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Bernardo Mello Franco: Um Nobel para Raoni
O Comitê Norueguês divulgará na sexta-feira o vencedor do prêmio Nobel da Paz. A edição deste ano tem 318 candidatos. Como reza a tradição, a lista completa é mantida em segredo. Nela está o nome do cacique Raoni Metuktire.
O líder caiapó tem cerca de 90 anos de idade. Sabe-se que ele nasceu no início da década de 1930 na antiga aldeia Kraimopry-yaka, em Mato Grosso. Em 1954, conheceu os irmãos Villas-Bôas e virou porta-voz da causa indígena. Tornou-se um dos principais defensores dos povos da floresta.
Raoni virou celebridade global em 1989, quando fez uma turnê ao lado do cantor Sting. Eles visitaram 17 países em busca de apoio a duas bandeiras: a preservação da Amazônia e a demarcação de terras. Antes disso, o cacique já havia ajudado a inscrever os direitos dos índios na Constituição.
No ano passado, o caiapó fez novo giro internacional para denunciar o agravamento das queimadas e do desmatamento no Brasil. Foi recebido pelo Papa Francisco e pelo presidente da França, Emmanuel Macron. O presidente Jair Bolsonaro se irritou com a viagem. Na tribuna da ONU, apelou a um nacionalismo de araque e chamou o líder indígena de “peça de manobra” de governos estrangeiros.
Os ataques do capitão não abalaram o velho cacique. Neste ano, ele enfrentaria desafios muito maiores. Sobreviveu a uma hemorragia digestiva, à contaminação pelo coronavírus e à morte da mulher, Bekwyjkà.
Apesar da campanha a seu favor, Raoni não aparece entre os mais cotados para o Nobel da Paz de 2020. A ativista sudanesa Alaa Salah, o oposicionista russo Alexei Navalny, a Organização Mundial da Saúde e o Comitê para a Proteção dos Jornalistas despontam nas listas de favoritos.
A história de luta do caiapó não é o único motivo para torcer por uma zebra. Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a atacar as demarcações e tentou culpar os índios pela destruição da Amazônia. Um Nobel para Raoni ajudaria a mobilizar o mundo em defesa da floresta e dos primeiros habitantes do Brasil.
Fernando Gabeira: Bibliotecas em chamas
Índios mais velhos são depositários do conhecimento, numa cultura oral
Escrever sobre índio é nadar contra a corrente porque os editores do passado achavam o tema um tédio, os políticos pensam que dá azar e, no cotidiano, costumamos chamar de programa de índio a algo desinteressante, sem graça.
O velho líder caiapó Raoni esteve internado em estado grave e teve alta. Não é Covid, mas a dor universal de perder a mulher com quem viveu muitos anos está derrubando o guerreiro.
Conheci Raoni em Altamira. Documentei sua amizade com o cantor Sting e com Anita Roddick, dona da Body Shop. Era uma segunda descoberta europeia dos índios brasileiros, reunidos ali para protestar contra a usina de Belo Monte. Agora os viam também como defensores da floresta.
Os viajantes do século XIX, meu tema de estudo, eram fascinados pela curiosidade de conhecê-los. O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e o grande pintor Rugendas, por exemplo, estiveram no Brasil, mas os procuravam em qualquer ponto do mundo novo. Max, desculpe tratá-lo com essa intimidade, navegou longamente pelos rios norte-americanos, contraiu escorbuto, mas não perdia a chance de conviver com os índios.
Rugendas sofreu um acidente na Argentina, um raio o atingiu. Desfigurado e com dores crônicas, sentiu a proximidade de índios, cobriu o rosto disforme com um manto negro, tomou uma dose de morfina e cavalgou alguns quilômetros para pintá-los. E que lindas cores reproduzia em seus desenhos.
O governo brasileiro acha que os índios devem ser integrados. Um pouco como o Weintraub, mas não tão agressivo como ele, que dizia odiar a expressão “povos indígenas”.
Na verdade, esse é um sonho de liquidação cultural. No momento em que a Covid-19 avança pelas aldeias, é também uma destruição física. Já morreram 500 e, de um modo geral, os mais velhos. São os depositários do conhecimento, numa cultura oral. O jornal “El País” descreveu precisamente essas mortes: é como se fossem inúmeras bibliotecas pegando fogo.
O governo não quer dar nem água potável para eles. Os ianomâmis e os ye’kwanas, lá na fronteira com a Venezuela, estão acossados por garimpeiros. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, já advertiu o governo brasileiro duas vezes. Na primeira, foi respondida apenas de uma forma muito geral, insatisfatória.
O fotógrafo Sebastião Salgado fez uma campanha para que os índios fossem protegidos na pandemia e pela expulsão dos invasores de suas terras.
Não repercutiu aqui como merecia. Apesar do que pensa o governo, a Constituição, em dois artigos, reconhece seus direitos não só culturais, como também territoriais.
O STF, através do ministro Luís Roberto Barroso, tenta fazer valer o texto da lei, e não os delírios destrutivos do governo. Creio que é necessário advertir para o que se passa lá fora e seus desdobramentos. A imagem do Brasil está desgastada pela política ambiental. E também pela política sanitária, considerada um desastre até pelo presidente das Filipinas, um exemplo asiático do modelo Bolsonaro.
Esses dois desgastes convergem na questão indígena, onde os temas sanitários e de defesa da Amazônia se associam.
Bolsonaro foi questionado no Tribunal Internacional pelo PDT pela sua omissão na pandemia. Como é de se esperar em nossa cultura, o partido esqueceu os índios em sua denúncia.
A única juíza brasileira que atuou no Tribunal Internacional, Sylvia Steiner, ao mostrar que o esforço do PDT não teria êxito, lembrou que a situação dos índios brasileiros era algo que poderia levar Bolsonaro ao banco dos réus em Haia.
De fato, o artigo que define genocídio prevê a destruição parcial ou total de uma etnia. Foi por causa disso que o Tribunal aceitou a acusação contra o presidente sudanês Omar al -Bashir.
É preciso um esforço nacional para evitar que a pandemia devaste as populações indígenas. Nossa transmissão de vírus e micróbios, algo que os aniquila desde os tempos coloniais, precisa ser controlada. Se isso acabar em Haia, sinto que nossa cultura também será julgada, por não termos conseguido deter o processo.
E quanto aos nossos animados militantes de direita, lembro que não adiantará insultar o Tribunal pela internet nem fazer grandes bonecos representando seus juízes. E os nervosos generais que ameaçam com golpe certamente não devem fazer planos para invadir a Holanda. Um oceano líquido e mental nos separa.
El País: 'Onde está o amigo de Bolsonaro, o Queiroz?', ironiza Raoni
Em Altamira, no Pará, um dos maiores líderes indígenas do mundo responde às críticas do presidente com cobrança e faz apelo: "É a floresta que segura o mundo. Se acabarem com tudo, não é só índio que vai sofrer"
O cacique kayapó Raoni Metuktire só fala em paz. Em Altamira, onde participa do encontro Amazônia Centro do Mundo —que reúne povos da floresta (indígenas, quilombolas e ribeirinhos), cientistas e ativistas—, um dos maiores líderes indígenas do mundo repete a mensagem que espalha há mais de cinco décadas: "Minha luta é para proteger a floresta, para que todos possamos viver em paz". Não à toa, em setembro, Raoni entrou na lista de indicados para concorrer ao Nobel da Paz e outras lideranças indígenas de todo o país iniciaram a campanha para que ele levasse o prêmio (que acabou indo para Abiy Ahmed, primeiro-ministro da Etiópia). O cacique caiapó, no entanto, ficou alheio ao burburinho. "Esse é só o meu trabalho, né? Eu nunca pedi prêmio algum, mas, se eu ganhasse, usaria o reconhecimento para continuar ajudando o povo indígena e a preservação da floresta", diz ao EL PAÍS, sentado em um banquinho de madeira às margens do rio Xingu.
Apesar de falar português, há anos ele decidiu comunicar-se apenas em caiapó. Quem traduz a entrevista é Megaron Txukurramãe, seu sobrinho e, há anos, acompanhante nas viagens pelo mundo. É com ele, e com o segurança que o segue a todas as partes, que Raoni chega para o encontro, no meio da floresta. Antes de sentar-se para a conversa com a reportagem, ele, vestido com calça e camiseta azul marinho, um cocar de penas amarelas, diversos colares e o botoque no lábio inferior que lhe é tão característico, para durante alguns minutos para observar as árvores ao redor. "Como é bonito isso aqui!", diz, quase com um suspiro.
O cacique senta-se muito ereto no banco sem encosto para as costas e gesticula apenas com a mão esquerda. Se agita e faz movimentos com os dois braços, apontando repetidamente o indicador, de modo acusatório, quando faz menção ao presidente Jair Bolsonaro. Raoni, de aproximadamente 89 anos —não se sabe o ano exato de seu nascimento—, que havia passado os últimos anos afastado da vida pública, depois de tornar-se conhecido internacionalmente desde os anos 1980 pela defesa dos povos indígenas e pela luta contra construção da hidrelétrica de Belo Monte, conta que foi por causa de Bolsonaro que decidiu voltar a viajar e reunir-se com líderes de todo o mundo. "Nunca deixei de me preocupar pelos indígenas e pelo progresso dos nossos povos, com o que está acontecendo com a floresta. Mas, este ano, com a mudança de Governo, que ameaça nossa existência, pensei em voltar e continuar minha luta".
Em maio, Raoni viajou pela Europa em busca de apoio para a defesa da Amazônia. Esteve com o Papa Francisco e visitou o presidente francês, Emmanuel Macron. Isso rendeu-lhe um ataque de Bolsonaro em seu discurso de abertura da Assembleia-Geral da ONU, em setembro. “A visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia”, disse o presidente brasileiro.
Em agosto, Raoni lamentou publicamente que Bolsonaro não quisesse encontrar-se publicamente com ele. Hoje, diz que não tem interesse em sentar-se com o presidente. "Eu conversaria com algum outro representante do Governo, alguém que substitua ele. Mas com Bolsonaro não quero falar, não". Nesta segunda-feira, Raoni foi hostilizado por um pequeno grupo de representantes de entidades ruralistas durante a abertura da jornada da Amazônia Centro do Mundo na Universidade Federal do Pará (UFPA) de Altamira, que fizeram eco das palavras de Bolsonaro sobre as ONGs serem responsáveis por crimes ambientais na Amazônia. Apesar do incidente, quando retomou a fala, o líder indígena voltou a pedir paz.
O cacique solta uma sonora gargalhada quando perguntado se seu amigo Sting —ex-líder da banda The Police, com quem Raoni saiu em turnê internacional nos anos 1990 para denunciar a destruição da floresta e o descaso do Governo brasileiro com a população indígena— lhe telefonou para demonstrar apoio ante as críticas do presidente. "Todas as pessoas que eu conheço, Sting, Nicolas, Hulot [ambientalista francês], o presidente da França, o Papa, todos me apoiaram, todos me falaram que Bolsonaro não é bom, porque ele está me atacando. Todos me disseram: 'Estamos com você'. Mas sou eu que pergunto onde está o amigo dele. Cadê o amigo de Bolsonaro? Cadê o Queiroz?", pergunta, referindo-se a Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar do senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente. Queiroz é acusado de ter movimentado mais de um milhão de reais de forma irregular entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, período em que trabalhou como motorista e segurança do político. O ex-funcionário da Assembleia do Rio é investigado por lavagem de dinheiro e suspeito de cobrar uma fatia do salário de outros servidores, num caso paralisado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal que volta ao debate nesta quarta.
Mudanças climáticas e desmatamento
No dia em que o Governo divulgou que a Amazônia perdeu 9.700 quilômetros quadrados em um ano, o que representa o maior desmatamento desde 2008, Raoni lembrou que vem alertando há décadas sobre o problema, provocado principalmente pelas mineradoras, fazendeiros, madeireiros e grileiros na região. "Fico preocupado com o que está acontecendo hoje, as pessoas estão desmatando cada vez mais para fazer roças e plantar. E estão fazendo isso de uma maneira muito séria, com fogo. Acho que esse povo já tem seus pedaços de terra para empreender, deveriam continuar usando o que já têm, sem derrubar mais floresta".
O cacique também falou sobre as mudanças climáticas, um dos principais temas do encontro Amazônia Centro do Mundo. "Minha preocupação não é só com os indígenas, mas com todo o mundo. Porque se eles desmatarem toda a floresta, o tempo vai mudar, o sol vai ficar muito quente, os ventos vão ficar muito fortes. Eu me preocupo com todos, porque é a floresta que segura o mundo. Se acabarem com tudo, não é só índio que vai sofrer. Minha preocupação é com o futuro das crianças e jovens que vão crescer neste planeta", lamenta.
Raoni celebrou o encontro inter-geracional e de vários povos e etnias para debater soluções para a proteção do meio ambiente e dos povos da floresta. "Gostei muito de estar com eles, pude passar minha mensagem. Espero que essa união continue daqui para a frente, que possamos formar uma aliança para proteger a Amazônia", diz, fazendo com as mãos um movimento que indica união, junção de povos. Ele mencionou os jovens ativistas pelo clima, entre eles as belgas Anuna de Wever e Adélaïde Charlier, que navegaram durante seis semanas em um barco a vela para vir ao Brasil.
A essas jovens, deu um conselho sobre a melhor forma de lutar pela preservação da floresta e da vida: "Na minha vida, fiz muito discurso e falei com muito chefe político do mundo todo. É lá fora que temos que controlar o problema. Porque é o povo de lá que vem com dinheiro para investir aqui, para construir barragens, coisas grandes", diz e acrescenta: "Agora é a vez de vocês falarem com eles. E não é só pedir dinheiro. Dinheiro é bom para fiscalizar nossas áreas e não deixar madeireiros e garimpeiros entrarem, mas não é tudo. Tem que falar com os políticos".
À beira dos 90 anos —ou quiçá com mais que isso— Raoni diz que ainda tem força para lutar, apesar de dividir a responsabilidade para a juventude. "Eu vim para cá falar e para ser ouvido. É isso que vou fazer", afirma.