravo de quem? Isso é um discurso totalmente equivocado, maluco e que no fundo é para jogar brasileiros contra brasileiros, é guerra civil.
Olha, é uma hipótese você chegar nesse nível de confronto, mas existe.
Para que armar? Para que ter esse discurso de um “povo armado não será escravizado”? Que loucura é essa? Inclusive tem crescido o armamentismo. A Polícia Federal, que faz o registro de armas verificou que no ano de 2020 comparado com 2019, cresceu em 90% o número de registros, é o maior crescimento em um ano na série histórica. Então é evidente que em algum momento isso pode derrapar, quer dizer, acontecer turbulência, conflito etc.
Nos círculos bolsonaristas, ainda se fala em ameaça comunista. Existe um fantasma da Guerra Fria a essa altura?
Para alguns setores autoritários e delirantes, é preciso criar um inimigo, ainda que imaginário, para promover a coesão dos seus apoiadores. Esse é um dos pilares das falas do confronto e do ódio.
Em outra entrevista o senhor disse que o alto oficialato tem uma visão bastante crítica a respeito do STF, algo que remonta à decisão do ministro Edson Fachin de zerar as ações contra o ex-presidente Lula. De onde veio essa postura? Como os militares reagiriam se Lula se elegesse Presidente da República ano que vem?
Essa postura vem de três percepções acerca do STF (Supremo Tribunal Federal): primeiro o Supremo promove a insegurança jurídica (caso do julgamento em segunda ou terceira instância), depois impede o Presidente da República de governar e por último desmontou a Lava Jato.
Se Lula ou qualquer outro for eleito, os militares permanecerão fiéis ao seu compromisso constitucional. Não haverá veto.
O senhor já afirmou diversas vezes que não há risco de ruptura democrática, que as Forças Armadas não estão disponíveis para nenhuma aventura ou golpe, mas que teme o cenário das eleições presidenciais em 2022. Por quê?
Porque o Presidente vem afirmando que não haverá eleições se houver fraude, repetidamente busca desmoralizar a Justiça Eleitoral (TSE) e o seu presidente, Ministro Barroso, e propõe armar a população. Toda essa narrativa aponta para que? A incitação de qualquer resultado que não a sua vitória, e o incitamento ao confronto por parte dos seus partidários.
Nesse clima permanente de crispação, em algum momento ocorrerá uma derrapagem, isto é, um conflito. Espero estar errado, mas é a consequência lógica de todo esse processo.
Em poucas palavras, como descreveria o Presidente Bolsonaro e seu governo?
Em processo acelerado de isolamento, perdendo governabilidade, errático e autoritário. Mas continua com um apoio popular ponderável de 20 a 25%.
Como Bolsonaro está sendo visto dentro das Forças Armadas?
Há um crescente desconforto por parte dos militares.
O senhor foi Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Temer. Como avalia a atuação do atual Ministro de Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres?
Até aqui desconheço uma política nacional de segurança pública do atual governo, proposta pelo Ministério da Justiça. Nada organizado e adequado para combater a violência sistêmica que agride e mata os brasileiros.
O senhor também já presidiu o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e foi Ministro do Desenvolvimento Agrário no governo FHC. O que pensa sobre a maneira com que o governo Bolsonaro tem lidado com a população e as questões indígenas? E sobre o Marco Temporal?
A política agrária do atual governo é regressiva e contrária aos interesses dos sem-terra.
O Marco Temporal é uma questão complexa, e espero que o Supremo decida pelo que está no texto da Constituição de 1988, de uma vez por todas.
Fonte: O Estado de S. Paulo / Inconsciente Coletivo - Jornalismo de Reflexão
https://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/raul-jungmann-bolsonaro-nao-detem-forca-para-promover-um-golpe-mas-disturbios-e-violencia-sim/
Raul Jungmann: 'Não vai ter golpe'
Titular da pasta da Defesa e da Segurança Pública no governo Temer, o ex-ministro descarta ruptura democrática, mas diz haver riscos de conflitos em 2022
Victor Irajá / Revista Veja
Ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública durante o governo de Michel Temer, Raul Jungmann tornou-se uma das principais vozes nas questões mais candentes às Forças Armadas. No comando do ministério entre maio de 2016 e janeiro de 2019, ele defende a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que limita a atuação de militares da ativa no Executivo, assunto que volta à tona com a polêmica participação de oficiais de alta patente no governo de Jair Bolsonaro. Jungmann externa preocupação com a presença de coronéis e generais à frente de cargos importantes para os quais não foram preparados, como o de ministro da Saúde, em plena pandemia.
Familiarizado com os bastidores do Exército, Marinha e Aeronáutica, ele refuta a possibilidade de militares embarcarem em uma potencial aventura golpista do presidente Jair Bolsonaro. Mas, nesta entrevista concedida a VEJA, não descarta um cenário de ameaçadora instabilidade para o ano que vem e conta uma versão bastante preocupante para a saída dos comandantes das Forças Armadas em março.
Qual o impacto da crise institucional entre o presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal do ponto de vista das Forças Armadas?
Infelizmente, existe no alto oficialato uma visão bastante crítica a respeito do STF, algo que remonta à decisão do ministro Edson Fachin de zerar as ações contra o ex-presidente Lula. Os militares têm uma leitura de que o STF não está deixando o presidente Bolsonaro governar, algo do que obviamente discordo. A Corte, na maioria de suas decisões, tem contido o presidente em seus limites constitucionais. Mas algumas decisões polêmicas embasaram essa imagem que se formou nas Forças Armadas. Existe também a leitura equivocada de que o Supremo teria destruído a Operação Lava-Jato. É algo preocupante.
Mas cabe aos militares esse tipo de posicionamento sobre o STF?
Como instituição, as Forças Armadas não se pronunciam e não têm posição a esse respeito. Refiro-me a militares como indivíduos. Essa visão é, sobretudo, presente entre os oficiais da reserva, mais do que entre militares da ativa. Tenho conversado com ministros do Supremo sobre isso e chegou-se a se cogitar uma conversa entre dois ou três deles com os comandantes das três Forças, mas com essa última crise isso não aconteceu. É importante que esses esclarecimentos sejam feitos.
O desfile de blindados da Marinha no última dia 10 foi algo inédito. Como avaliou a parada?
Desfile de tropas e blindados nas cercanias dos poderes só é aceitável em datas comemorativas nacionais. Fora disso, é ameaça real ou simbólica — e algo inaceitável. Simbolicamente, dá sequência à série de atos de constrangimento do presidente da República aos demais poderes. Em termos de balanço, o desfile revelou-se uma ópera-bufa. O efeito foi extremamente negativo e, ainda, ocorreu a derrota do voto impresso.
Virou piada a situação dos blindados durante o desfile. Os armamentos brasileiros estão de fato sucateados?
O Exército brasileiro tem um conjunto de tanques de alta qualidade, aproximadamente 250 deles estacionados em Santa Maria (RS). Já a Marinha, obviamente, tem seu melhor equipamento nos navios. Aquilo não reflete a realidade das Forças Armadas. Se outros materiais fossem levados a Brasília, a impressão seria outra.
“Em 1964, existia apoio de setores da imprensa, de igrejas, do empresariado, fora uma situação internacional que favorecia um golpe de Estado. Hoje, não há ambiente para isso”
O senhor é um firme defensor da Proposta de Emenda Constitucional que limita a atuação de militares da ativa no governo. Como se daria esse controle?
Em democracias consolidadas é o Congresso Nacional que faz a supervisão e a fiscalização das Forças Armadas e fixa o rumo da Defesa nacional, definindo quais políticas o país necessita. No Brasil, o Congresso Nacional se alienou desse papel. Os militares precisam ser liderados pelo poder político representativo. Os civis, por sua vez, não apresentaram nenhum projeto para os militares.
Pelo seu raciocínio, os militares ocupam um vazio deixado pelos civis. Mas não há interesse exacerbado dos generais por cargos na administração pública?
Por que o militar recusaria convite para ganhar mais? Eles não são os culpados por quererem ganhar mais. Por isso acredito que quem deve limitar essa atuação é o Congresso, para que não haja politização das Forças Armadas.
Quais cargos são legítimos de ser ocupados por militares?
Órgãos como o Gabinete de Segurança Institucional, o Ministério da Defesa, cargos em áreas nuclear e espacial, que são áreas afins às atividades deles. Hoje, existe uma situação de acusações mútuas. A PEC sai das discussões vazias e traz constitucionalidade para o debate, deixando claro quais os limites da atuação no governo.
Como avalia a não punição do ex-ministro Eduardo Pazuello por participar de uma manifestação governista?
A decisão de não puni-lo foi indefensável. Assim como a manifestação tosca do chefe da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, de que “homem armado não ameaça”. Até então, eu vinha defendendo os generais em cargo político e na reserva. Os comandantes militares estavam mantendo-se enquadrados pelas linhas constitucionais. O que o Baptista fez é muito grave. São dois casos de punição, e foi um erro não puni-los.
O presidente Jair Bolsonaro repete o termo “meu Exército”. Como vê essa reiteração contínua de sua ascendência sobre as Forças Armadas?
Existe uma constante atuação de constrangimento por parte do presidente da República, para forçar as Forças Armadas a endossar os atos e as falas dele. Foi por não endossar os achaques ao Supremo Tribunal Federal, ao Congresso Nacional e aos governadores, pelas políticas engendradas na pandemia, que, pela primeira vez, os chefes da Aeronáutica, Marinha e Exército foram demitidos. Eles não se dobraram. Os três foram demitidos porque se recusaram a envolver as Forças Armadas nas declarações e nos atos do presidente da República. Toda vez que ele se sente ameaçado, sobe o tom e desrespeita os outros poderes, constrangendo as Forças Armadas a endossar esse discurso.
A saída dos três comandantes das Forças Armadas, em março, foi, de fato, algo inédito. O que motivou a demissão?
O respeito à Constituição. Ele chamou um comandante militar e perguntou se os jatos Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som para estourar os vidros do prédio. Bolsonaro mandou fazer isso, tenho um depoimento em relação a isso. Ao confrontá-lo com o absurdo de ações desse tipo, eles foram demitidos.
Há risco de ruptura democrática nas eleições de 2022?
As Forças Armadas não estão disponíveis para nenhuma aventura ou golpe. Em 1964, existia apoio de setores da imprensa, da Igreja, do empresariado, fora uma situação internacional que favorecia um golpe de Estado. Hoje, não há ambiente para um golpe de Estado. Não tem nenhuma força política a favor disso, muito pelo contrário. Seria um raio em céu azul.
Mas o próprio presidente trata de manifestar sua intenção de não aceitar o resultado das eleições sem o voto impresso. Não é preocupante?
Existem riscos. A campanha de Bolsonaro para desmoralizar o voto eletrônico envolve, no fundo, retirar credibilidade do Tribunal Superior Eleitoral, sem apresentar nenhuma prova.
Quais os riscos dessa campanha, já que as Forças Armadas não endossariam uma possível tentativa de golpe?
Bolsonaro corteja as polícias e afrouxa o controle das armas. Ele é o único presidente da República que vai a cerimônias de formação de policiais. Quando propõe que o povo se arme, ele quebra o monopólio da violência legal por parte do Estado. É grave. Só o Estado tem a prerrogativa legal para o uso da força. Ele propõe jogar brasileiros contra brasileiros. No limite, isso tem o nome de guerra civil. Vamos ter problemas em 2022, não sei em qual nível. Quando o presidente diz que não teremos eleições se não forem eleições limpas, ele prepara o terreno para que vivamos o que os Estados Unidos passaram na invasão do Capitólio, só que de maneira ampliada.
Como?
A situação que mais me preocupa é esta: imagine um cenário de motins policiais no ano que vem e suponha que um governador peça ao presidente da República a presença das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem e ele não o faça. Este governador, então, recorre ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso Nacional. Chegamos a um impasse institucional. Só o presidente da República pode colocar tropas nas ruas, mais ninguém. Nunca vivemos isso. Ele é o comandante em chefe.
Qual o impacto para as Forças Armadas do envolvimento de coronéis na suposta corrupção na compra de vacinas?
É preciso que seja investigado. Sendo militar ou civil, incorrendo em crime, tem de ser punido. Não faz sentido em um país com sanitaristas de renome internacional e qualidade comprovada em políticas sanitárias ter militares ocupando cargos no Ministério da Saúde. Cria-se um desgaste de imagem, embora eles não representem as Forças Armadas. A gestão do Eduardo Pazuello não teria acontecido se houvesse limites à atuação de militares em cargos políticos.
“Ele chamou um comandante e perguntou se os jatos Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som”
Mais de 74% dos gastos militares são com pessoal e pensões. Trata-se de um gasto sustentável?
O Orçamento do Brasil com Defesa está abaixo da média global, não é exorbitante, mas o gasto com pessoal é demasiado. Desde o Império, adotamos uma estratégia de ocupação de território. As Forças Armadas de países desenvolvidos têm estratégias diferentes, com investimento tecnológico e profissionalização das tropas. Uma grande quantidade de recursos humanos pressiona o Orçamento, que comprime os aportes essenciais. Precisamos de uma Força com alta capacidade de mobilidade e letalidade, tecnológica.
A saída do general Luiz Eduardo Ramos representa uma perda de influência dos militares no governo?
É uma disputa por espaço. O Centrão deseja mais cargos, alguns detidos por militares. Até aqui, a batalha tem sido vencida pelo Centrão. Esse governo é frágil e precisa, desesperadamente, de uma blindagem. Bolsonaro viu crescer o risco de um remoto impedimento com as falhas no combate à pandemia e recorreu ao velho presidencialismo de coalização.
Numa possível vitória do ex-presidente Lula, como o senhor acha que o Exército se comportará?
Cumprirá a Constituição e baterá continência para o comandante em chefe das Forças Armadas.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752
Confira a publicação original da Revista Veja:
Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/raul-jungmann-nao-vai-ter-golpe/
Ameaça de golpe militar: General nega envolvimento das Forças Armadas
Francisco Mamede de Brito Filho, que participa de webinar organizado pela FAP nesta sexta (30), a partir das 16h, diz não ver riscos de os militares reagirem se Bolsonaro perder a eleição em 2022
Cleomar Almeida, da equipe da FAP
O general da reserva do Exército Francisco Mamede de Brito Filho, de 59 anos, 40 deles na ativa, diz não ver risco de as Forças Armadas serem usadas em reação ao resultado das urnas diante de uma possível derrota do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em 2022. Francisco, que também foi chefe de gabinete do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) nos quatro primeiros meses do atual governo, vai participar de evento online sobre o tema A questão militar: do Império aos nossos dias. O webinar será sexta-feira (30/7), a partir das 16h.
Assista ao vivo!
Coordenado pelo professor Hamilton Garcia de Lima, o evento será realizado pela FAP e também terá a participação do professor de história José Murilo de Carvalho e do ex-ministro da Defesa Raul Jungmann. O webinar terá transmissão em tempo real no portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade.
“É inimaginável achar que as Forças Armadas vão ser empregadas em favor de um posicionamento ou de um chefe de governo contrário ao parecer das urnas e do próprio presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Isso seria uma ruptura institucional grave”, afirma, em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
Desprestígio
Ex-instrutor da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Ecme) e ex-chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Nordeste, o general explica que “a questão militar é um fato histórico pontual”. Segundo ele, está relacionada ao desprestígio da categoria de maneira geral, por causa da questão salarial, e à legislação leniente.
“Os fatores ali presentes na questão militar vão se replicar em outras situações de ruptura, além da República, como na Revolução de 30, no Estado Novo e no movimento de 1964”, analisa ele.
O conjunto de leis, por exemplo, de acordo com o general, ainda é leniente por não estabelecer limites para a participação política do segmento militar. “Era de se esperar que o Estado propusesse mecanismo de controle para se evitar interferências políticas”, ressalta.
“Controle não é, simplesmente, ter arcabouço legal que venha impor restrições”, explica. “Mas é preciso reconhecer que a despolitização ocorre, principalmente, por meio de legislação que coíba situações que favoreçam a politização”, acrescenta.
Caso Pazuello
Além disso, ele chamou de “obscura” a razão que levou à absolvição do general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Em junho deste ano, o colega de corporação se livrou de punição administrativa após discursar em ato político em defesa de Bolsonaro, apesar de regulamento disciplinar definir como transgressão a participação de militar da ativa em evento de natureza político-partidária.
“Quanto a isso, a coisa está obscura porque o comandante do Exército decretou 100 anos de sigilo sobre os motivos que o levaram a não punir Pazuello. Deve ter levado em conta algum dado que o deixou à vontade para tomar aquela decisão, mas está clara a situação transgressora, considerando os dados aos quais tive acesso”, diz Francisco.
Na avaliação do general da reserva, é preciso fortalecer ainda mais a legislação para evitar brechas interpretativas que favoreçam militares em cenários de transgressão disciplinar. “Se estamos vivendo situações que colocam a sociedade ansiosa ou com clima de confiança indesejável na democracia, é porque não tratamos bem o arcabouço legal”, assevera.
PEC
O general ressalta que um passo importante será a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que visa impedir que militares da ativa ocupem cargos políticos em governos.
A autora da PEC, deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC), afirmou que a “sensação” é de que não se sabe mais onde termina o governo e onde começa o Exército. “É o que pode acontecer de pior para esta instituição e as demais Forças Armadas”, disse, nas redes sociais.
Pré-celebração do bicentenário da Independência
A questão militar: do Império aos nossos dias
Dia: 30/7/2021
Transmissão: a partir das 16 horas.
Onde: Portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da Fundação Astrojildo Pereira
Realização: Fundação Astrojildo Pereira
Frente democrática deve ser condicionada a programa político, diz historiador
Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública
Cristovam Buarque lista lacunas que entravam desenvolvimento do Brasil
‘Passado maldito está presente no governo Bolsonaro’, diz Luiz Werneck Vianna
FAP conclama defesa da democracia e mostra preocupação com avanço da pandemia
Raul Jungmann: Por quem os sinos dobram
Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população
“As polícias do Rio de Janeiro são hoje elementos de contaminação de todas as polícias brasileiras. Pela alta visibilidade e pelo ethos guerreiro, fixam um paradigma cultural de instituições totais de enfrentamento bélico, horrivelmente desconstitutiva dos mandamentos constitucionais atribuídos aos policiais.” (Ricardo Balestreri).
Pesquisas e estudos constatam que o método de combate das polícias cariocas ao crime organizado, como na comunidade do Jacarezinho, não leva à redução da violência, do tráfico de drogas, e nem das mortes violentas.
Mas produz efeitos colaterais, como a morte de inocentes, e favorecem disputas de uma facção sobre outra no domínio do tráfico e controle de uma comunidade. Ainda assim, boa parte da população as apoia. Qual a razão?
Creio que são três as principais. Em primeiro lugar, a violência endêmica, potencialmente universal, que a todos torna inseguros e potenciais vítimas. Em segundo, a incapacidade do Estado, via segurança pública, de assegurar a vida e o patrimônio da população, os mais pobres à frente, abrindo espaço para organizações criminosas o substituírem nesse papel. Por último, a incapacidade, lentidão e/ou parcialidade atribuída ao sistema de justiça em punir culpados e dirimir conflitos.
No conjunto, estas causas operam uma regressão em princípios e valores civilizatórios e humanitários da sociedade, que despe os que são estigmatizados como bandidos, criminosos ou suspeitos – usualmente o negro, o favelado, e o pobre -, da sua integral humanidade.
Instala-se uma lógica da vingança, do olho por olho, dente por dente. Hoje, o Brasil é o país que mais lincha no mundo, segundo o sociólogo José de Souza Martins. Essa lógica, do combate e guerra contra o crime, nos tem levado no sentido contrário de uma maior segurança.
Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população, que vivem sem direitos e garantias constitucionais.
Milícias, que continuam avançando, em que pese os recorrentes massacres de “suspeitos” ou bandidos; milícias, que possuem uma porta giratória pela qual passa parte dos efetivos policiais e vice-versa.
Portanto, quando um novo combate se travar e mortos às dezenas, inclusos inocentes e/ou crianças, forem recolhidos nas ruas das favelas, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por você e por todos nós.
*Raul Jungmann foi Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Fonte:
Capital Político
https://capitalpolitico.com/por-quem-os-sinos-dobram/
Raul Jungmann: Por quem os sinos dobram
“As polícias do Rio de Janeiro são hoje elementos de contaminação de todas as polícias brasileiras. Pela alta visibilidade e pelo ethos guerreiro, fixam um paradigma cultural de instituições totais de enfrentamento bélico, horrivelmente desconstitutiva dos mandamentos constitucionais atribuídos aos policiais.” (Ricardo Balestreri).
Pesquisas e estudos constatam que o método de combate das polícias cariocas ao crime organizado, como na comunidade do Jacarezinho, não leva à redução da violência, do tráfico de drogas, e nem das mortes violentas.
Mas produz efeitos colaterais, como a morte de inocentes, e favorecem disputas de uma facção sobre outra no domínio do tráfico e controle de uma comunidade. Ainda assim, boa parte da população as apoia. Qual a razão?
Creio que são três as principais. Em primeiro lugar, a violência endêmica, potencialmente universal, que a todos torna inseguros e potenciais vítimas. Em segundo, a incapacidade do Estado, via segurança pública, de assegurar a vida e o patrimônio da população, os mais pobres à frente, abrindo espaço para organizações criminosas o substituírem nesse papel. Por último, a incapacidade, lentidão e/ou parcialidade atribuída ao sistema de justiça em punir culpados e dirimir conflitos.
No conjunto, estas causas operam uma regressão em princípios e valores civilizatórios e humanitários da sociedade, que despe os que são estigmatizados como bandidos, criminosos ou suspeitos – usualmente o negro, o favelado, e o pobre -, da sua integral humanidade.
Instala-se uma lógica da vingança, do olho por olho, dente por dente. Hoje, o Brasil é o país que mais lincha no mundo, segundo o sociólogo José de Souza Martins. Essa lógica, do combate e guerra contra o crime, nos tem levado no sentido contrário de uma maior segurança.
Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população, que vivem sem direitos e garantias constitucionais.
Milícias, que continuam avançando, em que pese os recorrentes massacres de “suspeitos” ou bandidos; milícias, que possuem uma porta giratória pela qual passa parte dos efetivos policiais e vice-versa.
Portanto, quando um novo combate se travar e mortos às dezenas, inclusos inocentes e/ou crianças, forem recolhidos nas ruas das favelas, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por você e por todos nós.
*Raul Jungmann foi Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Fonte:
Capital Político
https://capitalpolitico.com/por-quem-os-sinos-dobram/
Raul Jungmann: 'As Forças Armadas não aceitam uma aventura antidemocrática'
Ricardo Chapola, Revista IstoÉ
A carreira política de Raul Jungmann, de 69 anos, passou por extremos. Nascido em berço esquerdista, Jungmann lutou contra a ditadura militar quando ainda era universitário ao ingressar no MDB. Depois, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Sua trajetória começou a mudar quando integrou o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Durante esse período, Jungmann estreitou relações com as Forças Armadas, o que se intensificou durante seus mandatos como deputado federal, até transformá-lo em ministro da Defesa no governo Temer. Foi nessa época também que passou a defender a proibição da venda de armas no País. Por essa razão, virou ministro da Segurança Pública em 2016.
Atualmente, Jungmann continua militando pela regulação de armas e pela democracia. Em entrevista à ISTOÉ, o ex-ministro criticou a política armamentista de Bolsonaro, sugeriu que o presidente tenta formar milícias para se sustentar no poder e afirmou que o ex-capitão é o principal responsável pela grave situação do País na pandemia “Bolsonaro exerceu o papel de descoordenação, de negacionismo e também de negligência com a vida dos brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária que nós estamos vivendo hoje”.
As trocas de ministros e de comandantes das Forças Armadas, além das mudanças na PF, feitas por Bolsonaro, configuram uma tentativa de o presidente interferir nessas áreas?
É privativo do presidente a substituição de cargos comissionados. Sob o aspecto legal é normal. O que parece anormal é o fato de termos tantas mudanças na PF. Isso sim caracterizaria uma intervenção na PF, que é descabida. A PF é a Polícia Judiciária da União. Evidentemente ela tem que ter autonomia, sobretudo face às funções que ela tem. Esse excesso de intervenção mostra interesse de dar uma direção política a um órgão de Estado e que não pode ser politizado. Essa sequência de mudanças e essa busca de politizar a PF desserve aos critérios constitucionais da impessoalidade e da imparcialidade que um órgão como esse tem que ter. Isso significa uma tentativa de intromissão no domínio legal. Não contribui para a democracia e tampouco para a independência dos poderes.
O Ministério da Justiça fez uso da LSN para abrir inquérito contra críticos a Bolsonaro. Qual a opinião do senhor sobre o assunto?
O Congresso tem falhado desde a redemocratização em dar ao País uma lei de defesa do Estado Democrático. Para mim, a principal responsabilidade é do Congresso. Na medida em que a legislação que você tem de defesa do Estado é uma lei do regime militar, ela termina sendo usada. Evidentemente que ela está sendo empregada abusivamente. E também acho que vem sendo usada com finalidade política. O Congresso já deveria ter aprovado uma lei do Estado Democrático.
Polícias estaduais também usaram a LSN para prender pessoas. Como o senhor classifica essa relação que Bolsonaro estabelece com as polícias nos Estados?
Eu fui companheiro de Bolsonaro na Câmara durante 12 anos. A clientela dele eram os militares e os policiais. Uma parte dessa polícia é base do presidente, que comunga dos mesmos valores e das percepções dele. O que acontece é que isso leva, às vezes, a excessos, como é o caso dos rapazes presos por policiais do DF em Brasília. De fato, é um exagero você necessitar prender manifestantes com base na LSN. E isso, inclusive, tem sido repelido e negado pelo Judiciário, que não tem dado guarida a isso. Existe, de um lado, a falha do Congresso. De outro, existe um uso excessivo e político da legislação. Mas, ao mesmo tempo, pelo fato de não termos outra lei, terminamos utilizando uma legislação que é obsoleta. A liberdade de expressão existe e tem que ser respeitada.
O STF mandou o Senado instalar a CPI da Covid-19. Qual deve ser o foco das investigações da CPI?
O Senado não tem mandato para investigar estados e municípios. É inconstitucional. O que cabe é investigar a transferência de recursos federais para estados e municípios. Em termos de responsabilidade, a maior é do governo federal, sem a menor sombra de dúvida. Porque Bolsonaro exerceu o papel de descoordenação, de negacionismo e também de negligência com a vida dos brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária que nós estamos vivendo hoje. Acho também que o principal foco da CPI deve ser o de investigar o papel do governo federal, da Presidência da República e do Ministério da Saúde, os principais responsáveis pelo caos.
O senhor acha que Bolsonaro agiu corretamente quando escalou o presidente do Senado para articular a montagem do comitê de emergência da Covid-19?
A relação administrativa entre as esferas da União não são delegáveis a outros poderes. Quem tem atribuições constitucionais para estabelecer essa coordenação, obviamente, é o governo federal. Na prática, essa comissão é uma comissão natimorta. Esse papel é do Executivo. Não é do Legislativo, por melhor que seja a boa vontade do presidente do Senado. Essa comissão rapidamente desapareceu. O presidente tinha que criar uma unidade nacional. Tinha que promover um movimento que congregasse os poderes, União, estados, municípios e oposição em torno da questão de salvar vidas. E Bolsonaro faltou com esse papel de forma equivocada. Preferiu litigar, se contrapor a governadores e prefeitos, politizando algo que é inadmissível. Estamos lidando com a vida das pessoas. Não estamos numa causa política. Falta visão de estadista a Bolsonaro.
Mesmo assim essa tentativa de união veio tarde demais, não?
Sim, veio tarde. Já perdemos um ano e dois meses e quase 400 mil vidas. Mas sempre é hora para minimizar danos. Em que pese as críticas que faço, espero que o presidente reveja sua posição. Porque têm vidas em jogo. É uma dor que o Brasil carrega. É insuportável. Outra coisa é o desemprego, a fome e a falta de vacinas. Quando a necessidade ultrapassar o medo, aí sim nós teremos problemas sociais. Por isso que a gente tem que cuidar da vacina. Essa é a grande saída. De outra parte, precisamos reativar a economia. Não adianta separar as duas coisas. Tem que salvar as duas coisas. Mas a locomotiva disso é a vida.
Como o senhor classifica as acusações contra o presidente sobre o suposto uso da Abin para orientar a defesa de Flavio Bolsonaro no caso Queiroz?
A Abin é o órgão central do sistema de inteligência nacional. É um órgão da presidência para manter o presidente informado e apoiá-lo na tomada de decisões. Esse sistema de inteligência tem que estar submetido a critérios rígidos de controle. Como órgão de Estado, a Abin jamais pode estar a serviço de qualquer interesse privado, seja familiar do presidente, ou de quem for. Caracterizaria como crime caso fosse usada dessa forma. A Abin é um órgão de Estado. Não compete a ela nenhum tipo de atividade que seja em benefício de interesses privados. Isso significaria desvio de função, o que é inaceitável.
Qual é sua opinião sobre o projeto armamentista de Bolsonaro? Não seria arriscado defender que a população seja armada durante a pandemia?
Isso me preocupa. Sempre me posicionei que as armas fossem controladas. Mais armas significa mais mortes. Esse debate sempre foi feito na esfera da segurança pública. O presidente trouxe essa questão para a esfera político-ideológica. Fez isso ao dizer que precisávamos armar os brasileiros para que eles defendam a liberdade e não sejam escravos. Ele quebrou o monopólio da violência legal, que pertence ao Estado. Ele está ferindo o Estado, que é a parte que representa a soberania da nação. Bolsonaro está também ferindo o papel constitucional das Forças Armadas. Se o Estado tem o monopólio da violência legal, a última trincheira, a defesa que tem o Estado, são as Forças Armadas. Se você quebra o monopólio, você está criando um poder paralelo que tende a se contrapor às Forças Armadas.
O senhor está se referindo às milícias?
Sim, às milícias, bandos e grupos insurgentes. Não interessa. Se você arma brasileiros sem que exista qualquer ameaça ao Brasil ou à democracia, você está armando brasileiros contra os próprios brasileiros. Isso tem um nome horripilante: guerra civil. Na história, todas as vezes que alguém armou a população teve genocídio, massacre, golpes de estado. Por isso, foi tão importante a reação da ministra Rosa Weber. Os decretos representam exatamente a massificação do derrame de armas e munição para a população. Entre 2019 e 2020, a PF verificou um crescimento de 90% no registro de armas. Além do mais, grande parte dessas armas acaba parando nas mãos do crime organizado. Isso me preocupa, sobretudo quando a gente pensa no que aconteceu no Capitólio, nos Estados Unidos. E nós temos eleições presidenciais em 2022.
Bolsonaro entrou em atrito com os militares ao trocar o ministro da Defesa e o comando das Forças Armadas. O senhor acha que Bolsonaro tentou dar um autogolpe?
Não foi uma tentativa de golpe, porque não existe golpe no Brasil sem o apoio das Forças Armadas. O que Bolsonaro tentou fazer foi motivar as Forças Armadas a endossarem seus atos e ações, inclusive para constranger os outros Poderes. Como o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas não concordaram com isso, o presidente os demitiu. Não existe nenhuma razão para ele ter feito isso. A explicação é que foi uma intervenção política e uma punição às Forças Armadas, que não endossaram uma aventura autoritária. As Forças Armadas estão totalmente indisponíveis e não aceitam qualquer tipo de aventura antidemocrática no Brasil. O efeito foi o contrário. Um sonoro, uníssono, sólido “não”.
O senhor acha que a democracia corre riscos?
Temos aqui o presidencialismo de coalizão. Mas Bolsonaro aderiu ao presidencialismo de colisão. É o presidente da antipolítica. Preferiu optar por constranger outros Poderes. Dizendo ter a espada e ter apoio dos militares. O que ele não tinha. E dizendo também que tem o apoio das massas. Com esse presidencialismo baseado no constrangimento de outros Poderes, Bolsonaro fracassou redondamente. O STF não se dobrou. O Congresso tem um projeto autônomo, apesar de o presidente ter passado a negociar com o Centrão. E isso está manifestamente demonstrado no caso desse orçamento inadministrável. Esse orçamento é a expressão acabada de que o governo perde a capacidade de governar. Chegar nessa situação é a demonstração clara de perda de capacidade de governar. Independentemente de seus interesses, de seus desejos, o presidente vem tendo das instituições brasileiras uma resposta muito clara: de que elas não aceitarão qualquer tipo de desvio do rumo democrático. Não há disposição, nem vontade de ninguém para embarcar em qualquer aventura autoritária.
Igor Gielow: Militares disseram não a Bolsonaro e sim à democracia, diz Jungmann
Ex-ministro descarta atos autoritários dos novos comandantes, vê baixa governabilidade e Congresso omisso sobre defesa
Os militares brasileiros disseram não a Jair Bolsonaro e sim à democracia durante a crise que se desenrolou nesta semana, a maior desde a demissão do ministro do Exército que queria impedir a abertura da ditadura, em 1977.
A avaliação é de Raul Jungmann, 68, que foi ministro da Defesa (2016-18) e da Segurança Pública (2018) do governo Michel Temer (MDB).
Político com grande trânsito entre os setores militares, Jungmann diz que Bolsonaro fracassou em sua tentativa de alinhar as Forças Armadas a seu projeto de poder. "Foi o dia do fico, no caso, ficar com a Constituição, com a democracia", afirmou.
Ele se refere à posição do general Fernando Azevedo, demitido do cargo de ministro da Defesa na segunda (29) por discordar da exigência de Bolsonaro de maior apoio político das Forças Armadas a seu governo e ao combate às medidas de restrição do contágio da Covid-19.
No dia seguinte, Edson Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antonio Carlos Bermudez (Aeronáutica) entregaram os comandos ao novo ministro, general Walter Braga Netto. O movimento irritou Bolsonaro, que mandou demiti-los.
Após um dia de tensão, acabaram escolhidos para as Forças nomes acertados com os Altos-Comandos. "As escolhas são a fotografia do fracasso de tentativa de politização. Os comandantes não se disporão a qualquer ideia autoritária", disse.
Em conversa por telefone, ele avalia que o presidente está perdendo a capacidade de governar, como a crise acerca do Orçamento inexequível em curso mostra.
Alerta para o risco de instabilidade social devido à gravidade da pandemia e teme pelo avanço armamentista no momento em que a bancada da bala foi instalada no Ministério da Justiça.
E diz que a união entre presidenciáveis, que lançaram um manifesto conjunto na quarta (31), é uma imposição ante a realidade de ter de escolher entre Bolsonaro e o PT em 2022.
Como o sr. avalia a crise militar desta semana? - Ela decorreu da situação do presidente. De um lado, ele vem enfrentando uma queda progressiva de popularidade. Do outro, ele tem uma relação conflituosa com o Judiciário.
A vitória política que ele teve na eleição das Mesas do Congresso é relativa. O Congresso, o centrão, tem um projeto autônomo que só às vezes coincide com o do Planalto. Isso ficou claro na fala do [presidente da Câmara] Arthur Lira sobre os “remédios fatais” contra o Executivo. O presidente dá sinais de perda de capacidade de exercer suas competências.
Nessa confusão do Orçamento, por exemplo? - Para mim, é o exemplo acabado. Sempre há negociações. O Orçamento enviado não é administrável. Isso aponta para a precariedade da articulação política, a pouca governabilidade. Por fim, tem a pandemia, fora de controle.
Pelo que foi informado, ele então resolve subir o sarrafo da lealdade e do endosso das Forças Armadas. Nesta hora, vem o não, e ele reage com uma intervenção.
Alguém pode me dizer um motivo pelo qual ministro e comandantes tenham sido afastados? Não estavam cumprindo a Constituição, seus afazeres? Único motivo é político.
Sempre que acuado, Bolsonaro busca associar-se aos militares, usou o “meu Exército” em fala. - Uso de pronome possessivo para falar das Forças Armadas é coisa de monarquia, onde o rei é Estado. Não é coisa de República, onde elas pertencem à nação.
Veja, o presidente se elegeu na onda da antipolítica e não fez o presidencialismo de coalizão. Como ele vai aprovar o programa dele? Ele apresenta duas forças: os militares e as massas. Mas falha redondamente.
Por isso ele apelou então ao centrão. - Isso é o reconhecimento de que a política não deu resultado. A posição dele é enfraquecida cada vez mais. Há o inquérito das fake news, chegando a atores do bolsonarismo, os processos sobre sua família, a pandemia.
Esse ano está perdido na economia. Ele busca se reforçar cedendo postos para o centrão. Mas é preciso lembrar que o centrão é pragmático e tem um projeto autônomo.
Como o sr. avalia a saída proposta para a crise, com Braga Netto na Defesa e os novos comandantes? Vê apaziguamento ou só enxugaram gelo? - Convivi bem com o Braga Netto. É um militar competente. Pelo lado do resultado, as escolhas que foram feitas de novos comandantes são a fotografia do fracasso de tentativa de politização. Eles estão em linha com os comandantes que saem. Não se disporão a qualquer ideia autoritária, e os Altos-Comandos também não.
Eles são a reafirmação do que eu sempre digo: os militares estão indisponíveis para qualquer ato antidemocrático.
Isso na cúpula. E a percepção de que a tropa se bolsonariza à medida em que descemos na hierarquia? - Não falo pelas Forças, mas tive convívio com elas e isso se perpetua. Acho que há um polo de apoio ao presidente na atual reserva, pessoas mais antigas, com mentalidade de Guerra Fria.
Parece haver algum apoio na suboficialidade, mas a possibilidade ruptura é inexistente. É evidente que há bolsonaristas nas Forças, como há em todo o Brasil. Isso não significa que elas vão romper princípios de respeito à democracia. O que elas ganhariam com isso? Nada.
Ao mesmo tempo, parece difícil essa dissociação no momento em que há milhares de militares no governo, vários ministros, plano de carreira garantindo reajuste, programas sem corte orçamentário, além do apoio de largada a Bolsonaro. - Começando pela presença dos militares no governo, é responsabilidade do Congresso Nacional de estabelecer essa participação.
Eu acho que militar da ativa, exceto em poucos cargos afins, só pode estar no governo em casos excepcionalíssimos. As Forças são instituições de Estado, representam toda a nação.
Políticos não são dados a assuntos militares, não? - É inexplicável, temos um poder político que se aliena. Se o poder civil não tem diálogo e projeto, não serão as Forças que irão mudar. Ouço queixas sobre os militares, mas não vejo disposição para liderança e projeto, e sim pouca responsabilidade.
Aí os militares então olham para política e não veem nada. Daí surge a ideia da tutela militar. Mas generais da reserva não falam pelas Forças, e os comandantes que ora saem permaneceram silentes.
A atual tutela militar não começou no governo Temer, que ficou muito fraco após o caso Joesley Batista em 2017? O general Sérgio Etchegoyen era poderoso no Planalto, o sr. foi substituído por um general na Defesa. - Na criação do ministério, em 1999, existia um projeto político. Entendia que deveríamos ter ministros da Defesa civis, mostrando o controle civil sobre militares. Eu revi essa posição. O controle tem de ser feito pelo Congresso.
Ser militar não é o problema. O secretário de Defesa Jim Mattis era fuzileiro, e ninguém duvida do poder político sobre as Forças Armadas dos EUA.
A questão é outra. Não há uma carreira de analista civil em defesa. Defesa é algo que precisa ser debatido pela sociedade.
Insisto acerca do governo Temer. Não houve espaço para esse crescimento político dos militares, como no caso do tuíte do comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, em 2018? - É um processo que começa na discussão do relatório da Comissão da Verdade, na gestão Dilma Rousseff (PT).
Foi feito um acordo que, pelo que relatam, não foi cumprido. Isso levou a uma reação dos militares, que buscavam ser mais respeitados.
Começa então haver uma presença maior do general Villas Bôas, que é meu amigo e um democrata. Naquele episódio do tuíte [em que pressionou o Supremo a não conceder habeas corpus para evitar a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018] ele buscou se antecipar, e foi uma forma inadequada de se expressar.
Mas eu acredito que, se o resultado fosse favorável ao habeas corpus de Lula, não haveria nenhuma quebra democrática. E também não creio que o Supremo tenha se dobrado a qualquer pressão.
Os militares aceitarão se Lula for candidato e ganhar? - Se qualquer um ganhar. Lula, Doria, Huck, Mandetta. Os militares deram uma demonstração definitiva nesta crise. Foi o dia do fico, no caso, ficar com a Constituição, com a democracia. Foi exemplar.
E não era inesperado. Na entrevista que eu e Etchegoyen fizemos com Pujol [em novembro], a resposta dele foi cristalina: não queremos fazer política, nem queremos política nos quartéis.
O sr. vê outros riscos para 2022? Em carta ao Supremo, o sr. dizia temer uma guerra civil devido à política armamentista de Bolsonaro. - Sim, é um problema. Quando o presidente transita o tema das armas da segurança pública para a política e a ideologia, dizendo que tem de armar a população, ele propõe a quebra do monopólio da violência do Estado.
Nenhum Estado democrático consolidado pode permitir isso, você fere o papel constitucional dos militares. E não nenhuma ameaça, interna ou externa. Aí sim me preocupa o risco de termos algo ainda pior do que a invasão do Capitólio nos EUA.
O grupo associado a essas políticas, a bancada da bala, acaba de assumir o Ministério da Justiça e da Segurança Pública com Anderson Torres. É preocupante? - Não é nada que diga respeito à pessoa do ministro, mas é preciso ver como o cenário vai se desenvolver. O ministério controla a Polícia Federal, mas eu também acredito que a PF não aceitará qualquer orientação política.
A indicação é privativa do presidente, claro, mas acredito que existam blindagens. O ministro conhece as leis, não acho que irá fazer qualquer obstrução de Justiça.
Voltando aos militares, Braga Netto celebrou o golpe de 1964 na sua primeira ordem do dia. Falta autocrítica às Forças sobre o tema? - Tivemos um processo de anistia que foi negociado. Houve a Lei de Anistia no Congresso e, depois, sua validação no Judiciário.
Sob o aspecto político, democrático, está resolvido. Mas claro que há demandas de lado a lado. Qualquer ação que queira celebrar [a ditadura] ou busque revisar o que foi estabelecido deve ser desestimulada. Isso, claro, não significa interditar o debate, estudos, a democracia é dissenso, não consenso.
Isso é fruto das condições da transição democrática aqui, que foi diferente da do Chile e da Argentina. Não queremos que esse passado volte.
Para os militares, haverá impacto de longo prazo desta crise e também do desgaste que foi a gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde? - Acho que sim, a começar pelo ineditismo, não víamos algo assim desde 1977.
Chamo atenção para o fato de que nunca houve insubordinação dos envolvidos. Isso fica claro e é duradouro. Foi o dia do não e o dia do fico com a democracia. Muito simbólico que tenha ocorrido um dia antes do 31 de março. Mas isso cria também um trauma.
Mas os militares entraram nessa voluntariamente, não? - Acho que o apoio a Bolsonaro foi mais um exercício de cidadania, de gente que votou. O sentimento era da população do antipetismo, um subproduto do que foi feito nos governos do PT, e da Lava Jato, que ceifou lideranças e criou um vazio.
As Forças Armadas são parte do povo. Os motores de Bolsonaro foram o rechaço a uma política que se deixou corromper e a insegurança da população.
Continuamos da mesma forma, nas relações público-privadas e no sistema de segurança pública. É preciso rever o pacto constituinte, senão citaremos Carlos Drummond de Andrade: “Sempre no mesmo engano outro retrato”.
O vice Hamilton Mourão era visto como um seguro contra impeachment pelas suas frases golpistas, havia sido punido duas vezes, uma inclusive em sua gestão na Defesa. Hoje é visto com um anteparo democrático no Planalto. O que o sr. acha? - Minha opinião é de que a lealdade dele está sendo incompreendida e hoje, ele é um vice-presidente que tem compromissos democráticos, independentemente de suas opiniões. Tenho uma relação fraterna com ele.
Como vê essa aproximação dos presidenciáveis que lançaram um manifesto? - É uma imposição. Individualmente, nenhum deles tem força para romper a polarização restabelecida entre Bolsonaro e o PT.
Ou bem se cria uma candidatura forte e única, ou bem seremos obrigados a ver a atualização da polarização que grande parte dos brasileiros não quer.
Vivemos uma crise política, sanitária e econômica, centenas de milhares pagaram com a vida. Isso é inédito. Se a política não resolver equacionar a crise, ela vai acabar engolida. Em outros impasses, os impeachments de Collor e Dilma, o mensalão, achamos saídas.
Como assim engolida? - Quando a necessidade vence o medo. Há risco de instabilidade social.
RAIO-X
Raul Jungmann, 68, é pernambucano de Recife. Foi secretário estadual de Planejamento (1990-91). No governo FHC, foi presidente do Ibama (1995-96), ministro de Política Fundiária/Desenvolvimento Agrário (1996-2002). Foi deputado federal de 2003 a 2010, vereador em Recife (2012-14), deputado federal licencigado de 2015 a 2018. No governo Temer, foi ministro da Defesa (2016-18) e da Segurança Pública (2018). Foi do MDB (1974-1979), PCB (1979-1992), PPS (1992-2018). Hoje é consultor.
Com armamento da população, Bolsonaro acena para guerra civil, diz Raul Jungmann
Em artigo na revista Política Democrática Online de março, ex-ministro analisa gravidade da política do presidente
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O armamento da população, como pretende o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), fere o papel constitucional das Forças Armadas, segundo o ex-ministro da Defesa e ex-ministro extraordinário da Segurança Pública Raul Jungmann, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março.
A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.
De acordo com ele, ao propor armar a todos, o presidente está, consecutivamente: quebrando o monopólio da violência legal, privativa do Estado Nacional, ferindo o papel constitucional da Forças Armadas e acenando com a hipótese de um conflito de brasileiros contra brasileiros, uma guerra civil.
Armamento massivo
“Isso nos motivou a redigir uma carta aberta ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam ações contrárias a política de armamento massivo, alertando para os riscos para a segurança pública e para a estabilidade democrática”, lembra Jungmann, que também é ex-deputado federal.
No curso da divulgação da carta, conta Jungmann, a repercussão superou expectativas na mídia tradicional, nas redes, colunas de opinião e junto a vários formadores de opinião. “O que talvez queira dizer da preocupação das pessoas com o tema e a percepção dos riscos envolvidos numa política armamentista. E existem razões concretas para tal”, assevera.
Em seu artigo na revista da FAP, o ex-ministro cita dados da Polícia Federal, segundo a qual, em 2020, o registro de armas de fogo cresceu 90% em relação ao ano anterior, o maior crescimento de um ano para outro já registrado pela série histórica.
Escalada de mortes
“Do outro lado da moeda, as mortes violentas, que iniciam uma queda em 2018 (ano em que éramos Ministro da Segurança Pública) e continuaram caindo em 2019, retomaram sua escalada em 2020”, pondera ele.
Na revista Política Democrática Online, o autor lembra, ainda, que entidades diversas da sociedade civil e ongs se mobilizaram promovendo um abaixo assinado em apoio à carta aberta, que, segundo ele, já conta com mais de dez mil assinaturas. O documento deve ser entregue a ministros do STF em breve.
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