racismo
Laurentino Gomes: 'Escravidão é assunto mais importante da história do país'
Sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura, jornalista e escritor fala sobre racismo, desigualdade social e Semana de Arte Moderna
João Rodrigues, da equipe da FAP
O Bicentenário da Independência do Brasil ocorre em 2022. Neste contexto histórico de celebrações, a escravidão – marca perversa e cruel da história brasileira – merece ser analisada de forma ampla, principalmente pelos reflexos que ainda hoje causam em nossa sociedade, sobretudo pela normalização do preconceito, da violência e da desigualdade social.
Para analisar esse importante tema da história nacional, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira desta semana conversa com Laurentino Gomes, escritor, jornalista, sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura. Laurentino acaba de lançar Escravidão - volume II, o segundo livro da premiada série em que faz um profundo relato dessa triste página da história brasileira.
Ouça o podcast!
O episódio conta com áudios do canal Toda Matéria, canção Canto das Três Raças, de Clara Nunes, programa Roda Viva, Superinteressante e CNN Brasil.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
O Brasil que vale ouro
Olimpíadas evidenciaram um país de gente miscigenada, talentosa, simples, obstinada e resiliente, que dá duro para conquistar seu espaço
Ana Cristina Rosa / Folha de S. Paulo
Acompanhei os resultados do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 com empolgação. Não só porque o país fez a melhor campanha olímpica de todos os tempos, com a conquista de 21 medalhas, mas especialmente pelo fato de boa parte dessas condecorações carregar enorme simbolismo.
O Brasil que vale ouro é um país de gente miscigenada, talentosa, simples, obstinada e resiliente, que dá duro para conquistar seu espaço. É diverso, criativo, cativante e não se cansa de perseguir a realização de sonhos —sejam eles tingidos de dourado, de prata ou de bronze.
O Brasil que vale ouro respeita as regras do jogo, aceita derrotas e insiste em contradizer a falácia da meritocracia porque sabe que mérito e oportunidade precisam andar juntos.
Nesse quesito, a ginasta Rebeca Andrade é inspiração. A jovem que caminhava duas horas para ir ao treino quando a mãe não tinha dinheiro para passagem emocionou e fez história.
Ao conquistar a primeira medalha do país na ginástica artística feminina em olimpíadas, com a prata no individual geral, e o primeiro ouro da modalidade, no salto, tornou-se também exemplo de que meninas negras podem ser o que quiserem, subvertendo a lógica perversa do racismo sistêmico.
Como lembrou com propriedade, em lágrimas, a ex-ginasta Daiane dos Santos após o ouro de Rebeca, “durante muito tempo, disseram que as pessoas negras não poderiam fazer alguns esportes.” O absurdo não poderia ter sido desmascarado de maneira mais primorosa, unindo técnica e graça.
Para um país que não investe na formação esportiva, os resultados da delegação brasileira foram excelentes. E até quem não conquistou medalha está de parabéns. Afinal, nenhum atleta de alto rendimento deveria ter de treinar num terreno baldio.
Se foi possível obter resultados positivos a partir de casos individuais de superação, do que o Brasil seria capaz se o esporte fosse incentivado e tratado como ferramenta de inclusão social no país.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2021/08/o-brasil-que-vale-ouro.shtml
Generais negros do Exército são relembrados em obra de ex-militar hoje jornalista
Livro tem tido boa recepção entre as Forças Armadas e estabelece uma interlocução com o debate racial
João Gabriel Telles / Folha de S. Paulo
Numa baixada margeada por um pequeno rio, a mata do Kamba’Race, entre os municípios de Nioaque e Jardim, em Mato Grosso do Sul, foi palco de um massacre.
Durante a Guerra do Paraguai, em maio de 1867, a tropa do Exército brasileiro sob o comando do coronel Carlos Alberto Camisão bateu em retirada, abandonando 135 soldados acometidos por cólera. Depois da chacina promovida pelo Exército inimigo, sobraram só três soldados brasileiros, além da fama de mal assombrado que se abateu sobre aquele lugar, onde até hoje se ouvem os gemidos dos homens ali sacrificados, segundo o relato de moradores de Jardim.
O nome “Kamba’Race”, que em guarani significa “lamento negro”, se deve ao considerável contingente de soldados afrodescendentes nas tropas brasileiras, muitos dos quais eram escravizados que foram libertos para servir ao Exército no conflito. O episódio inspirou o jornalista e ex-militar Sionei Leão a escrever o livro “Kamba’Race: Afrodescendências no Exército Brasileiro”, que faz uma reconstituição histórica da contribuição de negros na instiuição miltar, destacando a biografia de 11 desses homens que chegaram à posição de general ao longo da história.
Quando prestava serviços militares em Campo Grande, Leão avistou um quadro na sede do Comando Militar do Oeste em que, entre ex-comandantes brancos, havia um homem negro. Era João Baptista de Mattos, o segundo afrodescendente a chegar ao generalato. Um dos mais famosos e celebrados militares da instituição, segundo o autor, Mattos teve origem humilde, sendo neto de mulher escravizada pelo Visconde de Taunay, que participou do episódio do Kamba’Race como jovem tenente. Foi a inspiração para o início das pesquisas de Leão.
Resultado de duas décadas de trabalho, o estudo surgiu a partir de uma monografia de pós-graduação finalizada em 2000, que se transformou em documentário em 2006 e neste ano foi publicado em livro pela editora da Fundação Cultural Astrojildo Pereira.
Assista ao webinário de lançamento do livro “Kamba’Race: Afrodescendências no Exército Brasileiro”
“Eu escrevi para valorizar a população negra, para mostrar heróis e reconhecer as carreiras dos generais e oficiais negros”, afirma Leão, que espera que a obra sirva de ponto de interlocução entre o Exército brasileiro e o debate racial.
O autor, no entanto, não conseguiu conciliar as duas atividades em sua própria carreira. Recrutado para as Forças Armadas em 1984, Sionei Leão chegou ao posto de terceiro sargento e serviu ao Exército em Campinas, no interior paulista, Salvador e Campo Grande, onde conheceu o Trabalho e Estudos Zumbi, o TEZ, movimento social de militância antirracista. “Participar do grupo me abriu perspectivas que me entusiasmaram muito. Foi transformador para mim. Inicialmente eu achava que não haveria problema em continuar sendo militar.”
Embora a organização não estivesse formalmente ligada a algum partido, Leão foi repreendido pelas Forças Armadas sob a acusação de participar de atividades político-partidárias. “Eu fiquei numa situação em que ou eu abria mão de participar do movimento social ou eu deixava a carreira militar, que foi o que fiz”, diz ele.
Afirmando ser grato ao Exército, Leão diz que foi com o salário dos tempos de sargento que começou os estudos em jornalismo, atividade à qual se dedica atualmente em Brasília, além de integrar o Grupo TEZ e a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal.
Em seu livro, Leão não discute o racismo, ainda que reconheça a pequena representatividade de negros nos altos postos da instituição.
Presença de generais negros no Exército Brasileiro
Segundo Sionei Leão, na visão dos militares, o debate racial é uma “coisa de esquerda”, o que inviabiliza a discussão do assunto. “O Exército tem vários méritos e os poderia apresentar. Quantas pessoas sabem, por exemplo, que a abolição teve uma atuação importante do Exército? Isso passa uma imagem positiva à população.”
O autor continua na tentativa de dialogar com o Exército sobre a questão racial. Na sua avaliação, seria pretensioso acreditar que o livro possa aprimorar a instituição, mas diz que a obra tem tido boa recepção e até elogios entre os militares, inclusive um em forma de cartão oficial, com a marca da Presidência da República, assinado pelo vice-presidente e general da reserva Hamilton Mourão.
KAMBA’RACE: AFRODESCENDÊNCIAS NO EXÉRCITO BRASILEIRO
Preço R$ 60 (168 págs.)
Autor Sionei Ricardo Leão
Editora Fundação Astrojildo Pereira
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/08/generais-negros-do-exercito-sao-relembrados-em-obra-de-ex-militar-hoje-jornalista.shtml
Luiz Gama: Textos inéditos mostram como abolicionista denunciava violência policial
Um caso bárbaro de violência chocou o advogado abolicionista Luiz Gama em 1880. Quatro jovens negros e escravizados se apresentaram à delegacia de uma vila da cidade fluminense de Paraíba do Sul, que hoje se chama Três Rios, na divisa com Minas Gerais. Ao delegado, eles confessaram ter matado o filho do seu senhor — um homem rico e dono de muitos cativos
Leandro Machado / BBC News Brasil
Matar o senhor e voluntariamente confessar o crime era comum à época. Muitos negros preferiam a prisão à escravidão, que vivia seu período final e só seria abolida pela Lei Áurea oito anos depois, em 13 de maio de 1888. Mas a punição da Justiça aos quatro jovens foi diferente neste caso.
Segundo Luiz Gama, as autoridades policiais, ao saberem do assassinato, chamaram a população da cidade à delegacia. Compareceram 300 pessoas armadas e sedentas de vingança pelo assassinato de um membro importante da sociedade. A polícia então abriu as portas da delegacia.
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Em um texto publicado em um jornal da época, Gama narra as cenas de barbárie que se seguiram. Ironicamente, ele pede aplausos aos linchadores, a quem chama "patriotas armados":
" (...) E, aí, a virtude exaspera-se, a piedade contrai-se, a liberdade confrange-se, a indignação referve, o patriotismo arma-se, trezentos concidadãos congregam-se, ajustam-se, marcham direitos ao cárcere e aí (oh! é preciso que o mundo inteiro aplauda), à faca, a pau, à enxada, a machado, matam valentemente a quatro homens; menos ainda, a quatro negros; ou, ainda menos, a quatro escravos manietados em uma prisão!"
Esse texto, um dos mais conhecidos do abolicionista, faz parte das Obras Completas de Luiz Gama que serão lançadas nos próximos dias pela editora Hedra, um acontecimento importante para os estudos do abolicionismo, da escravidão e do pensamento do advogado. Serão dez volumes com 750 textos, mais de 600 deles inéditos, segundo a editora. O material, que também contém teses jurídicas, nunca tinha vindo a público depois de publicados em jornais da época ou processos judiciais.
Os textos foram garimpados pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em História do Direito na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, e pesquisador do Instituto Max Planck. Lima estuda a vida e a obra de Luiz Gama há mais de uma década e descobriu a maioria dos artigos em arquivos públicos espalhados por São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.
A obra vem à luz em um momento de crescente interesse por Luiz Gama, um ex-escravo que se tornou tipógrafo, jornalista, dono de jornal, poeta, escrivão de polícia, abolicionista e advogado autodidata que, usando apenas a lei, libertou centenas de pessoas da escravidão no século 19.
Nos últimos anos, uma série de publicações tem resgatado seu legado, como o livro Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc), lançado no ano passado e organizado pela pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira.
Na quinta-feira (5/8), estreia o filme Doutor Gama, baseado na vida do abolicionista e dirigido pelo cineasta Jeferson De. O ator César Mello interpreta o advogado no longa.
Crônica policial
Parte dos textos inéditos revelados agora reforçam uma característica de Gama pouco conhecida do grande público: além de advogado que lutava contra a escravidão nos tribunais, ele foi um dos primeiros jornalistas que se dedicaram a denunciar nos jornais a violência sofrida pela população negra do país, principalmente no Estado de São Paulo.
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"Gama era uma espécie de cronista da violência e da cidade", explica Bruno Lima, que escreveu milhares de notas explicativas sobre os textos no calhamaço de 5 mil páginas das Obras Completas do advogado. "Como ele viajava bastante para atuar nos tribunais, ficava sabendo de casos que aconteciam em muitas comarcas de São Paulo. Ele usava os jornais para fazer essas denúncias, que, em alguns casos, até viraram processos em que ele mesmo atuava."
Muito antes do jornalismo policial ter importância na imprensa brasileira, Gama escreveu sobre casos de violência policial, espancamentos, invasão de domicílio e assassinatos. "Ele sempre teve como mote a denúncia da violência da escravidão, mas também a violência racista sofrida pela comunidade negra que já era livre", diz Lima.
Segundo o historiador, o caso dos quatro jovens espancados até a morte não é importante apenas como registro histórico, mas também para entender o pensamento de Gama em relação à escravidão.
Há uma frase atribuída ao ativista, embora ele nunca tenha escrito exatamente dessa forma: "O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata, sempre, em legítima defesa".
"Esse conceito aparece muitas vezes na obra de Gama. Ele acreditava que, como a escravidão era uma violência contra o direito natural e inalienável do homem, o escravizado não só podia matar o seu senhor, como tinha razão moral de fazê-lo. Para Gama, os criminosos não eram os quatro jovens, mas o senhor que os escravizava. Então, quando mataram o senhor, eles praticaram um direito natural à legítima defesa contra essa primeira violência. Para Gama, eles eram as vítimas", explica Lima.
No texto, o jornalista diz invejar os "quatro Spartacus" envolvidos no assassinato do fidalgo. Spartacus, escravo que liderou uma revolta contra o Império Romano, é um personagem importante na trajetória do Gama, que assinou vários de seus artigos com esse nome. Ele também escreveu sob o codinome de John Brown, em referência a um abolicionista americano que liderou uma revolta armada contra a escravidão, no século 19.
Segundo Lima, a escolha dos heterônimos não foi aleatória: era uma característica do projeto abolicionista e literário de Gama. "Ele se colocava nessa posição, não apenas de um advogado que trabalhava com as leis, mas de um escritor que radicalizava os conceitos e a prática. Uma pessoa que enxergava a resistência radical à escravidão como uma saída", diz.
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Para Marcelo Ferraro, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Gama foi nos últimos anos celebrado por movimentos conservadores em contraponto a nomes do movimento negro ligados a uma resistência guerreira, como Zumbi dos Palmares. Isso porque Gama ainda é visto como um ativista "moderado".
"Mas essa é uma visão equivocada da trajetória dele. Gama tinha um pensamento radical, de enfrentamento da escravidão com uso da reação como legítima defesa. Esse texto sobre o linchamento dos jovens deixa explícita essa ideia", explica.
Segundo Ferraro, o linchamento dos "quatro Spartacus" era uma "violência nova" no Brasil do século 19: esse tipo de crime era mais comum nos Estados Unidos.
"Nessa época, em 1880, esse tipo de violência já era contestada e criticada entre as classes mais esclarecidas, que já se colocavam contra a escravidão em alguns jornais que não pertenciam às elites escravocratas. José do Patrocínio também fazia denúncias parecidas nos jornais do Rio. Era para esse público que Gama e outros abolicionistas escreviam", diz Ferraro, que pesquisa violência e escravidão no Brasil e nos Estados Unidos.
'Não é permitido ao negro divertir-se'
Um dos textos inéditos de Luiz Gama, revelado agora pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, conta outra história de abuso policial contra a população negra de São Paulo.
Em uma curta crônica no jornal Gazeta do Povo em junho de 1881, Gama relatou que um moçambicano livre chamado Joaquim Antonio tinha sido autorizado pela polícia a dar uma festa em casa. Na época, pessoas negras precisavam informar e até pagar às autoridades pelo direito de realizar alguma comemoração.
"O africano livre Joaquim Antonio, morador ao marco da Meia Légua, obteve do digno sr. capitão Almeida Cabral, subdelegado do distrito, licença para dar um divertimento. Já não é pouco: neste país clássico da liberdade não é permitido ao negro divertir-se, em sua casa, sem licença da polícia!", escreveu Gama, sempre com um toque irônico ao falar do Brasil.
O texto não diz exatamente onde ocorria a festa. Mas, segundo Lima, provavelmente foi no Brás, Zona Leste de São Paulo, bairro à época de periferia e ocupado principalmente por trabalhadores negros livres. "Os marcos de meia légua demarcavam a distância de 3,3 km de cada ponto cardeal com a praça da Sé. Gama e sua família viviam nessa região. Provavelmente, ele soube do caso porque era vizinho do africano", diz o historiador.
O jornalista continua a crônica: o moçambicano Joaquim Antonio festejava com os amigos dentro de casa quando escutou um chamado da polícia do lado de fora, pedindo para que ele interrompesse o encontro.
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"Joaquim Antonio fechou a sua porta e continuou a divertir-se, com outros seus amigos negros. A patrulha arrombou a porta, penetrou na casa (era meia noite!), saqueou-a, mediante rigorosa busca, prendeu o africano livre, que reclamara contra o ato e, em seguida, arrombou mais duas casas de africanos, sem fundamento nem razão!", relatou Gama.
Ele finaliza a crônica com um alerta às autoridades: "A pessoa que isto escreve está de tudo bem informada; e já instruiu aos pretos que, em análogas circunstâncias, repilam a agressão a ferro e à bala. O exmo. sr. dr. chefe de polícia tem meios de impedir desaforos desta ordem. Sabemos, pelo seu nobre caráter, que é incapaz de autorizar tropelias tais".
Para Lima, a crônica tinha também um caráter de "petição jurídica", porque Gama endereçou o texto ao chefe de polícia de São Paulo, além de citar o capitão responsável pelo caso e o nome da vítima da agressão.
"Há uma estrutura de petição de direito. Gama ainda avisa que, como advogado, instruiu as vítimas a atirar nos policiais caso ocorresse uma nova invasão ilegal. Isso é o abolicionismo negro radical, fincado na defesa armada", explica o historiador.
Crimes atuais
Os textos de Gama sobre crimes e abusos no século 19 apontam para um problema que ainda hoje assombra a sociedade brasileira: a violência policial. No ano passado, por exemplo, 6.416 pessoas foram mortas pelas forças de segurança no país, segundo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Público. É um recorde histórico.
Desse total, 78,9% das vítimas eram negras e 76,2% tinham entre 12 e 29 anos. Das 50 mil mortes violentas registradas no Brasil no ano passado, 76,2% tiveram pessoas negras como vítimas - 54% da população brasileira é formada por negros (pretos e pardos), segundo o Instituto Brasileiro de Geografoa e Estatística.
Essa proporção desigual se repete quando os policiais são as vítimas: 62,% dos 194 policiais mortos violentamente no ano passado também eram negros.
Para Lívio Rocha, investigador da Polícia Civil de São Paulo e mestre em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas, a violência denunciada por Luiz Gama demonstra que, já no século 19, as forças de segurança tinham como projeto a proteção e o cuidado da elite branca e rica, em detrimento da população pobre e negra, muitas vezes tratada com brutalidade.
"A violência estatal é uma característica da história do Brasil. Ela passa pela Monarquia, por Getúlio Vargas, pela ditadura militar e pela democracia. É um problema estrutural, que independe se o governo é de esquerda, de direita, de centro. Nunca houve interesse político em tornar a polícia mais democrática", diz Rocha, que também é pesquisador na Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
"A formação do policial não é crítica. Discussões sobre racismo e direitos humanos são feitas de maneira formalista e protocolar, sem espaço para reflexão sobre a atuação do policial. Costumo perguntar para meus colegas: quantos chefes negros você já teve na polícia? São muito poucos. Os policiais negros também são os que mais morrem no trabalho, mas o próprio policial não fala sobre isso", diz Rocha, que também milita no movimento negro.
Morrer livre
Luiz Gama morreu em 24 de agosto de 1882. Portanto, depois de décadas militando contra a escravidão, o advogado e jornalista não viu a abolição completa que só viria pela Lei Áurea.
Pouco mais de um ano antes, ele escreveu uma crônica, redescoberta por Lima, sobre uma escravizada que "sonhava em morrer livre". Para isso, ela guardou dinheiro durante a vida para comprar sua liberdade, como tinha direito de fazer.
"Há mais de um ano a preta Brandina, maior de 70 anos, escrava do fazendeiro sr. Barbosa Pires, do distrito de Pirassununga, requereu a alforria por meio de retribuição pecuniária e exibiu, com a sua petição, pecúlio regularmente constituído, no valor de 200$000 em dinheiro", começa Gama.
Mas, dessa vez, o obstáculo para a liberdade não era só o senhor de escravos, mas a Justiça. O fidalgo, "para evitar maus exemplos" contra seu direito patrimonial, não aceitou a libertação de Brandina. O caso chegou ao tribunal. "Os juízes, que não apreciam monomania emancipadora e dão razão ao sr. Barbosa Pires, não depositaram a libertanda, deixaram-na em poder do senhor", conta Gama.
Mas a história de Brandina, impedida pela Justiça de gozar uma morte livre, não termina aí.
"Brandina, a desgraçada velha candidata à mortalha, para evitar os rigores do cativeiro, no derradeiro quartel da vida, fugiu da casa do senhor, meteu-se pelos matos, já que não encontrou juízes humanos nas povoações, no seio das sociedades civilizadas", escreveu Luiz Gama.
Fonte:
BBC Brasil
http://BBC Brasil https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58034244
Pioneiros lembram o passado do movimento negro no Brasil
Firmada na ditadura, luta contra racismo é referência para nova geração
Paola Ferreira Rosa, Matheus Rocha e William Barros / Folha de S. Paulo
Pedro Henrique, 9, gritou pelo avô quando brincava na rua. Milton Barbosa, 73, foi até o neto imaginando briga de criança, só que não: “Chamou para me apresentar aos amigos, dizer que eu estava no Google. Pediu para buscarem meu nome lá”.
O menino pesquisou também o nome da avó, não deu outra. Encontrou farto material sobre Regina Lúcia dos Santos. “Ele ficou se sentindo vaidoso, muito importante”, diz Regina, 66.
Os avós de Pedro Henrique são referências da luta antirracista. O avô ajudou a fundar o Movimento Negro Unificado, nos anos 1970; ela coordena o MNU em São Paulo, onde atua há mais de 20 anos.
O movimento tornou-se público na escadaria do Theatro Municipal, em 7 de julho de 1978. Em plena ditadura militar, duas mil pessoas se reuniram ali pelo fim da discriminação. Era a resposta à morte de um trabalhador negro pela polícia paulista e ao preconceito sofrido por jovens no Clube de Regatas Tietê.
“Hoje é um dia histórico. Um novo dia começa a surgir para o negro. Um novo passo foi dado na luta contra o racismo”, dizia a carta aberta lida por manifestantes.
O ato reverbera, 43 anos depois. Emicida o lembrou em “AmarElo - É Tudo pra Ontem”, documentário de show feito no Municipal. Na plateia, Barbosa e Regina foram homenageados. “Para que hoje a gente esteja neste lugar negado aos nossos ancestrais, muitas pessoas suaram e sangraram no caminho”, disse o rapper.
A militância teve impacto na vida profissional de Barbosa. O então técnico do Metrô foi demitido duas vezes. Ele narra episódios em que foi alvo de armações para incriminá-lo por tráfico de drogas. Atento à tática, se desvencilhou.
“O pessoal branco de classe média era preso por militância. Já com a militância negra, eles forjavam situações para prender por vadiagem e malandragem”, afirma Regina.
A classificação de ’’vadiagem’’, usada pela repressão, era herança do Império, que aplicava o termo para negros que vagavam nas ruas. Na República, o termo entrou no Código Penal, dois anos após a abolição, quando a capoeira também foi criminalizada.
As medidas respondiam aos anseios da elite da época, explica Walter Fraga, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
Como a Lei Áurea, resultado do medo da elite. ‘‘Havia o temor de que a abolição fosse feita pelos próprios negros e camadas populares, subvertendo a estrutura de domínio.”
As autoridades assumiram o controle do processo com a assinatura da lei, que não previa reparação aos libertos. “Não tocaram nas hierarquias raciais”, diz Fraga. Hierarquias que, agora, ao menos, são evidentes para toda a sociedade.
Um legado do MNU foi a derrubada do mito da democracia racial. “Caminhamos um bocado, mas temos muito a caminhar”, diz Regina.
Iniciativas como o MNU se multiplicaram desde o pós-abolição. Eram pessoas negras buscando não só reagir ao preconceito, ‘‘mas assumir posição além da de vítimas”, diz Petrônio Domingues, professor de história da Universidade Federal de Sergipe.
Esses grupos pautaram o debate que levou à criação de ações afirmativas. “Antes, a sociedade não enxergava a questão do negro como problema, o que gerava inércia do Estado”, afirma. A criminalização do racismo (Lei Afonso Arinos, 1951), por exemplo, é fruto dessas pressões.
O futuro é a expansão do protagonismo do movimento negro nos debates públicos, diz Flavia Rios, coordenadora de ciências sociais da Universidade Federal Fluminense. “O movimento negro é o principal agente, mas precisa de uma rede complexa, outros movimentos sociais, para se sustentar”. Segundo ela, o feminismo negro tem contribuído muito para os avanços.
Foi das mãos da mãe que Sandra Andrade, 61, recebeu o cajado de líder do Quilombo Carrapatos da Tabatinga, em Bom Despacho (MG). A comunidade é chefiada por mulheres, que, em cerimônia, repassam o cargo à nova geração.
“Lutamos para preservar a terra e tirar dela a sobrevivência. Nosso território não é para especulação imobiliária”, explica a líder.
Houve retrocesso no governo de Jair Bolsonaro. O número de certificações de terras quilombolas (o primeiro passo no processo de titulação das terras) caiu 58% em 2020.
Sem garantias, as comunidades seguem sofrendo invasões. Sandra acompanha o problema há 40 anos, quando ingressou na luta quilombola.
Apesar de tudo, ela vê evolução nas últimas décadas. “Antes, não tínhamos direito universal. Agora, os estados nos reconhecem como sujeitos de direito. Conquistamos educação e um pouco de saúde”.
A ativista espera que a luta seja menos árdua para seus sucessores e que eles saibam que o território é sua única casa: “A gente nasceu e quer morrer nesse pedacinho que nossos ancestrais deixaram. Ser quilombola é ter o pé no chão”.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/08/pioneiros-lembram-o-passado-do-movimento-negro-no-brasil.shtml
A memória histórica da escravidão é motivo de guerra nas escolas dos Estados Unidos
Estados republicanos impõem leis para proibir o que consideram um ensino que culpa os brancos. “Tentam fazer retroceder o ensino da parte mais incômoda de nossa história”
Amanda Mars, El País
Um homem negro de meia-idade se aproxima do terraço de uma cafeteria em Ausburn, Virgínia, uma pequena cidade a 40 minutos de Washington. “Com licença, o senhor é Scott Mineo?”, ele pergunta. Mineo: “Isso é bom ou ruim?” “Bem, eu o tenho escutado na televisão”, responde o outro. E então eles se envolvem em uma longa troca de “Eu não disse isso”, “na verdade, estamos dizendo a mesma coisa” ... “Teremos que dizer às crianças que George Washington tinha escravos”, alfineta o homem, que não se identifica. “Tudo bem, mas também mais coisas”, responde Mineo, “você acha que sou racista?”.
Tudo termina com o homem negro ajudando o branco a pegar o lixo e levá-lo para dentro do local —começou a chover—e com um aperto de mão. Estamos no condado de Loudoun, o mais rico dos Estados Unidos, um subúrbio próximo à capital do poder que, nos últimos anos, foi migrando de feudo republicano para moderado e democrata. Mineo, um analista de segurança branco, de 49 anos, começou uma cruzada de pais contra o que ele considera ser uma doutrinação racial nas escolas e ressentimento contra crianças brancas. Lançou um site chamado Pais contra a Teoria Crítica e criou um registro anônimo para que os alunos possam postar gravações do que os professores dizem em sala de aula. “Vamos expor todos os que fazem isso”, diz Mineo.
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Loudon exemplifica a tensão que ferve nos Estados Unidos sobre como abordar o racismo nas escolas, e uma vertente fundamental, como demonstra a conversa com o estranho, é o ensino de história. A escravidão é um acidente, uma mancha em uma história de grandeza, ou na verdade, um elemento fundacional dos Estados Unidos? Os pais fundadores do país eram “boas pessoas”, com alguma contradição, ou sujeitos infestados delas?
Como resultado das mobilizações contra o racismo depois da morte de George Floyd, em 2020, muitas escolas têm reforçado suas palestras e programas educacionais contra a discriminação e o racismo sistêmico e, com isso, irrompeu também a reação conservadora, com cruzadas como a de Scott Mineo e um monte de leis. Uma série de Estados republicanos —Texas, Idaho, Oklahoma e Tennessee, entre outros— introduziu ou aprovou legislação para restringir o modo como a história é contada.
A Assembleia do Tennessee, por exemplo, aprovou um projeto de lei em maio que proíbe as escolas de ensinarem que um indivíduo deveria sentir “responsabilidade” por ações passadas de membros de sua cor ou raça; ou que alguém, por causa de sua raça, “é inerentemente privilegiado” ou que promova o “ressentimento”. Ohio usa linguagem idêntica em várias partes de seu projeto de lei e veta que os professores ensinem que a escravidão foi qualquer coisa diferente de “uma traição ou fracasso dos verdadeiros princípios fundadores dos Estados Unidos, que incluem a liberdade e a igualdade”.
O ponto controverso dos conceitos proibidos —em que momento um professor que fala sobre racismo está dizendo que ser branco implica privilégios ou está gerando ressentimento contra os brancos?— disparou alarmes sobre a liberdade de expressão.
O historiador David Blight, branco, professor de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Yale, alerta que todos os países têm um passado que incomoda seus cidadãos. “O movimento conservador vem tentando há meio século, de forma intermitente, fazer retroceder o ensino da parte mais incômoda de nossa história, porque acredita que nosso dever é formar patriotas, mas nós não educamos os jovens para serem só patriotas, nós os educamos para que entendam melhor a sociedade em que vivem e isso pode torná-los melhores patriotas”, diz Blight por telefone. As leis em vigor, opina, “são horríveis, anti-intelectuais, antidemocráticas, um mau uso da história para produzir um certo tipo de cidadão”.
O debate subjacente se alicerça em tratar a escravidão —abolida em 1865, quase 100 anos após a fundação do país— como mais um capítulo da história do país ou um elemento básico dela. A seu ver, “eles não querem encarar que [a escravidão] foi central para a identidade da nação americana, seu desenvolvimento e crescimento, na Guerra Civil”.
Um dos elementos centrais dessa disputa é a chamada Teoria Crítica Racial, cujo significado foi distorcido, como acontece em toda boa controvérsia intelectual e política que se preze. Hoje, pode-se vê-la sendo usada, especialmente pela direita, para identificar qualquer análise que aborde o racismo como um problema sistêmico nos Estados Unidos e, no âmbito escolar, qualquer atividade ou oficina que enfoque a discriminação por causa da raça.
A Teoria Crítica Racial é um marco teórico procedente do mundo do direito que começa a ser forjado na década de 1970 por acadêmicos como Kimberlé Crenshaw, que estudam os movimentos dos direitos civis. Argumentam, grosso modo, que raça é uma construção social e racismo é algo que vai além dos preconceitos pessoais, que o ordenamento jurídico está configurado de uma forma que sustenta e estimula a supremacia dos brancos sobre os negros. Por isso, concluem, as conquistas da época não conseguiram erradicar a injustiça social.
Pode ser considerado um movimento intelectual oficial desde 1989, quando seus promotores organizaram a primeira sessão de trabalho com esse título, mas agora se tornou uma expressão fetichista dos conservadores na batalha da educação. Em março passado, Christopher Rufo, pesquisador do laboratório de ideais Instituto Manhattan, entidade conservadora, disse abertamente em sua conta no Twitter: “Conseguimos deixar cravada sua marca —'teoria crítica racial’— no debate público e não param de serem acrescidas percepções negativas. Em algum momento a converteremos em algo tóxico e colocaremos todos esses delírios culturais nessa categoria”.
Outro dos protagonistas dessa briga é o Projeto 1619, uma análise histórica de como a escravidão moldou as instituições norte-americanas nos campos político, social e econômico. Publicado no The New York Times em agosto de 2019, e idealizado pela repórter Nikole Hannah-Jones, o nome faz referência à data em que os primeiros africanos chegaram a solo americano, questiona se essa é a data que deve ser considerada a da fundação dos Estados Unidos e reivindica as contribuições dos negros norte-americanos para a formação do país.
Aplaudido em geral pelo enfoque, tem recebido críticas de historiadores de diferentes países por algumas considerações, como a do nascimento do país, ou o quadro pessimista do progresso obtido, entre outras. Um ano após sua publicação, em meio à onda de protestos pela morte de George Floyd, foi redobrada a atenção sobre o projeto e o então presidente Donald Trump o tomou como exemplo da “propaganda tóxica” que dividia o país e anunciou a criação da Comissão de 1776 para promover uma “educação patriótica”.
Marvin Lynn, professor de Educação da Universidade de Portland, aplicou a crítica feita pela Teoria Crítica Racial ao campo do sistema educacional como forma de abordar as desigualdades nesse sistema, mas rejeita que essa teoria esteja sendo ensinada em sala de aula. Lynn, um homem negro de 50 anos, lamenta a forma como o passado lhe foi contado. “Me ensinaram que os Estados Unidos são uma grande nação e que os pais fundadores foram homens honestos e de grande integridade. Só fiquei sabendo sobre Sally Hemmings, que era escrava de Thomas Jefferson e tinha filhos de Jefferson, sendo escrava, quando me tornei adulto”, explica. Lynn é pai de três garotos, de 19, 15 e 13 anos. Eles, conta, foram na maior parte do tempo para escolas públicas e “não aprenderam nada de sua história como pessoas negras, nada do passado na África”. Em sua opinião, “esse movimento quer restringir ainda mais o currículo, é realmente um movimento racista”.
No condado de Loudoun, a briga vai muito além da história. Um grupo de pais, incluindo Mineo, processou o Conselho Escolar do Condado alegando que os professores incorporaram “teorias políticas radicais e polêmicas” na programação e estão pedindo às crianças que os apoiem sob pena de retaliação, além de sistemas de denúncias de discriminação que fazem delas “policiais contra a liberdade de expressão”. Os últimos encontros com os pais viraram rixas, que são o filé das redes sociais, e as ameaças chegaram ao Facebook. Num grupo denominado Pais Antirracistas de Loudoun, de 600 membros, os que se opunham aos programas foram citados com nomes e sobrenomes e falou-se em expô-los, as imagens chegaram à mídia e grupos conservadores, que as divulgaram como prova de assédio. Vários membros do grupo “antirracista” receberam ameaças.
Os país contra o programa do racismo exigem a retirada de seis conselheiros. Seu chefe de comunicação, Wayne Byard, explica que as ligações e e-mails de pais sobre a Teoria Crítica Racial, que não é ensinada nas escolas, “chegam às centenas”.
Scott Mineo, que comenta em duas ocasiões que sua filha tem um namorado de origem hispânica e, no passado, outro negro, afirma que não é contra ensinar sobre a escravidão nas escolas, mas “a história toda, não apenas partes selecionadas”. Por exemplo, ele sente falta de que falem das “figuras negras muito proeminentes que tinham escravos, porque não apenas os brancos tinham escravos”. Ele não cita quantos negros tinham escravos nos Estados Unidos ou quão importantes eram, mas admite: “Havia mais proprietários de escravos brancos do que proprietários negros”. E acrescenta: “Hoje há muito mais escravos do que há séculos e ninguém fala deles, escravos sexuais, tráfico de seres humanos, escravos médicos, usados para pesquisa”.
Martin Luther King dizia que o arco do universo moral é amplo, mas se inclina para a justiça. O mundo precisa pensar sobre isso. O professor Blight destaca que os Estados Unidos têm uma história de “tragédia e conflito, como qualquer outro país”, mas os norte-americanos sempre tiveram a ideia de que a história deve ser um progresso. “Queremos pensar que sempre caminhamos para melhor, que sempre resolvemos os nossos problemas, e às vezes fizemos isso, até ajudamos o mundo, como na Segunda Guerra Mundial, mas há outros que não resolvemos e temos que encarar isso”, acrescenta.
Do direito inalienável de derrubar estátuas
Um bandeirante é, acima de tudo, um predador. Celebrá-lo é afirmar um “desenvolvimento” de um país composto por uma nata encastelada em condomínios e uma grande massa que ainda hoje é caçada
“Quem controla o passado, controla o futuro”. Essa frase de 1984, de George Orwell, é uma das mais importantes lições a respeito do que é efetivamente uma ação política. Toda ação política real conhece a importância de compreender o passado como um campo de batalhas. Ela compreende que o passado é algo que nunca passa por completo. A definição mais correta seria: o passado não é o que passa. O passado é o que se repete, o que se transfigura de múltiplas formas, o que retorna de maneira reiterada. O passado é o que faz CEOs falarem, em 2021, como senhores de escravos do século XIX, que faz transgêneros atualmente em luta falarem como pessoas escravizadas em luta séculos passados. Nosso tempo é espesso. Nas camadas dessa espessura convivem mortos e vivos, espectros, limiares e carne. Só mesmo uma noção pontilhista e equivocada de instante pode reduzir o presente ao “agora”. O “agora” é apenas uma forma, politicamente interessada, de bloqueio do presente. Pois quem luta pela liberação do passado, luta pela modificação do horizonte de possibilidades do presente e do futuro.
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Seria útil lembrar disso no Brasil, ou seja, nesse país que se especializou em procurar não falar de seu passado devido a uma certa crença mágica de que, se não falarmos dele, o passado irá embora e nunca mais voltará. Os apóstolos do esquecimento deveriam lembrar que foi assim que criamos o país da compulsão contínua de repetição. País que se acostumou a ver militares agindo como se estivessem em 1964, no qual uma política catastrófica de anistia permitiu que as Forças Armadas preservassem seus responsáveis por crimes contra a humanidade até que eles voltassem a ameaçar a sociedade. O esquecimento é uma forma de governo. A tentativa de exilar os sujeitos no presente puro é o seu braço armado mais forte. Deveríamos partir daí se quiséssemos efetivamente entender o que é o o Brasil.
Dito isto, não é motivo de espanto ver alguns a criticarem uma das mais importantes ações políticas desse últimos meses, a saber, a queima da estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo. Quem acha que isso é apenas um ato “simbólico” deveria pensar melhor a respeito do que compreende por símbolo e como são eles que, muitas vezes, impulsionam as lutas mais decisivas e as transformações mais impressionantes. Quando caiu, a Bastilha não era mais que um símbolo. Mas foi a queda do símbolo, foi um ato simbólico por excelência, que abriu toda uma época histórica. A modificação na estrutura simbólica é modificação nas condições de possibilidade de toda uma era histórica. Aqueles que fazem profissão de fé de “realismo político”, de “materialismo”, talvez estejam a esconder certo receio de que estruturas simbólicas fundamentais desçam as ruas e sejam queimadas.
Pois uma estátua não é apenas um documento histórico. Ela é sobretudo um dispositivo de celebração. Como celebração, ela naturaliza dinâmicas sociais, ela diz: “assim foi e assim deveria ter sido”. Um bandeirante com um trabuco na mão e olhar para frente é a celebração do “desbravamento” de “nossas matas”. Desbravamento esse que não é abertura de nada, mas simples apagamento de violências reais e simbólicas que não terminaram até hoje. Pois poderíamos começar por se perguntar: contra quem essa arma está apontada? Contra um “invasor estrangeiro”? Contra um tirano que procurava impor seu jugo ao povo? Ou contra aquelas populações que foram submetidas à escravidão, ao extermínio e ao roubo? Um bandeirante era um caçador de homens e mulheres, ou seja, a encarnação mais brutal de uma forma de poder soberano ligado à proteção de alguns e à predação de muitos. Um bandeirante é, acima de tudo, um predador. Celebrá-lo é afirmar um “desenvolvimento” que, necessariamente, realiza-se em um país composto por uma nata de rentistas encastelados em condomínios fechados e uma grande massa que ainda hoje é caçada, que desaparece sem rasto nem traço.
Destruir tais estátuas, renomear rodovias, parar de celebrar figuras históricas que representam apenas a violência brutal da colonização contra ameríndios e pretos escravizados é o primeiro gesto de construção de um país que não aceitará mais ser espaço gerido por um Estado predador que, quando não tem o trabuco na mão, tem o caveirão na favela, tem o incêndio na floresta, tem a milícia. Enquanto estas estátuas estiverem sendo celebradas, enquanto nossas ruas tiverem esses nomes, esse país nunca existirá. Quem faz o papel de carpideira de estátua acaba se tornando cúmplice dessa perpetuação. Só sua derrubada interrompe esse tempo. Essa ação é, acima de tudo, uma autodefesa.
Quando a ditadura militar criou o mais vil aparato de crimes contra a humanidade, dispositivo de tortura de Estado e assassinato financiado com dinheiro do empresariado paulista, não por acaso seu nome foi: Operação Bandeirante. Sim, a história é implacável. Como disse no início, o passado é o que não cessa de retornar. Borba Gato estava lá, nas câmaras de tortura do DOI-Codi, encarnado, por exemplo, em Henning Albert Boilesen: empresário dinamarquês presidente da Ultragaz e fundador do CIEE, que se deleitava em inventar máquinas de torturas (a pianola Boilesen) e assistir a torturas e assassinatos. Por isso, quando as estátuas começarem a cair, é porque estamos no caminho certo.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
Anistia Internacional: Lentes da pandemia ajudaram a ver racismo
Para Jurema Werneck, morte é um produto constante da discriminação racial no país
Victoria Damasceno, da Folha de S. Paulo
Foto: Lucas Jatobá/Anistia Internacional Brasil
Caso alguém não tivesse percebido a tragédia que o racismo estrutural produz na vida de homens e mulheres negras, Jurema Werneck, médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, acredita que as lentes da pandemia a tenham deixado evidente.
Ouvida recentemente na CPI da Covid, que investiga a atuação do governo Bolsonaro na gestão da pandemia de coronavírus, disse que “o vírus procura oportunidade, mas a injustiça, a desigualdade, as iniquidades fizeram diferença”.
Os negros foram as principais vítimas da Covid-19 e, mesmo diante da pandemia, continuaram a ser principais alvos da violência policial. Para Werneck, esse é o objetivo do Estado: fazer morrer os indesejáveis.
“A morte é um produto constante do racismo”, disse em entrevista à Folha.
Homens negros são o segmento mais atingido, tanto pelas mortes por Covid como pela violência de Estado. Seu desaparecimento nas famílias, porém, tem impacto direto na vida das mulheres negras, explica.
“São homens adultos que desaparecem da família, cujo rendimento ou cuja presença ajudava na gestão familiar, e, com o desaparecimento desse homem, o peso fica sobre os ombros das mulheres negras.”
A diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil acredita que mulheres negras deveriam estar no centro das decisões do Estado. Mostra, porém, que chegam ao Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, neste 25 de julho, mais vulnerabilizadas do que antes da pandemia.
Para que aspecto da vida da mulher negra brasileira o Estado deve olhar? Deve olhar para a vida da mulher negra. As mulheres negras são o maior segmento populacional do Brasil. Mas também vemos indicadores que dizem que 38% das mulheres negras vivem na pobreza.
Quando olhamos o impacto direto da Covid-19, vemos que a população negra teve taxas de mortes mais altas que o restante da população. É verdade que as maiores taxas estão entre os homens, mas as taxas das mulheres estão altas. E as taxas entre os homens negros também têm um impacto forte na vida das mulheres [negras], porque são homens adultos que desaparecem da família, cujo rendimento ou cuja presença ajudava na gestão familiar, e com o desaparecimento desse homem, o peso fica sobre os ombros das mulheres negras.
Ou seja, tem que olhar pra vida das mulheres negras. Dizendo de outra forma, tem que botar o direito das mulheres negras no centro de qualquer decisão de gestão.
De acordo com a Pesquisa Nacional da Saúde de 2019, do IBGE, entre os adultos, pessoas negras são as principais usuárias do SUS. Mulheres negras, porém, estão entre as mais vulneráveis na pandemia de coronavírus. Onde esses dados se encontram? Isso não quer dizer um atendimento adequado e de qualidade. Os números da Covid são um exemplo. Tivemos altas taxas de morte nas unidades pré-hospitalares, nos pronto-socorros e UPAs [Unidades de Pronto Atendimento], ou seja, as pessoas não tiveram nem chance de entrar [no sistema]. E a maioria das pessoas que morreram lá eram negras. Essa disparidade segue sendo retratada.
Eu não estou dizendo que o SUS é ruim. Eu estou dizendo que ele não é bom. Essa precariedade do SUS está associada a essa negligência em relação à população.
Os 545 mil mortos no Brasil tem cor e endereço. São principalmente negros e pobres. A pandemia de coronavírus evidenciou ou agravou problemas já existentes? Certamente os dois. Ela evidenciou para os distraídos, porque eu acredito que haja distraídos no Brasil que não tenham visto antes a tragédia que o racismo sistêmico produz sobre nós, mulheres e homens negros. Mas se alguém não tinha visto antes, as lentes da pandemia ajudaram a ver.
A pandemia não inventou o efeito que o racismo sistêmico tem na vida da população negra e das mulheres negras, mas ela aprofundou porque antes, eram cerca de 33% das mulheres negras vivendo na pobreza, na pandemia passou a 38%. Isso é um aprofundamento.
As mortes também continuaram nas operações policiais, a despeito da decisão do STF que limitou operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Os homens negros são as principais vítimas, embora mulheres negras também sejam atingidas. Na sua avaliação, a violência de Estado atinge os homens e as mulheres negras de forma diferente? É de forma diferente porque a bala, no volume, atinge mais os corpos dos homens negros. Mas quando a bala atinge o corpo de um homem negro, uma mulher negra está sendo atingida também. Há também uma quantidade de mulheres e meninas que são mortas. Todos e todas nós somos atingidas.
Essa reiteração da liberdade com que o racismo participa da produção da morte, da definição de quem vive e quem morre, atinge a todas nós. Atinge mais aos homens, mas junto com aquele homem que morre, existem mulheres em torno, que são atingidas de uma forma ou de outra.
Os dados deste ano do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a letalidade policial bateu recorde em 2020, independentemente da pandemia. Entre as vítimas, 78,9% são negras. Isso mostra o quão perversa é a ação do Estado. Não apenas na expressão da ação da polícia mas no fato das outras instituições diante deste absurdo não ser interrompido.
A polícia continuou produzindo mortes no Rio de Janeiro, por exemplo, mas o comandante não foi responsabilizado. O comando acima do comandante, que é o governador, não foi responsabilizado. O Ministério Público, que tem o dever de fazer a supervisão do trabalho policial e garantir a legalidade da ação policial, permanece em silêncio. O Supremo Tribunal Federal, sendo desobedecido em sua decisão, não faz nada em tempo de salvar vidas.
Se tivessem feito alguma coisa, é possível que Kathlen e seu filho estivessem vivos até hoje. É se fazer morrer e deixar morrer. É isso que se chama de necropolítica e a minha geração chama simplesmente de racismo.
Os negros são os mais afetados pela violência policial e são os que mais morrem na pandemia. Me parece que o luto é uma constante na vida da população negra. Porque a morte é um produto constante do racismo. Para usar o termo mais moderno, do Achille Mbembe, a necropolítica é exatamente isso, fazer morrer os indesejáveis. Sob o racismo, os indesejáveis somos nós, negras, negros, indígenas e ciganos. É pra fazer morrer a gente. A morte é a marca.
Nas organizações, nós temos usado há muito tempo a morte como o principal indicador da perversidade do racismo sistêmico. Não é o único indicador, mas tem sido [o principal]. A gente chama atenção para a morte porque ela é real. Ela acontece em volume.
E o que falta para esse luto constante parar, para que essa produção de mortes cesse? A população não negra se responsabilizar? O Estado? Representatividade legislativa? O racismo sistêmico, ou seja, a regra que estrutura as regras de funcionamento do Brasil como estado e como nação, inclusive seu povo e sua sociedade, está fundada nos alicerces do racismo. Então falta refundar a nação. O que significa refundar a nação? Responsabilizar a todos e todas. Responsabilizar, como dizia a frase do Malcolm X, responsabilizar por todos os meios necessários. Precisamos de outro país. Esse país desse jeito tem que acabar. E não é uma mudança radical, porque dentro desse país que precisa acabar já existe o outro país que precisa existir.
Uma parte substancial da sociedade já age contra o racismo, e a gente precisa que essa ação impacte de forma mais profunda as estruturas a ponto de derrubá-las. É que o outro lado está ancorado num alicerce mais potente, um alicerce de mais de 500 anos. É preciso que os nossos alicerces se fortifiquem, seja na lei, seja na responsabilização individual, seja na responsabilização coletiva.
RAIO-X
Jurema Werneck, 59, é diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil desde 2017. É formada em medicina pela UFF (Universidade Federal Fluminense), é mestre em engenharia de produção e doutora em comunicação e cultura pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). É também fundadora da ONG Criola, que trabalha em defesa dos direitos das mulheres negras.
FONTE:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/lentes-da-pandemia-ajudaram-a-ver-racismo-diz-diretora-da-anistia-internacional-no-brasil.shtml
A invisibilidade do racismo nos dados da Covid-19
“O não preenchimento do campo “raça/cor da pele” relacionado às internações afeta gravemente, por exemplo, a comparação da letalidade entre pessoas brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas”, escrevem Edna Maria de Araújo, docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Ana Paula Nunes, professora de epidemiologia e bioestatística da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e Vitor Nisida, urbanista e pesquisador do Instituto Pólis, em artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, 20-07-2021 e reproduzido por Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, 20-07-2021.
Confira o artigo:
As respostas às desigualdades em saúde só podem ser adequadas quando a produção de dados é completa e dialoga com a realidade que visam transformar. Nesse sentido, não é possível planejar intervenções visando diminuir as iniquidades raciais sem conhecer sua verdadeira extensão.
Para isso, é fundamental organizar informações oficiais desagregadas por raça/cor da pele. É de interesse público, portanto, conhecer e reivindicar a qualidade dos dados sobre saúde quanto ao preenchimento do campo “raça/cor da pele” nos sistemas de informação oficiais.
Com o intuito de elaborar um diagnóstico sobre o impacto da pandemia de Covid-19 nas populações em situação de vulnerabilidade, sobretudo na população negra, o GT Racismo e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e o Instituto Pólis vêm investigando a qualidade dessas informações nesses sistemas.
Dados do DataSUS relacionados à Covid registrados no SIVEP Gripe (Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica), no SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), no SI-PNI (Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações) e no eSUS Notifica (que monitora casos suspeitos de Covid19) foram selecionados e sistematizados para analisar a qualidade do preenchimento do campo “raça/cor da pele” ao longo da pandemia. Preocupa que alguns sistemas ainda não apresentem o preenchimento desse campo em nível satisfatório
O SIVEP Gripe, que trata das internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), incluindo a Covid, apresenta uma notificação do quesito “raça/cor da pele” em 80% das internações no Brasil. O preenchimento ideal seria de, ao menos, 90%.
Além disso, a variação entre as Unidades da Federação é grande e prejudica algumas análises. Enquanto SC, RR e TO preenchem acima de 95%, CE e RJ notificaram a “raça/cor da pele” em apenas 67% das internações. No DF, o dado foi preenchido somente em 53% dos casos.
O SIM, por outro lado, se destaca por apresentar taxas de notificação adequadas. Quase 97% dos óbitos nacionais por Covid registrados no sistema tiveram o campo raça/cor da pele preenchido. AL e ES são exceções, com preenchimento em apenas 77% e 84% dos óbitos, respectivamente.
O SI-PNI, que trata dos dados de vacinação contra Covid, tem uma taxa nacional de preenchimento do campo “raça/cor da pele” de 74%, percentual muito aquém do necessário para garantir um monitoramento apropriado do processo de imunização.
Além de insuficiente, o padrão de registro varia entre as unidades: TO tem o melhor preenchimento do campo, com 90%, e o DF tem o pior, com apenas 56,5%. A diferença não se resume às Unidades da Federação.
Um estudo feito no Município de São Paulo mostra que a notificação deste dado também é heterogênea na cidade. Bairros mais ricos e com população proporcionalmente mais branca registram o dado “raça/cor da pele” de apenas 7% da sua população vacinada.
É como se “branca” não fosse “raça/cor da pele”, já que em outras áreas da cidade, proporcionalmente mais negras, a mesma taxa de preenchimento chega a quase 81%.
Quanto às informações de casos suspeitos de Covid, cabe destacar que o e-SUS Notifica não disponibiliza o dado “raça/cor da pele” no DataSUS, embora este campo seja de preenchimento obrigatório na ficha de notificação.
Por um lado, é importante reconhecer que os dados de mortalidade apresentam notificação adequada, quanto ao campo “raça/cor da pele” –só dois estados registraram um preenchimento abaixo do ideal. Entretanto, em muitas Unidades da Federação, o preenchimento dos bancos sobre internações e sobre a vacinação esteve muito aquém do desejável.
O não preenchimento do campo “raça/cor da pele” relacionado às internações afeta gravemente, por exemplo, a comparação da letalidade entre pessoas brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas. A situação é mais preocupante quanto aos dados sobre infecção de Covid, já que o preenchimento deste campo nos registros de casos suspeitos não pode ser analisado, dada a sua completa ausência nas bases nacionais de acesso público.
Apesar do quesito “raça/cor da pele” ser obrigatório e considerado como indicativo de qualidade nos sistemas de informação do SUS desde 2017, por meio de portaria do Ministério da Saúde e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), portanto, quando o preenchimento de fato deste campo é analisado nos sistemas de informação oficiais, os números mostram que ainda é necessário avançar muito para que cheguemos ao adequado monitoramento das iniquidades raciais de saúde, dentro e fora da pandemia.
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Carta Capital: ‘Quartinho de empregada é indicador de que a escravidão continua’, diz Laurentino
Para o autor da trilogia ‘Escravidão’, o Brasil não enfrentou e nem resolveu o legado desse período
Alissom Matos, Carta Capital
Às vésperas do lançamento do segundo volume da trilogia Escravidão, Laurentino Gomes vê o Brasil distante de ser uma democracia racial. “O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos”, diz. “Nunca chegamos e estamos muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos.”
O livro concentra-se no século XVIII, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no País. Gomes classifica o período como o ápice do comércio de seres humanos no continente americano. “Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do País.”
O autor faz paralelos entre esse período e o Brasil contemporâneo. “Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.” No lançamento do primeiro volume, em 2019, ganhava os jornais o caso do garoto chicoteado por seguranças de um supermercado da periferia paulistana. A finalização deste segundo ocorreu em meio à morte da jovem Kathlen Romeu, grávida, durante uma operação policial no Rio.
Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes.
Em conversa com CartaCapital, Gomes defende que o Brasil passe agora por essa “segunda abolição “. “O famoso quartinho de empregada é um indicador de que a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciária.
A pedido do autor, a entrevista foi feita por e-mail. Confira os destaques a seguir.
Carta Capital: Da herança escravocrata, o que ficou de mais trágico para o Brasil?
LG: A violência e os abusos decorrentes do preconceito racial se repetem com frequência assustadora. Quando lancei o primeiro volume da trilogia, em setembro de 2019, por exemplo, o noticiário era dominado por um episódio grotesco, em que um garoto negro acusado de furtar uma barra de chocolate tinha sido surrado com chicote nas dependências de um supermercado.
Chicotear pessoas negras foi uma das grandes especialidades do Brasil escravista ao longo de mais de 350 anos. Havia manuais que detalhavam como essa punição deveria ser aplicada, de preferência em público, para servir de exemplo aos demais cativos, e em doses bem medidas, para não incapacitar o escravo para o trabalho.
Agora, passados dois anos, no lançamento do segundo volume, outro escândalo estava na pauta dos brasileiros: a história de uma mulher jovem, designer e modelo, grávida de quatro meses, morta por uma bala “perdida”, dispara a esmo em um confronto entre a política e o crime organizada na guerra civil em andamento no Rio de Janeiro. Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.
Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista do que uma concessão
O racismo produziu um sistema de castas na sociedade brasileira. Basta observar quem mora nas periferias insalubres, perigosas, dominadas pelo crime organizado, pelo tráfico de drogas, sem qualquer assistência do Estado brasileiro. Na maioria, são pessoas afrodescendentes. Enquanto isso, os chamados “bairros nobres”, com boa qualidade de vida, segurança, serviços públicos e educação de qualidade, são habitados por pessoas descendentes de colonizadores europeus brancos.
Estatisticamente, a pobreza no Brasil é sinônimo de negritude. No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades a todos os brasileiros, independentemente da cor da pele, explica essas diferenças.
CC: Você disse, certa vez, que a escravidão é uma tragédia ainda em andamento.
LG: A escravidão acabou oficialmente no Brasil com a Lei Áurea, mas os seus efeitos persistem ainda hoje. Portanto, está longe de ser apenas um assunto museu ou livro de história, algo congelado e acabado no passado. É uma realidade presente assustadora no Brasil deste início de século XXI.
Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Essa segunda abolição o Brasil jamais fez.
A segunda abolição preconizada por Nabuco, Rebouças e Gama é um dos desafios a ser enfrentado por esta e pelas próximas gerações de brasileiros. O famoso quartinho de empregada é um indicador de a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas, que inclui o preconceito racial e regime de trabalho que, em muitos aspectos, se assemelham ao das antigas senzalas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciárias em muito se assemelham hoje aos porões dos navios negreiros de antigamente.
CC: A escravidão ajuda a explicar a desigualdade regional brasileira?
LG: A escravidão explica quase todas as desigualdades brasileiras. A prosperidade das regiões sul e sudeste foi construída, em grande parte, pela chegada de imigrantes estrangeiros, europeus e católicos em sua maioria, a partir da segunda metade do século XIX. Era parte do projeto de branqueamento da população discutido e implementado durante o Segundo Reinado. Na época, se dizia que o sangue africano havia “corrompido” a índole brasileira e que seria necessário oxigenar a demografia nacional pelo estímulo à imigração europeia, branca e católica. O governo subsidiava passagens, alojamentos e outros benefícios para os recém-chegados. Meus bisavós italianos chegaram ao Brasil, em 1895, nessa condição.
Em outras regiões do Brasil, como o Norte e o Nordeste, a imigração foi inexpressiva. Salvador é hoje a maior cidade negra do mundo fora da África. Ali, as desigualdades são assustadoras. Ao olhar o passado, conseguimos ter uma compreensão melhor do presente. Isso inclui, além das desigualdades sociais e regionais, a corrupção, o nepotismo e o tráfico de influência, o contrabando e a sonegação de impostos, o toma-lá-dá-cá que tanto caracteriza as relações de promiscuidade entre os interesses públicos e privados. Tudo isso era muito forte já na época do Brasil colonial e escravista. Por isso, decidi fazer um capítulo à parte sobre esse tema.
O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide. Seu funcionamento dependia de suborno, extorsão, malversação dos recursos públicos, contrabando, sonegação de impostos, clientelismo e nepotismo, entre outras contravenções. Como explico na abertura desse capítulo, obviamente havia gente honesta no Brasil colonial. Mas o exemplo que chegava de cima não contribuía para fixar essa imagem. Dois importantes governadores de Minas Gerais na fase inicial da corrida do ouro e dos diamantes voltaram para Lisboa muito mais ricos do que permitiam seus rendimentos. As artimanhas dos traficantes de escravos para burlar o fisco e as leis eram inúmeras e uma mais criativa do que a outra. O desvio de ouro, pedras preciosas e outras riquezas dominavam boa parte do comércio colonial.
CC: O Brasil foi tratado, por muito tempo, como uma “democracia racial “. Nós já estivemos perto disso?
LG: Nunca chegamos e estamos ainda muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos. Incapaz de enfrentar o legado da escravidão, o Brasil sempre procurou disfarçá-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos. A escravidão é, por natureza, um processo violento, repleto de dor e sofrimento, uma experiência que se perpetua ainda hoje na forma de racismo, pobreza e desigualdade social. A vida no cativeiro no Brasil foi tão cruel e violenta como em qualquer outro território escravista da América. A quebra da identidade e dos direitos dos escravizados era toda baseada na violência. Na África e na chegada às Américas, as pessoas eram capturadas, estocadas, marcadas a ferro quente e leiloadas como se fossem mercadorias.
Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os escravizados não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante
Sua nova existência dependeria por completo do poder do seu dono. O simbolismo dessa nova identidade estaria nos rituais que em geral acompanhavam os processos de escravização, como marcas feitas a ferro quente no corpo do cativo, o uso de colares e pulseiras metálicas indicando quem eram seus donos, o batismo em nova religião, o aprendizado de uma nova língua e de uma nova maneira de se vestir e se comportar e, por fim, a atribuição de um novo nome.
Nas ilhas do Caribe, os ingleses diziam que esse era o momento de “temperar” [ seasoning , em inglês] o cativo, ou seja, mostrar a ele quem, de fato, mandava, quem era o dono e senhor do seu destino. Isso envolvia uma série de torturas, físicas e psicológicas, até que o escravo se “colocasse em seu lugar” – ou seja, o mesmo ocupado por animais domésticos e de trabalho. Segundo o padre jesuíta Manuel Ribeiro da Rocha, que foi missionário na Bahia em meados do século 18, durante essa etapa, muitos senhores de engenho do Recôncavo Baiano tinham o hábito deliberado de surrar os cativos. Era a primeira providência que tomavam depois da compra dos africanos.
CC: Há quem atribua essa ideia a obras como “Casa Grande & Senzala “, que contribuiu para a formação intelectual de muitas gerações.
LG: Gilberto Freyre ajudou a forjar a ideia de uma escravidão patriarcal no Brasil, na qual o negro aparece como alguém passivo e apático, bem adaptado ao mundo dos brancos e vivendo sob as ordens da casa senhorial, incapaz de reagir, protestar ou se rebelar. A tão falada democracia racial seria resultado desse sistema peculiar do escravismo brasileiro. Essa visão, felizmente, está superada. Novos estudos apontam os escravos como agentes de seu próprio destino, negociando espaços dentro da sociedade escravista, organizando irmandades religiosas, formando um sistema complexo de apadrinhamento, parentesco e alianças que muitas vezes incluíam participar de milícias ou bandos armados para defender os interesses do senhor contra os de um vizinho ou fazendeiro rival.
O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide
Pequenas faltas, fugas rápidas, corpo mole no trabalho, malfeito ou inacabado, fingir não dominar a língua ou as ordens, eram todas formas de resistência que não necessariamente incluíam o enfrentamento direto, como observou a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado. Os escravos lutavam por coisas concretas, como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos. O que nem sempre implicava em fugir, se rebelar ou pegar em armas. Ainda assim, eram atos de resistência.
CC: A solução para o País se tornar, de fato, uma democracia racial passa pelo quê?
LG: A melhor maneira de enfrentar a herança da escravidão é pela educação, pela leitura e, em particular, pelo estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. O Brasil, maior território escravista do hemisfério ocidental até meados do século XIX, nunca teve um grande museu nacional da escravidão e da cultura negra. É uma prova do processo de apagamento da memória africana.
Acho que, oculto sob esse aparente desinteresse, existe um projeto nacional de esquecimento. O Brasil abandonou os ex-escravos e seus descendentes à própria sorte depois da Lei Áurea. Abandonou também a própria memória da escravidão. Temos de enfrentar de forma corajosa e decisiva o problema da desigualdade social e da violência decorrente do racismo no Brasil. Também por isso eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes.
CC: No primeiro livro, o senhor compara a escravidão no Brasil e nos EUA e diz que aqui se alforriava mais e a expectativa de vida dos escravos era menor. Por quê?
LG: Alguns fenômenos diferenciam o escravismo brasileiro. Um deles diz respeito ao nascimento de uma escravidão urbana, de serviços, de características muito diferentes daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar que ainda predominavam na região nordeste, nas ilhas do Caribe ou no sul dos Estados Unidos.
A escravidão urbana deu maior mobilidade aos escravos e gerou uma nova cultura afro-brasileira com profundas influências em todos os aspectos da vida colonial, incluindo a culinária, o vestuário, as festas e danças, os rituais religiosos e o uso dos espaços públicos. O trabalho escravo foi responsável pelo surgimento de dezenas de novas vilas e cidades no interior do Brasil. Arquitetos, mestres de obra, pintores, escultores e compositores negros ou mestiços, escravos e libertos, caso de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, construíram palácios e igrejas barrocas que ainda hoje deslumbram turistas e estudiosos do mundo inteiro em visita às cidades históricas mineiras.
Outro fenômeno característico da escravidão brasileira foram processos de alforria. Em Minas Gerais, o aumento da população negra e mestiça livre foi particularmente acelerado. A alta taxa de alforria é um traço que diferenciou o escravismo brasileiro de todos os demais no continente americano. Havia mais possibilidades de um escravo alcançar a liberdade no Brasil do que no sul dos Estados Unidos ou nas colônias europeias do Caribe.
Essas diferenças levaram muitos estudiosos a defender a ideia de uma escravidão mais branda, paternalista e relaxada no Brasil, que, por sua vez, teria resultado em um País com menos barreiras raciais, particularmente quando comparado aos Estados Unidos. É uma visão equivocada. Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência como em qualquer outro território escravista. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista dos escravos do que uma concessão dos escravizadores.
Os documentos revelam que o sistema sempre cobrava um alto preço pela liberdade. Para comprá-la, literalmente a dinheiro, era necessário trabalhar muitas horas para acumular poupança, contar com a solidariedade de padrinhos, parentes e amigos ou de instituições de apoio mútuo, como as irmandades religiosas. Às vezes, o valor cobrado pela alforria era muito superior ao que os donos tinham pago pelos cativos. Entre as condições impostas, estava continuar a prestar serviços no cativeiro enquanto o senhor ou a senhora fosse vivo.
CC: No segundo livro, o senhor se concentra entre 1700 e 1800, auge do tráfico negreiro no Atlântico. Por quê?
LG: O século XVIII representa o auge da escravidão e do comércio de seres humanos no continente americano, em particular no Brasil. Num intervalo de apenas cem anos, cerca de seis milhões de homens e mulheres ficaram arrancados de suas raízes africanas, marcados a ferro quente e transportados para o Novo Mundo acorrentados no porão dos navios negreiros. O Brasil sozinho recebeu dois milhões, um terço do total. O motor do escravismo nesse século foi a descoberta de ouro e diamantes no Brasil e a disseminação, em outras regiões da América, das lavouras de monocultura, como a do açúcar, do tabaco, do arroz e do algodão, todos de uso intensivo de mão-de-obra cativa.
Por volta de 1750, negros escravizados eram vistos numa sucessão ininterrupta de colônias europeias que se desdobravam do Canadá até o sul da Argentina e do Chile atuais. A desproporção entre brancos e negros era enorme. Na região do Caribe, ocupada por franceses, ingleses, holandeses, espanhóis e dinamarqueses, os negros constituíam mais de 90% da população. Naquela época, Minas Gerais tinha a maior concentração de pessoas negras de todo o continente americano. Os brancos formavam uma minoria relativamente insignificante.
Leilões em praça pública para a venda de pessoas no atacado e no varejo se tornaram cenas habituais, especialmente nos três principais portos de entrada dos navios negreiros – Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Nessas ocasiões, homens e mulheres eram lavados, depilados, esfregados com sabão, untados com óleo de coco ou dendê, pesados, medidos, examinados e apalpados em suas partes íntimas, obrigados a correr, pular e exibir a língua e os dentes.
Ao término desse metódico ritual, vendedores e compradores acertavam o preço de acordo com a idade, o sexo e o vigor físico dos cativos que, em seguida, eram marcados a ferro quente com as iniciais da fazenda ou do nome do seu novo proprietário. O cultivo de grandes lavouras e a busca por novas riquezas no Brasil e no restante da América produziu uma inflação nos preços dos africanos escravizados. A procura por mão-de-obra cativa disparou. Nada menos do que 85% das 35.000 viagens de navios negreiros para a América documentadas pelo banco de dados slavegoyages.org aconteceram depois de 1.700.
Na África, o impacto do tráfico negreiro foi enorme. A demanda cada vez maior por cativos e os preços crescentes pagos por eles desorganizou a economia do continente. Antigas atividades produtivas, como tecelagem, metalurgia, agricultura e pecuária, foram deixadas de lado sob a pressão do comércio escravista. Em lugar delas, instaurou-se um aumento crescente nas taxas de violência. Aliada aos traficantes, uma nova elite militar africana surgiu à frente de Estados predatórios que, apoiados com armas e recursos europeus, nasceram e se firmaram com o propósito de lucrar com a guerra contra seus vizinhos, vendidos como prisioneiros para capitães de navios negreiros.
CC: Qual Brasil o leitor encontrará neste segundo volume?
LG: Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Comprar e vender gente era um fato trivial da vida cotidiana, praticado por todos os brasileiros, sem questionamentos. Mesmo irmandades religiosas de negros e mestiços eram donas de escravos, uma vez que esse era o costume aceito por todos. Pessoas cativas almejavam a alforria, o que nem sempre era sinônimo de abolicionismo. Uma vez conquistada a liberdade legal, inúmeros ex-escravos se tornaram também donos de escravos. A banalidade da escravidão me levou a fazer a introdução do livro descrevendo um objeto hoje existente no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte. É uma balança de pesar de escravos, usada para definir o valor de seres humanos antes de leilões de praça pública, da mesma forma como, na época, se usavam balanças para pesar bois, porcos, galinhos, queijos, sacos de farinha de trigo, de feijão e de arroz.
Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do Brasil. Como explico na abertura de um dos capítulos desse volume da trilogia, os traços estão por toda parte, na dança, na música, no vocabulário e na culinária, nas crenças e costumes; na luta do dia-a-dia, na força, no semblante e no sorriso das pessoas. Estão também na paisagem e na arquitetura, cifradas na forma de símbolos e desenhos gravados nas paredes e fachadas das casas e casarões, nos altares e pinturas das igrejas, nos terreiros de umbanda e candomblé.
Começaram ou se consolidaram no século XVIII alguns fenômenos que marcariam profundamente a face do escravismo brasileiro. A escravidão urbana, de serviços, diferente daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar na região Nordeste, deu maior mobilidade aos cativos, acelerou os processos de alforria, ofereceu oportunidades às mulheres e gerou uma nova cultura em que hábitos de origem africana se misturaram a outros, de raiz europeia ou indígena. Isso incluiu a disseminação de festas, danças, rituais, irmandades e práticas religiosas que ainda hoje estão presentes no Brasil.
CC: De tudo apurado, o que mais te impactou?
LC: Eu me surpreendi muito ao constatar o quanto as contribuições africanas foram cruciais para a construção do Brasil. Elas podem ser exemplificadas pela história de um homem anônimo, negro ou mestiço, descendente de africanos escravizados, que teria sido o responsável pela descoberta de ouro em Minas Gerais no final do século XVII. Infelizmente, sabe-se muito pouco a seu respeito. O único registro que dele sobrou está numa passagem do livro Cultura e Opulência do Brasil pelas suas drogas e minas, do padre jesuíta André João Antonil. Até recentemente, uma historiografia ufanista atribuía quase que exclusivamente aos bandeirantes, todos homens supostamente brancos, a façanha pela descoberta de ouro e diamantes e a consequente ocupação do território brasileiro na primeira metade do século XVIII. Isso é parcialmente verdadeiro. Embora relegados ao segundo plano nos museus, livros e salas de aula, negros e mestiços foram, muitas vezes, protagonistas, em vez de atores secundários, nos grandes acontecimentos da história do Brasil.
O tráfico negreiro era menos aleatório e irracional do que se imagina. Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os africanos escravizados que chegavam à América não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante, selvagem, bárbara, despreparada para os desafios impostos pelas diferentes atividades econômicas desenvolvidas pelos europeus no Novo Mundo. Novos estudos têm demonstrado o oposto disso. Os africanos escravizados não eram apenas commodities , mercadorias como outras quaisquer, cujo valor e preço dependessem somente do vigor físico ou da força dos músculos definidos pelo sexo, pela idade e pelas condições de saúde. Além de seres humanos acorrentados e marcados a ferro quente, os navios negreiros transportavam em seus porões conhecimentos e habilidades tecnológicas da África que seriam cruciais na ocupação europeia do continente americano. Uma dessas tecnologias era justamente a mineração de ouro e diamantes em Minas Gerais.
Outra surpresa durante as pesquisas está relacionada ao papel das mulheres no Brasil colonial. Mulheres negras foram protagonistas de inúmeras histórias de resiliência e superação que mudaram a paisagem escravista brasileira. Nessa condição agiram ativamente não apenas para conquistar a liberdade de seus maridos e filhos, mas também para transformar a sociedade em que viviam. Ocuparam cargos importantes na direção de irmandades religiosas, fundaram terreiros de candomblé, se elegeram “rainhas” de comunidade negras, lideraram quilombos, administraram fazendas, participaram da mineração de ouro e diamante. O estudo do papel da mulher no Brasil escravista é um dos temas mais fascinantes na disciplina de história. As mulheres desempenharam um papel fundamental na construção da sociedade negra e mestiça do Brasil, embora isso nem sempre seja devidamente reconhecido nos livros didáticos.
CC: E o terceiro volume, quando sai?
LG: O terceiro e último livro da trilogia, a ser lançado em 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil, terá como foco principal o movimento abolicionista, o tráfico ilegal de cativos, o fim (pelo menos do ponto de vista formal e legal) da escravidão no século XIX e ao seu legado atualmente. Pretendo mostrar como o pacto entre a aristocracia escravista e o trono brasileiro impediram que o Brasil resolvesse o problema do tráfico negreiro e da própria escravidão ainda na época da Independência, como defendia José Bonifácio de Andrade e Silva.
O Brasil foi o último país da América a acabar com o tráfico, pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850, e o último a abolir a própria escravidão, pela Lei Áurea de Treze de Maio de 1888. Mas não enfrentou nem resolveu o legado da escravidão, contrariando o que defendiam os nossos grandes abolicionistas no século XIX. Há um projeto de Brasil que ficou abortado ou interrompido naquela época. E isso explica muitos dos nossos problemas atuais.
Irapuã Santana: Querida Ana Paula
O texto de hoje e minhas energias e vibrações positivas são para você, que representa, neste caso, todas as mães de meninos negros que sofreram com a violência policial no país.
O documentário “Auto de resistência” é chocante, profundo e muito, muito tocante. Com ele, refleti sobre quanto sou sortudo por ter sobrevivido até o momento, apesar de ter passado boa parte de minha existência na periferia do Rio de Janeiro. Para fugir daquele ambiente tão perigoso, meu pai foi sábio e se mudou conosco para uma cidade menor, na Região Metropolitana, numa área então não afetada pelo narcotráfico.
Infelizmente, milhares de crianças e jovens negros não tiveram o mesmo destino, e famílias foram destroçadas pela falida guerra às drogas, usada como pano de fundo no projeto de extermínio dos negros no Brasil.
Perder um filho deve ser duríssimo, mas, da forma como aconteceu com você, um tiro nas costas de um menino de apenas 19 anos… eu não consigo imaginar, já dá um nó na garganta. Entretanto, ao contrário de todos os vetores que a pressionam na manutenção da situação como ela sempre foi, você se ergueu acima de nós, reles mortais, e começou sua luta. Não por justiça, porque, se ela existisse, Johnatha estaria vivo, mas pelo amor, pela vida.
Na conversa que tivemos recentemente, a luz de seu espírito e sua força foram admiráveis. Creio que apenas uma Mãe, com M maiúsculo, conseguiria reviver esse episódio com o desejo incandescente de que o Estado pare de matar nossa juventude negra e destruir suas famílias.
Como diria O Rappa, “é só regar os lírios do gueto que o Beethoven negro vem para se mostrar”. No entanto a função que seria proteger passa a ser extinguir.
Com seu filho assassinado e o executor à solta, o sistema de Justiça se mostra cúmplice. É o crime perfeito: a administração pública mata, o Judiciário não pune e o Legislativo afrouxa.
Apesar da pandemia, mesmo com a diminuição de circulação de pessoas nas ruas, o Brasil bateu no ano passado o recorde de pessoas mortas por policiais desde 2013, chegando ao absurdo número de 6.416, resultando num aumento de 190% desde o início do acompanhamento do índice.
As mortes registradas em operações policiais, no Rio de Janeiro, aumentaram entre janeiro e fevereiro, chegando à marca de 47, representando um aumento de 161%, na comparação com os meses de novembro e de dezembro de 2020, quando foram registradas 18 mortes, com cinco feridos em confrontos, segundo a Rede de Observatórios da Segurança.
Assim, vemos que a guerra de Ana Paula é a nossa guerra. Desde 2014, ela batalha para que o policial, que deveria cumprir sua obrigação de servir à sociedade, responda por seus atos.
Ana Paula diz que, ao gritar por amor à vida, está cuidando de seu Johnatha, porque “é como se ele estivesse vivendo através da minha luta, é onde posso continuar sendo sua mãe”.
Por isso precisamos nos colocar de pé contra esta forma de constituir sociedade que assassina seus frutos, não lhes dando o devido valor. É urgente acolher nossas mães e potencializar suas vozes.
Querida Ana Paula, você não está só.
Fonte:
O Globo
Folha de S. Paulo: Se você não se ligar, o racismo te envolve na universidade, diz reitora negra
Angela Pinho, Folha de S. Paulo
Integrante de um grupo pequeno, mas agora organizado, de reitores negros, Luanda de Moraes celebra a redução da desigualdade racial no ensino superior, mas denuncia a persistência do racismo na sociedade brasileira e, em especial, nas universidades, onde ele é mais sutil.
À frente da Uezo (Fundação Centro Universitário Estadual da Zona Oeste), que recebe alunos vindos de áreas pobres do Rio de Janeiro, ela acaba de formar com mais seis colegas um grupo de reitores negros que levará à frente posicionamentos conjuntos sobre temas como a Lei de Cotas.
A norma, que reserva vagas nas universidades, deve ser revista no ano que vem, e Luanda avalia que há risco político de retrocesso.
Isso ocorre no momento em que a crise econômica e o enxugamento de políticas públicas trazem risco de interromper a trajetória do ensino superior rumo à equidade racial, como mostrou o Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial).
À Folha ela falou sobre racismo, políticas de ação afirmativa e representatividade.
O que te motivou a entrar na vida acadêmica? Sempre tive a convicção de que precisava retribuir à sociedade, porque sou fruto do ensino público. Sou filha de uma mulher negra e de um homem também negro. Sou originária da periferia do Rio de Janeiro. Fui aprovada no vestibular, na minha primeira tentativa, para engenharia química na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Descobri que eu gostava tanto de química ao estudar para o vestibular.
Como foi isso? Naquele momento, precisei estudar muito mais do que de hábito, porque, devido à precariedade do financiamento das escolas públicas, elas só conseguem oferecer uma educação limitada. Então, mesmo sempre tendo bons resultados nas provas, eu ainda estava muito distante dos estudantes de escolas particulares ou mesmo federais.
Mas preciso dizer que o meu pai também foi engenheiro químico, e ele chegou lá porque teve o apoio da minha mãe. Em casa éramos muito incentivados a ser fortes. Éramos alimentados de diálogos para encarar a opressão que vivíamos fora de casa. Porque, ainda que morando na periferia, ainda que estudando em escolas públicas, eu era vítima de um racismo muito forte.
Pode falar mais sobre isso? Um feto negro já sofre racismo. Ainda dentro do ventre materno a mãe sofre, e essa criança vai sofrer junto. Isso vai sendo impregnado na vida. Uma lembrança clara que tenho é da escola primária, eu tinha oito ou nove anos. Uma colega ia na segunda-feira com rabo, na terça de maria chiquinha, na quarta com o cabelo solto e na quinta com coque. E eu ia com o meu cabelo black. A colega perguntava: você vai vir com esse cabelo todos os dias? Quando ela falou isso, eu tinha todas as respostas e ela teve que ouvir um longo sermão. Isso só foi possível porque tinha referências em casa de pessoas que frequentaram o movimento negro. Outro caso de que me lembro na escola municipal é que a diretora todo final do dia entregava um brinde pra criança mais limpinha. Eu era amiga de uma menina loira e nunca ganhei, ela sempre ganhou. Na minha família, sempre fui vista como a chatinha criteriosa com higiene. Ainda assim, a diretora nunca conseguiu me ver como a criança mais limpinha.
Ainda sofre racismo? Ainda. Mas falando da infância e da adolescência, essas questões marcam muito os jovens. Já é dificil vencer as limitações naturais inerentes a qualquer pessoa, como por exemplo timidez, medo, insegurança, e é muito mais difícil para a população negra que sofre essas violências. É por isso que a gente diz que a sociedade brasileira é estruturada na prática do racismo. Em muitos outros casos as pessoas desistem por falta de oportunidades.
Hoje eu ainda sofro racismo quando eu frequento determinados restaurantes e lugares. É algo muito presente. Os casos de racismo têm sido muito publicizados, a coisa está bem escrachada. Os racistas estão com muita disposição, mas nós também estamos para mudar essa realidade.
E na universidade, o racismo é diferente? Mais sutil? Sim, porém existe e, se você não estiver bem ligada, acaba sendo envolvida. A partir da implementação das ações afirmativas, o debate interno da universidade foi ampliado e ela foi se democratizando, por isso o debate começa a ser mais direto e palpável. Mas nós encontramos racismo sim e é realmente uma luta diária.
O que é ser envolvida? É quando você não consegue atuar contra. Por exemplo, quando identifica um caso e não reage porque ele está camuflado, porque existem relações de hierarquia. Tinha aquela campanha que perguntava onde você esconde o seu racismo. Você esconde o seu racismo quando não enxerga, por exemplo, o docente negro que pode ser o seu diretor de unidade, quando não enxerga uma docente que pode ser sua reitora negra.
Por que há tão poucas reitoras negras no país? Em muitos casos não existe nem mesmo uma candidatura, porque quem faz o reitor são as relações pretéritas à eleição. Em muitos casos essas relações nem conseguem ser construídas por porque, pela ação do racismo, os negros e negras sao afastados desses espaços de poder.
Agora estamos formando um grupo de reitores negros e negras de universidades públicas no Brasil. Hoje, até onde eu sei, somos apenas sete, cinco reitoras e dois reitores. Esse número já foi ainda menor, já foi zero, é muito baixo, mas existe. Posso concluir que existe sim um resultado das políticas de ações afirmativas para esse dado, porque elas conseguiram transformar as instituições de ensino superior em espaços mais plurais e, portanto, capazes de produzir e disseminar reflexões sobre o processo de formação da sociedade brasileira.
Como esse processo se relaciona com as ações afirmativas? A política de ações afirmativas aumenta a representatividade e isso incentiva as pessoas.
Trazendo a minha questão pessoal, e posso ampliar isso para a população negra em geral, eu tive pessoas que me representavam quando criança e adolescente. Não quando eu ligava a televisão, porque quando ligava parecia que não estávamos no Brasil, mas na Noruega. Mas tinha a representatividade na minha família, naquela bolha. Precisamos ampliar o número de bolhas. Para isso, precisamos de políticas públicas de ingresso e permanência.
O que vocês pretendem com esse grupo de reitores negros? Ainda estamos discutindo, mas pretendemos nos mostrar na sociedade brasileira e contribuir para o debate da revisão da Lei de Cotas, que está prevista para 2022.
A Lei de Cotas deve ser mantida como está? Deve ter alguma mudança? A gente precisa lembrar as cotas sempre existiram aqui no Brasil, mas nunca foram para contemplar negros e indígenas. Desde o Brasil colônia, foram sempre para privilegiar brancos estrangeiros, latifundiários, empresários. Mas ainda é preciso ampliar o número de vagas, ampliar a atenção para a permanência e atentar para a questão do controle das fraudes, porque isso está tirando de fato o lugar da população que de fato precisa.
Precisamos ainda incluir mais o negro, seja aumentando o número de vagas ou o percentual, e é preciso olhar o antes também. Os jovens estão sendo retidos no ensino fundamental e no ensino médio.
ÍNDICE FOLHA DE EQUILÍBRIO RACIAL
Ferramenta inédita permite medir diferenças de oportunidade entre brancos e negros pelo país
Regiões ricas falham mais em dar oportunidade igual a negros e brancos, revela índice
Índice indica que, sem políticas públicas, exclusão racial persistirá por décadas no Brasil
Em município de Goiás, diretoria de igualdade racial faz a diferença
Brasil pode atingir equilíbrio racial no ensino superior na próxima década
Maioria dos estados tem medidas recentes contra desigualdade racial
Pauta da exclusão racial perde espaço na gestão federal, dizem especialistas
Punição a anúncio racista gera divergência na Promotoria de MG
Exclusão racial no topo da pirâmide de renda do Brasil deve aumentar
Crise econômica faz disparar a desigualdade entre brancos e negros no NE
Menor isolamento de negros em periferias facilita queda da disparidade no CO
Com SUS, pretos e pardos se aproximam dos brancos em longevidade em 22 estados
Racismo institucional contribui para mortes de negros por violência e saúde precária
Política para anemia falciforme, que atinge mais negros, é recente e enfrenta obstáculos
Expediente – Quem realizou o projeto
Vê algum risco de retrocesso na revisão? Diante da nossa realidade governamental, essa é uma grande preocupação. Se não tivermos apoio na Câmara e no Senado, a lei pode ser enfraquecida. Existe uma discussão que a lei de cotas causa conflitos raciais. Imagina: conflito racial maior que o racismo é o quê?
Como responde a esse argumento dos conflitos raciais? Quando se diz que a política de cotas pode trazer conflitos raciais, vejo como uma bela jogada arquitetada pelo movimento racista. As primeiras leis brasileiras excluiam negros e negras da escolas públicas. A lei das sesmarias, que ainda gera resultados nas nossas questões fundiárias, excluiu os negros. A Lei Áurea não previu trabalho nem salário. As pessoas foram para a rua, e aí vieram leis como a da vadiagem para tirar as pessoas da rua. E depois vem essa política de segurança. Então é inegável que é preciso políticas públicas de reparação e inclusão.
Mas, quando nós começamos a ocupar os lugares, isso causa um incômodo muito grande. Voltando à questão do racismo na universidade: eu disse que, quando a gente não percebe, a gente é envolvido. E isso acontece porque a ação racista te engana, você fica embriagada e muitas vezes você se questiona. E é por isso que você tem que estar ligado, porque você não está em questão. Em questão está o sistema racista.
LUANDA SILVA DE MORAES, 43 é reitora da Uezo, é graduada em engenharia química pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com mestrado e doutorado pelo Instituto de Macromoléculas da UFRJ
Fonte:
Folha de S. Paulo