racismo

RPD || Henrique Brandão: Os 7 de Chicago, mais atual do que nunca

Filme de Aaron Sorkin, disponível na Netflix, aproveita elenco estelar em poderoso drama que recria o famoso julgamento de um grupo de ativistas acusado de conspiração e incitação à violência durante a Convenção do Partido Democrata, em Chicago, no ano de 1968

Desde 16 de outubro, encontra-se disponível na Netflix Os 7 de Chicago (The Trial of the Chicago 7).  O filme era aguardado pela crítica norte-americana e está cotado para concorrer ao Oscar. A expectativa pela estreia do longa de Aaron Sorkin – diretor de A Grande Jogada, (2017) e roteirista de A Rede Social (2010) e da série The Newsroom (2011-13), entre outros –  se explica: Os 7 de Chicago recria o famoso julgamento de um grupo de ativistas acusado pelo governo norte-americano de conspiração e incitação à violência durante a Convenção do Partido Democrata, em Chicago. 

O ano em que isso ocorreu? O indefectível 1968, é claro. Sem que ninguém tivesse combinado, em 1968 o mundo girou uma volta e protestou às pencas – em tal velocidade que nem a Lusitana daria conta de registrar todos os acontecimentos. Se fosse para gritar por liberdade, cabiam todos no caminhão das mudanças. O mundo fervia. 

Os EUA não ficaram de fora dessa roda viva. No ano, os assassinatos de Martin Luther King (abril) e Robert Kennedy (junho) chocaram o mundo. O movimento contra a Guerra do Vietnam ganhava corpo, dividindo o país, e os negros cada vez mais afirmavam sua identidade. Em paralelo, o movimento Hippie, com sua pregação de paz e amor, corria como rastilho de pólvora ameaçando a moral e os bons costumes estabelecidos. 

É nesse contexto que, em agosto, o Partido Democrata se reuniu para escolher seu candidato às eleições em novembro. Chicago tornou-se o epicentro dos protestos: milhares de manifestantes convergiram para a cidade, com suas bandeiras e palavras de ordem.  

Um big aparato de repressão os esperava: 12 mil policiais, 6 mil soldados da Guarda Nacional e 5 mil do Exército. A ordem do prefeito era não deixar ninguém se aproximar do Anfiteatro da cidade, local da Convenção. Nenhum protesto seria tolerado.  

O confronto era inevitável. No último dia da Convenção, cansados de apanhar, os manifestantes enfrentaram a polícia que, descontrolada, distribuiu cacetadas a rodo. Sobrou para todo mundo, além dos que protestavam: repórteres, delegados partidários, observadores. A cidade virou uma praça de guerra. O “Massacre de Chicago”, como ficou conhecido o episódio, foi transmitido pela TV para todo os EUA num filme de 17 minutos, sem cortes – um marco no jornalismo norte-americano. 

No ano seguinte, já com o republicano Richard Nixon na Casa Branca, a Comissão da Câmara sobre Atividades Antiamericanas abriu um inquérito por conspiração contra Tom Hayden e Rennie Davies (SDS – Estudantes para uma Sociedade Democrática); David Dellinger ( MOBE – Comitê de Mobilização contra a Guerra do Vietnam); Abbie Hoffman e Jerry Rubin (Yippie – Partido Internacional da Juventude); Lee Wainer e John Froines, professores; e Bobby Seale (Panteras Negras), considerados os líderes dos protestos. O julgamento começou em setembro de 1969 e se arrastou por cinco meses. 

Os 7 de Chicago revisita esse julgamento, que mobilizou ampla rede de solidariedade e ganhou vasta cobertura de imprensa. Trata-se de um filme de tribunal, na melhor tradição de Hollywood. É da sala do júri que, por meio de flashbacks, o quebra-cabeças (sem trocadilho) vai sendo mostrado ao espectador.   

Com um juiz controverso à frente do inquérito, Abbie Hoffman e seu parceiro, Jerry Rubin (ótimas atuações de Sacha Baron Cohen e Jeremy Strong), aproveitam a ocasião para desmoralizar o julgamento com performances hilárias, repetindo a postura iconoclasta que haviam adotado nos protestos de Chicago (dentre outras pilhérias, espalharam o boato de que iriam colocar LSD nos reservatórios de água da cidade, para todos entrarem numa viagem lisérgica. Muitos levaram a sério a piada, como o jornal conservador Chicago Tribune, e o consumo de água mineral disparou).  

O auge do confronto no Tribunal é quando o juiz (magnificamente interpretado por Frank Langella) manda amarrar na cadeira e amordaçar Bob Seale, por tentativa de obstrução dos trabalhos. Seale acusava o juiz de fascista e racista. Após este ato, o líder dos Panteras Negras foi julgado em separado. Com sua saída, o inquérito passou a ser conhecido como Os 7 de Chicago

Passados mais de 40 anos, o filme mostra que os avanços na sociedade norte-americana andam a passos lentos. Um estudo da ONG Mapping Police Violence aponta que negros têm quase três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que brancos. A brutalidade policial inspirou o surgimento do movimento #BlackLivesMatter (Vidas Negras Importam). O filme é mais atual do que nunca. 


Bruno Boghossian: Política, vaidade e perversidade de Bolsonaro custam vidas ao país

Presidente trata pandemia como jogo pelo poder e usa governo para buscar glórias individuais

Jair Bolsonaro nunca escondeu as razões de sua campanha para sabotar o combate ao coronavírus. Ainda nas primeiras semanas da pandemia, o presidente foi ao ataque contra governadores que implantaram medidas de restrição para conter a doença e disse estar no meio do que chamou de "luta pelo poder".

"É essa a preocupação que eu tenho. Se a economia afundar, afunda o Brasil. Se afundar a economia, acaba com meu governo", disse à rádio Bandeirantes, em março de 2020.

Quase nada mudou desde então. Enquanto brasileiros morrem aos milhares a cada semana, o presidente continua tratando a pandemia como um jogo político. Na sexta (26), em visita ao Ceará, Bolsonaro disse que "o povo não consegue mais ficar dentro de casa" e culpou seus adversários ("esses que fecham tudo e destroem empregos").

Essa politicagem barata é alimentada pela vaidade doentia do presidente. Bolsonaro foi capaz de transformar um assunto crítico como a busca pela vacina numa contenda particular: para desviar os holofotes do rival João Doria, ele adiou a compra da Coronavac e até comemorou o suicídio de um voluntário dos testes do imunizante.

A mesma lógica submete o país ao messianismo mortífero de Bolsonaro. Em busca de glória, o presidente mobiliza a máquina do governo para fabricar curas milagrosas que possam levar seu nome. Assim, desperdiça tempo e dinheiro atrás da cloroquina e do spray nasal israelense —ambos sem eficácia comprovada.

Além do político e da vaidade, os brasileiros também são reféns da perversidade delirante do capitão. Bolsonaro é um dos únicos líderes do mundo que produzem aglomerações inúteis e investem contra medidas básicas de proteção.

Na última semana, ele voltou a fazer propaganda de supostos "efeitos colaterais" do uso de máscaras, com base numa enquete alemã de baixo rigor científico. Autoridades sanitárias, porém, insistem que o equipamento de proteção é essencial. As atitudes de Bolsonaro custam vidas.


Hélio Schwartsman: Pazuello, o verdadeiro mito

Qual é o general que consegue infligir mais de mil baixas por dia ao longo de mais de um mês sem disparar um único tiro?

A palavra “ironia” vem do grego “eironeía”, com o significado de “dissimulação”, “falsa ignorância”. O termo parece ter origem no teatro. “Eíron” é um personagem-estereótipo recorrente nas comédias gregas que, valendo-se da modéstia e até da autodepreciação, sempre desmascara “alazón”, que faz as vezes do impostor ou do fanfarrão.

Modernamente, a ironia costuma ser definida como o artifício retórico que embaralha os significados reais e aparentes das coisas para provar uma tese, enfatizar um argumento ou apenas para fazer rir.

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Estão pegando pesado com o Eduardo Pazuello, tentando desmerecer suas capacidades logísticas só porque ele deixou faltar oxigênio em Manaus, mandou as vacinas do Amazonas para o Amapá e as do Amapá para o Amazonas e se esqueceu de comprar imunizantes, seringas e agulhas para a campanha de inoculação contra a Covid-19, para a qual outros países se preparam desde o início da pandemia.

Esses críticos se esquecem de que o ministro Pazuello é um general do Exército, e, como qualquer criança sabe, exércitos existem para matar pessoas. Sob essa chave interpretativa, o que parecia fracasso torna-se um retumbante sucesso. Qual, afinal, é o general que consegue infligir mais de mil baixas por dia ao longo de mais de um mês sem disparar um único tiro? Pazuello é que é o verdadeiro mito. O outro é um mero amador.

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“É simples assim. Um manda e o outro obedece”, obtemperou com sabedoria o general após ter sido desautorizado pelo capitão (reformado) no episódio da compra de vacinas do Instituto Butantan.

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Um terceiro personagem arquetípico das comédias gregas é “bomolóchos”, que é mais ou menos o nosso bufão.


Janio de Freitas: Estapafúrdio produzido por Bolsonaro e apoiado por generais tem a ver com intenções definidas

Intenções inconfessas que enlaçam as atitudes do presidente têm corrido sem dificuldade

A incógnita mais expressiva, dentre as muitas atuais, é simples como formulação e inalcançável na resposta. Dado que estão explicitados os indícios de golpismo e a incompetência espetaculosa dos militares no governo, o que fará o Exército na possível transformação da pandemia em tragédia de massa, um país sufocado pela peste, carente de tudo menos de morte?

A marca de um ano exato do primeiro caso de Covid-19 no Brasil encontrou os estados em desespero com o recorde de casos e a ausência de leitos, vacinas, pessoal e outros recursos. Uma antevisão das previsões e alertas que as vozes mais competentes estão fazendo, inclusive a Organização Mundial da Saúde, caso persista o incentivo de Bolsonaro e do seu governo à calamidade.

O já célebre depoimento do general Eduardo Villas Bôas sobre a ameaça que fez ao Supremo, em nome do Exército, é claro na desmistificação da conversão desses militares ao Estado constitucional de Direito e à democracia.

Ressalva a fazer-se é a ausência até de mera informação aos comandos da Marinha e da FAB sobre a ameaça, como dito pelo entrevistado. Risco de discordância, é claro. E isso, não sendo certeza, pode ser indício de promissora evolução na Marinha e na FAB, oficialidades muito mais dotadas de preparo geral, para civilizar-se, do que no Exército.

Já é bem difundida a impressão, ou a convicção, de que todo o estapafúrdio produzido por Bolsonaro e apoiado pelos generais tem a ver com intenções definidas. Há bastante coerência nos atos amalucados, que são bem aceitos pelos generais também por uma comunhão não declarada nem gratuita.

A propaganda do falso tratamento com cloroquina cedo se mostrou como objetivo. Não só para desacreditar as recomendações científicas. Também para ações de governo que custaram milhões ao dinheiro público —e aí estava o Exército a fabricar quantidades montanhosas da droga enganadora.

O próprio Ministério da Saúde, o mais militarizado setor civil da administração pública, foi posto como indutor da droga ineficaz. Bolsonaro continua condenando as máscaras e estimulando aglomerações. E, sobre tudo o mais, a sabotagem a vacinas excedeu a incompetência. É muito mais e muito pior.

Por trás disso houve e há algo. Esse desatino não resistiria, para chegar à dimensão que alcançou, sem um propósito a sustentá-lo.

Não faz sentido o envolvimento, sem motivações especiais, de um governante em propaganda de remédio e em combate ao conhecimento científico provado e comprovado. Com esse meio de disseminar a morte, porém, combina-se um outro de fim idêntico.

No seu primeiro ato pela difusão da posse de arma, Bolsonaro alegou direito da cidadania de se defender. Sucessivos agravamentos dessa facilitação à criminalidade chegaram, agora, ao desmentido definitivo do propósito apresentado por Bolsonaro: novos decretos permitem até 15 armas para o cidadão comum, 30 armas para quem se apresente como caçador, 60 armas para quem se registre como atirador, munição a granel. Arsenais sem relação alguma com defesa pessoal. Mas não sem objetivo de quem os libera e dos militares, em especial do Exército, que dão o apoio.

As intenções inconfessas que enlaçam as atitudes de Bolsonaro, em temas como a pandemia e o armamento de civis, têm corrido sem dificuldade. Mas alguma coisa mudou nas últimas semanas. O Supremo mudou. Por quanto tempo e se para ser supremo sem temor e sem prazo, no momento, importa menos. Aproveite-se enquanto dure, que a necessidade do país é extrema.

Quando quatro ministros do STF decidiram trabalhar nas férias de dezembro e janeiro, a boa novidade foi noticiada como precaução contra propensões do recém-eleito presidente Luiz Fux. Revelou-se muito mais do que isso.

De Ricardo Lewandowski vieram, e continuam vindo, decisões que enfrentam desvios na política antivacinas do governo, o mesmo quanto às mais recentes revelações de ordinarices judiciais, políticas e policiais na Lava Jato, e outras de mesmo peso.

Alexandre de Moraes encarou, e não tem cedido nem milímetros, as ameaças ao Supremo, as patifarias nas redes, os indícios que recaem na Presidência da República.

Rosa Weber deu ao governo cinco dias, expirados ontem, para justificar o pacote das armas. Edson Fachin tomou a defesa verbal do Estado de Direito. E vai o Supremo por aí, ou parte dele, mudado, posto de pé e cabeça erguida.

Os negociantes do Congresso continuam negociando. O poder econômico, idem. Se a defesa da democracia não vier do Supremo, talvez só tenhamos resposta para a incógnita de Bolsonaro sob a forma de fato consumado. E a pandemia, como se agrava aqui, facilita.


Ricardo Noblat: Quem assiste à própria morte sem reagir não merece viver

A inércia dos cúmplices da pandemia

O que pretende Jair Bolsonaro ao aconselhar os brasileiros a desprezarem o uso de máscaras contra a Covid? Por que defende que morram os que tiverem de morrer desde que a economia seja salva? Por que cita como estudo de uma universidade alemã o que se trata de resultados de uma enquete feita nas redes sociais?

Por que mantém no comando do Ministério da Saúde um general que nada entende do assunto e que se cercou de militares tão ignorantes quanto ele? Quando governadores acenam com medidas rigorosas de isolamento, por que Bolsonaro os combate com a firmeza que nunca demonstrou no combate ao vírus?

Se não bastasse, por que ele sabota a compra de vacinas e repete que a eficácia delas é duvidosa e que jamais será imunizado? Já se passaram datas emblemáticas da pandemia como as que marcaram as primeiras 50 mil mortes, 100 mil e 200 mil. Esperou-se pelo menos uma manifestação de tristeza dele. Não houve.

É impossível que ele não saiba que o uso de máscaras, o isolamento e a vacinação é a receita que deu certo nos demais países do mundo afetados pela doença. É impossível que não saiba que para salvar a economia é preciso salvar vidas também. Quanto mais o vírus aja sem ser barrado, mais a economia afunda.

Então por que Bolsonaro escolheu associar-se à Covid na devastação que ela provoca no Brasil? O sistema público de saúde colapsou em diversos Estados. O privado, idem Em média, nos últimos 7 dias, morreram 1.180 pessoas, elevando o total de mortos para 254.263 desde março último, e de casos para 10,5 milhões.

O que o presidente da República tem contra o povo que o elegeu e que parece capaz de reelegê-lo apesar do seu comportamento assassino? Por que deliberadamente tornou-se o apóstolo da morte? Por que os demais poderes assistem a tudo sem esboçar uma forte reação? Afinal, por que toleramos o intolerável?

Que tipo de povo é o brasileiro que compactua inerte com tudo isso?


Dorrit Harazim: Cemitério nacional

Em seu célebre discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz, em 1954, Albert Schweitzer achou necessário despertar o mundo das ilusões do pós-guerra. “Todos nós devemos nos dar conta de que somos culpados de desumanidade. Todos nós”, informou à nobilíssima plateia o humanista, médico e teólogo cuja reverência pela vida era absoluta. Alguém, hoje, lhe daria ouvidos ou aceitaria o convite à reflexão? Difícil. Estamos ao mesmo tempo paralisados e ocupados demais em não morrer de Covid-19. Quanto aos que ostentam como honraria seu desdém pela mortandade alheia, uma não menos célebre sacada de Voltaire cabe melhor: “Quem consegue convencê-lo a acreditar em absurdos é capaz de fazê-lo cometer atrocidades”.

A tragédia do Brasil atual extrapola até mesmo a máxima voltairiana: temos na Presidência alguém que não apenas acredita (ou finge acreditar) em absurdos, como ele próprio comete atrocidades em série. Seus áulicos contribuem ao cometer outros tantos, criam terreno fértil para a irresponsabilidade coletiva nacional, e o mundo digital explode num ódio de raiz. “Estão vacinando macaco antes de vacinar gente”, dizia a mensagem recebida pela primeira brasileira a tomar a vacina, Mônica Calazans. Entrevistada no “Globo Repórter” desta semana, a enfermeira negra contou que as mensagens de ódio foram múltiplas.

Impenetrável à razão e à civilização, essa turma acaba afetando os demais. Como resultado, estamos num país-cemitério que não dá conta de seus cidadãos ainda vivos e já enterrou mais de 252 mil contaminados pelo vírus. Talvez a causa mortis devesse ser atestada por inteiro: Covid-19 + falta de vacina + colapso do valente SUS + negacionismo oficial + roubalheira geral + inércia do Congresso + inadimplência moral +... A lista seria por demais extensa, se nominal. Na verdade, a desqualificação do general e titular da Saúde, Eduardo Pazuello, o torna quase inimputável, de tão aberrante. A seu abissal despreparo, soma-se uma deliberada intenção de desinformar e camuflar o pânico — como se fosse possível esconder 1 morto de Covid-19 por minuto, a cada dia. Incapaz de responder às perguntas mais gritantes da imprensa, Pazuello sobrevive à base de pronunciamentos e proclamações à nação, todas sem nexo.

Já o papel de Jair Bolsonaro na devastação humana atingiu um patamar sem volta. Será julgado pela História, o que não lhe importa. Ser condenado pelo Brasil pensante até o alimenta. E ser amaldiçoado por pais, filhos e netos, parentes e dependentes, amigos e colegas dos que não precisariam morrer parece lhe ser indiferente. O presidente é um humano esquisito. Parece feito de um material impermeável à dor alheia. “A verdade é que ninguém chega impunemente a presidente da República”, lascou o Stanislaw Ponte Preta em tempos mais inocentes. Bolsonaro consegue superar a verve de Sérgio Porto: além da sombria bagagem que trouxe para a Presidência, ensandeceu no poder.

Difícil explicar de outra forma sua live semanal da quinta-feira, 25. Naquele dia o Brasil ultrapassara a montanha de 250 mil mortos por Covid-19 em um ano e chegara ao patamar mais alto da contagem diária de óbitos: 1.582. Ouvir o presidente tagarelar sandices contra o uso de máscaras e o isolamento social, naquele seu tom informal salpicado de algo parecido com um ricto/riso, foi horrendo. Foi obsceno.

Dias atrás o crítico de arte do “New York Times” Michael Kimmelman evocou o impacto mundial de uma célebre mostra de fotografia do pós-Segunda Guerra para falar sobre a dificuldade de retratar a atual pandemia. Ele se referia à monumental exposição “The Family of Man”, inaugurada em 1955 no Museu de Arte Moderna de Nova York. Ela foi vista por 9 milhões de pessoas e circulou pelo mundo ao longo de 7 anos. O curador da mostra — ninguém menos que Edward Steichen — selecionara 503 imagens de 68 países para retratar a universalidade da experiência humana e o papel da fotografia na documentação da nossa história.

A família humana de hoje que sobreviverá à Covid-19 ainda não tem uma imagem-ícone capaz de traduzir o medo, o vazio urbano, o horror do isolamento afetivo, a falência física, a morte por asfixia, o silêncio. Não existe o instantâneo imortal do homem em queda das Torres Gêmeas em chamas, nem a foto do menino Alan Kurdi, inerte em areia estrangeira, como símbolo do drama dos refugiados. Do nosso inimigo comum, o vírus, temos apenas uma versão estilizada em forma de bola de tênis com pregos, como já escreveu Helen Lewis na revista “The Atlantic”. As máscaras e equipamento hospitalar radical das equipes médicas já faziam parte de nosso vocabulário visual como sinônimo de higiene e segurança. Não dão conta do recado. E Lewis insiste ser obrigatório encontrarmos a linguagem certa de retratar esta pandemia, porque precisamos relembrar coletivamente o que vivemos. Aguardemos.

A galeria de cúmplices do vírus, contudo, já tem seus nomes de ponta. Disporá de um farto portfólio do presidente brasileiro espalhando a morte.


Demétrio Magnoli: Eu acuso!

Primeiro dever do historiador é fugir da armadilha do anacronismo

Na Califórnia, o Conselho de Educação de São Francisco mudou os nomes de 44 escolas, varrendo figuras racistas do passado e, de passagem, também Abraham Lincoln. Na Folha (19/1), Marcelo Coelho reativou a campanha pelo cancelamento de Monteiro Lobato, rotulando-o como um “racista delirante”. Ezra Klein tem razão ao concluir que, por essas vias, transforma-se a política mais em estética que em programa (Folha, 12/2).

Cada geração tende a reinventar a história à sua imagem, atribuindo aos personagens do passado as virtudes ou pecados que tocam nas sensibilidades do presente. O Lincoln oficial é Grande Emancipador; o dos dirigentes escolares de São Francisco é o político que se opunha tenazmente ao exercício do sufrágio pelos negros. Depois de cancelar os líderes da Confederação, a esquerda identitária americana precisa seguir adiante, condenando ao opróbrio todos os que não abraçam seus valores. O primeiro dever do historiador é fugir da armadilha do anacronismo, inscrevendo os personagens que estuda na moldura de sua própria época. Mas o anacronismo constitui a ferramenta imprescindível dos emissários da atual política simbólica.

Lincoln simplesmente compartilhava as ideias predominantes no seu tempo. Lobato debatia-se com as encruzilhadas reais ou imaginárias da metade inicial do século 20. O método de pinçar frases racistas em suas obras ou cartas pessoais serve, exclusivamente, para obter aplausos da plateia cúmplice que milita no identitarismo acadêmico.

Que tal democratizar o anacronismo? Eu acuso W.E.B. Du Bois, “pai fundador” do movimento negro americano, de nutrir certas simpatias pelo nazismo. Acuso Abdias do Nascimento, prócer do moderno movimento negro brasileiro, de propagar as ideias fascistas da Ação Integralista Brasileira. E acuso milhares de negros do Brasil do século 19 de terem sido proprietários de escravos. Minhas cápsulas de verdades fora de contexto, artimanhas no palco do ilusionismo, esclarecem tanto quanto a sentença inquisitorial lançada contra Lobato.

As musas da Sorbonne costumavam soprar nos ouvidos dos intelectuais brasileiros. Não mais. Hoje, os cavaleiros andantes da política identitária seguem gurus americanos –e querem que o Brasil seja os EUA. O problema é que, quando se trata de nação e raças, a América Latina tomou rumo diferente.

Enquanto os EUA praticavam a segregação racial oficial, o mexicano José Vasconcelos (1882-1959) e o brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) enalteciam a miscigenação. Lobato não adotou nenhum dos dois polos, ensaiando um raciocínio inclinado à conciliação de raças. Os três, porém, pisavam um chão ladrilhado por conceitos raciais que só seriam superados na metade final do século 20. A acusação a Lobato nada diz sobre o escritor, mas pinta um retrato preciso de seus acusadores.

A crítica literária Ana Lúcia Brandão recolocou o debate sobre Lobato no seu devido lugar (Folha, 15/2), descortinando amplos horizontes para divergências civilizadas. Vã esperança: Coelho retrucou comparando-a aos terraplanistas. Se não rezam pela cartilha de Bolsonaro, são comunistas; se contestam o manual de cancelamento da política identitária, serão terraplanistas. Vamos mal.

A política estetizada ignora os dilemas que interessam às pessoas comuns. As escolas de São Francisco permanecem fechadas –mas seus nomes foram devidamente sanitizados. O Pisa revela que o ensino público brasileiro continua a sonegar o direito à educação aos filhos de famílias de baixa renda de todas as cores –mas temos cotas raciais nas universidades e cercaremos com bandeiras de alerta as frases suspeitas de Lobato. São Paulo empurra seus pobres a periferias cada vez mais distantes –mas logo removerá a Estátua do Empurra da entrada do Ibirapuera.

A estética nos consome: lancetamos símbolos. Sorte da direita populista.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


El País: Ameaças de neonazistas a vereadoras negras e trans expõem avanço do extremismo

Ataques contra vereadoras de várias cidades ocorreram em dezembro e polícia ainda busca autores. Vítimas relatam rotina de medo especialistas alertam para escalada das ameaças no país, enquanto os EUA refletem sobre banalização dos discursos de ódio nas redes

Isadora Rupp, El País

Injúrias raciais, infelizmente, não são uma novidade para a professora Ana Carolina Dartora, 37 anos. Primeiro vereadora negra eleita nos 327 anos da Câmara Municipal de Curitiba, e a terceira mais votada na capital paranaense nas eleições 2020, sua campanha foi permeada por ataques, sobretudo nas redes sociais. Até então, Carol Dartora ―como é conhecida a vereadora filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT)― considerava as mensagens inofensivas. Mas no início de dezembro ―logo após uma entrevista do prefeito Rafael Greca (DEM) na qual o mandatário disse discordar da existência de racismo estrutural na cidade― ela recebeu por e-mail uma mensagem a ameaçando de morte, inclusive com menção ao seu endereço residencial.

No texto, o remetente chama a vereadora de “aberração”, “cabelo ninho de mafagafos”, e diz estar desempregado e com a esposa com câncer. “Eu juro que vou comprar uma pistola 9mm no Morro do Engenho e uma passagem só de ida para Curitiba e vou te matar.” A mensagem dizia ainda que não adiantava ela procurar a polícia, ou andar com seguranças. Embora Carol tenha ouvido de algumas pessoas que as ameaças eram apenas “coisas da Internet”, especialistas ouvidos pelo EL PAÍS ponderam que não se deve subestimar os discursos de ódio ―a exemplo de toda a discussão que permeiam os Estados Unidos desde a quarta-feira, 6 de janeiro, quando extremistas apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio em protesto contra a derrota do presidente, provocando cinco mortes.

O e-mail, com texto igual, também foi enviado para Ana Lúcia Martins (PT), também a primeira mulher negra eleita para vereadora em Joinville (SC). As vereadoras trans Duda Salabert (PDT), de Belo Horizonte, e Benny Briolly (PSOL), de Niterói (RJ), também foram ameaçadas pelo mesmo remetente. Até aqui, as investigações policiais dão conta de que o ataque orquestrado partiu de uma célula neonazista que atua sobretudo nas profundezas da internet, a chamada deep web. O provedor do qual a mensagem foi enviada tem registro na Suécia, o que dificulta o rastreamento por parte das polícias civis e, no caso do Paraná, do Núcleo de Combate aos Cibercrimes.

“Fiquei olhando para a mensagem perplexa, sem conseguir processar muito. O espanto de outras pessoas do partido me deu o alerta”, contou Carol ao EL PAÍS. “A violência não é só objetiva. A violência política acompanha a minha trajetória e a das outras vereadoras ameaçadas, com barreiras que vão se criando para que a gente não tenha êxito. Nenhuma mulher deveria enfrentar tanta coisa para exercer um direito básico da democracia”, frisa.

Desde então, o medo faz parte do cotidiano da vereadora de Curitiba. “Tô tentando ser mais discreta. Estou pensando até em mudar o meu cabelo. Isso é muito minimizado, desprezado. As pessoas pensam que é bullying, coisa de Internet. É muito nítida a questão de gênero, do sexismo aliado ao racismo.” Mas foi na Internet, por exemplo, que foi planejado, durante semanas, os ataques ao Capitólio dos EUA por grupos de extrema-direita que não aceitam a derrota de Trump para o democrata Joe Biden.

Ódio racial

Filiada ao PT desde os anos 1980, Ana Lúcia Martins, 54, foi a primeira mulher eleita pelo partido em Joinville (SC) e, assim como Carol Dartora, a primeira negra na Câmara Municipal. A professora, educadora física e alfabetizadora iniciou a sua formação e participação política ainda na adolescência, em grupos de jovens da Igreja do Cristo Ressuscitado, no bairro Floresta, onde nasceu e cresceu. Decidiu disputar o pleito após um longo amadurecimento junto aos movimentos negros e de mulheres.

Após sua vitória nas eleições 2020, as primeiras intimidações já surgiram pelo Twitter, quando ela ainda comemorava a vitória. “Uma conta fake veio e comentou: ‘agora a gente precisa matar ela para o suplente, que é um homem branco, assumir’. Então não era uma questão de ódio ao partido, ou somente machismo. O ódio era racial mesmo”, pontua. Dias depois recebeu o mesmo e-mail que a vereadora curitibana, do mesmo remetente. “Diante dessa denúncia a gente pensou que não podia mais descuidar” conta Ana Lúcia, que agora anda escoltada por seguranças pagos por membros do partido. Segundo ela, essas pessoas fizeram uma vaquinha para arcar com os custos.

Foi oferecido à vereadora integrar o Programa Federal de Assistência a Testemunhas. “Para nós isso não serve, porque aí não poderia exercer meu mandato, e queremos essa garantia” salienta Ana Lúcia. A Polícia Militar catarinense ofereceu rondas e viatura em eventos públicos, desde que a vereadora solicite com antecedência, via ofício.

Pressão internacional

Advogado do Diretório Municipal do PT em Curitiba e também professor da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Opuska disse acreditar que medidas mais assertivas em relação à proteção de Carol, Ana Lúcia e outras vereadoras ocorrerão por pressão de entidades internacionais. Ele, que acompanha o caso, fez um relatório a respeito para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Opuska procurou a Secretaria de Segurança Pública do Paraná (Sesp) para solicitar segurança à vereadora do Estado. “O secretário [Romulo Marinho Soares] não atendeu a Carol. Você não pode deixar que a responsabilidade saia da mão do agente [Estado]. Temos que ter o cuidado de não banalizar. Não é difícil acontecer o que aconteceu com a Marielle [Franco]em uma cidade como Curitiba, cujo racismo estrutural aparece no discurso do próprio prefeito.”

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirma que “após haver solicitação de audiência para que o secretário atendesse a vereadora eleita, ele designou um delegado especializado, integrante da Segurança Pública, para recebê-la (tendo em vista que ele estava com outras agendas prévias e externas). Sendo assim, a vereadora teve o devido atendimento”, argumenta a pasta. Ainda de acordo com a entidade, o caso requer uma “investigação complexa”.

Necessidade de reação

Na análise da professora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), Megg Rayara Gomes de Oliveira, existe um consentimento por parte do Poder Público para que esses grupos neonazistas se movam com certa liberdade. Primeira travesti negra a obter o título de doutora pela universidade onde hoje leciona, Meggy fala que as denúncias de mulheres negras acabam sendo desacreditadas. “Para ter validade precisa passar pela tutela de pessoas brancas. As pessoas respeitam o cargo que ocupam nosso título. Quem é respeitada não é a mulher preta mas a vereadora eleita.”

Ela também critica a atuação dos partidos sobre a coação sofrida pelas vereadoras. “Elas são de três partidos de esquerda, que não estão dando importância para a gravidade dessas ameaças. Fica evidente que o PSOL não deu atenção para tudo o que acontecia com a Marielle. Parece que os partidos não estão muito preocupados em proteger esses corpos.”

Precursora no Brasil em pesquisas sobre grupos neonazistas que se movimentam na internet, a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias fala que o neozanismo no Brasil é uma “miríade”. “Existem muitos grupos, cada um deles com uma ou várias células que às vezes partilham da mesma base”, explica.

Em sua tese de doutorado pela Unicamp, ela reúne mais de 15 anos de pesquisas junto a sites, fóruns, blogs e comunidades para descrever como pensam esses extremistas. “Há grupos antigays, de supremacia branca, hitleristas, os que tendem para um discurso nacionalista. No ferver dos ovos, o que está ali é o ódio. Que busca desmanchar a humanidade de uma pessoa, impedir que ela tenha a sua personalidade reconhecida”, explica.

De acordo a antropóloga Adriana, a situação no Brasil hoje é grave e houve um crescimento desses grupos após a eleição que elegeu Jair Bolsonaro presidente em 2018, com um discurso bastante violento. “Para se ter uma ideia, uma professora de ensino fundamental me disse que estava dando uma aula sobre o livro da Anne Frank [autora infantil judia assassinada na Segunda Guerra] e a videoconferência foi invadida. A situação está ficando grave no Brasil, e as pessoas não estão se dando conta. É preciso que a sociedade civil reaja de forma veemente. Não pode acontecer a essas vereadoras o que aconteceu com Marielle. Elas precisam ser protegidas pelo Estado. Como sociedade civil que pensa no processo civilizatório, temos que reagir.”


‘Racismo é prejuízo para toda a sociedade, não só para os negros’, diz Zulu Araújo

Em artigo na revista da FAP de dezembro, militante do movimento negro explica caminho para enfrentar racismo estrutural no Brasil

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“No Brasil, não só existe racismo, como ele é estrutural, condiciona e normatiza praticamente todas as relações no país, de caráter interpessoal, econômico, social, político, cultural e religioso”. O alerta é do diretor-geral da Fundação Pedro Calmon, vinculada à Secretária da Cultura da Bahia, Zulu Araújo, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro. “O racismo é um prejuízo para toda a sociedade, não só para os negros”, diz, em outro trecho.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, ele lembra a barbaridade do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, espancado e morto por seguranças em uma loja do Carrefour na zona norte de Porto Alegre, em 19 de novembro. A Polícia Civil do Rio Grande do Sul indiciou seis pessoas pelo crime.

“A barbaridade da qual foi vítima o cidadão João Alberto Silveira Freitas, no estacionamento do supermercado Carrefour em Porto Alegre, que resultou na sua morte, foi um catalizador sem precedentes da indignação que paira no Brasil, de há muito, no tocante a violência racial e o racismo, contra a comunidade negra brasileira”, lamenta o autor, que é ex-presidente da Fundação Palmares e militante do Movimento Negro. “Naquelas cenas brutais que o Brasil inteiro presenciou, estava simbolizado, em estado bruto, aquilo que os intelectuais chamam de racismo estrutural”, afirma.  

Na avaliação de Araújo, que também é arquiteto, gestor cultural e mestre em Cultura e Sociedade, o Brasil não terá sucesso na promoção da igualdade racial nem a plenitude democrática, se não reconhecer a existência do racismo e, por consequência, não gerar políticas públicas que tanto combatam o racismo como promovam a igualdade.     

De acordo com o autor, ainda bem que parcela significativa da sociedade brasileira tem não só se manifestado de forma indignada ante o atual quadro de desigualdades no país, mas também começa a se mobilizar para sua superação. “E, neste sentido, o movimento negro brasileiro precisa liderar este processo e estabelecer uma agenda política que, além da mobilização da comunidade negra, crie mecanismos de incorporação e participação dos não negros nessa luta”, assevera.

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Cristiano Romero: Todos sabemos por que o Brasil não dá certo

Trata-se de questão ética: como ser feliz num país racista

Muitos brasileiros fazem a seguinte pergunta diante do espelho: "Por que o Brasil não dá certo?". Geralmente, quem faz a indagação não tem muito do que reclamar. Sua vida é melhor aqui, mais fácil, mais farta, com maior acesso ao que o país oferece de melhor a seus cidadãos, do que seria se ele vivesse em outra economia de renda média ou mesmo numa nação rica, ainda que sendo proporcionalmente detentor de renda equivalente. A péssima distribuição de renda explica parte dessa história.

Evidentemente, aqui, todos, pobres e ricos, reclamam da extrema violência que ceifa anualmente a vida de cerca de 60 mil pessoas - em 2018 (último dado disponível), foram 57.956, mas, como há algo de podre no reino das estatísticas dos Estados, visto que nos anos recentes houve aumento exponencial de mortes violentas sem causa determinada, o número de mortos está subestimado.

O contingente de pessoas que sai de casa num determinado dia para morrer parece uma espécie de maldição estatística, uma vez que, com poucas variações, se repete ano a ano. Maldição? Praga? Predestinação diabólica de um povo condenado à miséria e ao sofrimento? Não creia nisso. Não há nada intangível nas estatísticas da violência no país chamado Brasil.

Os dados oficiais da violência mostram que 75,7% dos brasileiros assassinados há dois anos eram negros - entre as mulheres, o percentual é 68%, informa o Atlas da Violência 2020, elaborado pelo Ipea com base nas ocorrências registradas pelas secretarias estaduais de segurança pública em 2018. Mais da metade (29.064) eram jovens com idade entre 15 a 29 anos.

Em 2018, uma mulher foi assassinada neste país a cada duas horas, somando 4.519 vítimas. Olhemos mais de perto os números e num período maior de tempo, para tentar achar uma pista que aponte alguma tendência desta terrível mazela nacional: entre 2008 e 2018, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa de mulheres negras assassinadas aumentou 12,4%.

O resumo da violência neste imenso território é o seguinte: os homicídios vitimizam, principalmente, homens (91,8% dos casos), jovens (53,5%), negros (75,7% dos casos), pessoas de baixa escolaridade (74,3% dos homens vitimados possuem apenas sete anos de estudo) e solteiros (80,4% do total de homens assassinados). O principal instrumento de agressão é a arma de fogo, usada em 77,1% dos casos de morte de homens e em 53,7%, no caso de mulheres.

Convenhamos: os números são de uma racionalidade espantosa, é desnecessário desenhar: a sociedade brasileira assiste, indiferente, a um verdadeiro genocídio de jovens, em sua maioria absoluta, negros e pobres, o que também se aplica às mulheres negras. Será que é difícil saber qual é a verdadeira monstruosidade que explica esta vilania que nos caracteriza como sociedade e que, em vez de diminuir, só tem aumentado?

Como o tema não é novo neste espaço, um leitor escreveu para dizer que, nesta guerra civil interminável, morrem mais negros porque estes são a maioria entre os pobres. Trata-se da tese de que quase 42 mil negros foram assassinados neste canto do mundo em 2018 não porque eram negros, mas porque eram pobres. Trata-se de uma falsa questão.

Na música "Haiti", Caetano Velloso e Gilberto Gil escrevem o seguinte, a respeito do massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, quando 111 presidiários foram mortos e 37 ficaram feridos após ação da polícia - como não se tratava de um presídio, a maioria dos mortos ainda não havia sido julgada ou tido a sua sentença definida pela Justiça:

" (...) Cento e onze presos indefesos

Mas presos são quase todos pretos

Ou quase pretos

Ou quase brancos, quase pretos de tão pobres

E pobres são como podres

E todos sabem como se tratam os pretos (...)"

O poema afiado como navalha de barbeiro nos lembra que, nestes tristes trópicos, é tão ruim ser negro que, se você é pobre, muito pobre, é "quase preto".

Senhores, 56% das pessoas que habitam a quarta maior extensão de terra contínua do planeta se declararam pardos ou negros no último censo demográfico conduzido pelo IBGE. A maioria de nós, portanto, é negra. Nosso problema, acima de qualquer outro, é o racismo secular, estrutural, vicejado pela minoria branca, remediada, rica e mais educada, contra a maioria.

O Brasil não dá certo por essa razão. Como poderia suceder? A escravidão nos acompanha desde a chegada dos europeus. Quando a abolimos por meio de uma lei, quase 400 anos depois, não a abolimos de fato porque o mundo quase acabou - os barões do café exigiram compensação financeira do Estado pela perda de "propriedade", "demitiram" os negros, derrubaram a monarquia, implantaram uma República condominial (sem povo e com rodízio no comando entre dois dos três Estados mais ricos), forçaram o governo a importar mão de obra do Japão e de nações europeias para substituir a mão de obra escrava, impediram os negros de ter acesso a escolas...

Por que ainda há entre nós quem seja contrário a políticas de reparação à população negra, posta em desvantagem por séculos na história deste país? Nossa sociedade não é racista, ela é o próprio racismo. Este faz parte da paisagem nacional tanto quanto o samba, o futebol (onde, aliás, manifestações racistas são crescentes), o carnaval, mas, enquanto esses símbolos são projetados como parte de nossa identidade cultural, a discriminação aos negros é negada de forma vergonhosa e institucional.

Não é mais possível (nunca foi) olhar a realidade política, econômica, social, cultural, sem as lentes que corrijam a pior das miopias: a de que o racismo é apenas mais um problema a ser enfrentado, uma obrigação cidadã, uma determinação constitucional. Nada disso. Não é mais possível admirar nada neste país de 210 milhões de habitantes sem pensar, a cada segundo, que vivemos numa sociedade profundamente escravagista, onde a maioria é discriminada pela minoria. Trata-se de uma questão ética: como viver, como aceitar viver numa sociedade assim?


Folha de S. Paulo: Momento de desgovernos exige coro dos lúcidos, diz dom Walmor, presidente da CNBB

Dom Walmor Oliveira de Azevedo, 66, também fala sobre racismo e assédio sexual na Igreja

Anna Virginia Balloussier, Folha de S. Paulo

O "coro dos lúcidos" é o antídoto contra "desgovernos e politização abomináveis", diz dom Walmor Oliveira de Azevedo, 66, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Ao ser instado a avaliar a atuação do governo Jair Bolsonaro na pandemia, o arcebispo de Belo Horizonte lamenta que "medidas adotadas pelas instâncias governamentais ignoraram as preciosas contribuições do campo científico".

Isso em tempos em que, "como bem lembra o papa, um vírus invisível colocou o mundo de joelhos" e já vitimou 21 clérigos no país. A anual assembleia-geral dos bispos foi adiada duas vezes, agora para 2021.

Nesta entrevista à Folha, dom Walmor fala sobre racismo e assédio sexual na Igreja Católica.

Também critica a ideia de uma bancada católica no Congresso e diz que a CNBB está atenta a ataques contra ela promovidos por católicos como o youtuber bolsonarista Bernardo Küster. "Ninguém tem o direito de ofender outra pessoa impunemente, espalhar mentiras."

Sabe-se quantos bispos e padres se infectaram com Covid-19 e quantos morreram? 
A Comissão Nacional de Presbíteros, vinculada à CNBB, contabilizou 415 padres que adoeceram até agosto e 21 mortes. Mas esses números certamente são maiores, considerando os missionários das comunidades religiosas e a complexidade da Igreja, presente em todo o território. Lembro que a ação missionária da Igreja entre os pobres não foi interrompida. Ao invés disso, se intensificou. Assim, mesmo com a adoção das medidas de segurança, muitos católicos adoeceram a serviço da fé.

Como foi a adaptação da Igreja, com muitos clérigos idosos, a tempos virtuais? 
Com seus percalços naturais, mas bastante exitosa. Isso se deve ao envolvimento de fiéis leigos, agentes da Pastoral da Comunicação, que contribuíram para que nossas comunidades expandissem seu alcance a partir das tecnologias digitais.

Oportuno dizer que esses encontros não eliminam a necessidade das reuniões presenciais para celebrar a fé. Vive-se um tempo singular, quando é preciso assumir que somos corresponsáveis uns pelos outros. A Igreja organiza suas celebrações presenciais sempre atenta aos indicadores da pandemia.

O sr. criticou a condução de Bolsonaro no começo da crise. Nove meses depois, como vê a atuação do presidente? 
A gravidade foi subestimada, e medidas adotadas pelas instâncias governamentais ignoraram as preciosas contribuições do campo científico. Esse descompasso repercutiu na população, contribuindo para que muitos não cumprissem as medidas de prevenção.

Sem generalizado senso de corresponsabilidade, o país sofreu com explosões de casos e aumento da pobreza, pois o descontrole da pandemia agrava suas consequências na economia. Considera-se a necessidade de um consistente programa de vacinação, exigindo superação de desgovernos e politização abomináveis. O momento exige o coro dos lúcidos.

Ao assumir a presidência da CNBB em 2019, o sr. disse que se ofereceria ao diálogo com Bolsonaro. Ele aconteceu? 
Poderia ter ocorrido mais diálogo, pois a Igreja tem muito a contribuir. Uma contribuição que é alicerçada no Evangelho de Jesus Cristo, sem partidarismos, sem defesa de interesses mesquinhos. A Igreja, insistentemente, defende que é preciso cuidar dos mais pobres. Trata-se do ponto de partida para todo governo que deseja ser bem sucedido na missão de ajudar na construção de uma sociedade mais justa.

Como a instituição reage a leigos como Bernardo Küstner, youtuber católico bolsonarista que ataca a CNBB e a chama de comunista? 
A Igreja congrega muitas diferenças. Há irrestrito respeito à liberdade de cada um. Ao mesmo tempo, a CNBB está atenta a situações que se configuram crimes. Ninguém tem o direito de ofender outra pessoa impunemente, dedicar-se a calúnias, espalhar mentiras.

Há uma equipe, formada por teólogos, comunicadores e juristas, mobilizada para essa tarefa. Em casos extremos, ela busca meios legais para coibir crimes e punir seus autores. Infelizmente, algumas pessoas se dedicam a caluniar e a agir com agressividade, adotando um jeito de ser incoerente com a fraternidade cristã.

Qual foi o recado das eleições municipais? 
Sinalizam para um enfraquecimento das polarizações que muito atrapalham a democracia, pois criam um clima fratricida, com apegos a ideologias. Só o tempo dirá se, de fato, vamos iniciar novo ciclo na democracia brasileira, mas penso que o recado das urnas é que o povo não tolera extremismos, seja de que lado for.

A CNBB teve a campanha Meu Voto Importa, que dizia ser importante ficar atento para não ser enganado. Quais as maiores fake news que alcançam cristãos? 
Há notícias falsas de que a Igreja defende ou repudia este ou aquele candidato. Ou que esta ou aquela pessoa não merece voto por se opor aos valores do Evangelho. Ora, esse tipo de julgamento não é feito pela Igreja Católica, que é apartidária e defende a liberdade dos cidadãos.

Cabe a cada pessoa que se aproxima dos ensinamentos de Nosso Senhor e Salvador identificar qual candidato cultiva um jeito de ser e agir coerente com a identidade cristã, afastando-se daqueles que fazem proselitismo e não priorizam os mais pobres. Importante desconfiar também dos que se propõem a constituir ou fortalecer a 'bancada da Igreja Católica'. A Igreja não constitui grupos nos parlamentos para defender seus interesses.

O sr. criticou, no Facebook, o aborto legal feito numa menina de dez anos que engravidou após ser estuprada pelo tio. Vê como acertada a iniciativa de grupos religiosos de tentar deter o procedimento? 
Defendemos sempre o que a fé cristã católica nos ensina: a vida é inviolável, em todas as suas etapas. Trata-se de um princípio inegociável, que deveria inspirar leis e decisões nas instâncias do poder. As autoridades deveriam zelar para que as mães pudessem viver uma gestação saudável e oferecer perspectivas de um futuro digno para a mãe e a sua criança.

Mas respeita-se sempre o ordenamento jurídico-legal vigente, com ele abrindo debates construtivos para defender princípios éticos. Não podemos impor nossas perspectivas. O aborto é uma violência contra a vida. Mas não se combate a violência com agressividade.

O arcebispo de Belém é investigado por abuso sexual. Não é um caso isolado. A CNBB faz o bastante para coibir casos de assédio no clero?
Infelizmente, quando se noticia que há uma investigação em curso, a opinião pública, em ato contínuo, já impõe estigmas, antes mesmo de qualquer parecer das instâncias competentes. Importa a verdade e a confiança depositada em quem merece respeito e credibilidade. Temos presente o que nos diz o apóstolo Paulo escrevendo aos Coríntios: 'Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele'.

Recentemente, a CNBB e a Conferência dos Religiosos do Brasil instituíram núcleo que vai auxiliar as dioceses na criação de suas comissões responsáveis por encaminhar denúncias à Santa Sé. Foi instituída também a Comissão Especial de Proteção da Criança, Adolescente e Vulneráveis.

O papa nomeou novos cardeais em novembro, entre eles o primeiro afroamericano. Ao observamos um conclave, a maioria é de senhores brancos. O racismo interno é algo detectado pela Igreja? 
O racismo é mal que precisa ser enfrentado inclusive na Igreja. O papa continua avançando na composição de feições próprias da universalidade da Igreja. Oportuno lembrar: Francisco é o primeiro pontífice eleito que nasceu no hemisfério sul.

Por que observamos o aumento de pessoas sem religião no Brasil e em boa parte do Ocidente? 
Todas as instituições, inclusive as ciências, têm enfrentado questionamentos e cedido lugar às perspectivas mais individualistas, subjetivas. O ser humano, gradativamente, se fecha nas próprias convicções, achando-se o centro de tudo. A religião ajuda as pessoas a enxergarem que existe algo maior, um propósito que ultrapassa o imediatismo, o caráter efêmero da vida. Esse propósito é Deus, de onde viemos e para onde retornaremos.

Que ensinamentos tiraremos de 2020? 
Somos desafiados a aprender, com humildade, um novo estilo de vida, percebendo com ainda mais clareza que, diante da obra do Criador, somos pequenos e nada controlamos. Bem lembra o papa que um vírus invisível colocou o mundo de joelhos.

Este tempo de pandemia justamente mostra que o ser humano propaga a morte, quando, irresponsavelmente, sem considerar o amanhã, trata com descaso o planeta. Mas, paradoxalmente, este mesmo tempo desafiador inspira conversões, luzes que brilham nas trevas, dissipando a escuridão.

RAIO-X

Walmor Oliveira de Azevedo, 66

É arcebispo metropolitano de Belo Horizonte desde 2004 e presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) desde 2019. Nascido em Côcos (BA), foi professor universitário e tem doutorado em teologia bíblica pela Pontífícia Universidade Gregoriana, de Roma.


RPD || Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo

Jovens representam 77% dos 33 mil negros mortos anualmente no Brasil. Cobranças de medidas efetivas para dar um basta na tragédia que é o racismo estrutural brasileiro ganham força em todo o país

A barbaridade da qual foi vítima o cidadão João Alberto Silveira Freitas, no estacionamento do supermercado Carrefour em Porto Alegre, que resultou na sua morte, foi um catalisador sem precedentes da indignação que paira no Brasil, de há muito, no tocante à violência racial e ao racismo contra a comunidade negra brasileira. Naquelas cenas brutais que o Brasil inteiro presenciou, estava simbolizado, em estado bruto, aquilo que os intelectuais chamam de Racismo Estrutural.  

As denúncias sobre o recrudescimento do racismo no país vêm de longe e têm funcionado quase como um mantra no movimento negro brasileiro, embora boa parte da sociedade faça ouvidos de mercador para essa tragédia. Até mesmo importantes setores do Executivo, Legislativo e Judiciário que deveriam combater essas mazelas terminam estimulando-as por omissão. Mas os fatos estão ficando tão escandalosos que não dá mais para esconder, nem deixar de se indignar.  

Até porque as causas do racismo e da discriminação no país não são episódicas, mas históricas. Ignorar os efeitos nefastos que mais de 350 anos de escravidão produziu não é uma opção política, é uma estupidez. Estupidez essa que não só possibilita a exclusão de milhões de pessoas do exercício da sua cidadania plena, bem como tem ceifado a vida de outros milhares.  

“No Brasil, não só existe racismo, como ele é estrutural; condiciona, e normatiza praticamente todas as relações no país, sejam elas de caráter interpessoal, econômica, social, política, cultural ou religiosa”
Zulu Araújo

Não surpreende mais ninguém que a juventude negra brasileira tem sido o alvo preferencial dos aparatos de segurança pública e privada, assim como de gangues e milícias que proliferam país afora. Os números do Atlas da Violência falam por si só: essa juventude representa 77% dos jovens assassinados no país, algo em torno de 33 mil jovens mortos anualmente. Até mesmo organismos internacionais, como Unesco, Anistia Internacional e Unicef têm-se mobilizado por meios de campanhas, alertando o governo brasileiro para a gravidade da situação.  

Autoridades, instituições públicas e privadas e até mesmo a imprensa, quase sempre complacente com estes episódios, se indignaram e estão cobrando medidas efetivas para que possamos dar um basta nessa tragédia que é o racismo estrutural brasileiro. O fato soou como um alerta, ou melhor, como um recado de que o ocorrido nos Estados Unidos com o afrodescendente americano George Floyd não era exclusividade de lá, como muitos por aqui tentam insinuar, e que por isto mesmo a sociedade brasileira precisava reagir.      

Mas, apesar de toda a comoção, as declarações de duas principais autoridades públicas do país foram decepcionantes. Uma afirmou que era daltônico e, portanto, não se manifestaria sobre o assunto; e a outra desconheceu a existência do racismo em nosso país, fazendo uso de uma expressão racista: “no Brasil, o que existe são pessoas de cor em situação de desigualdade”.  

Lamentavelmente, essas declarações terminam por funcionar quase como um passaporte para impunidade, tanto no que diz respeito à violência praticada no país, desde sempre, como para a reparação histórica, tão importante para nosso povo. E, em grande medida, são autoexplicativas para a gravidade do problema racial no Brasil.  

Afinal, um país que viveu um dos mais longos períodos escravistas da história da humanidade e que tem a maioria de sua população de origem africana vivendo em condições sub-humanas – submetidas a toda sorte de violência, nos mais baixos extratos sociais em quaisquer itens que são pesquisados, como educação, saúde, moradia, emprego e renda – não pode ter essa realidade desconhecida.  

Em verdade, no Brasil, não só existe racismo, como ele é estrutural, condiciona, e normatiza praticamente todas as relações no país, sejam elas de caráter interpessoal, econômica, social, política, cultural ou religiosa. E não obteremos sucesso na promoção da igualdade racial, nem a plenitude democrática, se não reconhecermos a existência do racismo e, daí, não gerarmos políticas públicas que tanto o combatam como promovam a igualdade.    

Ainda bem que parcela significativa da sociedade brasileira tem não só se manifestado de forma indignada ante o atual quadro de desigualdades no país, mas também começa a se mobilizar para sua superação. E, neste sentido, o movimento negro brasileiro precisa liderar este processo e estabelecer uma agenda política que, além da mobilização da comunidade negra, crie mecanismos de incorporação e participação dos não negros nessa luta, visto que o racismo constitui um prejuízo para toda a sociedade e não só para os negros.  

Toca a zabumba que a terra é nossa!

(*) Zulu Araújo é Arquiteto, Gestor Cultural, Mestre em Cultura e Sociedade, Ex-Presidente da Fundação Palmares, Diretor Geral da Fundação Pedro Calmon/Secult/Ba. e militante do Movimento Negro Brasileiro.