racismo
João Cândido nunca existiu na Marinha, disse líder da Revolta da Chibata
Documentos sobre ele foram localizados apenas em 2008 por pesquisadores, no Arquivo Nacional
Fernanda Canofre / Folha de S. Paulo
Em 1968, um ano antes de morrer, João Cândido Felisberto, o homem que ficou conhecido como líder da Revolta da Chibata (movimento de 1910 que acabou com os castigos físicos na Marinha), concedeu uma entrevista onde recordava sobre o episódio e sua vida como marinheiro.
"João Cândido nunca existiu na Marinha", disse ele ao MIS (Museu da Imagem e do Som).
No fim de outubro, comissão do Senado aprovou proposta para incluir o nome do marinheiro no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Caso o projeto avance e seja sancionado, será a conclusão de mais de uma década de tentativas de reconhecer o "Almirante Negro", oficialmente, entre os nomes da história nacional.
Há mais de 50 anos, o entrevistador questiona se é verdade que nos arquivos da Marinha não consta nada em seu nome.
"Foi sonegado. Sonegado mesmo. Pelo fato de haver tomado a posição que tomaram na revolta, pelo ódio. Muitos oficiais não conseguiam comandar o Minas Gerais [encouraçado] e eu tive o sobejo poder de dominá-lo, fazer o que eles jamais fariam na baía do Rio de Janeiro", conclui.
Documentos e a ficha funcional de João Cândido na Marinha vieram a público apenas em 2008, graças a pesquisa de um grupo de historiadores da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), no Arquivo Histórico Nacional.
A reportagem da Folha na época registrou que a ficha do ex-marinheiro, que entrou em 1895, como grumete, apontava que ele foi castigado nove vezes com prisões, ficando de dois a quatro dias em solitária, e duas vezes rebaixado de cabo para marinheiro.
Não havia registro de castigo físico. Dos dez elogios recebidos por ele, o último por bom comportamento fora três meses antes da revolta.
O historiador José Murilo de Carvalho explica que João Cândido não foi o líder intelectual da revolta, posição de Francisco Dias Martins, paioleiro do Scout Bahia, mas salienta que a revolta começa pelo Minas Gerais, onde ele era o timoneiro, já que foi o último local onde a chibata foi aplicada como castigo — a punição de 250 chibatadas a um marinheiro foi o estopim.
O próprio João Cândido diz que era "um dos chefes", citando os comitês revolucionários que formaram na época, ainda antes da revolta, e diz que assumiu a liderança já indicado por eles.
"[Queríamos] combater os maus-tratos e má alimentação da Marinha, e acabar definitivamente com a chibata na Marinha. O causo era este. Nós que viemos da Europa, em contato com outras Marinhas, não podíamos mais admitir que, na Marinha do Brasil, um homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem", diz João Cândido na gravação.
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Passados 111 anos da revolta, a Marinha diz não reconhecer "ato de bravura" no episódio, como afirmou em nota recente lida no Senado, chama a atenção para a quebra de hierarquia e disciplina, cita mortes e se posiciona contra exaltar os revoltosos.
"Aquilo foi uma pequena revolução social e toda revolução social é uma quebra de hierarquia. A Independência do Brasil foi uma quebra de hierarquia, a República também", diz Mário Maestri, historiador e autor de "Cisnes negros: uma história da Revolta da Chibata" (Ed. Moderna).
"O que incomoda é que João Cândido dirigiu uma revolta da mais poderosa Marinha de Guerra que já teve no Brasil, venceu contra os oficiais e as elites brasileiras, e ainda por cima era negro", avalia Maestri.
"Esses mais de 2.300 e tantos marinheiros sofreram uma repressão grande que ainda não foi devidamente calculada. Cerca de 1.300 foram expulsos da Marinha na época, um total de 30 e tantos foram processados pelo Conselho de Guerra, os que foram mortos e fuzilados não existe um levantamento completo, mas até onde levantei, pelo menos cerca de 30 se conhece o nome e como morreram — fuzilados em terra firme ou no mar. Houve um expurgo na Marinha", diz Marco Morel, um dos historiadores que localizou os documentos de João Cândido.
Ele é neto de Edmar Morel, jornalista e autor de "A Revolta da Chibata" (Ed. Paz e Terra), que batizou o movimento dos marinheiros com esse nome e trouxe o episódio e João Cândido de volta à memória com a publicação de seu livro em 1959.
"O principal que ficou disso é que, tamanho o medo da repressão, tanto as pessoas queriam se proteger dela, que se criou um silêncio de memória sobre isso. Até hoje os descendentes dos marinheiros que participaram da revolta não sabem, porque ficou escondido", conta Morel.
Apesar da anistia aprovada na época, a anistia a João Cândido e outros revoltosos só foi reconhecida de fato, postumamente, em 2008.
Depois da revolta, ele foi expulso da Marinha, preso e, segundo o filho caçula, Adalberto Cândido, o Candinho, 82, sofreu perseguições quanto tentou entrar na Marinha mercante. Trabalhou por anos com peixes na Praça 15, no Rio de Janeiro.
"Meu pai nunca falou para a família [sobre a revolta], ele era uma pessoa muito discreta. Com o lançamento do livro, que foi um best-seller, que ele chegou a falar para mim", diz Candinho, que acompanhou o pai em homenagens e recebeu outras tantas, durante anos, em nome dele.
Morel conta que seu avô também pagou um preço apenas por ressuscitar a história da revolta: seus direitos políticos foram cassados após o golpe de 1964.
"A cassação encerrou a carreira dele de jornalista e foi causada pelo livro", diz. "O que eu ouvi contarem, colegas dele jornalistas, é que, depois do golpe, quando meu avô arranjava emprego em uma redação, ia lá um grupo de oficiais da Marinha, fardados, e ameaçavam, que ele tinha que ser demitido".
Aparício Torelly, o Barão de Itararé, chegou a ser agredido por oficiais da Marinha depois de publicar capítulos de um livreto sobre a revolta em seu jornal, em 1934.
Já durante a ditadura, Aldir Blanc teve de comparecer ao departamento de censura mais de uma vez, devido a música composta por ele e João Bosco em homenagem a João Cândido, "O Mestre-Sala dos Mares".
O título teve de ser mudado duas vezes, porque o censor achava que "O Almirante Negro" e "O Navegante Negro" eram apologia aos negros.
"Foi a maior manifestação de racismo que já vi", disse Blanc, que relatou ainda ter ouvido ameaças veladas do Cenimar (Centro de Informações da Marinha).
Naquele mesmo 1968 da entrevista de João Cândido, o regime militar baixou o AI-5, ato que marcou o endurecimento da ditadura.
Quatro anos antes, poucos dias antes do golpe, João Cândido participou de um encontro no Sindicato dos Marinheiros, em comemoração a associação, o que era visto como ilegal — a reunião foi proibida pelo ministro da Marinha da época.
Na gravação com o MIS, o ex-marinheiro chama o movimento militar que resultou no golpe de "movimento de salvação pública".
"A Revolta foi episódio traumático para os oficiais da Marinha. O trauma pode ter sido reforçado pela revolta dos marinheiros de 1964 e ainda não foi superado. A prova é que, 111 anos após a Revolta da Chibata, tenha havido a reação da corporação à colocação de João Cândido na lista dos heróis da pátria, mesmo sendo ela hoje uma instituição totalmente diferente da de 1910, e mesmo da de 1964", avalia o historiador José Murilo de Carvalho.
"Ele é um herói popular, não é da gente, porque a história dele é toda verídica, não tem farsa. Toda classe social aceita ele como herói e a família agradece por esse movimento que vem sendo feito para ele. É como a música do João Bosco e Aldir Blanc, vai passar séculos e ainda vão cantar ‘há muito tempo nas águas da Guanabara’", diz o filho Candinho.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/joao-candido-nunca-existiu-na-marinha-disse-lider-da-revolta-da-chibata.shtml
Comissão de Juristas Negros quer observatório contra racismo
Grupo criado pela Câmara com 20 especialistas, incluindo ministro do STJ, deve sugerir mudanças na legislação
Tayguara Ribeiro / Folha de S. Paulo
A criação de um observatório permanente contra o racismo deve ser uma das propostas do relatório final de uma comissão de juristas negros criada pela Câmara dos Deputados.
O grupo foi formado para avaliar mudanças na legislação de combate ao racismo no Brasil. O texto final, que tem como relator Silvio Almeida, professor da Fundação Getulio Vargas e colunista da Folha, deverá ser entregue ainda neste mês.
A ideia do observatório é contar com a participação dos juristas, mas também da sociedade civil por meio de movimentos ou entidades organizadas, para que os integrantes do grupo acompanhem a tramitação e eventuais ajustes nas propostas da comissão.
Outro ponto que deve constar do relatório final é a sugestão de mudança das leis de cotas, com a fixação de metas objetivas, sistema de monitoramento e critério temporal passando a ser atrelado à comprovação de atingimento de metas.
"Dividimos nossa abordagem em eixos de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional, com proposições que consideramos prioritárias e estratégicas", afirma Rita Cristina de Oliveira, defensora pública federal e uma das integrantes da comissão de juristas.
Segundo ela, que também é coordenadora do grupo de trabalho de políticas etnorraciais da Defensoria Pública da União, esses eixos são de enfrentamento ao racismo nos setores econômico, público e privado, além do sistema de justiça criminal e do campo dos direitos sociais.
O sistema de Justiça brasileiro também será objeto de propostas no texto final do relatório elaborado pela Comissão de Juristas Negros da Câmara.
"De uma maneira muito especial no que concerne às dimensões criminais desse sistema, incluindo a abordagem. Isso não significa que haverá mudança no código, mas sim uma reflexão que faça com que o que é tido como ilícito penal no tema de racismo seja respeitado e de fato efetivado", explica Ana Claudia Farranha, professora de Direito Constitucional da UnB (Universidade de Brasília) e também integrante do grupo.
Com a ajuda de consultores da Câmara dos Deputados, os integrantes da comissão realizaram um levantamento dos principais projetos de lei que existem na Casa e analisaram como essas propostas poderiam ser melhoradas levando em conta os problemas relacionados ao racismo.
O relatório final também deverá apresentar sugestões a respeito da saúde das mulheres negras e propostas para o fortalecimento da lei que obriga o ensino da história africana nas escolas e que vem sofrendo dificuldades para ser implementada.
"A comissão é uma resposta ao assassinato do João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour, no ano passado. É uma comissão para revisão da legislação, e por isso foi um trabalho muito extenso", conta Ana Claudia Farranha.
Além dos integrantes que atuaram de forma continua na comissão, o grupo convidou diversos especialistas para debater alguns temas específicos, como é o caso de Paulo Soares, procurador federal da AGU (Advocacia-geral da União).
Ele apresentou ao colegiado análises sobre a questão dos quilombolas no país avaliando a legislação que trata do tema, segurança jurídica em relação aos territórios e ausência de recursos orçamentários para titulações.
"É importante pensar em instrumentos jurídicos que deem garatias. Não basta apresentar propostas, é preciso teorizar sobre como implementar as proposições juridicamente."
Durante o debate sobre o relatório premiliminar produzido pela comissão, no dia 25 de outubro, Silvio Almeida falou sobre a necessidade de iniciativas para a prevenção, a detecção e a responsabilização de práticas racistas no setor privado.
Apesar dos temas debatidos no grupo, Almeida destacou durante a análise do relatório preliminar que o racismo faz parte da estrutura da sociedade brasileira e que, por isso, o trabalho desenvolvido pela comissão enfrentará uma limitação de alcance.
"Embora essa comissão tenha no nome que vai tratar do racismo estrutural, ela vai tratar apenas do racismo institucional, que é possível, porque o racismo estrutural envolve questões que estão muito além da possibilidade de qualquer jurista, de qualquer norma jurídica, qualquer movimento institucional nos limites da sociabilidade que nos apresenta hoje é capaz de resolver", disse.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/comissao-de-juristas-negros-quer-observatorio-contra-racismo-e-meta-para-cotas.shtml?origin=uol
RPD || Kelly Quirino: Que projeto de país temos para o futuro?
Erradicar a polaridade política atual e discutir questões estruturais se faz urgente para a construção de um país para o século XXI
Que projeto temos para o futuro do Brasil? Um país estruturado em violência, exploração do trabalho, sexismo e racismo entra na década de vinte do século XXI escancarando seus problemas históricos, e as principais lideranças políticas do nosso país ainda não conseguem apresentar uma resposta para estas demandas.
Começo por esta indagação, porque ao final do século XIX o projeto das nossas elites era modernizar o país. A ciência foi uma aliada para trazer o desenvolvimento e as políticas de imigração europeia para o Brasil ter uma mão de obra assalariada e também embranquecer nosso país, considerado preto demais para época. Era o projeto que até hoje é ostentando na nossa bandeira: “Ordem e Progresso”.
A ideia de desenvolvimento pautado pela implantação da indústria no Governo Vargas, continuada por JK e pelos militares, durante a ditadura, foi responsável pelo chamado milagre econômico brasileiro que colocou o Brasil entre as dez principais economias do mundo.
Ocorre que a exploração do trabalho, a violência e o racismo fizeram com que este projeto desenvolvimentista não fosse usufruído por grupos historicamente marginalizados: negros e indígenas.
Por mais que desde o século XIX José de Alencar já celebrasse a miscigenação como uma identidade nacional – primeiro a partir da exaltação aos indígenas e portugueses –, e Mário de Andrade reconhecendo que a identidade do povo brasileiro era soma dos três povos: indígenas, negros e brancos, no célebre Macunaíma, a riqueza gerada se concentrou nos grupos de homens brancos e continuou mantendo as piores estruturas sociais para negros e indígenas.
Aluísio de Azevedo, em O Cortiço, já apontava que o Estado brasileiro reservava os cortiços como moradia para os pretos no final do século XIX. Na década de 50, do século XX, Carolina Maria de Jesus em O Quarto de Despejo - denunciava os políticos, por negligenciar o povo favelado enquanto ela catava papel para alimentar seus três filhos.
No nosso projeto de país no século XX, os que são considerados cidadãos são privilegiados, e utilizam o discurso da meritocracia, para justificar seus lugares sociais. E pior, não possuem vergonha de ter irmãos pátrios que passam fome, são assassinados diariamente e não possuem moradia e nem trabalho digno.
Nosso projeto de país, criado no século XIX e que foi implementado no século XX não tem vergonha da desigualdade e ainda quer manter privilégios. As obras clássicas fundantes da sociologia brasileira nos ajudam a compreender este fenômeno parcialmente. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, defende que o brasileiro é um homem cordial. Avalio que seja cordial com seus iguais: homens, brancos, cristãos, instruídos, heterossexuais. Quem não faz parte disso, é tratado de forma violenta. Daí a importância de trazer a obra de Abdias do Nascimento, para refutar a tese de Buarque de Holanda. Em O Genocídio do Negro Brasileiro, Abdias afirma que o brasileiro não é cordial com as pessoas negras. A cada 23 minutos um homem, jovem e negro é assassinado no Brasil. O Atlas da Violência 2021 aponta que 77% das vítimas de homicídio do nosso país em 2019 eram negras.
Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala defendia que a colonização no país foi harmoniosa, negros e portugueses se relacionavam de forma amistosa, e o sexo entre senhores e negras era consensual. E aqui Lélia Gonzalez, no artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, refuta esta tese ao afirmar que as mulheres negras e indígenas no Brasil foram vítimas de estupro, e, no nosso projeto de país, elas são a mulata para transar, a preta para trabalhar e a mãe preta para servir. É preciso trazer à luz na Sociologia brasileira obras como as de Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez para compreender o outro lado que Buarque de Holanda e Gilberto Freyre não contemplaram.
E chegamos no século XXI como resultado de tudo isto, em um cenário obscurantista negando a ciência que tanto nos ajudou a sermos um país industrializado, negando que somos violentos, racistas, sexistas e ainda sem um projeto de país. E a pandemia ainda agravou muito mais estas desigualdades econômicas, raciais e de gênero: 14 milhões de pessoas desempregadas e voltamos para o mapa da fome.
Que projeto de país temos para o futuro? Ainda não sabemos. Daí a importância de erradicarmos a polaridade política atual e discutir questões estruturais do nosso país, apontadas no decorrer deste artigo. Se faz urgente a união de vários setores da sociedade brasileira – intelectuais, políticos, organizações, sociedade civil organizada, partidos, sindicatos e as pessoas que estão nas redes sociais para construirmos um projeto de país para o século XXI. Do jeito que estamos, cada dia nos tornamos chacota mundial.
Kelly Quirino é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasilia (UnB), Mestre em Comunicação Midiática e Jornalista Diplomada pela Universidade Estadual Paulista. Pesquisa jornalismo, relações raciais e diversidade.
El País: Carolina Maria de Jesus, para além dos clichês
Uma exposição no Instituto Moreira Salles e a reedição de seus textos pela Companhia das Letras devolvem à atualidade a autora de ‘Quarto de despejo’
Naiara Galarraga Gortázar / El País
Se fosse uma personagem de conto de fadas, seria uma Cinderela sem frescuras. Negra. Durante seis meses, em 1960, o livro mais vendido do Brasil foi um diário em que Carolina Maria do Jesus relatava com toda crueldade sua miserável subsistência, a batalha cotidiana contra a fome, a busca incansável de papelão no lixo para reunir alguns trocados com os quais alimentar seus três filhos. Quarto de despejo é um retrato das favelas iluminado por uma moradora com dois anos de escolaridade. Foi um fenômeno editorial, um best-seller. Uma exposição recém-inaugurada em São Paulo e a reedição de seus escritos sem a ingerência dos editores trazem novamente à atualidade uma obra que abrange crônica, romance, contos, teatro, letras musicais… e vai além do clichê.
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é uma personagem extraordinária. Neta de um homem escravizado que tinha o apelido de Sócrates africano, era uma leitora voraz dos clássicos da literatura romântica e foi empregada doméstica antes de virar catadora de papelão. Centrada na sua missão de conseguir pão, leite, feijão e sapatos para a prole, ouvia valsas vienenses e sempre tirou tempo para ler.MAIS INFORMAÇÕESEstante EL PAÍS | Reedições de Carolina Maria de Jesus e mais mulheres nas leituras de agosto
Em 21 de julho de 1955 escreve no diário que serve de base a Quarto de despejo: “Quando cheguei em casa eram 22h30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei a comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Eu gosto de manusear um livro. O livro é a maior invenção do homem”. Estava decidida a que seus cadernos fossem publicados, como deixou anotado em 27 de julho: “Estou escrevendo um livro, para vender. Minha intenção é comprar um terreno com esse dinheiro e sair da favela”.
Conseguiu se mudar quando os escritos que guardava foram descobertos pelo jornalista Audálio Dantas, que visitou a favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, para fazer uma reportagem. Com drásticos cortes para aliviar a onipresença da fome no original —Dantas dizia que “aparece com uma frequência irritante”—, publicou aquele relato. Causou sensação. A história dessa mãe solteira era um poderoso contraponto ao discurso do Brasil moderno, do futuro, que tinha em Brasília, a nova capital, inaugurada também 1960, o grande símbolo de seu progresso.
A partir da sua vida, a catadora analisa uma miséria que ainda hoje atravanca o caminho do país. Vendeu meio milhão de cópias. Ela e seus filhos deixaram para trás a favela, um mundo que descreve como uma luta constante, de moradores que se roubavam uns aos outros e vizinhas fofoqueiras. Mudou-se para um bairro de classe média. Autografava exemplares. Quarto de despejo foi traduzido em 13 idiomas (incluído o espanhol, em três versões, e o catalão), chegou a leitores soviéticos, japoneses… A Cinderela negra apareceu até mesmo na Time.
A exposição recém-inaugurada no IMS-SP se chama Um Brasil para os brasileiros. O museu quis abrir o foco para mostrar a autora em toda a sua diversidade e riqueza. “Foi uma leitora voraz e uma escritora com um projeto estético literário definido, que passou por vários gêneros. Escrevia diariamente”, diz uma das curadoras, da exposição, a historiadora Raquel Barreto, destacando que “em cada um desses gêneros é uma Carolina diferente, o que diz muito da sua complexidade como autora. A poeta não é como a narradora, nem como a cronista, nem como a contista. Também vemos isso no seu trabalho como compositora”.
Na manhã de último domingo, Letícia Montsho, cantora e atriz de 26 anos, era uma dos dois únicos visitantes negros na exposição. Observava cada detalhe com emoção. Para ela, é algo pessoal. A escritora recorda as penúrias que sua avó sofreu, sua coragem, os desafios cotidianos. Descobriu Carolina Maria de Jesus já adulta, através do teatro, porque na escola não é estudada. “Foi necessário que ela existisse para que eu estivesse hoje aqui”, diz.
A antiga catadora de papelão publicou outros três livros em vida, mas com o tempo as vendas caíram, o dinheiro voltou a minguar, e morreu pobre. Barreto e o outro curador, o antropólogo Hélio Menezes, mergulharam num legado distribuído em vários arquivos públicos. Descobriram originais que mostram até que ponto os editores distorceram sua obra, 80% da qual permanece inédita. São 6.000 páginas manuscritas.
Por coincidência ou pelo impulso de renovação que os protestos antirracistas e o Me Too trouxeram também à cultura, a exposição, que fica em cartaz até 30 de janeiro, ocorre simultaneamente à reedição das obras de Carolina Maria de Jesus pela Companhia das Letras. São textos publicados agora com a grafia original, sem necessariamente seguir a norma culta da língua. Não é que ela tenha tido menos escolaridade que a média. Estudar apenas dois anos era o normal entre as mulheres negras da época, porque o futuro se limitava a catar papelão, lavar, passar ou criar os filhos dos outros…
Com o tempo, a autora de Quarto de despejo caiu num esquecimento quase generalizado. Mas algumas mulheres negras viram nela uma referência. “É a fundadora de uma linhagem, inspirou outras a escreverem”, destaca o curador Menezes. Abriu um caminho pelo qual nestas décadas transitaram escritoras como Conceição Evaristo, a literatura das periferias, mulheres rappers ou poetas do slam improvisado… Algumas delas também foram empregadas domésticas. Batalharam e batalham para serem levadas a sério. Carolina Maria de Jesus é mais estudada em universidades dos Estados Unidos que no Brasil, salienta Menezes.
A mostra também abre o foco no sentido literal, porque resgata fotografias inéditas ou pouco conhecidas que se chocam com as imagens mais difundidas, as de uma mulher cabisbaixa, com um lenço branco ocultando o cabelo crespo. Houve outra Carolina Maria de Jesus. A que posa com os vestidos elegantes que tanto ansiou possuir, colar de pérolas e os cachos ao ar, sorridente.
Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/cultura/2021-10-08/carolina-maria-de-jesus-a-escritora-da-favela-que-virou-fenomeno-editorial.html
Deputado baiano propõe criação de mês de combate ao racismo religioso
Só nos primeiros nove meses deste ano, 19 casos de intolerância religiosa foram denunciados na Bahia
Dindara Ribeiro / Agência Alma Preta
Com objetivo de implementar políticas públicas que garantam o respeito e direito à liberdade religiosa, o deputado baiano Hilton Coelho (PSOL) acaba de apresentar um projeto de lei (PL) estadual que propõe a criação do "Janeiro Verde", mês voltado para o combate ao racismo religioso na Bahia.
O texto sugere que, durante todo o mês, o Governo da Bahia e demais órgãos estaduais realizem ações de combate, prevenção e conscientização sobre o racismo religioso através de palestras, rodas de conversa, campanhas publicitárias, debates, além de produções artísticas e culturais. O PL também destaca os direitos constitucionais da liberdade religiosa no país e sugere que a Secretaria da Educação fique responsável por promover ações educativas nas escolas a fim de valer as estratégias do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e índigena e o desenvolvimento de um regime de proteção à liberdade religiosa e à laicidade na educação pública.
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"Queremos, com esse projeto, provocar que as instituições públicas dos três poderes se comprometam com diversas formas de contribuição com o debate público sobre o racismo religioso, que é um crime de ódio e fere a liberdade e a dignidade humana. Mas, mais do que isso, queremos também que nesse compromisso institucionalizado o foco seja o protagonismo dos povos de religião de matriz africana na luta por sua memória ancestral. Então uma lei como essa, que determina a difusão do conhecimento sobre esse tema, ajuda a fissurar, de alguma forma, o racismo institucional, quando obriga as próprias instituições a promoverem ações refletidas e políticas públicas de combate a esse crime", disse Hilton à Alma Preta Jornalismo.
Na Bahia, as vítimas de intolerância religiosa e racismo são acompanhadas pelo Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado (Sepromi). Só nos primeiros nove meses deste ano, 19 casos de intolerância religiosa foram registrados pelo Centro. Em 2020, foram 29 ocorrências em todo o ano. No total, já são 270 casos de intolerância religiosa acompanhados desde a implementação do Centro, em 2013.
O preconceito religioso é considerado crime, conforme previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989. A pena para o crime varia de um a três anos, além da aplicação de multa. Em junho deste ano, a justiça da Bahia teve a primeira condenação em segunda instância por crime de intolerância religiosa contra uma evangélica. De acordo com a denúncia do Ministério Público, Edneide Santos de Jesus hostilizava candomblecistas do Terreiro Oyá Denã, localizado na região Metropolitana de Salvador, com sucessivos abusos racistas e expressões preconceituosas como a atribuição dos orixás à satanás. A mãe de santo do terreiro, ialorixá Mildredes Dias, conhecida como Mãe Dede de Iansã, morreu em 2015 e familiares atribuem a piora na saúde da religiosa aos constantes ataques feitos pela evangélica.
Um dos casos mais fatídicos de intolerância religiosa na Bahia e que se assemelha ao caso da Mãe Dede de Iansã foi a morte da ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, mais conhecida como Mãe Gilda de Ogum e fundadora do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador. Mãe Gilda também teve a saúde agravada por causa de ataques verbais, morais e físicos causados por membros da igreja Universal.
Em um dos ataques, evangélicos chegaram a invadir o terreiro dizendo que iriam "exorcizá-la". Mãe Gilda morreu no dia 21 de janeiro e a sua morte marca o Dia de Luta Contra a Intolerância Religiosa, data nacional em vigor desde 2007.
Diante do caso, o Supremo Tribunal de Justiça condenou a Igreja Universal a indenizar os familiares da ialorixá por danos morais e uso indevido de imagem, já que os evangélicos também usaram fotos e notícias falsas para difamar Mãe Gilda.
"Estamos num momento de acirramento do ódio e da efetivação de necropolíticas. E isso não está somente no plano nacional. Aqui na Bahia temos visto várias ações do governo Rui Costa que contribuem com o racismo estrutural. Então com tudo que o projeto poderá acionar, do ponto de vista do debate público e da conscientização sobre o racismo religioso, ações como a privatização dos parques públicos e áreas de proteção ambiental, como quer o governo do Estado, ou ainda a construção do elevatório de esgoto na Lagoa do Abaeté, por exemplo, com certeza serão temas colocados em pauta nessa agenda pública pelos movimentos populares contra o racismo religioso", completa o deputado.
Fote: Agência Alma Preta
https://almapreta.com/sessao/cotidiano/janeiro-verde-deputado-baiano-propoe-criacao-de-mes-de-combate-ao-racismo-religioso
'Cotas fizeram negros saírem das páginas policiais e virarem colunistas'
Tema agora interessa a grande parte da sociedade, incluindo empresários, afirma José Vicente, reitor da Zumbi dos Palmares
Matheus Moreira / Folha de S. Paulo
Em 2019, pela primeira vez os negros se tornaram a maioria dos estudantes nas universidades públicas brasileiras —um marco na luta contra a desigualdade racial.
Para José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, a explicação para isso é a lei de 2012 que instituiu as cotas obrigatórias nas instituições públicas de ensino superior.
A regra estabelece que as universidades precisam reservar vagas para estudantes autodeclarados negros e indígenas e para pessoas com deficiência de acordo com a proporção desses grupos na população do estado onde está localizada.
A legislação prevê que, após uma década, os resultados da política deveriam ser avaliados pelo Ministério da Educação e pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. De acordo com Vicente, até agora não houve manifestação do governo federal sobre a divulgação dos resultados para avaliação da sociedade civil.
Faltando apenas três meses para 2022, ano limite para a revisão, a Faculdade Zumbi dos Palmares lançará a campanha “Cotas Sim!” na próxima terça (5) em evento no qual serão apresentados os projetos de lei que tramitam no Senado e na Câmara com o objetivo de pautar com urgência a discussão sobre a renovação do mecanismo.
Para Vicente, as chances de renovação são boas,”As cotas deixaram de ser algo de interesse dos negros e passaram interessar parte expressiva da sociedade brasileira”, disse em entrevista à Folha por telefone.
Onde a Lei de Cotas acertou? Acertou por ser uma política de governo com uma agenda, até então, inexpugnável. Foram 130 anos batendo na mesma tecla. As cotas são um grande acontecimento político, econômico e histórico.
Em segundo lugar, o ambiente do ensino superior não estava preparado para lidar com essa lei. As cotas mudaram a estrutura do ensino superior público, e depois privado, do país. Foi necessário que se adequassem e reestruturassem.
Além disso, graças às cotas ampliamos, em tempo recorde, de 2% para quase 15% a quantidade de negros nas universidades. Pela primeira vez na história estamos vendo esse grupo de brasileiros não só entrar mas permanecer e sair da universidade aplicando esse conhecimento. Sob todos os aspectos, as cotas são e continuam sendo uma grande vitória.
Na avaliação do senhor, quais foram as falhas dessa política? Em certa medida, as limitações da política são as mesmas antes e depois da lei. Os negros brasileiros precisam de mecanismos para se manter no curso, porque esse público vem de um padrão econômico e social diferente. Sem auxílio à moradia, auxílio à locomoção, acesso a livros e até alimentação, uma parcela dos estudantes não tem condições econômicas de permanecer na universidade.
A lei atendeu algumas necessidades, mas não padronizou o acesso a essas instrumentações. Esse é um dos problemas mais sérios, um equívoco não tratado na lei.
Outra ação que deve ser aprimorada é a formatação sobre quem é e quem não é negro. Houve certa confusão a princípio porque algumas instituições criaram mecanismos próprios. A lei, agora, talvez possa definir melhor essas ferramentas.
E quanto aos fraudadores de cotas? Essa é uma questão significativa que surgiu na esteira da ausência de padronização. Muitos usaram variados subterfúgios para fraudar a lei, criando um problema de difícil solução, porque não havia ação preventiva definida. Muitos entraram, fraudaram e nada lhes aconteceu. Isso colocou dúvidas sobre a lisura do processo.
A formulação da lei foi ingênua por não cogitar a possibilidade de fraude? A lei desconsidera essa hipótese. Achava-se que todos estariam bem intencionados e que não seria necessário haver padronização sobre como proceder em situações dessa natureza.
De qualquer forma, os dez anos da lei nos permitiram criar parâmetros muito bem definidos para esse tipo de avaliação. Se renovada, a lei pode se inspirar nas boas práticas instituídas pelas universidades que expulsaram os alunos fraudadores e tiveram a expulsão confirmada pela Justiça.
A própria USP expulsou um aluno fraudador pela primeira vez em 2020… Exatamente! As instituições foram capazes de fazer valer a lei. O caso da USP é muito simbólico.
Sobre as bancas de heteroidentificação, quais os erros e os acertos? As bancas se saíram bem até aqui, considerando que o nosso racismo não é apenas de ancestralidade, mas de cor de pele. Foi necessário criar um mecanismo para evitar fraudes e os primeiros apresentaram equívocos e situações inadequadas, mas os dez anos da lei nos ajudaram a operar essa ferramenta com mais efetividade.
O problema continua sendo crucial e ainda é difícil de solucionar, tem havido poucas reclamações diante dos resultados das bancas. Esse instrumento se aprimorou e mostrou ser capaz de resolver as questões que se apresentam, mas sempre há necessidade de aprimoramento.
É possível dizer que o aumento de negros nas universidades reflete positivamente na economia? Não tenho dúvida disso. Os fundamentos econômicos sempre condicionaram a capacidade do desenvolvimento do país ao talento, inventividade e habilidade dos seus recursos humanos, e isso é o que temos de sobra em todos os espaços nos quais negros puderam atuar de forma autônoma e libertária.
Deixar os negros e todo seu talento de fora da universidade é uma medida desinteligente, além de cercear a produção, crescimento e desenvolvimento do país.
O Brasil preferiu fechar os olhos e tratar apenas de uma elitezinha muito limitada e que nem sempre entregou aquilo que poderia entregar. No fim das contas, poucos usaram suas habilidades ali adquiridas para ajudar a resolver os problemas do país.
O que vão sugerir na campanha pela renovação da Lei de Cotas? A primeira reivindicação é de que seja renovada. A aplicação da lei precisa ser avaliada para que saibamos quais são os seus problemas e limitações. O fato é que essa ação está a cargo do governo federal.
A lei diz que o governo deveria fazer a avaliação, mas isso não foi feito e dificilmente o Ministério da Educação terá tempo hábil para fazer. Só será possível fazer uma avaliação quando tivermos acesso ao inventário com os resultados dos dez anos da lei, mas o governo ainda não o disponibilizou.
Sabemos que há cursos em que as cotas não foram cumpridas integralmente, como medicina, mas não sabemos o motivo. Por outro lado, nas áreas de humanas as cotas foram muito bem precisamos compreender por que isso aconteceu, se é preferência, vocação ou por ser mais palatável.
Também precisamos saber quantos estudantes entraram nas universidades por cotas e permaneceram. E se não permaneceram, por quê? Foi racismo? Dificuldades econômicas?
E a diversidade precisa ser vertical, da gestão ao corpo técnico. Isso aconteceu? Não. Avançamos apenas no ingresso de estudantes negros. Nas quase 200 universidades publicas federais temos apenas quatro reitores negros. Professores e pesquisadores negros podem ser contados nos dedos.
Avalia que será mais difícil discutir a Lei de Cotas no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) do que foi no primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT)? Por incrível que pareça, acho que será mais fácil. Em 2012, nós caminhávamos em direção ao desconhecido, e isso nos dava medo. Temia-se que houvesse um conflito e até que as pessoas pegassem em armas. Havia todo tipo de teoria. Vencer tudo isso exigiu um esforço sobre-humano.
No entanto, se houve motivos para desânimo, isso ficou lá atrás, porque hoje, dez anos depois, desmistificamos os medos e confirmamos o que se dizia: a universidade é, por natureza, o espaço de sanar conflitos.
Não houve queda na qualidade. Os cotistas, agora com oportunidades, superaram seus colegas brancos. Os negros entraram, mantiveram o nível e o elevaram. Tudo isso permitiu que pudéssemos ampliar e levar as cotas para juízes, promotores, na Petrobras e até em cartórios, por exemplo. O Brasil avançou ao abraçar as cotas como uma política vitoriosa.
E quanto às empresas, como a Magazine Luiza, que também adotaram cotas? Vimos um outro movimento que referencia as cotas nascer. Veja, vamos lançar a campanha pela renovação na terça (5), e 40 empresas estão entre os apoiadores da renovação. As empresas em sua maioria nem aceitam que exista racismo, mas as mudanças foram tão profundas que hoje há brancos conosco. Pense que estamos falando da segunda turma de trainees da Magazine Luiza. Há uma semana tínhamos a informação de que a Folha pela primeira vez terá negros em seu conselho editorial. Ao ler a Folha de dois anos atrás e a Folha de agora, você verá pelo menos dez colunistas negros em todos os cadernos e tratando as questões negras.
Os negros saíram das páginas policiais e viraram colunistas, sobretudo na Folha. Tudo isso é fruto desse amadurecimento da lei. Essa política pública ajuda a cumprir os fundamentos da própria República, da democracia e do Estado democrático de Direito, que é de igualizar por meio da oportunidade os direitos de negros e brancos num país rachado pelo racismo estrutural.
As cotas deixaram de ser algo de interesse dos negros e passaram a ser de interesse de parte expressiva da sociedade brasileira, incluindo o próprio ambiente empresarial.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/10/cotas-fizeram-negros-sairem-das-paginas-policiais-e-viraram-colunistas-diz-reitor-da-zumbi-dos-palmares.shtml
Arquivo S: Fazendeiros tentaram impedir aprovação da Lei do Ventre Livre
Uma das precursoras da Lei Áurea, Lei do Ventre Livre completa 150 anos
Ricardo Westin / Agência Senado
Neste mês, a Lei do Ventre Livre completa 150 anos. Uma das precursoras da Lei Áurea, a norma determinou que, de 28 de setembro de 1871 em diante, as mulheres escravizadas dariam à luz apenas bebês livres. De acordo com a lei, não nasceria mais nenhum escravizado em solo brasileiro.
Os deputados aprovaram o projeto da Lei do Ventre Livre em três meses e meio. Os senadores, logo depois, em apenas três semanas. A lei foi imediatamente sancionada pela princesa Isabel, que dirigia o Império em razão de uma viagem de D. Pedro II ao exterior.
— Congratulo-me convosco pela lei que decretastes a bem da extinção gradual do elemento servil — discursou a princesa regente aos deputados e senadores. — Esta reforma marcará uma nova era no progresso moral e material do Brasil. Tenho fé que seremos bem-sucedidos, sem prejuízo da agricultura, nossa principal indústria, porque esse cometimento é a expressão da vontade nacional inspirada pelos mais elevados preceitos da religião e da política.
Apesar de rápida, a votação da Lei do Ventre Livre no Parlamento foi tumultuada e conflituosa. Documentos da época hoje guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que houve parlamentares — alguns por questões políticas e partidárias, outros por convicções escravistas — que resistiram ao projeto de “extinção gradual do elemento servil” e se mobilizaram para derrubá-lo ou pelo menos atrasá-lo.
— O projeto fica apresentado, mas tenho a crença que é para ver e constar e que ele precisa morrer — sentenciou o senador Silveira da Mota (GO).
— Qual será o motivo desta urgência? Haverá, porventura, alguma razão oculta que não possa ser revelada ao corpo legislativo? Eu digo que estas medidas podem, sim, ser discutidas em outra sessão [em outro ano] sem nenhum inconveniente — pressionou o senador Joaquim Antão (MG).
Os bebês, na realidade, não seriam tão livres assim. Grosso modo, a Lei do Ventre Livre estabeleceu que os filhos permaneceriam junto da mãe, vivendo no cativeiro e trabalhando para o senhor dela, até completarem 21 anos. Na prática, eles só ganhariam a liberdade na idade adulta.
O trabalho que os filhos prestariam ao longo dos anos gratuitamente ao fazendeiro serviria de compensação pelos gastos com a criação (teto, comida, roupa etc.) e também de indenização pela perda compulsória da “propriedade”.
Na visão dos adversários da proposta, um dos problemas seria a futura convivência de duas classes distintas de negros — os livres e os escravizados — dentro da mesma fazenda, o que fatalmente estimularia rebeliões negras pelo Brasil afora.
Um dos porta-vozes desse discurso do medo, o senador Visconde de Itaboraí (RJ) explicou:
— Estas disposições não podem deixar de produzir descontentamento nos escravos. Não estão eles tão embrutecidos que não conheçam que o mesmo direito que têm os filhos vindouros devem ter seus pais? Que o mesmo princípio que determina a liberdade de uns deve determinar a dos outros? Que se o legislador não a dá aos que ficam na escravidão é porque seus senhores a isto se opõem? Esta ideia há de inspirar nos escravos sentimentos de aversão, irritá-los contra os seus senhores. E daí hão de vir a agitação, a insubordinação, a destruição, a desorganização do trabalho e, nem ouso dizê-lo, as desgraças que todos nós podemos imaginar e prever.
Contra o projeto de lei, ele apelou até para argumentos de humanidade:
— Os nascituros deverão servir como os outros escravos e conviverão com eles, sujeitos aos mesmos castigos e sofrimentos. Na prática, serão escravos. Não entra na minha pobre inteligência a ideia de homens livres sujeitarem-se a trabalhar para outrem como escravos e sem remuneração alguma até a idade de 21 anos. Será isto motivo de contínuas tramas entre eles e os escravos para se libertarem da escravidão. Não haverá um só fazendeiro sensato que, pensando nas agitações e na perda de força moral que há de sofrer, queira sujeitar-se a conservá-los em suas fazendas.
O Visconde de Itaboraí garantiu que os fazendeiros do Brasil tinham bom coração e que não era por perversidade que eles se opunham à proposta de libertar o ventre:
— Se a liberdade dos nascituros não trouxesse consigo tais perigos, acredito que não haveria proprietário que não estivesse muito disposto a libertar todas as crias que lhe nascessem de agora em diante.
Anterior à Lei do Ventre Livre, outra norma precursora da Lei Áurea foi a Lei Eusébio de Queiroz, que em 1850, por pressão britânica, proibiu os portos brasileiros de receber navios negreiros procedentes da África. Por causa dela, uma das fontes de mão de obra escravizada secou. A fonte que se manteve foi a do nascimento de bebês escravizados em solo brasileiro.
Na avaliação de Joaquim Antão, o Brasil erraria se também secasse a segunda fonte sem antes tomar as devidas “medidas preparatórias”:
— Todo mundo sabe que, desde a extinção do tráfico, estava julgada a questão da escravidão no Brasil. Mas, se nós quiséssemos que ela chegasse ao seu resultado sem grandes inconvenientes, teríamos que ter tomado a necessária previdência. Era preciso que existisse o ensino do filho dos escravos, como se praticou nas Antilhas. Me refiro ao ensino religioso e moral e ao ensino das primeiras letras. Alguma vez constou ao Senado que se aconselhasse aos presidentes de província que promovessem o estabelecimento de escolas próprias para os filhos dos escravos? Até há em algumas províncias legislação que proíbe que os filhos dos escravos vão aprender a ler nas escolas públicas.
Para reforçar que a Lei do Ventre Livre era inconveniente naquele momento, ele fez uma comparação catastrofista:
— O movimento emancipador é como o da locomotiva. Se o maquinista lhe dá toda a força sem as necessárias cautelas, não há freios que a contenham, e ela precipita-se fora dos trilhos e arroja ao abismo todos os passageiros.
Contra a proposta, Silveira da Mota trouxe outro argumento. Segundo ele, ninguém parecia ainda ter-se dado conta de que esses bebês negros se transformariam no futuro em cidadãos, o que seria inadmissível:
— Devemos não esquecer que a liberdade é um direito que tem consequências. A mais preciosa é o direito de sair dos domínios da escravidão para um outro em que o escravo fica com direitos quase iguais e a certos respeitos iguais aos do senhor. Note-se que temos diante dos olhos um futuro próximo de intervenção dos libertos no direito de votar. Teremos uma massa imensa de cidadãos brasileiros e africanos que hão de querer dar o seu voto nas assembleias paroquiais.
O senador Vieira da Silva (MA) ficou chocado:
— É verdade, podem até ser vereadores. Até sem nem saberem ler e escrever.
O senador Fernandes da Cunha (BA) foi taxativo:
— Eu não concedo direitos políticos aos libertos.
Silveira da Mota então concluiu seu raciocínio:
— Eu, que vejo essa massa negra com direitos políticos nas mãos do governo, não posso deixar de ter apreensões. É uma questão sobre a qual este projeto devia ter dado uma providência. É uma lacuna que deve ser preenchida.
Outro adversário do projeto, o senador Barão das Três Barras (MG) advertiu aos colegas que a libertação do ventre, ao invés de acalmar, inflamaria perigosamente o movimento abolicionista:
— Consagre-se em lei a ilegitimidade do nascimento escravo, como se pretende fazer, declarando ingênuos [livres] os que nascerem da data da lei, e a propaganda [abolicionista] terá direito de exigir a aplicação aos já nascidos.
Ele repetiu a ideia corrente na época de que a escravidão era um mal, mas no Brasil um mal necessário, por ser a base da cafeicultura de exportação:
— Não se pense que defendo a legitimidade da escravidão. Considero-a um fato que não podemos fazer desaparecer repentinamente e que por isso mesmo se conserva. Enquanto se conserva, não se convém desmoralizar. Os lavradores são os únicos que trabalham para encher os cofres públicos.
De acordo com os documentos do Arquivo do Senado, organizações de fazendeiros, como o Clube da Lavoura, enviaram aos senadores 11 representações contra o projeto da Lei do Ventre Livre. Algumas apontavam o risco de caos social e econômico no Império. As petições somaram 2 mil assinaturas.
Do outro lado da trincheira parlamentar, os defensores do projeto contra-atacaram com diversos argumentos favoráveis à liberdade do ventre. Um deles seria que, àquela altura do século 19, a escravidão já se tornara indefensável e que era mais conveniente que a libertação viesse a conta-gotas e sob o controle do governo. O pior cenário, disseram, seria a abolição chegar de supetão e forçada pelas circunstâncias, libertando todos os escravizados do Império e pegando os fazendeiros de surpresa.
Seguindo essa linha de raciocínio, o ministro da Agricultura, Teodoro da Silva, disse aos senadores:
— Na Inglaterra, é sabido que, por não ter o governo em princípio tomado a si a direção da opinião pública sobre a questão da emancipação dos escravos, resultaram as insurreições graves que perturbaram algumas de suas colônias, como a Jamaica. Foram insurreições que só com grande custo e sacrifício de dinheiro e sangue a metrópole pôde extinguir. Depois disso, só em 1833, o governo inglês, amestrado por tão dura experiência, foi que se resolveu a cuidar séria e eficazmente da solução do problema da extinção do elemento servil nas colônias. No Brasil, o governo deve dirigi-la, esta é a verdade, para que não tenha de lamentar fatos como aqueles ocorridos nas colônias inglesas.
O ministro da Agricultura apresentou o possível cenário do Brasil se a abolição viesse abruptamente:
— Semelhante solução traria, no dia em que a emancipação se realizasse, uma completa deslocação no trabalho agrícola, perturbação esta cujos resultados não nos é possível calcular com precisão. Em um dia, 1 milhão de escravos, suponhamos, seriam libertos, mas seriam 1 milhão de homens que não são afeitos ao trabalho livre e fugiriam das fazendas com horror pelas reminiscências do cativeiro. E a ruína dos proprietários e o empobrecimento do Estado seriam completos.
O senador Nabuco de Araújo (BA) resumiu:
— Não quereis os meios graduais? Pois bem, haveis de ter os meios simultâneos. Não quereis as consequências de uma medida regulada pausadamente? Haveis de ter as incertezas da imprevidência. Não quereis os inconvenientes econômicos das Antilhas francesas? Podeis ter os horrores de São Domingos [no Haiti, os escravizados fizeram uma revolução, declararam o país independente e aboliram a escravidão]. A inação é incompatível com o atual estado das coisas. É preciso resolver, e não adiar a questão.
Na avaliação do senador Figueira de Melo (CE), o governo imperial fez bem em não propor ao Parlamento a abolição imediata, pois isso exigiria indenizar os senhores pela perda da “propriedade”:
— Se nós quiséssemos de uma só vez, por uma simples penada, acabar com a escravidão, teríamos ao mesmo tempo a rigorosa obrigação de previamente, na forma da Constituição do Império, indenizar a todos os proprietários com valor correspondente a cada escravo. Mas a nação estaria em circunstâncias de fazer tão grande sacrifício? Poderíamos ter rendas, meios ou impostos suficientes para pagar esses valores? E, se tivéssemos de contrair um empréstimo, que deveria ser avultadíssimo, não levar-nos-iam os respectivos juros quase toda a renda com que atualmente contamos? Decerto.
Uma parte dos escravocratas do Império, mais pragmática, apoiou o projeto. Esse grupo compreendeu que a proibição da entrada de africanos no Brasil, o fim do nascimento de escravizados em território nacional e a concessão e compra de cartas de alforria já seriam medidas suficientes para fazer a escravidão chegar naturalmente ao fim em algum momento do início do século 20. Isso, para eles, descartaria a necessidade de uma temida Lei Áurea.
— É medida [a libertação do ventre] que, por si só, trará o resultado desejado. Desde o dia seguinte da lei, a escravidão começará a diminuir — discursou o senador Visconde de São Vicente (SP). — A lei tratará uma nova ordem coisas sem abalo. Como não se trata de uma emancipação simultânea ou em massa, não se toca no que existe, não se aniquilam os braços, não se desorganiza o trabalho. Por que, pois, tanto temor?
Algum senador adversário da Lei do Ventre Livre chegou a propor que, no lugar dela, se marcasse a abolição definitiva da escravidão para 1900. Seria uma forma de os fazendeiros mais refratários às mudanças empurrarem a solução para uma época em que provavelmente já não estariam vivos. Nabuco de Araújo rechaçou a ideia:
— Eu não sou contrário à ideia do prazo, não como substitutiva da ideia do projeto, mas como complementar dela. Depois de algumas décadas [da aprovação da Lei do Ventre Livre], ainda poderá haver escravidão, mas a escravidão quase morta, a escravidão desfalecida pelos muitos nascimentos livres e pelos muitos óbitos. Consistindo a escravidão pela maior parte em velhos, não se dará [no futuro] o perigo que se daria hoje com a emancipação simultânea, imediata.
Outro argumento favorável à Lei do Ventre Livre era que o Brasil, se não começasse logo a encaminhar a questão escrava, fatalmente viveria a mesma situação dos Estados Unidos, que poucos anos antes mergulhara numa sangrenta guerra civil motivada pelas divergências entre os estados do norte e os do sul em relação à escravidão. A Guerra de Secessão chegou ao fim com a vitória dos estados do norte e a abolição do trabalho escravo em todo o território americano.
Um dos senadores que recorreram a essa argumento foi Sales Torres Homem (RN). Um dos mais ferrenhos críticos da escravidão, ele era filho de um padre branco e uma quitandeira negra alforriada. O senador, contudo, nunca se identificou como negro. Ele discursou:
— Pergunte-se o que aconteceu a esses arrogantes plantadores do sul dos Estados Unidos, que, repelindo todos os compromissos e emperrados em suas ilusões, blasonavam [vangloriavam-se] de dilatar os territórios da escravidão desde o túmulo de Washington até o palácio de Montezuma. Quando menos esperava-se, o edifício desabou sobre eles, sepultando-lhes as fortunas inteiras debaixo das ruínas ensanguentadas por uma guerra devastadora.
O senador Zacarias de Góis e Vasconcelos (BA) afirmou que o Império estava prestes a se tornar um pária internacional. Naquele momento, apenas o Brasil e Cuba insistiam em manter a escravidão na América — a Espanha, porém, já preparava a abolição em sua colônia caribenha. Ele disse:
— Enquanto a grande republicana americana tinha escravos, podia-se relevar à Monarquia o manter essa instituição, mas logo que os acontecimentos de que todos temos notícia impeliram o Norte a empunhar as armas contra o Sul e batê-lo até de todo extinguir a escravidão, nesse dia nós não tínhamos mais escusas. Então, ficando o Brasil país único escravocrata na América, não era possível manter-se entre nós semelhante situação. Nem era preciso que empunhassem armas para compelir-nos a dar um passo no sentido da emancipação; bastava o riso do mundo, bastava o escárnio de todas as nações apontando para o Brasil como país amigo da escravidão, disposto a mantê-la indefinidamente.
De acordo com o Visconde de São Vicente, a escravidão prejudicava inclusive as famílias dos fazendeiros:
— Pelo que toca à segurança externa, é uma nociva causa de enfraquecimento das forças do Estado. Se em vez de 1 milhão de homens escravos, tivéssemos mais esse número de trabalhadores livres, só daí poder-se-ia tirar um exército. O que acontece, porém, é que a população escrava fica nos estabelecimentos dos senhores, e o recrutamento vai pesar sobre o filhos da lavoura. Foi o que aconteceu na Guerra do Paraguai.
Os documentos históricos do Arquivo do Senado mostram que, no dia da votação do projeto da Lei do Ventre Livre, o Senado estava lotado de espectadores, que vibraram no momento da aprovação. “Das galerias caem flores, de que fica juncado o recinto, e os espectadores prorrompem em prolongados e estrepitosos vivas ao Senado brasileiro”, descreveu o taquígrafo. O presidente da Casa, irritado, acionou a campainha diversas vezes exigindo silêncio, já que o regimento não permitia sinais de manifestação dos espectadores.
A socióloga Angela Alonso, professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Flores, Votos e Balas — O movimento abolicionista brasileiro (Editora Companhia das Letras), explica que o Ventre Livre foi mais uma norma da série “leis para inglês ver”.
— A Lei do Ventre Livre não teve o resultado prático que seria o mais óbvio: a liberdade dos bebês. Quem nasceu em 1871 só se tornaria efetivamente livre em 1892, aos 21 anos de idade. A Lei dos Sexagenários, de 1885, foi outra lei para inglês ver. Os escravizados que completassem 60 anos ainda precisariam prestar três anos de serviços ao senhor antes de serem libertados. O movimento abolicionista foi decisivo para que o governo aprovasse essas leis. Diante da falta de resultados concretos, os abolicionistas aumentaram a pressão.
De acordo com Angela Alonso, é errônea a interpretação ensinada na escola de que D. Pedro II esteve continuamente determinado a eliminar a escravidão do Brasil:
— Essa interpretação, criada pelos próprios monarquistas e difundida até hoje, não se sustenta diante de uma pesquisa mais rigorosa. A escravidão e a Monarquia estavam profundamente interligadas. Uma dependia da outra. Em 1822, a elite optou por um Brasil unificado em torno de uma Coroa, e não dividido em várias Repúblicas, justamente porque a Monarquia era a garantia de que o regime escravocrata seria mantido. Em várias ocasiões, D. Pedro II teve a oportunidade de avançar com medidas abolicionistas, mas não o fez.
Ela lembra que, pouco antes de 1871, um primeiro-ministro do Partido Liberal propôs a libertação do ventre, mas a reação dos fazendeiros foi tão forte que D. Pedro II imediatamente o derrubou e nomeou um primeiro-ministro escravocrata do Partido Conservador. A questão só avançaria em 1871, com outro primeiro-ministro do Partido Conservador, mas agora da ala moderada.
Com a Lei dos Sexagenários, foi parecido. Antes de 1885, um primeiro-ministro do Partido Liberal pediu não só a libertação dos escravos mais velhos, mas também a concessão de direitos aos libertos, como salário mínimo e terras na beira de ferrovias. Diante da nova gritaria, D. Pedro II também o destituiu. No lugar, pôs mais um primeiro-ministro escravocrata do Partido Conservador, que aprovou uma Lei dos Sexagenários bastante desidratada.
— Não é verdade que a Monarquia levou a cabo uma abolição gradual que tinha como fim a Lei Áurea. Diante dos resultados pífios da Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexagenários, os abolicionistas perceberam que, se dependesse da boa vontade das instituições, a situação não se resolveria. Eles, então, adotaram ações cada vez mais ousadas e arriscadas, fomentando a fuga e a rebelião dos escravos. Os fazendeiros reagiram com armas e milícias. O Brasil ficou à beira de uma guerra civil. Em 1888, a Coroa se viu sem alternativa, a não ser aprovar a Lei Áurea. Mas, como uma sempre foi profundamente dependente outra, quando a escravidão acabou, a Monarquia ficou condenada a também acabar.
Angela Alonso avalia que certas questões da sociedade brasileira persistem desde a época da Lei do Ventre Livre:
— No passado, a briga era pelos direitos básicos dos escravizados. Hoje, a briga é pelos direitos básicos dos descendentes dos escravizados. Não me refiro apenas aos quilombolas, mas à população pobre como um todo, que é majoritariamente negra. Tanto antes como agora, a elite se movimenta para impedir a concessão de direitos sob o argumento de que não há verbas públicas suficientes, de que o Brasil quebrará se fizer reformas sociais, de que a prioridade do país é fortalecer o empresariado, os verdadeiros geradores de renda, de que é necessário primeiro crescer para só depois dividir o bolo. O comportamento da elite não mudou.
O medo expresso pelos senadores de que os beneficiários da Lei do Ventre Livre ganhassem direitos políticos plenos seria apaziguado uma década mais tarde. Em 1881, a Lei Saraiva proibiu os analfabetos de votar. A proibição só seria retirada da legislação brasileira em 1985.
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A seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira sexta-feira do mês no Portal Senado Notícias.
Mensalmente, sempre no dia 15, a Rádio Senado lança um episódio do Arquivo S na versão podcast, disponível nos principais aplicativos de streaming de áudio.
Reportagem e edição: Ricardo Westin Pesquisa histórica: Arquivo do Senado Edição de multimídia: Bernardo Ururahy Edição de fotografia: Pillar Pedreira.
Foto de capa: Pintura O Menino de Arthur Timótheo da Costa/MASP
Fonte: Agência Senado
https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/fazendeiros-tentaram-impedir-aprovacao-da-lei-do-ventre-livre
Por que as mulheres negras não podem parar de marchar
A luta do movimento das negras da Amazônia fica “imprensada entre o racismo do feminismo branco e o machismo do movimento negro”
Roberta Brandão / Amazônia Real
Belém (PA) – “Os nossos passos vêm de longe”, repetem como um bordão as mulheres negras. Na região Norte, mais especificamente na Amazônia paraense, a luta de mulheres negras é uma longa jornada que nasce a partir de lideranças ancestrais e se mantém viva até os dias atuais. Maria Felipa Aranha, liderança de um dos maiores quilombos do Brasil, o Mola, localizado em Cametá, nordeste do Pará, certamente foi uma das pioneiras. Na frágil documentação sobre o protagonismo das mulheres na maior revolução popular do país, a Cabanagem, surge o nome de outra Maria, Lira Mulata. As erveiras da Feira do Ver-o-peso, mulheres negras, afroamazônidas, remanescentes dos povos originários que usam a tecnologia de seu povo como uma espécie de contra poder se somam nessa caminhada. Assim como as militantes do Centro de Estudos do Negro do Pará (Cedenpa), associação composta 75% por mulheres negras, que combate o racismo há mais de quatro décadas.
Relembrar as Marias e tantas outras lideranças já se tornou uma tradição da Marcha das Mulheres Negras Amazônidas, que ocorre em Belém. Uma vez por ano elas saem às ruas da capital paraense para marcar os muitos passos longínquos e resistentes da caminhada de outras mulheres negras. Na sexta edição da marcha, foi o momento de celebrar as conquistas, mas também lutar pela garantia de direitos básicos.
A marcha anual em 25 de julho é uma alusão ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A importância da data surgiu em 1992, durante o 1º Encontro de Mulheres Negras, na República Dominicana. E no Brasil, a data celebra também o Dia Nacional de Tereza de Benguela, líder quilombola que resistiu à escravidão.
Neste ano, a marcha pode voltar a ser presencial, ao contrário de 2020, que precisou ser virtual por conta do momento de maior gravidade da pandemia do novo coronavírus. A satisfação de poder se reunir animou as cerca de 100 mulheres nas ruas e 20 na organização. Com máscaras PFF2 e álcool em gel, elas iniciaram a concentração da marcha no Quilombo da República (QR), um espaço preto simbólico. “A presença do QR, enquanto território de negritude é importante. Belém tem poucos espaços de negritude, a implementação do QR naquele espaço que, simbolicamente pela historiografia seria um antigo cemitério das pessoas escravizadas. A presença do QR é uma forma de demarcar o direito à cidade e a presença do território da negritude, por vezes, incomoda”, explica Maria Malcher, militante do Cedenpa há 11 anos.
O QR da República é um espaço de empreendedorismo e de manifestação da cultura afro. Atualmente, é um espaço que acolhe o coletivo de mulheres negras empreendedoras, Preta Paridas. São mais de 18 empreendimentos de mulheres pretas que vão desde tecidos vindo do continente africano até marcas autorais com designers amazônicos.
A luta nacional paraense
Na capital paraense, a Marcha das Mulheres Negras Amazônidas foi iniciada em 2016. A partir da articulação da juventude do Cedenpa com a Rede Fulanas Negra da Amazônia Brasileira (NAB), uma rede composta por 250 mulheres negras, com as presenças de representantes dos estados do Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Tocantins e Rondônia e da Amazônia maranhense. Mas os passos iniciais da organização dessa marcha foram iniciados um ano antes, em Brasília, quando cerca de 20 mil mulheres negras e não brancas invadiram a Esplanada do Ministério lutando por políticas públicas.
A proposta dessa articulação pioneira de mulheres negras no âmbito nacional, que resultou na Primeira Marcha de Mulheres Negras, partiu da intelectual preta paraense, Nilma Bentes. “A luta das mulheres negras fica imprensada entre o racismo do feminismo branco e o machismo do movimento negro”, explica Nilma, que nasceu em um bairro periférico de Belém e é uma das fundadoras do Cedenpa e cofundadora da Rede Fulanas.
Na verdade, a Marcha das Mulheres Negras foi proposta por Nilma Bentes algum tempo antes, em novembro de 2011, em um evento internacional que ocorreu na Bahia. Segundo a professora-émerita da Universidade Federal do Estado do Pará (UFPA), militante do movimento negro desde 1980, Zélia Amador de Deus, o mais importante no episódio da realização da Marcha das Mulheres Negras foi o processo de articulação que antecedeu o ato. “O momento preparatório da Marcha abriu a oportunidade do encontro. Ativou a participação das mulheres negras do Norte. Foi um período muito frutífero. Fui ao Amazonas, no Amapá. Até hoje, existem grupos criados nesse período que se mantêm ativos”, explica Zélia.
Bianca Alves, que esteve na Marcha Nacional em 2015, no Distrito Federal, agora, em Belém, no ano de 2021, segura nos braços a filha Zola Ayana Nzinga, de 7 meses. Trancista há 12 anos, integra o Cedenpa e o Pretas Paridas. À Amazônia Real, ela afirma que foi simbólico participar da Marcha acompanhada da filha. “Nossos passos vêm de longe e vamos fazer com que as nossas dêem continuidade nisso, que é a sobrevivência, a nossa luta diária, mas também esse encontro, onde tem troca de afeto, fortalecimento emocional, psicológico, afetivo e financeiro”, diz Bianca, enquanto se equilibra entre trabalhar, alimentar e trocar a fralda da pequena, com auxílio do companheiro.
O objetivo da Marcha é o de dar o protagonismo para as mulheres negras, e uma das formas é lutar pela visibilidade. Dentro do próprio movimento negro nacional, por vezes não se reconhece a negritude amazônica por causa da aproximação de território com a população indigena, explica Maria Malcher. Várias questões, assim, atravessam a Marcha, e uma delas é o racismo. “A gente não quer ser apenas cota, até porque a gente tem um modo de vida muito peculiar. A nossa negritude é diferente da do Rio Grande do Sul”, afirma. Ela considera um privilégio as mulheres negras amazônidas terem contato direto com mulheres indígenas.
Segundo o último Censo publicado no ano de 2010, são 97.348.308 mulheres vivendo no Brasil, sendo que 27,8% delas são negras. Mas na região Norte, elas somam 7.859.539 de mulheres, ou seja, 72,6% são mulheres negras. O Pará tem uma população feminina de 4.024.244 de mulheres negras (40,3%).
Para a professora Joana Chagas, a categoria raça é uma invenção do colonizador. “Isso é uma questão política do estado racista baseado no mito da democracia racial. ajudado por Gilberto Freyre, através da criação de um imaginário de uma relação amistosa entre o negro da senzala com as pessoas da Casa Grande”, afirma, para acrescentar: “São lógicas criadas que não permitem a emancipação desse sujeito racializado. Essa coloração diferenciada vai surgir não por conta de um cruzamento, mas devido à variabilidade humana. Como os colonizadores queriam criar uma categoria humana estabeleceu-se essa ideia de mestiçagem”.
No Brasil, o Censo adota a categoria pardo. “O colorismo é muito senso comum e não nos ajuda em nada. Foi a hegemonia que criou esse elemento identitário dentro da variabilidade humana”, avalia a professora.
Os 41 anos do Cedenpa
Em 10 de agosto, o Cedenpa comemorou 41 anos de sua fundação, sendo que pouco mais de duas décadas de sua existência foi atuando num bairro periférico da capital do Pará. A entidade já teve 60 militantes, onde 75% são mulheres. Atualmente, são 8 pessoas na coordenação, todas mulheres. Do Cedenpa, saíram nomes relevantes para o movimento nacional de mulheres negras, como a professora Zélia Amador de Deus, a engenheira agrônoma Nilma Bentes, a coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro e Indígena do IFPA (Neabi), Maria Malcher, e a doutora em educação, Joana Chagas.
“Há 41 anos, a gente trabalha propondo políticas públicas para a eliminação do racismo através de políticas que envolvam a saúde, o meio ambiente, a área da cultura. Trabalhando com quilombolas e, particularmente, com as mulheres negras”, explica a professora Zélia. O Cedenpa faz parte da Articulação Nacional de Mulheres Negras (AMNB) e há mais de uma década promove o Encontro das Mulheres Quilombolas do Pará.
A associação tem atuação marcante no Legislativo, tendo participado ativamente pela inserção dos artigos 68 e 322 para a regularização das Terras Quilombolas. Na década de 1980, o Cedenpa organizou os encontros de Comunidades Negras Rurais e, posteriormente, de mulheres negras quilombolas. Até 2010, a entidade era organizadora deste evento, passando depois a ser co-organizado com a das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungo).
Foi no Pará, no alto Rio Trombetas, que a primeira comunidade de remanescentes de quilombos recebeu o título coletivo e definitivo de suas terras, em 1995. Das 178 comunidades quilombolas no Brasil, 62 foram reconhecidas no Pará. O maior quilombo titulado do Brasil é o da comunidade de Cachoeira Porteira, em Oriximiná (PA). No Marajó, apenas em Salvaterra, 18 quilombos são titulados e ligados à coordenação da Malungo.
“Sempre houve resistência. Quando a população não servia mais ao colonizador, quando a tecnologia dessas populações não serviam mais ao capital, elas se insurgem. Quilombo vem de África, mas aqui tem proporções gigantescas por que junta esse povo da floresta, dos terreiros e das sociedades urbanas”, lembra a professora Joana Chagas.
Os esforços do movimento de mulheres negras no Pará foram refletidos nas últimas eleições. Quatro mulheres negras foram eleitas. Uma deputada federal, Vivi Reis (Psol), e as vereadoras Lívia Duarte (Psol), Bia Caminha (PT) e Enfermeira Nazaré (Psol). De acordo com a Organização Mulheres Negras Decidem, apenas 5% das vereadoras eleitas no Brasil são negras. No Pará, 9,5% das vereadoras são negras – o estado ficou à frente da Bahia que elegeu 8% de mulheres negras vereadoras.
As ações do movimento negro em despertar o orgulho e a consciência racial na população brasileira, através de políticas públicas, parecem estar surtindo efeito. Houve aumento de pessoas se declarando negras no último Censo, em 2010. Segundo um estudo apresentado pelo IBGE, de 2012 para 2018 houve aumento de 32% da população se declarando preta.
As lutas das mulheres negras
O estudo liderado pelo Departamento de Engenharia Industrial do Centro Técnico Científico da PUC-Rio indicou que o número de pessoas pretas e pardas que morreram em decorrência da Covid 19 foi de 55%, enquanto que entre os brancos esse número ficou em 38%. No Pará, esse recorte se confirma.
Segundo informações cedidas pela Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa) foram registrados, até o momento, 572.520 casos de Covid-19, sendo que deste total 305.838 foram de pessoas do sexo feminino. Deste contingente, pelo menos 62% foram de mulheres pretas ou pardas. A Sespa informa ainda que foram registrados 16.058 mortes, sendo amarela (55), Branca (803), Índigena (27), Parda (4.088), Preta (181) e não informaram (1.418).
Foi o caso da jornalista e estilista, Uliana Mota, que morreu em maio de 2020 vítima da Covid-19. Durante o seu tratamento no hospital e para os trâmites do enterro foi preciso que amigos fizessem uma vaquinha virtual para arcar com custos e dívidas que sobraram da doença. Uliana deixou uma filha de 13 anos, da qual era mãe solo e uma mãe idosa a qual ajudava na dinâmica financeira da casa. Segundo o IBGE, 64% das mulheres pretas e pardas criam filhos com ausência do cônjuge, enquanto o percentual de mulheres brancas nesta mesma situação é de 56%.
Na ocupação do trabalho informal, as mulheres negras representam 46,9% desse universo. O serviço doméstico é ainda um cargo de mulher. No Brasil, apenas 1,1% dos homens deixou de trabalhar para cuidar do filho, casa ou algum ente que precise de cuidados. Mas 20,7% das mulheres já enfrentaram essa realidade. E as mulheres pretas representam o dobro das mulheres brancas exercendo essa atividade. A primeira vítima fatal de covid-19 no Brasil foi uma mulher preta e empregada doméstica. Cleonice Gonçalves, 63, foi contaminada após o retorno da patroa da Itália.
Negras mães, chefes de família, trabalhadoras braçais e vítimas também do genocídio da juventude preta. São incontáveis chacinas nas periferias da capital paraense. A família de Keyvison de Freitas Lima precisou enterrá-lo com apenas 11 anos, em julho deste ano. O menino foi vítima de bala perdida, no bairro do Barreiro, enquanto brincava na frente da casa da avó. O garoto estava de férias e visitava pela primeira vez a matriarca.
As necessidades de reverter essa situação movem as Marchas das Mulheres, sempre tidas como fundamentais para o movimento. “Hoje, não é um dia qualquer. É um dia histórico. Belém é a capital que realiza a Marcha das Mulheres Negras Amazônidas. Belém é mulher e Belém é preta. Belém é uma mulher que luta, é mulher ancestral. Belém é uma mulher que caminha no Círio de Nazaré. Belém é uma mulher que marcha ao lado das mulheres de axé. Liberdade a todas nós.” Foram com essas palavras e mais um banho feito pelas mãos pretas de Jucy D’Oyá, mãe de santo e sacerdotisa, que foi iniciada a 6ª edição do evento.
A jornalista Flávia Ribeiro, ou @afrontosaribeiro, como muita gente a conhece nas redes sociais, também caminhou de mãos dadas com a filha, que ora dava as mãos para a avó, a família presente na Marcha. “Eu quero que a minha filha tenha, e ela já tem, essa identidade negra. Não só da gente saber das dores de ser negra, mas que ela saiba das potências de ser negra. A força, a gente já sabe que a gente é forte, né? A importância de ver outras mulheres bonitas, articuladas, mulheres que estão falando, mulheres que não puderam estar aqui, porque a gente fala também dessas mulheres. Olhar para essa marcha e saber que a gente é realizadora’, afirma.
É esse sentimento de orgulho em ser uma mulher negra que Maria das Graças ensina com seus 68 anos. Sentada enquanto outra mulher preta trança seus grisalhos cabelos, Maria afirma que já marchou muito em sua vida, como cozinheira ou costureira. E diz se orgulhar de usar os penteados afros desde criança. Quando questionada por que escolhia esse tipo de penteado como adornos, responde sem hesitar: “Por que eu durmo e acordo linda. A mulher negra tem que se orgulhar de quem é”. O único momento em que o semblante de Maria muda é quando ela fala do racismo. Seu tom de voz aumenta e ela diz: “Isso é uma coisa que tem que acabar. O racismo, essa cretinice. Isso tem que acabar”.
Roberta Brandão é graduada em Jornalismo, Publicidade e Propaganda, e Mestranda do Programa de Comunicação da Amazônia (PPGCOM-UFPA), Bolsista CAPES. É fotógrafa, produtora, ativista cultural, carimbozeira, batuqueira, mãe do Gaitán e mulher na Amazônia. (roberta@amazoniareal.com.br)
Fonte: Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/marcha-das-mulheres-negras-amazonidas/
Negro tem 2,6 vezes mais chances de ser assassinado no Brasil
Relatório mostra que, entre 2009 e 2019, taxas de homicídio caíram 20,3%, mas para pretos e pardos a queda foi menor, de 15,5%
Ana Cristina Campos / Agência Brasil
Em 2019, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios no Brasil, com uma taxa de 29,2 por 100 mil habitantes. Entre os não negros, a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que o risco de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior ao de uma pessoa não negra.
Entre os anos de 2009 e 2019, 623.439 pessoas foram vítimas de homicídio no Brasil. Destas, 333.330, ou 53% do total, eram adolescentes e jovens.
Os dados constam da edição 2021 do Atlas da Violência, divulgada hoje (31). A publicação foi elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN).
Os números apresentados pelo estudo foram obtidos a partir da análise dos dados do Sistema de Informações sobre a Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, em período anterior à pandemia de covid-19.
Na análise dos dados da última década, os autores do levantamento observaram que a redução dos homicídios ocorrida no país esteve muito mais concentrada entre a população não negra do que entre a negra. Entre 2009 e 2019, o número de negros vítimas de homicídio cresceu 1,6%, passando de 33.929 vítimas em 2009 para 34.466 em 2019. Já as vítimas não negras passaram de 15.249 em 2009 para 10.217 em 2019, redução de 33%.
Homicídios femininos
Em relação aos homicídios femininos, o Atlas da Violência mostra que 50.056 mulheres foram assassinadas entre 2009 e 2019. Nesse período, o total de mulheres negras mortas cresceu 2%, ao passo que o número de mulheres não negras mortas caiu 26,9%.
A publicação também destaca mudança na distribuição dos homicídios femininos: enquanto a taxa de homicídios de mulheres dentro das residências cresceu 6,1%, a taxa de mulheres mortas fora das residências caiu 28,1%.
Segundo a diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, o local do homicídio é importante para se compreender as dinâmicas de violência.
“Está largamente documentado que os assassinatos de mulheres dentro de casa estão associados à violência doméstica. Os homicídios de mulheres fora de suas residências, por outro lado, em geral, estão associados a dinâmicas de violência urbana. O crescimento dos homicídios de mulheres dentro do próprio lar nos últimos 11 anos indica o recrudescimento da violência doméstica no período”.
Aumento de mortes violentas
Outro dado que chamou a atenção dos autores do estudo foi o aumento de 35% das mortes violentas por causa indeterminada entre 2018 e 2019, o que, segundo a análise dos pesquisadores, pode se refletir em uma subnotificação dos 45.503 homicídios registrados no país no período.
De acordo com a pesquisa, a categoria estatística mortes violentas por causa indeterminada é utilizada para os casos em que não é possível estabelecer a causa básica do óbito, ou a motivação que o gerou, como sendo resultante de lesão autoprovocada (suicídio), de acidente como nos de trânsito ou de homicídios.
“O crescimento brusco desse índice nos últimos anos, como nunca antes observado na série histórica, acarreta sérios problemas de qualidade e confiabilidade das informações prestadas pelo sistema de saúde, levando a análises distorcidas, na medida em que geram subnotificação de homicídios”, disse o presidente do Instituto Jones dos Santos Neves, Daniel Cerqueira.
De acordo com o pesquisador, em média, 73% dos casos de mortes por causa indeterminada referem-se a homicídios, o que por si só já elevaria o número de mortes no país em 2019.
Segundo o Atlas da Violência , os números de notificações de violências registrados pelo Sistema de Informações de Agravos de Notificação entre 2018 e 2019, na variável orientação sexual, contra homossexuais e bissexuais, apresentam crescimento de 9,8%, passando de 4.855 registros em 2018 para 5.330 no ano seguinte. Os números de violência contra pessoas trans e travestis também cresceram, passando de 3.758 notificações para 3.967 episódios em 2019, aumento de 5,6% dos casos de violência física.
Armas de fogo
Segundo a pesquisa, entre 2009 e 2019, 439.160 pessoas foram assassinadas por arma de fogo, o que corresponde a 70% de todos os homicídios do período. O estudo apontou que, desde 2009, todos os dias,109 pessoas foram assassinadas a tiros no Brasil.
Em 2019, o país registrou 14,7 assassinatos por armas de fogo por 100 mil habitantes, entretanto, 16 estados tiveram taxas acima da média nacional. A maior taxa foi registrada no Rio Grande do Norte: 33,7 homicídios por 100 mil pessoas. Na sequência se destacaram, com as taxas mais elevadas: Sergipe (33,5), Bahia (30,9), Pernambuco (28,4) e Pará (27,2). As menores taxas foram registradas em Minas Gerais (8,9), no Distrito Federal (8,5), no Mato Grosso do Sul (7,8), em Santa Catarina (5,3) e em São Paulo (3,8).
Em 2009, do total de homicídios no país, 71,2% foram praticados com o emprego de armas de fogo. Em 2019, esse percentual caiu para 67,7%.
“Os desdobramentos da política armamentista que está em curso no Brasil produzem riscos de elevar os números de homicídios a médio e longo prazos. À luz das evidências científicas, essa política deve ser reavaliada o quanto antes, não apenas para que assim sejam reduzidos os danos trazidos na atualidade a toda a sociedade, bem como os riscos futuros contra a vida e a segurança dos brasileiros”, aponta o documento.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-08/risco-de-negro-ser-assassinado-e-26-vezes-superior
Ana Cristina Rosa: No Brasil da injustiça social, terra também tem cor
O nexo entre a estrutura fundiária e a perpetuação da injustiça social não é novidade no país
Ana Cristina Rosa / Folha de S. Paulo
Dados demográficos sobre o Brasil colonial apontam que pelos idos de 1798 a população era estimada em 3,25 milhões de pessoas. Quase metade (48,7%) era de escravizados e outros 12,5%, de negros e mulatos libertos. Os indígenas "pacificados" somavam 7,7%. Brancos, só 31,1%.
Os percentuais fazem lembrar do Atlas do Espaço Rural Brasileiro, publicação do IBGE do final de 2020, que identificou pela primeira vez a cor ou raça dos produtores dirigentes dos estabelecimentos rurais do país e cruzou esses dados com outras variáveis. O resultado é a exposição em números de uma realidade conhecida há séculos: no Brasil, a terra também tem cor.
A metodologia evidenciou que produtores rurais pretos, pardos e indígenas estão concentrados em pequenos estabelecimentos. À medida que aumenta a área de terras, cresce também o número de proprietários brancos, deixando clara a relação entre etnia e concentração fundiária.
A história mostra que o nexo entre a estrutura fundiária e a perpetuação da injustiça social não é novidade no país. Líder do movimento abolicionista no século 19, Joaquim Nabuco já defendia “uma democracia de pequenos proprietários rurais”.
Em discurso proferido em 1884, Nabuco chegou a afirmar que acabar com a escravidão não seria o bastante; era preciso destruir “a obra da escravidão”. E atrelou a emancipação dos escravizados à democratização do solo. Como se sabe, aconteceu exatamente o contrário.
O engenheiro negro André Rebouças, outro abolicionista, pregava a adoção de uma lei agrária que distribuísse a terra. A concentração fundiária exposta no Atlas é um dos frutos de uma sociedade que optou pelo extermínio de povos nativos, substituição da mão de obra escravizada pela de colonos europeus e marginalização dos negros.
A publicação do IBGE fornece uma “visão integrada” do espaço rural brasileiro e desenha por meio de mapas, gráficos e tabelas que também no campo as ações do passado moldaram as desigualdades do presente.
*Ana Cristina Rosa é jornalista especializada em comunicação pública e coordenadora da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) - Seção Distrito Federal.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2021/08/terra-tambem-tem-cor.shtml
ECA não protege crianças e jovens negros do racismo estrutural
O ECA inovou ao tratar as crianças como sujeitos de direito e não como objetos da lei, como fazia o Código de Menores de 1979
Viviane Nayara Marques, do Centro Acadêmico Hugo Simas (CAHS) / Agência Alma Preta
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990, recentemente completou 31 anos de homologação. Este importante instrumento prevê a proteção integral às crianças e adolescentes brasileiros, estabelecendo garantias de condições adequadas e dignas de desenvolvimento social, mental, moral e físico.
Os direitos básicos das crianças e adolescentes estão sob a responsabilidade de seus familiares e do Estado, que têm a obrigação de privá-los de qualquer violência, discriminação ou crueldade, em conformidade com o art. 7° do Estatuto: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.
O ECA inovou ao tratar as crianças como sujeitos de direito e não como objetos da lei, como fazia o Código de Menores de 1979. É, de fato, um importante avanço, mas é ingenuidade pensar que isso basta para assegurar a proteção de todas as crianças de forma integral e igualitária. A doutrina de um sujeito de direito universal - o qual, na verdade, tem gênero e raça bem definidos - acaba apenas por esconder as opressões e as desigualdades existentes, contribuindo para sua continuidade. Como bem sabemos, o art. 5º da Constituição Federal estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, porém há um abismo entre essa igualdade formal e a igualdade material.
Da mesma forma, vemos que, na realidade, as garantias estabelecidas pelo ECA não se aplicam às crianças e aos jovens negros, uma vez que, quando observadas de perto sua situação, percebe-se que, na maioria das vezes, vivem nas regiões mais vulneráveis das cidades, lideram as taxas de analfabetismo, são as maiores vítimas de homicídios e são as que mais sofrem com a fome e a desigualdade. O direito das crianças de serem crianças é, em realidade, restrito a apenas uma parte delas.
Pensando neste contexto, pode-se notar que o ECA, assim como outras legislações, não consegue proteger crianças e jovens negros diante do racismo estrutural, que continua a marcar os corpos das crianças pretas com balas perdidas. Sabemos, no entanto, que as balas têm sempre o mesmo endereço e suas vítimas, cor e classe social demarcadas. Este sistema que escravizou milhões de pessoas segue a mesma linha de extermínio de sempre, apenas assumindo novos métodos.
Em 2020, 12 crianças foram mortas no Rio de Janeiro abatidas por arma de fogo, enquanto brincavam e se divertiam. Acumulam-se também os casos de crianças negras desaparecidas e que continuam sem solução, como atesta o caso dos três meninos de Belford Roxo (RJ), Lucas, Alexandre e Fernando - de 8, 10 e 11 anos, respectivamente -, que, após saírem para brincar, nunca mais tiveram seu paradeiro conhecido. Há também uma violência que se configura de modo indireto, mas igualmente fatal: as marcas deixadas pelo racismo estrutural na saúde mental destas crianças e adolescentes. Segundo a cartilha "Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros", elaborada pelo Ministério da Saúde, entre 2012 e 2016, a cada dez jovens entre 10 a 29 anos que cometeram suicídio, seis eram pretos, um número que fala por si só.
No que se refere ao direito à alimentação, garantido pelo ECA a todas as crianças e adolescentes, vemos que a juventude negra é a que mais sofre com a fome. Segundo os resultados do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil”, a fome está presente em 10,7% das residências habitadas por pessoas pretas e pardas. Essa triste realidade da fome e da desigualdade obriga crianças e adolescentes negras a ingressar precocemente no mercado de trabalho, como apontam dados da Pnad Contínua de 2019, que atestou que a exploração da mão de obra infantil negra representa 66,4% das taxas do trabalho infantil no Brasil.
Deste modo, milhares de crianças e adolescentes abandonam a escola e abrem mão de uma infância plena para ajudar com a renda familiar. De acordo como Anuário Brasileiro da Educação Básica, publicado em 2019, apenas em torno de 55% dos jovens negros concluem o Ensino Médio, em comparação com 75% de jovens brancos, fato que é infuenciado pela necessidade das crianças e adolescentes pretos em levar um sustento básico para seus familiares e uma alimentação digna. Ainda assim, a evasão escolar não se resume somente a isso, uma vez que as crianças negras acabam por não achar o ensino atrativo ou mesmo acolhedor, dado que, sob a influência de um modelo de ensino ainda racista e colonial, sua metodologia e pedagogia não contempla a cultura e a identidade de crianças e jovens negros.
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê diversos direitos fundamentais de forma igualitária para todas as crianças e adolescentes, porém crianças e jovens negras têm seus direitos constantemente violados e desprezados pelo Estado, uma vez que as legislações foram pensadas em um contexto eurocêntrico e branco que não atende à realidade das crianças pretas. A violência e o desrespeito que a juventude negra sofre são consequências do Brasil colonial e escravocrata, que nunca respeitou os direitos básicos da população preta.
Neste sentido, é reconhecida a necessidade e a relevância do Estatuto da Criança e do Adolescente, entretanto deve ser garantido e efetivo o direito à vida, à alimentação, à saúde e à educação para as crianças e jovens negros. Para concretizar a garantia de direitos fundamentais, é necessária uma implementação de ações que enfrentam o racismo e a adoção de políticas públicas específicas que contemplem as crianças negras e suas realidades particulares.
O Centro Acadêmico Hugo Simas (CAHS) da Faculdade de Direito da UFPR, é um dos maiores centros acadêmicos de direito do país, sendo uma referência no movimento estudantil e na defesa do Estado Democrático de Direito e da justiça social. A atual gestão do CAHS, Por Onde For (2020/21), do Partido Acadêmico Renovador (PAR), preza por esse legado e luta por um modelo de universidade antirracista, emancipador e inclusivo, em harmonia com a função social da universidade pública, financiada pelo povo brasileiro.
Fonte: Alma Preta
https://almapreta.com/sessao/quilombo/eca-assim-como-outras-leis-nao-protege-criancas-e-jovens-negros-do-racismo-estrutural
Ana Cristina Rosa: Racismo.br
O fator socioeconômico é relevante para a manutenção dessa prática odiosa que se instalou há séculos na sociedade
Ana Cristina Rosa / Folha de S. Paulo
Como o racismo criou o Brasil. A sentença instigante aguçou a curiosidade e me fez assistir a palestra em forma de aula que o professor, escritor, doutor em sociologia e pós-doutor em psicanálise e filosofia Jessé Souza ministrou para lançar seu novo livro.
Entre as muitas reflexões, o palestrante, um homem branco, observou que o racismo assume máscaras que dificultam sua identificação. Para compreender a prática, é preciso considerar que ela está ancorada em estímulos morais que determinam o comportamento social em várias dimensões. “O racismo destrói as pessoas e continua vivo, se fingindo de morto”, disse.
A constatação é impactante e capaz de denotar o grau de complexidade do problema. Só quem já foi vítima desse crime sabe o quanto ele é corrosivo, podendo até ser incapacitante. Daí a necessidade de se contrapor de modo racional —o que, além de difícil, é doloroso.
Há tempos venho me fazendo uma indagação que ouvi durante a palestra: Como é possível perpetuar por tanto tempo um sistema que possibilita que um país tão rico como o Brasil reduza a maioria de sua população à pobreza, relegando grande parte das pessoas a viver o presente sem dignidade e a olhar para o futuro sem perspectiva de melhora?
Temos hoje cerca de 14,8 milhões de pessoas desempregadas, número recorde registrado pelo IBGE desde 2012. Com aproximadamente 30 milhões de brasileiros na informalidade, a precarização das relações de trabalho é flagrante. Além disso, uma multidão estimada em 19 milhões de pessoas está passando fome.
É uma realidade perturbadora e injusta. Coisa que extrapola a fronteira da temática racial —visto que, embora a maioria dos pobres brasileiros seja composta por pessoas negras, nem todo brasileiro pobre é negro—, mas tem tudo a ver com ela. Afinal, sendo o racismo uma forma de dominação e de opressão, o fator socioeconômico é relevante para a manutenção dessa prática odiosa que se instalou há séculos na sociedade.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2021/08/racimobr.shtml