racismo

Ana Cláudia Guimarães: Justiça condena alunos por crime de racismo contra professor

Decisão determinou que os dois jovens envolvidos no caso, ocorrido no ano passado em Niterói, cumpram pena de prestação de serviços

Que sirva de lição!

Lembra-se do caso do querido professor José Nilton, de História, que foi vítima de racismo de dois alunos do colégio onde trabalha, em abril e julho de 2020? Um deles usou o chat da escola, e o outro fez um vídeo em rede social, que viralizou. Pois bem. Os dois foram condenados a pagar a pena em prestação de serviços. O menor de idade teve que prestar cinco horas durante um mês. O maior foi condenado a cinco horas de prestação de serviço também, mas por quatro meses. A condenação foi da juíza Rhoehemana Marques.

 — Achei que a sentença foi educativa. As pessoas têm que aprender a fazer o que é certo. Não podemos cometer os mesmos erros fingindo que não há racismo no país — diz José Nilton.

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Racismo é crime!

Nossos vizinhos

Das pessoas internadas nos leitos públicos de Niterói por Covid-19, 20% são de São Gonçalo e 10% de outros municípios vizinhos. Segundo o secretário Rodrigo Oliveira, o Hospital Carlos Tortelly tem 26 pacientes internados com Covid-19: 22 de Niterói, três de São Gonçalo e um de Nilópolis. Já no Hospital Oceânico há 121 internados: 89 de Niterói, 25 de São Gonçalo, dois de Maricá, um de Itaboraí, um de Cabo Frio, um de Iguaba Grande, um de Tanguá e um do Rio.

Segue...

Levantamento do Monitora Covid-19, da Fiocruz, aponta que Niterói, desde março de 2020, teve mais de 37% de seus leitos ocupados por pacientes de outros municípios contaminados com a doença. Nas internações em UTI, esse número chega a quase 40%.

A preocupação de Axel

Até sexta passada, 77,3% dos leitos públicos e privados de UTI estavam ocupados na cidade. Já os leitos clínicos públicos e privados tinham taxa de ocupação de 59,9%.

Para proteger as crianças, temos que ‘meter a colher’

A psicóloga Luiza Sassi, também pedagoga e diretora do GayLussac: colégio aderiu há seis anos à política mundial da Rede Cognita de Salvaguarda Foto: Divulgação
A psicóloga Luiza Sassi, também pedagoga e diretora do GayLussac: colégio aderiu há seis anos à política mundial da Rede Cognita de Salvaguarda Foto: Divulgação

A história de Henry, o menininho de 4 anos que foi morto (e cuja mãe e o padrasto são acusados do crime), chocou o país e acendeu o sinal de alerta. Ele não foi a primeira e, infelizmente, não será a última criança a sofrer abuso dentro de casa. Como se sabe, pesquisas mostram que só 3% dos abusadores são desconhecidos das vítimas.

A psicóloga Luiza Sassi, que também é pedagoga e diretora do GayLussac (colégio que aderiu há seis anos à política mundial da Rede Cognita de Salvaguarda), lembra que 66% dos abusos ocorrem em famílias de nível socioeconômico médio e alto: “É chocante, porque criamos nossos filhos alertando-os quanto a não falar com desconhecidos. O perigo pode estar em casa”.

Seguindo as regras da Salvaguarda, Luiza conta que, no GayLussac, todos os professores e funcionários têm que passar por treinamento rígido, que os prepara para saberem identificar pequenas pistas dadas pelos alunos. E, depois de avisar a família, a escola notifica os órgãos oficiais sobre qualquer suspeita.PUBLICIDADE

— É uma notificação compulsória; portanto, é um dever do adulto. Sempre tivemos muito êxito com o atendimento da Promotoria da Infância, do Conselho Tutelar e da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente. Não é uma denúncia, e sim uma notificação. Nós também ensinamos aos nossos alunos que eles têm direito à proteção — explica Luiza.

A dica da psicóloga para salvar essas crianças de abusos é “nunca minimizar a fala delas”:

— Escute-a de modo neutro, sem prejulgar ou dar uma explicação para aquilo que ela está contando. Seja paciente, fale o menos possível e deixe-a confortável. Se estiver na escola, ela deve ser escutada por uma dupla de profissionais. Se for algo familiar, procure um especialista na área. O importante é que a cultura da Salvaguarda precisa estar entranhada na sociedade e nas escolas. O caso do Henry nos deixa em estado de choque ao pensar o quanto essa criança sofreu de modo cruel com tantas testemunhas. Devemos aprender que, para proteger as crianças, temos que “meter a colher”.

Para quem tiver interesse no Programa de Salvaguarda, o GayLussac vai fazer o 3º Encontro de Boas Práticas em Proteção à Criança (inscrições pelo salvaguarda@gaylussac.com.br).

Guerra nas redes

Empresas que participaram de protestos (com aglomeração, apesar dos mais de 350 mil mortes no Brasil por Covid-19) contra medidas restritivas sofrem, hoje, ameaça de boicote pela clientela, que vem se manifestando nas redes.


Vacinação Quilombolas | Foto: Igor Santos/Secom

O Globo: Covid-19 - Prioridade da vacinação de quilombolas, de ribeirinhos e de outros grupos é ignorada em nove estados

Estudo mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados já receberam a primeira dose e que menos de 4% dos quilombolas foram imunizados

Cíntia Cruz e Julia Noia, O Globo

RIO — Levantamento do GLOBO com base na pesquisa "Planos de vacinação nos estados e capitais do Brasil", do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, nove estados não colocaram pelo menos um grupo entre quilombolas, população ribeirinha, em situação de rua e privada de liberdade como prioritários na imunização contra o Sars-CoV-2. Juntos, eles correspondem a mais de 1,7 milhão da população do país e integram pelo menos 6.023 comunidades.

TestagemCovid-19: Teste detecta qual das cinco variantes paciente apresenta

Os quatro grupos constam como prioritários na última versão do Programa Nacional de Imunizações (PNI), de 15 de março. Entretanto, há falta de transparência quanto ao período em que essas populações devem ir aos postos se vacinar. Com a recente alteração no plano, que adianta a vacinação de forças de segurança e profissionais da educação, a população privada de liberdade e a que está em situação de rua, involuntariamente expostas ao vírus, ficam ainda mais atrás na fila de vacinação.

Os quilombolas não são grupo prioritário em Roraima, Acre e Alagoas. Já ribeirinhos estão fora dos planos do Pará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Sergipe e Alagoas. A população privada de liberdade não consta como preferencial em Alagoas. Já Pará e Alagoas não colocaram as pessoas em situação de rua como prioridade. Na maioria dos estados do país, esses grupos são prioridade no papel, mas não os planos não informam quando elas serão imunizadas.

O estudo do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados receberam a primeira dose do imunizante, embora estejam na primeira fase das campanhas em todos os estados. No caso dos povos de comunidades quilombolas, que figuram entre os primeiros a serem vacinados na maior parte dos estados, a estatística é ainda mais alarmante: menos de 4% foram imunizados.

Desigualdade e violência

Responsável pela pesquisa do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, Felipe Freitas explica que a carência de vacinação desses grupos reflete a desigualdade e a violência que as populações sofrem, inerentes à história brasileira.

— O Brasil é um país violento, e ainda mais em relação a esses públicos: negros, quilombolas, indígenas, pessoas em situação de rua, ribeirinhos. A gestão da pandemia tem revelado a radicalização desse processo de autorização da morte desses grupos — diz.

Paulo de Paiva, de 61 anos, vive num quintal com nove casas que abrigam 19 adultos e 19 crianças. O terreno fica no quilombo Maria Conga, em Magé, Baixada Fluminense. A imunização dos quilombolas, que seria do dia 12 ao 16 de abril, foi interrompida no dia 15 por falta de doses.

— Estava marcado para o dia 16, mas as doses acabaram. Tenho muito medo de pegar essa doença por causa da minha idade. A comunidade aqui é grande, muitas crianças. As pessoas saem para trabalhar e podem acabar trazendo o vírus — conta Paulo, morador do quilombo há 30 anos.

Aos 74 anos, o bombeiro hidráulico Lourival Ribeiro já poderia ter sido vacinado em seu município, mas preferiu esperar pelas doses destinadas aos quilombolas. Hipertenso, Lourival lamenta a falta do imunizante na comunidade e criticou a organização do poder público:

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— Faltou informação de fora para saber o número da população do quilombo. Foi tudo muito rápido. Em três dias, não dá para vacinar um lugar com tantas pessoas.

A presidente da Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), Ivone Bernardo, diz que os três quilombos no município de Magé têm, ao todo, 1.987 pessoas acima de 18 anos — idade mínima para a população quilombola receber a dose do imunizante. Mas o Ministério da Saúde mandou uma quantidade muito menor:

— As vacinas que estão chegando não estão na quantidade correta e a prefeitura de cada município precisa avisar ao ministério. Mandaram 155 doses de vacinas para Magé, que tem três quilombos certificados. Metade da população do Maria Conga ainda não foi vacinada.

Em nota, a Prefeitura de Magé afirmou o cadastro foi apresentado diretamente pelos quilombos ao estado e que recebeu apenas 155 doses, 7,8% do necessário para imunizar os quilombolas do município.

Biko Rodrigues, coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), afirma que o governo federal utilizou dados defasados para calcular a quantidade de doses:

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— O número com o qual o estado brasileiro está trabalhando está muito abaixo do número de famílias quilombolas que existem no país hoje. Ele trabalha com 2 milhões de doses para quilombolas e, pela estimativa da Conaq, esse número é quatro vezes maior, com dados que temos das secretarias estaduais — diz.

Rodrigues explica que o governo se baseou em dados de famílias inscritas no CadÚnico e beneficiárias do Bolsa Família., mas argumenta que há quilombolas que sequer têm registro civil.

— Existem comunidades ainda sem registro,  pessoas em território quilombola que ainda não têm certidão de nascimento, que não têm a primeira identidade. Isso são muitos. Trabalhamos com número de sete a dez milhões de pessoas. Por causa da omissão do estado brasileiro, muitas pessoas quilombolas vão ficar sem vacina — avalia.

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Já o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Hugo Leonardo, afirma que a vulnerabilidade dos grupos privados de liberdade é um dos principais fatores que justifica a prioridade na fila da vacina. Ele lembra que eles não têm condição de realizar o isolamento social e, na maioria das unidades, não tem acesso a equipamentos de proteção, como máscaras e sabonetes.

— Estamos falando de cuidados mínimos para evitar o contágio — afirma.

Na Região Norte, a diretora-executiva da Oficina Escola Lutheria da Amazônia (OELA), Jéssica Gomes, aponta que houve falta de logística na compreensão do movimento das marés na região e a quantidade de doses ofertadas para a população ribeirinha, que vivem ao longo do curso dos rios.

— Desde março, temos novos óbitos de pessoas ribeirinhas que já deveriam ter sido imunizadas — afirma Gomes.

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Com a vacinação, a rotina de Alexandre Pankararu, de 46 anos, indígena morador da cidade de Jatobá, no sertão de Pernambuco, é marcada por frustração, isolamento e medo de pegar a doença. É que, por não morar em aldeia, não foi contemplado dentro do grupo prioritário do Programa Nacional de Imunizações. Apesar de morar na zona urbana há dez anos, ele e sua esposa, da aldeia Caiuá, estão construindo uma casa para retornar à vida aldeada em um mês, mas, por não estarem imunizados, sentem-se afastados dos rituais, do cotidiano e da família, já vacinados contra a Covid-19:

— É um puro descaso. Eu acho que faz parte de um plano de genocídio do estado. Se a gente fosse tão afastado, morasse a dois mil quilômetros, mas eu moro a um quilômetro. A gente vive aqui dentro da aldeia, só não dormimos aqui. Por que não podemos solicitar a vacina? Nós (desaldeados) nos sentimos marginalizados. Também não há a sensação de pertencimento porque não podemos participar dos nossos rituais — lamenta Xandão, como é conhecido na aldeia.

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Diante disso, a Associação de Indígenas Não Aldeados Karaxuwanassu, de Pernambuco, enviou, desde o começo da vacinação no estado, ofícios a prefeituras locais, deputados estaduais, organizações voltadas para a causa indígena, para o Ministério da Saúde (MS) e entraram com ação no Ministério Público Federal (MPF) para questionar o motivo de não terem sido incluídos no calendário prioritário de vacinação. Segundo uma liderança da associação, o MS foi questionado no dia 3 de março, mas não responderam à demanda. Eles anda protocolaram duas ações no MPF, nos dias 3 de março e 14 de abril, que foram encaminhadas para investigação na Procuradoria da República de Pernambuco.

No dia 20 de abril, a associação, por meio da Defensoria Pública de Pernambuco, retornou com a demanda feita junto ao Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) para que o grupo fosse incluído como prioritário. Em resposta, o DSEI encaminhou o pedido ao Ministério da Saúde que, no dia 7 de abril, enviou ofício ao Governo de Pernambuco para especificar a quantidade de indígenas em zonas urbanas por município da federação e, dentro dessa população, quais não teriam acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Respostas

A Prefeitura de Magé disse que recebeu uma nota técnica normativa do estado do Rio de Janeiro para realizar a vacinação da comunidade quilombola, que apresentava um público de 140 pessoas no Quilombo do Feital, 597 no Quilombo Kilombá e 1.250 no Quilombo Maria Conga, totalizando 1.987 quilombolas. O cadastro, segundo o município, foi apresentado diretamente dos quilombos ao estado, e a prefeitura recebeu, via nota técnica do governo federal, as informações sobre o público a ser vacinado nos quilombos. Magé recebeu 155 doses, 7,8% das doses necessárias para imunizar os quilombolas do município, informou a prefeitura.

O governo municipal disse ainda que criou um calendário, fez ampla divulgação e criou uma agenda para vacinação em cada espaço dos quilombos, mas que interrompeu a imunização porque as doses destinadas aos idosos, que foram usadas nos quilombolas, não têm previsão de serem repostas, pois houve um conflito de informações em que o Ministério da Saúde aponta uma meta de vacinação do público quilombola de 155 pessoas, com envio de doses somente para essa quantidade. A prefeitura disse que aguarda retorno da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro afirmando que serão enviadas as doses para os quilombolas.

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O Ministério da Saúde informou que a estimativa inicial para definição do grupo prioritário “Povos e Comunidades tradicionais Quilombolas”, que foi inserido no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 (PNO), foi realizada de acordo os dados disponíveis pelo IBGE 2010, população de 1.133.106. A pasta ressaltou que o plano é dinâmico e está em constante atualização, e que está revisando o levantamento dos dados relativos a esta população, junto aos estados e municípios.

A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro informa que não há população ribeirinha no estado e que a população em situação de rua faz parte da 4ª fase de imunizações e serão vacinados assim que as doses destinadas aos grupos desta fase forem distribuídas pelo Ministério da Saúde. Com relação aos povos quilombolas, disse que o PNI prevê 15 mil pessoas desta população a serem vacinadas no estado do Rio. A secretaria ressaltou que parte dos quilombolas foi imunizada nos grupos por faixa etária, de acordo com a base populacional usada pelo PNI. Disse ainda que, se houver subdimensionamento desta população, as doses serão garantidas pelo Ministério da Saúde, a partir de uma comunicação ao PNI.

A Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas informa que segue o Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 e que, em Alagoas, estão contemplados os quilombolas, indígenas, população privada de liberdade (já vacinados e/ou em processo de vacinação), além das populações em situação de rua e ribeirinha, que deverão ter o processo de imunização concluído ou iniciado em outras fases, a partir do envio de novas remessas de imunizantes por parte do Ministério da Saúde.

Sergipe informou que a comunidade ribeirinha está sendo vacinada de acordo com o cronograma de vacinação da população em geral e que, segundo nota técnica do Ministério da Saúde, Sergipe não é contemplado com vacinas direcionadas às comunidades ribeirinhas.

Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Pernambuco afirmam que não têm população ribeirinha. A Secretaria de Saúde do Estado de Roraima e o Governo do Acre disseram que não têm comunidades quilombolas.

Os estados de Pará e Rio Grande do Sul não responderam.

*Estagiária sob supervisão de Emiliano Urbim


Irapuã Santana: Uma boneca negra; um sorriso negro

Representatividade e inclusão importam. Esse precisa ser nosso ponto de partida em comum para iniciar um debate que, à primeira vista, parece desimportante, mas é, ao contrário, um planejamento de futuro da maior parcela da população brasileira: a mulher negra. Ela representa algo em torno de 27% de todos os brasileiros, segundo a PNAD do IBGE.

Entretanto o mercado não oferece o mínimo razoável de opções para um nicho das bonecas, que tem gerado bons dividendos para quem nele investe. Em 2018, a linha correspondia a 19,2% do total de faturamento, que chegou em 2019 a mais de R$ 7 bilhões, conforme o último relatório da Abrinq.

Com um cenário tão favorável, a lógica seria haver uma seção específica para bonecas negras, atendendo a esse mercado consumidor. Todavia elas correspondem a somente 6% da totalidade das fabricadas e 9% das comercializadas em lojas on-line, de acordo com a ONG Avante, que elaborou um relatório sobre essa triste realidade das meninas negras brasileiras.

Ao entrar numa loja de brinquedos, a criança, que precisa de um referencial para construir sua autoimagem, não tem acesso ao mínimo. Dentro de uma perspectiva psicológica, a mudança ocorrida a partir do contato com um brinquedo parecido consigo mostra a oportunidade de sonhar mais concretamente, gera uma sensação de pertencimento, que traz efeitos de maior segurança para desenvolver suas potencialidades no futuro.

Infelizmente, o Brasil revela a cruel exclusão do negro, desde o início da vida, com a ausência de opções. Se não somos vistos nos lugares, evidencia-se que esses espaços não são para nós.

Mas, se tem mercado consumidor e demanda, qual a justificativa racional para tamanho desperdício de oportunidade?

Por isso, é importante buscar diversidade na oferta, tendo em vista que nossas crianças querem ser vistas, ouvidas e incluídas na sociedade como um todo. Mas é necessário ir além: não basta colocar qualquer boneca, com qualquer história por trás. O imprescindível é levar boas referências para as meninas negras, com princesas e heroínas, médicas e engenheiras, advogadas e juízas...

Mas, para que isso ocorra, é relevante também estar atento para não impedir o acesso dos mais pobres a esse tipo de bem. Uma rápida pesquisa em sites de lojas de brinquedo apresenta um fenômeno perverso relativamente ao preço das bonecas negras, que acaba sendo elevado significativamente, em comparação com as brancas, pelo fato de serem raridade nas prateleiras.

Felizmente, a própria comunidade negra, ciente de suas necessidades, vem trabalhando no sentido de valorizar a produção e a comercialização do brinquedo voltado para um público tão grande quanto especial. Isso já foi sentido pelas grandes marcas, que também abriram espaço a novas personagens e a novas linhas de atuação.

Portanto, devemos fortalecer tais iniciativas e fazer com que elas possam crescer e florescer, levando o encanto dos sonhos, fazendo nascer sorrisos genuínos nos rostos de nossas lindas meninas negras.


Zero Hora: Dentro e fora da TV, Maju Coutinho virou referência para meninas negras

À frente do "Jornal Hoje", que acabou de completar 50 anos, a jornalista celebra as conquistas na carreira, diz estar vivendo sua melhor fase e fala sobre representatividade

Nathália Capeços, Zero Hora

Na pausa para o cafezinho pós-almoço, é a hora de Maria Júlia Coutinho entrar na casa dos brasileiros para trazer as notícias que prometem impactar o resto do dia. E o desafio é grande: o Jornal Hoje, comandado por Maju, é como se fosse aquele amigo antigo da família que comenta os principais fatos equilibrando seriedade e descontração. Afinal, o JH acabou de completar 50 anos fazendo parte da vida dos telespectadores – o noticiário estreou em 21 de abril de 1971. A paulista de 42 anos assumiu a tarefa em 2019, mas reconhece que segue aprendendo todos os dias na função:  

— Quando assumi a bancada, a sensação foi de medo e de honra. Medo porque era um desafio novo, honra por estar à frente de um jornal superimportante — recorda. — É fazendo que a gente vai evoluindo. Todo dia (tenho um) um aprendizado, uma avaliação e reavaliação. 

Numa brecha na rotina corrida, Maju conversou com Donna sobre seu momento na TV, na vida e na carreira. Mas a rotina atribulada faz parte do dia a dia da jornalista há muito tempo. Desde a época de faculdade, ela trabalha na televisão, chegando à Globo em 2007 para ser repórter. Ficou conhecida em todo país ao apresentar a previsão do tempo no Jornal Nacional – o jeito descontraído virou marca registrada. 

A partir daí, a paulista foi ganhando espaço como âncora eventual dos telejornais da emissora, inclusive do JN, onde fez história ao se tornar a primeira mulher negra a sentar na bancada do noticiário mais importante do país. O convite para assumir o Jornal Hoje veio há dois anos e, com ele, ainda mais responsabilidade. Além do trabalho, Maju tem sido inspiração, sobretudo para meninas negras, que se sentem representadas quando a veem na TV. Nas redes sociais, a jornalista compartilha com frequência imagens de garotas de todas as partes do país tirando fotos em frente à televisão para mostrar que estão com o "cabelo igual ao da Maju".

— É um reconhecimento. Dá ânimo e força — define.

Mas estar sob os holofotes também colocou a jornalista no centro de ataques e fake news. Fotos com informações falsas sobre ela, boatos relativos à sua vida pessoal e comentários racistas, infelizmente, não são raridade no seu dia a dia. Para lidar com essa exposição, Maju escolheu dois caminhos: discrição sobre sua vida fora das telas e foco no trabalho. Ela conta que tenta se blindar emocionalmente para acolher as críticas construtivas e ignorar quem quer desestabilizá-la. E quando o limite do bom senso extrapola, o jeito é buscar os direitos na Justiça. No ano passado, dois homens foram condenados por racismo e injúria racial contra a apresentadora.

— Continuar fazendo o meu trabalho é a maior resposta — defende ela.

A seguir, confira um bate-papo com a apresentadora do Jornal Hoje que falou, entre outros temas, sobre a importância da representatividade na TV, como encara a chegada na casa dos 40 anos e a responsabilidade de inspirar meninas Brasil afora.

Você foi a primeira mulher negra na bancada do Jornal Nacional.
Já caminhamos razoavelmente, já vemos mais jornalistas negros ocupando esses postos no jornalismo brasileiro. Mas ainda há um caminho longo pela frente. É importante a representatividade, a diversidade enriquece o trabalho do jornalismo não só com os profissionais negros, mas os gays, os mais velhos, isso tudo dá uma riqueza, precisamos de olhares diferentes. E isso faz a diferença na hora da seleção da pauta, na escolha dos temas, nas análises. Só temos a ganhar com a diversidade nas redações.

Você já foi alvo de ataques racistas. Debater o tema abertamente é um dos caminhos para se construir uma sociedade antirracista?
Debater é o primeiro passo, mas tem que ter ação, não dá para ficar apenas no debate. É preciso real inserção, é preciso ver, na vida real, as pessoas negras que vemos agora nos comerciais. Vemos mais negros em posições de comando em comerciais de TV, mas isso tem que se refletir na vida real para ter efetividade mesmo. Mais representatividade na política, na TV, nos cargos de comando nas administrações de empresas. É isso que vai fazer a diferença.

Você já se retratou no ar após usar uma expressão que gerou polêmica (ela disse que “o choro era livre” em referência a quem contesta medidas de distanciamento social).
É fundamental reconhecer quando não conseguimos passar a mensagem com a clareza que ela exige. Acho que isso nos torna realmente mais humanos e mais próximos do público. Jornalista pode cometer equívocos, pode errar, e o que a gente tem que fazer quando erra é corrigir, se desculpar. Claro que a meta é sempre ser preciso e claro ao comunicar. Mas, quando isso não é possível, a gente se desculpa, levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima e vai.

Como é a experiência de participar do Papo de Política, programa da GloboNews com elenco feminino?
Reforça essa ideia de que mulher pode falar sobre o que quiser. É uma editoria em que sempre tive o sonho de trabalhar, com política. Nunca tive oportunidade, agora veio. Está sendo uma experiência riquíssima. O mais importante é que a gente se complementa, há mais apoio, não há competição. Essa questão da rivalidade tende a ficar cada vez mais fraca, a sororidade está entrando também nas redações, acredito nisso. Sobreviverão as que forem mesmo companheiras, sabendo que cada uma tem o seu espaço. Isso é muito importante.

Você costuma ser discreta sobre sua vida pessoal. É difícil lidar com a curiosidade do público e até com as fake news?
A partir do momento em que fui tomando pé da dimensão que é ficar exposta em rede nacional na TV Globo, aprendi que faz parte do jogo as pessoas terem curiosidade sobre a sua vida e inventarem coisas. Então, tenho que me blindar emocionalmente para lidar com isso, e é isso que tento fazer. Mantenho ao máximo a discrição da minha vida particular, porque acho que ela não deve e não deveria interessar às pessoas, e me preservo. Sei que os ataques são do jogo, apesar de achar que vivemos uma era de ataques que passam do limite, então, tento me preservar. Continuar fazendo o meu trabalho é a maior resposta. Quem critica é outra coisa, crítica construtiva a gente está aberta, eu aprendo. Mas ataque desnecessário tem que ser ignorado. Se extrapola, tem a lei para processar.

A chegada aos 40 anos mudou a relação com sua autoimagem?
Me sinto muito bem aos 40, é a melhor fase que estou vivendo. Estou saudável e tenho um amadurecimento. A estrada que caminhamos, os tombos que levamos, os aprendizados, tudo traz amadurecimento e leveza. Com essa idade, começamos a tirar um monte de pedras da mochila que carregamos na vida e só deixamos aquelas essenciais. Isso para mim é importante, saber que o mais simples é o melhor, que para quase tudo tem um jeito, a não ser para a morte, e levando com mais tranquilidade. Apesar de estarmos vivendo um período caótico, mesmo assim, tento manter a sanidade e a serenidade.

Nas redes sociais, as fotos de meninas negras se inspirando no seu cabelo se multiplicam.
Nunca imaginei que ia ter essa repercussão, que tantas meninas fossem tirar fotos, até os idosos. Acho o máximo, é um reconhecimento, e só agradeço por ter esse retorno do público. Dá ânimo e força de continuar fazendo o trabalho. Parti de um cabelo que era trançado quando criança pelos meus pais. Quando tinha uns oito ou 10 anos, por não ter referências de mulheres negras com cabelos crespos, passei a alisar, e alisei por um bom tempo. Na adolescência, surgiu a revista Raça e vi uma moça com o cabelo todo trançado. Me inspirou tanto, resolvi trançar meu cabelo, e fiquei anos com tranças. Retirei, fiquei um tempo com o cabelo natural, passei a usar babyliss e isso estragou um pouco, e voltei para o natural agora. Estou com o cabelo do jeito que gosto, natural, só à base de cremes.

Quais têm sido suas estratégias para manter a saúde mental em dia na pandemia?
Tem sido só casa e trabalho. Raramente vou aos meus pais. Agora que eles estão vacinados, às vezes dou um pulo lá. Casa, trabalho e, quando tem uma liberação na quarentena em São Paulo, me refugio numa casa na praia que a família tem. Vou só eu e meu marido (o publicitário Agostinho Paulo Moura) para vermos um pouco de natureza. Faço exercício em casa, na bicicleta, ou corro na rua de máscara. E muita terapia, meditação e exercício físico, muita fé mesmo para superar esse momento.

Estilo Maju

Seja para apresentar o Jornal Hoje ou em eventos públicos antes da pandemia, Maju Coutinho sempre esbanjou personalidade na hora de se vestir. Ao ligar a TV no telejornal, impossível não reparar nos looks da apresentadora, que costuma investir em cores fortes e vibrantes, como o amarelo, o laranja e o rosa. Adepta da alfaiataria, Maju investe em peças únicas, sua marca registrada, ou em roupas como pantalonas, vestidos estilo tubinho, camisaria e macacões. A jornalista também foi elogiada por repetir peças ao vivo em diferentes combinações – em entrevistas, contou que "é sustentável". Também já revelou que gosta de se inspirar no estilo de mulheres como Michelle Obama.


Folha de S. Paulo: Contra racismo, futebol inglês decide boicotar redes sociais por 4 dias

Contas dos times de todas as divisões profissionais no Facebook, Instagram e Twitter não serão atualizadas

O futebol inglês vai boicotar Facebook, Instagram e Twitter por quatro dias a partir da próxima sexta-feira (30). A iniciativa, divulgada neste sábado (24), é um protesto porque clubes, federações, associações de jogadores e torcedores acreditam que as plataformas fazem pouco para combater o racismo.

A ação vai englobar a Federação Inglesa (FA), a Premier League (liga dos clubes que organiza a primeira divisão), a EFL (English Football League, responsável pelos torneios da 2ª a 4ª divisão), as duas principais competições femininas e outras seis entidades ligadas a atletas, torcedores e ONGs que lutam contra discriminação no esporte.

Isso significa que as contas dos clubes e federações não serão atualizadas no próximo final de semana. Nas partidas da Premier League, serão 20 times envolvidos. Apenas Manchester United, Manchester City, Chelsea e Liverpool têm 478 milhões de seguidores espalhados pelas três redes sociais.

Em fevereiro deste ano, as organizações enviaram uma carta conjunta às plataformas pedindo maior agilidade na retirada de postagens e comentários racistas, melhores filtros para evitar este tipo de conteúdo e maior capacidade para expulsar usuários. Também pediram que Twitter, Facebook e Instagram trabalhassem melhor com a polícia para identificar e processar responsáveis por mensagens racistas.1 4

Usuários utilizaram emojis (figurinhas) de macacos para atacar o volante brasileiro Fred, do Manchester United, nas redes sociais

"Embora algum progresso tenha sido feito, reiteramos esses pedidos hoje em uma tentativa de reduzir o incansável fluxo de mensagens discriminatórias e assegurar que existam consequências reais para os responsáveis", diz o comunicado divulgado.PUBLICIDADE

Clubes, federações e entidades que assinam o manifesto também solicitam ao governo do Reino Unido que apresse a apresentação de projeto de lei que torna as redes sociais responsáveis pelo conteúdo postado e, com isso, também possam responder judicialmente por ele.

"A Premier League e nossos clubes se unem ao futebol ao realizar este boicote para ressaltar a necessidade urgente para que as redes sociais fazerem mais para excluir ódio racial. Queremos ver melhorias significativas nas suas políticas de conduta e nos processos para combater ofensas discriminatórias em suas plataformas", disse o CEO da Premier League, Richard Masters.


Ana Paula Xongani: "Coded Bias" - O que acontece quando os algoritmos reproduzem o racismo?

Recentemente, alguns criadores de conteúdo na internet colocaram fotos de pessoas brancas em seus perfis e, a partir do resultado de engajamento das postagens, sinalizaram um possível comportamento racista dos algoritmos. Desde então, cresce meu interesse pelo tema. Afinal, além de ser uma mulher negra, sou uma mulher negra que produz conteúdo para a internet.

Não é de hoje que o resultado de qualquer pesquisa nas ferramentas de busca violenta pessoas negras. Mesmo com ações e manifestações de diversas entidades, ainda é recorrente, por exemplo, que você precise adicionar a palavra "negra" para aparecer a imagem de uma família negra quando você busca pela palavra "família". Ora, uma família negra não é uma "família"?

No campo da estética e da moda não é diferente. A busca por referências do que é belo, do que é tendência, certamente nos entregará uma maioria de produções brancas, vindas de países europeus ou dos Estados Unidos. Por que isso acontece? Se a tecnologia é tão "inteligente", por que se comporta desta forma?

Bem, a pergunta que a gente precisa fazer é: quem desenvolve a tecnologia? Quem a programa? Quem desenvolve os algoritmos que respondem quando a gente pergunta algo para as plataformas digitais?

Nos últimos dias, o assunto me impactou novamente, desta vez pelo lançamento do documentário "Coded Bias", da Netflix, e pelo e-mail da minha seguidora Dayana Morais da Cruz, que propôs a pauta desta coluna. Ela é pós-graduanda em Legislativo, Território e Gestão de Cidades e trabalha numa empresa de RH com foco em diversidade e inclusão.

A área em que ela atua é um bom exemplo para ilustrar uma linha de raciocínio. Por exemplo, é conhecido que existem processos enviesados nas práticas de recrutamento e contratação de empresas. Eles já começam quando filtram currículos por universidades específicas, deixando de fora milhares de candidatos talentosíssimos; continuam quando selecionam pela fluência em outras línguas, quando vivemos em um país que apenas 5% da população fala inglês... E por aí vai.

Os "filtros" que, numa perspectiva offline, há tanto tempo organizam o raciocínio corporativo, também estão refletidos nos softwares que crivam perfis de profissionais a serem contratados pelas empresas. Tá, mas o que eu tenho a ver com isso, Xongani? Você deve estar se perguntando.

Posso começar a responder sua pergunta com a mesma palavra: filtros. Você que, assim como eu, usa as redes sociais toda hora, já deve ter aplicado um filtro em alguma foto ou usado aqueles aplicativos que "melhoram a pele", "envelhecem", "rejuvenescem". A partir disso, faço duas perguntas. Primeira: o que significou "melhorar"? Tem a ver com "afinar traços"? Mudar características que são suas para colocá-las dentro de um padrão de beleza? Segunda: para onde vai essa quantidade de imagens que estamos produzindo? Para onde vai a foto do meu rosto?

"Para se cadastrar no aplicativo Meu Gov, do Governo Federal, por exemplo, é preciso cadastrar uma foto para ter o selo de validação facial. Para onde vão tais informações e como elas são usadas, a gente não tem certeza", comenta Dayana.

Ela traz ainda referências de vários profissionais, brasileiros e gringos, que estão apontando todos os problemas das tecnologias, como Tarcízio Silva, pesquisador e mestre em Comunicação e Cultura; Sil Bahia, coordenadora da Pretalab; e Joy Buolamwini, do MIT, cujas pesquisas são a base do documentário da Netflix e também responsáveis por provocar revisões na legislação que regula as práticas de reconhecimento facial.

A questão é a seguinte: os algoritmos trabalham a partir do que aprendem com os seres humanos que os desenvolvem. "É comum que os algoritmos tenham sido treinados com uma massa de dados muito maior de pessoas brancas do que pessoas negras. Isso faz com que os sistemas tenham falhas em reconhecer características relevantes em pessoas negras", escreveu o cientista de dados Lucas Santana.

Com a ausência de profissionais, sobretudo de profissionais negros, que estejam realmente trabalhando para transformar os vieses no aprendizado das "máquinas", elas continuarão sendo criadas a partir de modelos que não correspondem à realidade. E, como explica o Lucas, isso gera um número elevado de erros.

Dayana complementa ainda que há um papel importante desses algoritmos na organização do comportamento das redes, uma vez que afunilam o acesso a partir de interesses e, assim, acentuam as bolhas e polarizações.

São muitas informações e eu sei que o tema é complexo, mas precisamos nos aproximar dele, porque compartilhamos informações pessoais nas redes e passamos horas por lá diariamente. É necessário entender o que está acontecendo para que elas não mais reproduzam ou potencializem desigualdades. Recomendo, como começo de conversa, uma olhada no conteúdo da galera toda que eu mencionei aqui.


Alê Garcia: A presença do cinema negro no Oscar 2021

Vimos, no final de 2020, como o Emmy estabeleceu um recorde ao nomear o maior número de atores negros em  72 anos de história. Foram 35 das 102 atuações indicadas.  

Corta pra o Globo de Ouro, em fevereiro de 2021:  a despeito da chamada “invasão do cinema afro-americano” teve um número pífio de negros na premiação, com a falta de importantes nomes, tanto em artistas como em produções.

De tempos em tempos, temos a oportunidade de nos tornarmos espectadores de importantes mudanças estruturais. Achávamos que teríamos isto este ano.

Em 2015 e 2016, o Oscar só nomeou atores brancos nas categorias de atuação, mesmo com  diversos nomes negros merecedores de estarem na corrida. Que o digam Will Smith por “Um Homem Entre Gigantes”, Idris Elba por “Beasts of no Nation” e Samuel L. Jackson por “Os 8 Odiados”. Naquele momento teve início o movimento #OscarSoWhite, levante extremamente necessário que contou com o apoio de nomes como Spike Lee e Jada Pinkett Smith, que boicotaram a cerimônia.

Desde então foram anunciadas medidas para as próximas premiações, como a entrada de novos membros dos mais diversos países, idades e raças. Além do desligamento de votantes que nem estão mais na ativa na indústria cinematográfica.

No entanto, somos obrigados a assistir, todo ano, a este sobe e desce dos indicados, sempre iludidos sobre um equilíbro entre negros e não-negros no Oscar,  normalizando nossa presença na maior premiação da indústria cinematográfica do mundo.

Mas a normalização ainda não chegou.

Pensávamos que este ano teríamos no mínimo sete atores e atrizes negros indicados, o que — então sim —  bateria o recorde de 2017, ano em que a Academia se viu pressionada a indicar o máximo possível de negros. 

O máximo possível foram seis.

Tivemos Denzel Washington e Viola Davis disputando por “Um Limite entre Nós”, além de Mahershala Ali e a Naomi Harris, por “Moonlight”. Ruth Negga disputou por “Loving” e Octavia Spencer por “Estrelas Além do Tempo”. Entre os seis indicados, só Viola Davis e Mahershala Ali levaram suas estatuetas, como Coadjuvantes.

Mas este ano continuamos com seis indicados. Quando vamos ultrapassar este número? E quando pararemos de contar, já que será algo tão normalizado que nem mais celebraremos o fato?

Enquanto isso não acontece, temos, entre os indicados: como Melhor Ator, Chadwick Boseman, que concorre postumamente por sua sensível interpretação em “A Voz Suprema do Blues”. E, considerando que o ator falecido em 2020 já foi premiado no Globo de Ouro, no Screen Actors Guild e no Critics Choice Awards, temos o favorito para ganhar o Oscar nesta edição. Por seu talento óbvio, mas também porque é praxe a premiação póstuma como última consagração — que o diga Heath Ledger e seu Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em 2009, ano seguinte à sua morte.

Pelo mesmo filme, temos a incrível Viola Davis, concorrendo a Melhor Atriz e entrando para a história do Oscar como a atriz negra mais indicada de todos os tempos, com quatro indicações. É com isso que comemoramos, enquanto Meryl Streep, atriz do mesmo patamar,  já conta com vinte e uma indicações!

Andra Day também vem concorrendo como Melhor Atriz por “Estados Unidos VS Billie Holyday”. E foi ela quem levou o prêmio de Melhor Atriz em Drama no Globo de Ouro. Ao ser indicada com Viola Davis, temos a segunda vez na história do Oscar em que duas mulheres negras são indicadas no mesmo ano nesta categoria principal. A última vez em que aconteceu foi em 1973, quando Cicely Tyson foi indicada por “Sounder”, lançado no Brasil como “Lágrima de Esperança” e Diana Ross por “Lady Sings the Blues”, aqui intitulado “O Ocaso de Uma Estrela”.

Outra estreia digna de nota é o fato de Mia Neal e Jamika Wilson serem indicadas por “A Voz Suprema do Blues” como as primeiras mulheres negras na categoria Maquiagem e Penteado.

Já nas categorias de coadjuvante, Leslie Odom Jr concorre por “Uma Noite em Miami”. Ele, também cantor fenomenal, é o intérprete de “Speak Now”, do mesmo filme, que concorre como Melhor Canção Original.

Por “Judas e o Messias Negro”, temos ainda Lakeith Stanfield, conhecido por seu papel na série “Atlanta” e que, surpreendentemente, concorre com seu colega de filme, Daniel Kaluuya — que deveria estar concorrendo como Melhor Ator. Kaluuya, que já levou  o prêmio do SAG Awards, Globo de Ouro, Critics Choice Awards e Bafta, tem, neste papel, a melhor performance da sua carreira, como Fred Hampton, o líder da unidade de Illinois dos Panteras Negras. Temos um favorito?

“Judas e o Messias Negro” conta a história real de Bill O’Neal, papel de Lakeith Stanfield, militante negro infiltrado pelo FBI para espionar e sabotar o movimento dos Panteras Negras.

A obra, que concorre a Melhor Filme, tornou-se o primeiro indicado nesta categoria a ter uma equipe totalmente negra de produtores: Shaka King, que também o dirige, além de Ryan Coogler, diretor de “Pantera Negra” e Charles D. King.

O filme recebeu um total de seis indicações, incluindo também Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia e Melhor Canção Original, a música “I Will Fight For You”, interpretada por H.E.R.

Outro filme que poderia estar no páreo,  “Uma noite em Miami”, sensível estreia de Regina King na direção, não está entre os indicados a Melhor Filme. Concorre por Melhor Roteiro Adaptado, focando na história dos quatro ícones negros norte-americanos, o pugilista Muhammad Ali, o jogador de futebol americano Jim Brown, o cantor Sam Cooke e o ativista Malcolm X, que se reúnem para uma noite de conversas sobre como as suas condições de figuras de destaque poderiam ajudar a população de negros do país.

O filme foi descrito por sua diretora como “uma carta de amor aos homens negros e as suas experiências” e traz um olhar delicado e generoso sobre estes líderes negros também repletos de insegurança e hesitação.

Indicado nas categorias Melhor Animação, Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Som, vem “Soul”, da Disney Pixar, primeira animação desta produtora com um protagonista negro. Um filme sobre morte, jazz, saudade, propósito de vida e limitação. Com abordagens tão profundas que trouxe alguns questionamentos válidos sobre sua adequação infantil.

Concorrendo com “Soul” em Melhor Trilha Sonora Original, temos “Destacamento Blood”, do Spike Lee, sobre quatro ex-veteranos da Guerra do Vietnã que voltam à nação asiática pra recuperar um tesouro escondido e rever os restos mortais do líder de seu esquadrão, Norman Holloway, interpretado por Chadwick Boseman, em um dos seus últimos papéis. E esta é a única indicação deste filme, uma análise profunda de como a Guerra do Vietnã foi uma empreitada do governo dos EUA cujo resultado foi uma tragédia com muitos mortos, feridos e traumas que precisarão de gerações para serem superados.

Domingo estaremos na torcida por todos estes filmes. E numa torcida ainda maior para que a quantidade de indicados negros, um dia, seja tamanha que fiquemos divididos entre quais filmes negros são nossos favoritos.

Alê Garcia – Escritor e criador do podcast “Negro da Semana”. Garcia figura na lista do 20 Creators Negros Mais Inovadores do País pela Forbes.


Angela Alonso: Um sinhozinho

É o cidadão de bem dos tempos bolsonaristas, sem máscara e com revólver na gaveta

O nome dele é Jack, mas podia ser um Zé. Sua boca é humana em corpo que, apesar do terno e gravata, é de macaco-prego. Está sendo interrogado por detetive loiro, acinzentado pelo nevoeiro do cigarro, num curta de David Lynch, em que tudo é branco e preto. Trata-se de "What Did Jack Do?" (2017).

Ali, ao seu costume, o diretor joga com o absurdo: o macaco-humano é acusado de crime. A cena remete ao corriqueiro nos grandes países escravistas, aqui, na África do Sul, nos Estados Unidos.

Num prolongamento simbólico da escravidão, a sujeição dos negros é precedida por seu rebaixamento ao mundo da natureza: em vez de pessoa, é visto como animal. E, como tal, é sempre suspeito e requer disciplinamento.

O raciocínio vive por aí. Quem o emitiu nesta semana foi Vinícius Pereira da Silva. Dos píncaros de sua parca eloquência tratou a porteira do prédio onde mora como um bicho: "Macaca! Chimpanzé! Chipanga!". Um adjetivo pareceu-lhe insuficiente. Talvez porque, de tanto uso, "macaco" tenha gastado parte da potência depreciativa, daí o recurso a outro símio conhecido e ao sinônimo inusual.

Tudo porque Silva não foi atendido de pronto. Recusou-se a se identificar na entrada da garagem, conforme a regra do condomínio, supondo que todo mundo deve reconhecer um Senhor. Decerto, se a porteira não verificasse a identidade do motorista, o xingamento viria do mesmo modo, por descumprir as ordens.

O sinhozinho goiano não mora em qualquer prédio, mas no Residencial M Times, duas torres inspiradas na "emblemática e pulsante Times Square", o sonho turístico brasileiro.

Foi lançado no mesmo ano do filme de Lynch. Nos anúncios, prometia o modo de vida da classe média alta, em projeto que "equilibra custo e benefício na medida certa para colocar sua família no coração de onde a vida acontece". Tem porcelanato e varanda gourmet. Tem elevador social e de serviço, de modo que o sinhozinho pode evitar a mistura. Cada um no seu quadrado.

Esse senhor é tipo conhecido. Bermuda longa, abdome proeminente, bíceps definidos envolvem sua prepotência desbocada: "Você não presta, desgraça. Você é uma merda, abaixo de zero", ouviu dele a porteira. É o cidadão de bem dos tempos bolsonaristas, sem máscara no rosto e com revólver na gaveta: "Vou meter minha arma na cintura e vou aí resolver".

Ameaçou porque, além de malograr o bem servir, a "chipanga" tampouco se submeteu ao castigo. Em vez de se sujeitar, gravou o ataque. Seu filme é tão surreal quanto os de Lynch. A imagem some, mas, em off, pelo interfone, a intimidação segue. O sinhozinho se declara policial, da classe dos que apertam pescoços até a asfixia.

Isso na semana do julgamento do assassino de George Floyd, outro crime racial filmado. Lá se viu o quanto instituições e lideranças políticas importam. Enquanto Trump congratulou os supremacistas do Proud Boys, Biden fez pronunciamento antirracista e recebeu a família enlutada de Floyd. Presidentes dão —num sentido ou noutro— o exemplo.

"Chipanga" é vocábulo antigo, como o clima do curta de Lynch. Mas cada história tem um desfecho. Jack tentou a fuga, a porteira encarou a briga. Denunciou o crime racial. Os sinhozinhos não vão mudar se não houver punição. As vítimas sim, vem mudando, como atesta a goiana.

"Eu espero que todo mundo que passou ou venha a passar por isso consiga denunciar, porque só assim a gente vai conseguir que essas pessoas nos respeitem e nos tratem como seres humanos".

*Angela Alonso é professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento


Monica de Bolle: Sociedades que se movem

O novo na condenação de Derek Chauvin pelo homicídio de George Floyd se apresenta pela imaginação, pelo desejo e, sobretudo, pela forma de realização da justiça

Há sociedades que se movem em direção ao novo, há sociedades que parecem não sair do lugar, e há aquelas que se movem em direção ao passado. Sim, imaginação. A abertura para o novo e para as mudanças que ele pode trazer exigem imaginação. Um dia se imaginou que o homem chegaria à lua. Ao longo da pandemia, o esforço de combatê-la e de pensar no que sobreviria exigiu imaginação. Aqui nos Estados Unidos o trabalho da imaginação esteve presente ao longo da campanha de Joe Biden, em sua vitória, durante o turbulento período de transição, e continua presente quatro meses depois do início de seu governo.

Imaginou-se que o país seria capaz de imunizar rapidamente a população em alguns meses utilizando as vacinas mais sofisticadas do mundo. Estamos a um par de meses de conseguir fazê-lo. Imaginou-se que o debate sobre clima e meio ambiente se tornaria central na reorganização das políticas públicas. O Plano Biden está aí para mostrar que também isso foi possível, a despeito do que venha a ocorrer durante as discussões no Congresso. Imaginou-se que a retomada econômica viria com a criação de empregos e com o apoio aos mais vulneráveis. Novamente, o pacote aprovado no início de 2021 tem como princípio norteador a ajuda aos mais pobres. Imaginou-se que seria possível começar a enfrentar o racismo e a violência policial contra os negros. No dia 20 de abril, o policial que ajoelhou sobre o pescoço de George Floyd a ponto de esmagá-lo e asfixiá-lo foi condenado por seus crimes. Não é mais do que um início, como muitos têm enfatizado. Mas, para quem vive aqui nos Estados Unidos e é testemunha do que se passa a toda hora com a comunidade negra, a esperança é palpável. Para quem viveu os anos Trump, mais ainda.

O novo na condenação de Derek Chauvin pelo homicídio de George Floyd se apresenta pela imaginação, pelo desejo e, sobretudo, pela forma de realização da justiça. Nesse caso em especial, a justiça se realizou como fruto das interações de instituições e sociedade, em particular, da ação social como forma de atualizar o caráter republicano das instituições. Sabemos que o tempo das instituições é demorado e que a questão do racismo nos Estados Unidos é, como no Brasil, estrutural, portanto de longa duração. Mas essa arquitetura estruturante das relações que é o racismo foi desafiada, no caso do homicídio de George Floyd, pelo tempo célere das novas tecnologias comunicacionais, as quais parecem naturalmente incorporadas à vida dos mais jovens. O assassinato foi gravado por uma menina que empunhava um telefone celular e que, durante os nove minutos de agonia, captou cada instante da vida que escapava de Floyd por força do joelho do policial. O policial, em determinado momento, parece sorrir para a câmara enquanto praticava o mortífero ato.

O vídeo de nove minutos que registrou o homicídio rodou o mundo e despertou reações de solidariedade. Essa circulação ampla tornou George Floyd um ícone global da violência policial contra os negros em particular, mas também contra outras raças. A solidariedade que sobreveio de ser testemunha da agonia da vítima, de seu sofrimento intenso, de sua declaração “não consigo respirar” durante uma pandemia em que tantos se viram asfixiados, dos momentos finais em que chamou sua mãe, transcendeu as fronteiras dos Estados Unidos. Testemunhamos ações de protesto em todo o mundo e elas também perduraram nos Estados Unidos. Tudo isso torna possível dar passos além da imaginação rumo ao aperfeiçoamento do caráter republicano das instituições. O júri que condenou Derek Chauvin era composto de seis pessoas brancas. Seis pessoas brancas que não titubearam em declará-lo culpado pelos três crimes que lhe foram imputados.

O novo que vem pela realização da justiça e pela atualização das instituições a partir da ação social movida pela imaginação e pelo sentimento é particularmente interessante.

Ele suscita muitas reflexões sobre como os caminhos para o novo podem ser percorridos no Brasil. O que não falta em nosso país são injustiças e mobilizações para demandar a implementação de direitos. O que parece nos faltar é a imaginação e a crença de que a ação social é, sim, capaz de moldar instituições, ainda que elas se mostrem engessadas e cada vez menos preocupadas com o bem-estar da população.

A movimentação por um país que enxerga na justiça o caminho para o que é novo começa agora. Que entregue bons frutos em 2022.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Thaynara Santos: Na guerra às drogas, entre mortos e feridos, salvam-se os brancos e ricos

Criminalização de substâncias sempre foi pautada pelo racismo e pela xenofobia

Por conta dos golpes que recebeu na cabeça quando lutava, Maguila desenvolveu encefalopatia traumática crônica, doença degenerativa do cérebro. Apesar da sua situação de saúde, o que virou notícia foi o tratamento da enfermidade com o uso de canabidiol (CBD).

Dentre os avanços estão a ONU ter retirado a maconha da lista de drogas mais perigosas e a Anvisa, excluído o tetra-hidrocanabinol (THC) e o CBD, componentes da Cannabis, da relação de substâncias que não podem ser prescritas ou manipuladas no Brasil. Houve também a aprovação da Lei nº 174/2019 que permite o cultivo de Cannabis para fins de pesquisa e a concessão de habeas corpus coletivo à Cultive, Associação de Cannabis e Saúde, de SP, para que 21 famílias possam plantar maconha em suas casas sem correrem o risco de serem presas.

No ano passado, a Associação de Apoio à Pesquisa e à Pacientes de Cannabis Medicina (Apepi-RJ) já havia obtido a autorização para plantio, realização de pesquisas e fornecimento de medicamentos para pacientes associados. O que continua dificultando o acesso ao remédio é o valor. Um frasco contendo 30 ml é vendido por cerca de R$ 2.300 (com desconto).

Olhando além da perspectiva da saúde, ficam as questões: como a legalização da maconha dialoga com os problemas sociais, raciais e de periferias? Como os cidadãos que contam com um auxílio emergencial para comer poderão pagar R$ 2.000 num medicamento? Quando os remédios da maconha —os de qualidade— chegarão ao Sistema Único de Saúde (SUS)? Como cultivar em um território que sofre frequentemente com operações policiais? Essas perguntas deixam claro que precisamos pensar em alternativas para aqueles que tiveram suas vidas ceifadas e seus direitos violados pela guerra às drogas.

Em Nova York houve a aprovação de um projeto de lei que legaliza o uso recreativo da maconha e prevê verbas às pessoas que receberam sanções da “war on drugs” (guerra às drogas).

Aprovado com cem votos, o projeto prevê a remoção dos antecedentes criminais dos condenados por crimes relacionados à Cannabis e das multas de quem havia sido pego com até 85 gramas (o novo limite de posse individual). A contratação de milhares de pessoas no mercado da Cannabis e a criação de um imposto sobre o comércio legal da substância são outras medidas sugeridas pela legislação.

Sabemos que a classificação das substâncias ilícitas não tem uma motivação exclusivamente relacionada à saúde. Nos Estados Unidos do século 20, os hispânicos eram relacionados à maconha, os chineses, ao ópio e os italianos, ao álcool.

As bebidas alcoólicas, drogas lícitas, são responsáveis pela morte de uma pessoa a cada 10 segundos. Isso significa que seu uso abusivo mata 3 milhões de pessoas por ano.

A criminalização de algumas substâncias sempre foi pautada pelo racismo e pela xenofobia. Em 1830, o consumo de maconha foi proibido no Rio de Janeiro. O objetivo era criminalizar os negros escravizados e libertos que usavam o Pito do Pango (um dos nomes utilizados para a maconha na época).

Desde lá, quase nada mudou. A lei n° 11.343, de 2006, acabou com a pena de prisão nos casos de porte de drogas para consumo pessoal, mas aumentou a pena mínima para tráfico de drogas para cinco anos.

Mas quem define quem é usuário e quem é traficante? O segundo parágrafo do art. 28 é direto: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. A atual legislação brasileira continua incriminando o pobre e o negro.

O sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro gastou mais de R$ 1 bilhão com a guerra às drogas e com violações de direitos. Esse mesmo valor poderia ser usado para custear a educação de 252 mil alunos em uma escola do ensino médio, construir 121 escolas, manter o funcionamento de 81 Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) em favelas e periferias, beneficiar 156 mil famílias com aluguel social ao longo de um ano ou vacinar 18 milhões de pessoas contra a Covid-19. Os dados são do relatório Um Tiro no Pé: O impacto da guerra às drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e de São Paulo, realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). O assunto foi pauta nesta mesma coluna há duas semanas com um texto de Raull Santiago, integrante do Coletivo Papo Reto e do PerifaConnection.

Pensar em uma política de drogas que repare os danos causados por décadas de violações de direitos e violências é urgente. São inúmeros os impactos da guerra às drogas no cotidiano dos moradores de favelas e de periferias. Ano passado, durante o primeiro ano da pandemia e isolamento social, somente o conjunto de favelas da Maré, no Rio, enfrentou 16 operações. Durante três dias, as escolas tiveram o funcionamento interrompido e por oito dias as atividades nas unidades de saúde foram suspensas. Vale destacar que a medida da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) das Favelas, que restringe operações policiais durante a pandemia, já havia sido estabelecida.

O encarceramento em massa também é fruto dessa guerra fracassada. O Brasil é um dos três países que mais encarceram pessoas no mundo. Só no primeiro semestre de 2020, havia cerca de 760 mil pessoas encarceradas. Mais de 32% dos crimes eram relacionados às Leis de Drogas, de acordo com dados do Sisdepen (Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional).

Não podemos deixar o debate sobre reparação para segunda ordem ou tratar como se fosse uma pauta secundária. Sem essa discussão qualquer política de drogas continuará racista. Pensar em formas de reparação aos principais alvos da guerra às drogas ainda é um sonho no Brasil.

*Thaynara Santos é jornalista e co-fundadora do Movimentos, organização favelada que discute política de drogas a partir da perspectiva das juventudes periféricas.


The New York Times: A morte de George Floyd reacendeu um movimento nos EUA. O que acontece com ele agora?

Crime fez eclodir os maiores protestos contra o racismo no país desde os anos 1960, mas ainda não está claro quais mudanças vão perdurar

George Floyd estava morto havia apenas algumas horas quando o movimento começou. Impelidas por um vídeo apavorante e pelo boca a boca, muitas pessoas foram para o cruzamento na zona sul de Minneapolis onde ele foi morto, logo após o feriado do Memorial Day, para exigir o fim da violência policial contra americanos negros.

Aquele momento de dor e revolta coletiva logo deu lugar a uma reflexão nacional, feita ao longo de um ano, sobre o que significa ser negro na América.

Primeiro vieram os protestos, em cidades grandes e menores em todo o país, convertendo-se no maior movimento de protestos em massa na história dos Estados Unidos. Então, ao longo dos meses seguintes, quase 170 símbolos confederados foram rebatizados ou removidos de espaços públicos. O slogan “Black Lives Matter” (vidas negras importam) foi reivindicado por uma nação que se esforçava para entender a morte de Floyd.

Ao longo dos 11 meses seguintes, chamados por justiça racial alcançaram aparentemente todos os aspectos da vida americana em uma escala que, segundo historiadores, não era vista desde o movimento pelos direitos civis, nos anos 1960.

Na terça-feira (20), Derek Chauvin, o policial branco que se ajoelhou sobre Floyd, foi condenado por duas acusações de homicídio e por homicídio culposo. O veredito trouxe algum alívio aos ativistas que lutam por justiça racial e que passaram as últimas semanas acompanhando cada detalhe do drama que transcorria no tribunal.

Também se veem sinais de uma reação contrária: legislação para reduzir o acesso de eleitores às urnas, proteger a polícia e, na prática, criminalizar protestos públicos vem aparecendo em Legislativos estaduais controlados pelo Partido Republicano.

O arco inteiro do caso de Floyd –desde sua morte e os protestos até o julgamento e a condenação de Derek Chauvin—se deu contra o pano de fundo da pandemia de coronavírus, que chamou ainda ainda mais a atenção para as disparidades raciais nos EUA, onde pessoas não brancas estão entre as mais duramente atingidas pelo vírus e pelas dificuldades econômicas que o acompanharam.

Para muitas pessoas, a morte de Floyd carrega o peso de outros episódios de violência policial na última década, uma lista que inclui as mortes de Eric Garner, Laquan McDonald, Michael Brown e Breonna Taylor.

Nos meses seguintes à morte de Floyd houve algumas mudanças concretas. Dezenas de leis de reforma do policiamento foram apresentadas nos estados. Grandes empresas reservaram bilhões de dólares para causas ligadas à equidade racial, e a NFL (a liga profissional de futebol americano) pediu desculpas por não ter apoiado protestos de seus jogadores negros contra a violência policial.

Mesmo as reações contrárias foram diferentes. Declarações racistas feitas por dezenas de figuras de autoridade, desde prefeitos até diretores de corpos de bombeiros, relacionadas à morte de George Floyd —o tipo de declaração que talvez fosse tolerada antes— custaram seus seus cargos e levaram alguns líderes a ser encaminhadas para aulas antirracismo.

E, pelo menos inicialmente, as opiniões americanas sobre uma série de questões ligadas à disparidade racial e ao policiamento mudaram em um grau raramente visto em sondagens de opinião. Os americanos, e em especial os americanos brancos, mostraram probabilidade muito maior que nos últimos anos de apoiar o movimento Black Lives Matter, dizer que a discriminação racial é um problema sério e que a força policial excessiva prejudica os afro-americanos de maneira desproporcional.

Em meados de 2020, a maioria dos americanos concordava que a morte de George Floyd fazia parte de um padrão maior, não constituindo um incidente isolado. Uma pesquisa do jornal The New York Times realizada em junho com eleitores registrados mostrou que mais de um em cada dez havia participado de protestos. Na época, até mesmo políticos republicanos em Washington estavam expressando apoio à reforma da polícia.

Mas a mudança de postura mostrou-se passageira no caso dos republicanos —tanto dos líderes eleitos quanto dos eleitores.

Quando alguns protestos ganharam tom destrutivo e quando a campanha de reeleição de Donald Trump começou a usar essas cenas em seus anúncios políticos, pesquisas de opinião mostraram que os republicanos brancos recuaram em relação à sua própria visão de que a discriminação é um problema.

“Para quem estava do lado republicano, que é na realidade o lado de Trump nesta equação, a mensagem passou a ser: ‘Não podemos admitir que o que aconteceu foi repulsivo, porque se o fizermos vamos perder terreno’”, disse Patrick Murray, diretor do Instituto de Sondagens da Universidade Monmouth. “Nossa visão de mundo é ‘somos nós contra eles’. E quem participa dos protestos está incluindo no ‘eles’”.

Mas a morte de George Floyd levou a algumas mudanças, pelo menos por enquanto, na consciência que os americanos brancos não republicanos têm da desigualdade racial e em seu apoio a reformas. E ela ajudou a fortalecer o movimento em direção ao Partido Democrata dos eleitores suburbanos com instrução superior, já consternados com o que viam como a promoção do racismo por Trump.

“O ano de 2020 vai ficar em nossa história como um tempo muito significativo, catártico”, comentou David Bailey, cuja ONG Arrabon, sediada em Richmond (no estado da Virgínia), ajuda igrejas em todo o país a trabalhar pela reconciliação racial. “As atitudes das pessoas mudaram, em algum nível. Não sabemos inteiramente ainda o que isso tudo significa. Mas eu estou esperançoso, acho que estou vendo algo diferente ganhar forma.”

Mesmo entre líderes democratas, porém, incluindo prefeitos e o presidente Joe Biden, a consternação diante da violência policial frequentemente vem acompanhada de avisos de que os manifestantes também devem evitar a violência. Essa associação entre revolta política negra e violência está profundamente entranhada nos EUA e não foi rompida no último ano, disse o cientista político Davin Phoenix, da Universidade da Califórnia em Irvine.

“Antes mesmo de terem a chance de processar seus sentimentos de trauma e dor, os negros estão ouvindo de pessoas que eles elegeram para a Casa Branca —que eles alçaram ao poder— ‘não façam isso, não façam aquilo’”, disse Phoenix. “Eu adoraria se mais políticos, pelo menos aqueles que se dizem nossos aliados, dissessem ‘não façam isso, não façam aquilo’ à polícia.”

Os protestos que se seguiram à morte de Floyd viraram parte da discussão americana sobre política, cada vez mais rancorosa. A maioria dos protestos foi pacífica, mas houve saques e danos a propriedades em algumas cidades, e essas imagens circularam com frequência na televisão e nas redes sociais. Os republicanos citaram os protestos como um exemplo de perda de controle da esquerda. Bandeiras com os dizeres “Blue Lives Matter” (em apoio à polícia) foram penduradas de casas no outono passado. Quando o apoio a Trump explodiu um violência no Capitólio, em 6 de janeiro, conservadores reagiram com raiva contra o que, para eles, foi um caso de dois pesos e duas medidas.

Biden tomou posse em janeiro prometendo fazer da equidade racial um aspecto fundamental de todos os elementos de sua agenda: a distribuição das vacinas contra o coronavírus, os locais de construção de infraestrutura federal, a definição das políticas climáticas. Ele efetuou rapidamente as mudanças que qualquer administração democrata provavelmente teria adotado, restaurando os decretos sobre consentimento policial e as regras habitacionais justas.

Mas, em um sinal do momento singular em que Biden foi eleito —e de sua dívida para com os eleitores negros que o promoveram—, sua administração também vem adotando medidas mais inovadoras, como declarar o racismo uma ameaça grave à saúde pública e apontar para o desemprego entre negros como uma medida para se avaliar a saúde da economia.

Algo que as pesquisas de opinião não captaram bem é se os liberais brancos vão mudar os comportamentos que reforçam a desigualdade racial, como por exemplo optar por escolas e bairros segregados. Ao mesmo tempo em que a revolta diante da morte de Floyd aumentou a consciência da desigualdade racial, outras tendências ligadas à pandemia apenas a reforçaram. Isso vem ocorrendo não apenas porque famílias e trabalhadores negros têm sido desproporcionalmente atingidos pela pandemia, mas porque estudantes brancos têm se saído melhor com o ensino à distância e proprietários brancos de imóveis vêm enriquecendo em um mercado habitacional superaquecido.

Numa pesquisa nacional com americanos brancos feita este ano, a cientista política Jennifer Chudy, do Wellesley College, constatou que mesmo os mais antirracistas têm tendência maior a endossar ações particulares e limitadas.

Estas incluem educar-se sobre o racismo ou ouvir pessoas não brancas, e não tanto, por exemplo, optar por viver em uma comunidade racialmente diversa ou levar questões raciais à atenção de autoridades eleitas.

Mesmo assim, dizem historiadores, seria difícil exagerar o efeito dinamizador que a morte de George Floyd teve sobre o discurso público, não apenas no que diz respeito à ação da polícia mas também a como o racismo está entranhado nas políticas das instituições públicas e privadas.

Alguns empresários negros vêm dando depoimentos públicos, falando em termos incomumente pessoais, sobre suas próprias experiências de racismo. Alguns deles criticaram o mundo empresarial por fazer muito pouco contra o racismo ao longo dos anos. “A América corporativa abandonou a América negra à própria sorte”, disse Darren Walker, presidente da Fundação Ford e membro do conselho da PepsiCo, Ralph Lauren e Square. Dezenas de empresas se comprometeram a diversificar sua força de trabalho.

Manifestações públicas contra o racismo nos Estados Unidos explodiram em todo o mundo, levando a protestos nas ruas de Berlim, Londres, Paris e Vancouver (Colúmbia Britânica) e em capitais da África, América Latina e Oriente Médio. Americanos brancos não familiarizados com o conceito de racismo estrutural empurraram os livros sobre esse tema para o topo das listas dos mais vendidos.

Audra D.S. Burch , Amy Harmon , Sabrina Tavernise e Emily Badger