racismo

Vladimir Safatle: Identitarismo branco

Demorou muito tempo até que eu percebesse o quanto a pretensa especificidade da filosofia ocidental era um dos mais brutais dispositivos coloniais já inventados

A noção de “identidade” conseguiu colocar-se no centro dos embates políticos de nossa época. Ela trouxe novos problemas e novas sensibilidades com as quais precisaremos lidar no interior das lutas sociais contemporâneas por reconhecimento. Para ela, convergem questões práticas e teóricas complexas que concernem a integralidades dos sujeitos, pois tocam a gramática social naquilo que ela tem de mais estruturador, a saber, em suas dinâmicas de relação e de unidade.

Muitos utilizam “identidade” para desqualificar lutas que questionam práticas seculares de exclusão naturalizadas sob as vestes de discursos universalistas. Assim, na perspectiva desses críticos, as lutas ligadas a movimentos feministas, negros, LGBT+ seriam em larga medida “identitárias” porque visariam, na verdade, criar uma nova geografia estanque de lugares de poder. Lugares esses indexados por identidades específicas.

Muitos dos sujeitos organicamente vinculados a tais lutas lembram, no entanto, que até para não cristão vale o dito do Evangelho: “Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão”. Ou seja, antes de acusar qualquer um de regressão identitária seria o caso de começar por se perguntar sobre o identitarismo naturalizado pela hegemonia de uma história violenta de conquistas e sujeição operada, majoritariamente, por brancos europeus.

Essa colocação é astuta e irrefutável. Ela não afirma que a naturalização de identidades e suas fronteiras é o horizonte efetivo das lutas que nos atravessam, mas que falar em qualquer experiência de universalidade concreta está interditada até que o foco mais forte de identidade seja deposto, e esse foco encontra-se normalmente do lado dos que atacam certas lutas sociais por serem “identitárias”.

Se me permitem, gostaria de usar a primeira pessoa do singular para descrever um aspecto desse problema, pois há vários outros que deverão ser acrescidos. Quando ainda era estudante de filosofia, lembro de um colega perguntar a um professor sobre a razão pela qual não estudaríamos, em nosso curso, filosofia chinesa, indiana, africana, entre outros. “Simplesmente porque não há”, foi a resposta. Em todo lugar que não tivesse sido marcado pelo “milagre grego” o que haveria era a prevalência do mito. Razão, logos, era uma invenção grega que nos havia salvo, “nós, os ocidentais”, da cegueira do pensamento mítico e de seus limites à autorreflexão.

Essa razão, esse logos seria não apenas uma capacidade argumentativa de dar e reconhecer razões, mas uma forma de vida capaz de racionalizar processos sociais em direção à realização de uma sociedade livre composta por sujeitos autônomos (“autonomia”: mais uma invenção pretensamente grega). Assim, não apenas a razão seria o presente do ocidente ao mundo, mas também a liberdade.

Demorou muito tempo até que eu fosse capaz de perceber o quanto essa pretensa especificidade da filosofia no ocidente era um dos mais brutais dispositivos coloniais já inventados, era o núcleo de um dos mais resilientes processos identitários que conhecemos. Pois, se a Europa com sua matriz grega era um mar de filosofia cercada de mito por todos os lados, então qual destino teríamos todos a não ser querermos nos tornar “bons europeus” e a abraçar os processos de “modernização” que começaram em seu solo, a nos abrirmos à “maturidade” de sua forma de vida? Outras formas de pensamento poderiam nos oferecer belos mitos, ensinamentos morais edificantes, mas muito pouco a respeito de processos concretos de emancipação e interação racional com o mundo.

Mas, se assim fosse, havia uma conta que teimava em não fechar. Quando chegaram à América, vários jesuítas ficaram estarrecidos com o que encontraram entre vários povos ameríndios. Não foi canibalismo ou a pretensa selvageria que os estarreceram. Deixemos falar um desses jesuítas, que escreveu em 1642 sobre um povo que habitava o atual Quebec: “Os Neskapi imaginam que eles devem, por direito de nascimento, gozar da liberdade dos burros selvagens, sem respeitar a quem quer que seja, salvo quando sintam vontade. Eles me criticaram cem vezes por termos medo de nossos capitães, enquanto eles riem e zombam dos seus. Toda a autoridade de seus chefes está no domínio da língua, pois eles são potentes na medida em que são eloquentes, e mesmo se eles morrem de falar, eles só serão obedecidos se agradarem aos selvagens”. Povos sem medo, cujas relações a autoridades se fundam na eloquência, ou seja, na capacidade contínua de argumentação racional e persuasão. Não era estranho encontrar gente como o padre Lallemant em 1644, dizendo a respeito dos Wendats do Quebec: “Não creio que existam pessoas sobre a terra mais livres que eles”. Sua capacidade de argumentação, diz o padre, era maior do que a de um francês médio, já que eles viviam em sociedades nas quais o poder precisa a todo momento dar e reconhecer razões para agir. Era isso que efetivamente estarreciam os jesuítas, a saber, a descoberta de que eles eram mais livres do que “nós”.

Ou seja, quando alguém como Thomas Hobbes dizia, na mesma época, que no estado de natureza encontrávamos “o homem como lobo do homem”, para completar lembrando: “os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos dias daquela maneira brutal que antes referi”, isso só se sustentava como, digamos, uma “fake news”. Bastava ler o padre Lallemant. E quando o “tolerante” Locke dizia que, mesmo sendo livres, faltava a esses povos segurança porque lhes faltavam Estado e outras instituições políticas nossas, alguém deveria ter lembrando a Locke que termos como “estado”, “nação”, “povo” só tem algum sentido quando nos perguntamos contra quem eles são mobilizados.

Em suma, todos esses dispositivos de pensamento eram peças de um profundo identitarismo branco que visava não apenas jogar na invisibilidade formas outras de vida, mas principalmente impedir que essa experiência de descentramento produzida pelo contato com a alteridade implicasse um processo efetivo de transformação. O pretenso universalismo dessas formas de pensar era, na verdade, um sistema defensivo contra a força de descentramento própria a um mundo em expansão potenciał.

Lembrar desses momentos da filosofia ocidental é apenas uma forma de insistir como a universalidade efetiva nunca existiu e como tudo feito em seu nome foi marcado pelo saque e pelo roubo. Foi apenas quando ela se voltou contra si mesma e contra os horizontes sociais que a produziram que a experiência ocidental do pensamento esteve a altura de seu objeto. Mas, fora desses momentos, processos de segregação e silenciamento foram a verdadeira norma.

Não haveria outra forma de terminar esse artigo que não se lembrando de um dos maiores acontecimentos históricos que conhecemos, a saber, a revolução haitiana que se inicia em 1791. Ela marca a luta de libertação daqueles que até então tinham sido colocados na condição de “coisas”, de “escravos” pelo poder colonial. Em 1804, quando a libertação estava consolidada, os haitianos promulgam uma impressionante constituição. Vale a pena lembrar aqui dos artigos 12, 13 e 14. O primeiro afirma: “Nenhum branco, independente de sua nação, colocará o pé neste território a título de senhor ou proprietário, e não poderá no futuro adquirir propriedade alguma”. Mas o artigo 13 produz uma especificação: “O artigo precedente não tem efeito algum para as mulheres brancas naturalizadas haitianas pelo Governo, nem para as crianças nascidas ou a nascer delas. Estão ainda compreendidos neste presente artigo, os alemães e poloneses naturalizados pelo Governo”.

De fato, ao tentar reescravizar os haitianos, Napoleão enviou tropas nas quais havia uma legião de 5.200 poloneses. Ao chegar no campo de batalha, eles descobriram que não se tratava de uma revolta de prisioneiros, como os franceses haviam lhes contado, mas uma insurreição pela liberdade. Muitos soldados então desertaram e começaram a lutar ao lado dos haitianos. Eles foram para o Haiti acreditando que estavam a defender os “ideais iluministas”, mas logo compreenderam que tais ideias estavam, de fato, do outro lado do campo de batalha.

Daí o sentido do artigo 14 da Constituição haitiana: “Toda acepção de cor dentre as crianças de uma mesma família, cujo chefe de Estado é o pai, deve necessariamente cessar. Os haitianos serão conhecidos apenas através da denominação genérica de Pretos”. Ou seja, a extrema inteligência política dos haitianos lhes permitiu fazer de um termo até então usado como marca de exclusão o nome de uma verdadeira universalidade por vir. O nome de algo que indica o vetor efetivo de uma sociedade em revolução. Para os haitianos, pretos serão também aqueles que lutaram a seu lado por uma sociedade radicalmente livre e igualitária, que não querem mais defender essa sociedade marcada pela espoliação, silenciamento e segregação, mesmo que eles sejam brancos como um polonês.Adere a


Cida Bento: Eugenia e coronavírus

Crianças e adolescentes da periferia e das favelas são os mais atingidos pela Covid-19

Inúmeras são as reportagens e estudos apontando que o ocultamento ou manipulação do dado cor/raça nos formulários de notificação da Covid-19 e, acrescente-se a esse contexto, a retirada do CEP dos registros representam um esforço de encobrir uma política eugênica que não investe esforços para estancar a pandemia porque quem está sendo preferencialmente atingido são os pobres, os negros e os favelados.

Assim, o crescimento e a ampliação de vozes contra a ideia de que algumas vidas valem mais do que outras, que caracteriza o fascismo e o racismo, é fundamental como forma de preservar e fortalecer as instituições, que devem se posicionar firmemente protegendo os direitos de sua população, em particular de suas crianças e adolescentes.

No Brasil, o número de mortes e internações de crianças e adolescentes na pandemia está muito acima dos demais países, e a maior parte dessas crianças e adolescentes são negras, vivem em periferias, favelas ou bairros pobres, de acordo com artigo de Julia Dolce, da Agência Pública, de junho de 2020.
No universo dos adolescentes, são 59,4% de negros entre os casos notificados, ante 38,8% dos de brancos.

Dolce destaca ainda que a mortalidade de jovens brasileiros por Covid-19 é praticamente dois terços maior do que a verificada em países ricos, segundo pesquisa da Universidade de Paris.

No entanto, o dado cor/raça, fundamental para compreender melhor essa situação, figura como “ignorado” ou mesmo não preenchido em aproximadamente 40% dos formulários de hospitalizações e óbitos, indicando que a lei não vem sendo cumprida e o Estado não desenvolveu campanhas explicativas sobre a importância dessa informação para a definição de políticas públicas a fim de enfrentar os desafios da pandemia.

Importa destacar aqui que a mortalidade de crianças e jovens negros, de indígenas, idosos, quilombolas, seja pela ação, seja pela omissão do estado, pode representar a política eugenista, na atualidade.

A eugenia significa esterilizar, exterminar, invisibilizar, separar os indesejáveis. Assim, se crianças e adolescentes das periferias e favelas são atingidos diferencialmente pela Covid-19, eles também o são pela brutalidade policial, como observamos no aumento de assassinatos de crianças e adolescentes nos últimos anos.

Em 2019, cinco crianças de menos de 12 anos e 43 adolescentes de 12 a 18 anos foram mortos nas favelas do Rio de Janeiro por agentes do Estado brasileiro —policiais.

E, segundo o Atlas da Violência 2019, na idade de 21 anos, quando ocorre o pico dos riscos de uma pessoa ser vítima de homicídio, negros têm 147% mais chances de serem assassinados do que brancos.

Mortos em casa, em parques de diversões, nas escolas, em diferentes lugares das periferias e favelas onde deveriam estar protegidos. Diversos estudos têm revelado que a identificação do local é um dos elementos que legitimam a morte.

A ideia de favela construída como ausência, ilegalidade e desordem, um “problema” a ser solucionado, vem permitindo a entrada abusiva do Estado para lidar com a violência. Então, retirar o CEP de registros não é invisibilizar a política nas periferias e favelas?

Mais do que nunca, precisamos juntar as diferentes vozes da sociedade brasileira na retomada dos pactos civilizatórios que possibilitam o cumprimento do que define a Constituição Federal: a proteção integral de todas as crianças e adolescentes e de segmentos vulnerabilizados da sociedade.


RPD || Reportagem especial: 132 anos após abolição da escravatura, sociedade grita contra racismo

Casos de assassinatos de brasileiro e norte-americano negros reacendem alerta contra crime, que impõe diversos obstáculos para essa parcela da população

Cleomar Almeida

Uma semana é o intervalo entre os assassinatos do adolescente brasileiro João Pedro Mattos (14 anos), baleado no Rio de Janeiro, e o do norte-americano George Floyd (46 anos), sufocado, em Minneapolis, nos Estados Unidos. Negros assassinados por policiais, eles também não conseguiram resistir à perversidade do crime que tem dizimado essa população diariamente e que se manifesta de diversas formas: o racismo.

No Brasil e nos Estados Unidos, a violência é uma das faces desse crime, que se propaga em vários outros. Negros são os que mais morrem em ações policiais e também lideram o ranking das vítimas de coronavírus. Têm menos acesso à saúde, grau de escolaridade e oportunidade de emprego, em comparação com pessoas brancas.

No total, no Brasil, negros são 56% da população e 75% dos mortos por policiais. Nos Estados Unidos, representam 13% das pessoas e 24% das vítimas assassinadas pela polícia. Livres da escravidão, abolida há 132 anos no território nacional, pessoas negras e toda a sociedade precisam se mobilizar contra o racismo, que, na avaliação de especialistas, tem se institucionalizado cada vez mais e de forma acelerada na força estatal.

 “Há um enorme viés racial na violência policial no Brasil. Da mesma forma que educação, renda e trabalho são indicadores de desigualdades raciais, a violência também se constitui como um indicador potente, pois ela atinge de forma desigual os negros do país”, afirma a professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Lima.

A professora, que também é coordenadora do Afro, o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), diz que não são mortes provocadas. São assassinatos. É um modus operandi. “O racismo é um elemento constituinte da violência do país. As estatísticas comprovam isso”, afirma ela.

Nos Estados Unidos, negros têm 2,9 vezes mais risco de serem mortos por policiais do que brancos. No Brasil, o risco é 2,3 vezes maior para os negros. Os dados são de análises do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2018 – o mais recente com recorte racial – e do instituto americano Mapping Police Violence, de 2019.

Foto: AP Photo/Silvia Izquierdo

O número de mortos pela polícia americana tem se mantido no mesmo patamar desde 2013. Com quase 18 mil departamentos de polícia nos EUA, não há uniformidade nos números oficiais sobre abordagens policiais com uso da força no país. No Brasil, o problema se repete.

De acordo com o Atlas da Violência, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o crescimento nos registros de assassinatos no Brasil, que alcançaram patamar recorde em 2017, atinge principalmente negros, para os quais a taxa de mortes chega a 43,1 por 100 mil habitantes. Para não negros, a taxa é de 16.

“É estarrecedor notar que a terra de Zumbi dos Palmares é um dos locais mais perigosos do país para indivíduos negros, ao mesmo tempo que ostenta o título do estado mais seguro para indivíduos não negros (em termos das chances de letalidade violenta intencional)”, afirmam os pesquisadores do Ipea em um trecho da pesquisa. “Em termos de vulnerabilidade à violência, é como se negros e não negros vivessem em países completamente distintos”, completam.

Autor do livro Racismo Estrutural e professor convidado da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), Silvio Almeida destaca que a polícia brasileira é muito mais violenta. “Mas também existe um nível de violência racial que constitui o Brasil em outras esferas, que naturalizou e incorporou no cotidiano a morte de pessoas negras”, afirma. “No país, quando se mostra a morte de um negro, a luta é para provar que aquela pessoa não era um bandido, como se o fato de a pessoa ter cometido algum crime justificasse também a violência policial".

Na avaliação do sociólogo e policial militar Eduardo Santos, a corporação brasileira reproduz o preconceito e a discriminação, e ainda não teve a preocupação de repensar as práticas de abordagem, de forma eficaz. “A polícia é a força de repressão que mata quem é igual a eles", afirma, destacando que negros representam 37% do quadro de policiais no Brasil. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A informação é autodeclarada e pode haver subnotificação.

A urgência do combate ao racismo tem mobilizado ainda mais grupos organizados para reivindicação e reconhecimento de direitos na busca por uma sociedade menos injusta, menos desigual e menos excludente. Mais de 100 entidades do movimento negro de todo o país reforçam o manifesto “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”. A campanha é promovida pela Coalizão Negra por Direitos, em parceria com os coletivos Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro.

O objetivo é coletar assinaturas para promover uma frente ampla em torno de ações de combate ao racismo e a cobrança junto ao Poder Público, de direitos como educação, emprego e segurança. O movimento entende que a luta antirracista precisa ganhar centralidade nas discussões em defesa da democracia.

“Tem se falado muito em repactuar, criar um novo pacto democrático no Brasil. Mas não existe possibilidade nenhuma de pensar a democracia real no país se o racismo não for um ponto central”, afirma Eugênio Lima, fundador do Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro e um dos articuladores da iniciativa, em entrevista ao jornal El Pais.

De acordo com Lima, a frente ampla deve considerar o apoio de pessoas brancas e indígenas de diferentes setores da população. Segundo ele, a adesão é importante porque a questão racial é parte do sistema e só será vencida quando toda a sociedade passar da comoção em relação à crueldade praticada contra negros para mudanças concretas que promovam igualdade, por parte de quem está no poder — em sua maioria, brancos.

Certamente, outros negros morreram na semana que separou as mortes de João Pedro e George Floyd, cujos casos tiveram maior repercussão. O combate ao racismo deve ser uma prática diária, constante e de resistência, como sugeriu a professora e filósofa estadunidense Angela Yvonne Davis. "Numa sociedade racista, não basta não ser racista; é preciso ser antirracista", escreveu ela.


Desigualdade perversa reflete discriminação

Além de morrerem três vezes mais do que brancos por Covid-19 nos Estados Unidos e de serem mais de metade das vítimas da doença no Brasil, negros enfrentam abismos de desigualdade no acesso à educação, a oportunidades de emprego, à cultura e a cargos eletivos. No labirinto da discriminação, precisam encontrar o caminho da sobrevivência.

Reflexo da falta de acesso a serviços de saúde e alimentação que garanta boa qualidade de vida, mais da metade dos negros que se internaram no Brasil no período da pandemia morreu por contaminação de coronavírus em hospitais no país. Pesquisadores do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro analisaram 29.933 casos encerrados de Covid-19 (com óbito ou recuperação). Dos 8.963 pacientes negros internados, 54,8% morreram nos hospitais. Entre os 9.988 brancos, a taxa de letalidade foi de 37,9%.

Em relação à educação, no Brasil, a taxa de analfabetismo entre os negros de 15 anos ou mais (9,1%) é superior ao dobro da taxa de analfabetismo entre os brancos da mesma faixa de idade (3,9%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2018, 6,8% da população brasileira era considerada analfabeta. Nos Estados Unidos, a taxa de analfabetismo é menor que a do Brasil (1%), mas a desigualdade entre brancos e negros também existe.

De acordo com o IBGE, também há diferença na área financeira. Pretos e pardos tinham rendimento domiciliar por pessoa de R$ 934 em 2018, conforme pesquisa mais recente. No mesmo ano, os brancos ganhavam, em média, R$ 1.846. Nos Estados Unidos, por sua vez, negros têm renda domiciliar média de US$ 41,3 mil por ano, pouco mais do que a metade da dos brancos (US$ 70,6 mil).

O Congresso Nacional é outro campo de desigualdade entre brancos e negros no Brasil. Dos 594 deputados e senadores, apenas 17,8% são negros. No total, somente 106 declararam ser da cor preta ou parda. O cenário não muda se as duas Casas forem analisadas separadamente. Na Câmara, dos 513 deputados em exercício, 89 são pretos. Em contrapartida, 344 são brancos. Os dados são da própria Câmara Federal.

Em texto publicado no início de junho, o ex-presidente americano Barack Obama discorda das pessoas que afirmam que o recorrente viés racial no sistema de justiça criminal prova que apenas protestos e ações diretas podem levar a mudanças, e que votações e participações na política eleitoral são perda de tempo.

"Eu não poderia discordar mais. A essência de protestos é aumentar a conscientização da sociedade, colocar holofotes sobre a injustiça e fazer com que os Poderes fiquem desconfortáveis”, afirma ele, em um trecho.

O texto de Obama diz, ainda, que, ao longo da história americana, é comum que seja apenas uma reação a protestos e desobediência civil a atenção que o sistema político dá a comunidades marginalizadas. “Mas, no fim, anseios têm sido traduzidos em leis específicas e práticas institucionais. E, numa democracia, isso só acontece quando nós elegemos autoridades que respondem às nossas demandas”, destaca ele.

Importante instrumento na reparação de direitos de negros no Brasil, a Lei de Cotas deverá ser revista em 2022, no último ano do mandato de Jair Bolsonaro. Como pretende disputar a reeleição e tem um governo de extrema direita marcado por polêmicas nas áreas de direitos humanos e educação, ele deve enfrentar grandes resistências do movimento negro, que tem se fortalecido no combate à desigualdade no país.

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo Nascimento, confirmou que haverá uma revisão no sistema de cotas no último ano do governo Bolsonaro. “O sistema de cotas será revisado em 2022. Cotas devem ser sociais, não raciais. Para que esta mudança ocorra, será fundamental o apoio dos negros. Cotas para pobres, de qualquer tom de pele. Não somos incapazes. Queremos justiça, não racialismo”, diz Camargo, que nega haver racismo no Brasil.

Na avaliação da professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Lima, que coordena núcleo de pesquisa sobre raça, gênero e justiça racial, há uma percepção equivocada de como a Lei de Cotas funciona. Segundo a Lei 12.711, conforme ressalta, a cota racial também é uma cota social.

“Muitos que se opõem às cotas raciais falam que elas apresentam privilégios e que não podemos distingui-las das sociais. Não faz sentido, porque elas não estão separadas”, explica a professora.

 A lei reserva 50% das vagas primeiro para estudantes de escolas públicas, que, em seguida, são divididos pela renda, o segundo critério social. Só depois se aplica o critério racial (a proporção da população negra e indígena de cada unidade da Federação).

Em comentários nas redes sociais, Camargo diz que as cotas raciais fazem parte de “reparação história”, mas, segundo ele, “não existe culpa coletiva”, ignorando a segregação a que os negros foram submetidos desde que foi abolida a escravatura no país, em 1888. “Reparação histórica. Mas dívida não é transmitida de geração para geração e não existe culpa coletiva. Querem vingança, não solução”, tuitou.

A pesquisadora da USP explica o porquê de defender a cota social e racial.“Quando enfrentamos a desigualdade social, a situação dos negros é sempre mais difícil, mesmo entre os mais pobres. As políticas de recorte social funcionam de forma tímida para incluir a população negra. Por isso, as cotas raciais são importantes”, afirma Márcia.


RPD || Lilia Lustosa: Eu, historiadora de cinema branca

Lilia Lustosa, em seu artigo, questiona como podemos mudar a situação de racismo que contamina a indústria cinematográfica do Brasil e do mundo

No mês passado, depois de entregar o artigo aqui para a Revista, ficou mais ou menos acertado que o próximo tema abordado seria o retorno dos Drive-ins, tendo ficado de fora do meu texto anterior, por não conseguir me manter dentro dos limites dos caracteres estipulados. Acabou sendo um bom acidente de percurso, porque, logo depois, impactada pelas notícias da morte do adolescente João Pedro por uma bala perdida no Complexo do Salgueiro e as imagens do sufocamento de George Floyd em Mineápolis, me veio um pensamento à cabeça: e se eu acordasse negra? Encararia a vida da mesma maneira? Teria a mesma segurança para desbravar territórios desconhecidos como venho fazendo nesses últimos doze anos em que vivo fora da minha terra? Teria entrado neste prédio, em pleno coração da branca Recoleta, em Buenos Aires, com a mesma cabeça erguida com que entrei? E do alto do privilégio da minha branquitude, minha resposta, imediata e honesta, foi não. 

Recordei as imagens que havia visto dias antes no documentário Minha História (2020), de Nadia Hallgreen, sobre a turnê de Michelle Obama pelos EUA, para o lançamento de seu livro homônimo. Lembro de ter ficado arrepiada ao ver aquela mulher negra lotando estádios nos Estados Unidos de Trump, oferecendo inspiração e esperança a tantas pessoas daquele país. Fiquei, então, imaginando todas as dificuldades enfrentadas para chegar àquele palco. Será que Michelle sempre entrava nos prédios de cabeça erguida? Sentia-se inferior ou invisível aos olhos de alguém? Mas a ex-primeira dama, que já sentou em tantas mesas importantes (palácios, castelos, salas de aula de Princeton e Harvard), afirmou nunca se ter sentido invisível. A razão, segundo ela, teria sido a liberdade que vivenciou naquela mesa simples da sua sala de jantar, no sul de Chicago. Um lugar onde aprendeu o valor de sua voz e se muniu de forças para enfrentar a batalha que a vida lhe iria exigir. Um exemplo extraordinário para tantas meninas negras que se veem ali representadas, mas que não necessariamente têm a mesma sorte. Ao mesmo tempo, uma prova de que a invisibilidade é algo construído. E que, por isso mesmo, também pode ser desconstruído.

O tema foi me inquietando cada vez mais, e o webinar “Imaginários para um audiovisual antirracista”, organizado pelo SPCine, no fim de maio, deixou ainda mais claro o papel que nós, brancos, podemos e devemos ter. Naquele palco virtual, “frente à frente”, para um debate mais que urgente, estavam duas cineastas negras – Renata Martins (Aquém das Nuvens, 2010; Sem Asas, 2019) e Day Rodrigues (Mulheres Negras, 2016) –, e duas cineastas brancas – Laís Bodanzky (Bicho de Sete Cabeças, 2000; Como Nossos Pais, 2017) e Petra Costa (Helena, 2012; Democracia em Vertigem, 2019). A branquitude foi colocada contra a parede. Eu fui colocada contra parede! Muitos nomes de negros que atuam no universo cinematográfico brasileiro foram citados. Mas quantos conhecemos? Quantos nomes podemos citar de cabeça? E de mulheres negras então? Só para se ter uma ideia, segundo a ANCINE, dos 142 longas lançados, em 2018, somente 19,7% foram dirigidos por mulheres, e desses, nenhum teve qualquer negra na direção, nem no roteiro. E o que nós, brancos, temos feito para mudar essa situação de racismo que contamina a indústria cinematográfica do Brasil e do mundo? 

Laís Bodanzky, que hoje ocupa a presidência do SPCine, falou da política afirmativa que a instituição vem adotando nos últimos anos, que dá pontos extras aos projetos que trazem pessoas negras em suas equipes. Ou seja, na corrida por um financiamento de produção audiovisual, sai na frente quem contar com talentos negros em seu time. Mas quantas são as instituições que adotam esse tipo de política? Quantos não são os que viram a cara para o sistema de cotas?

Laís chegou a acender uma luz de esperança dentro de mim, mas eis que as imagens da morte do menino Miguel, de 5 anos, deixado aos cuidados da patroa, enquanto sua mãe passeava os cachorros da família branca, relembrou-me que ainda estava muito longe o dia em que poderíamos falar de igualdade neste país. Senti-me sufocada, impotente, apequenada… E entendi o que a negritude chama de “genocídio da população negra”. Não é exagero. É fato. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. E o que nós, branquitude brasileira, temos feito para mudar esta situação? Como eu - historiadora de cinema branca - posso contribuir para virar esse jogo?

 Day Rodrigues me deu a pista, ao afirmar que “pesquisa é política”. Ela tem razão. É preciso, então, redefinir nossos temas de estudo, incluir personalidades negras no currículo básico das escolas e universidades brasileiras, já que aquelas foram apagadas de nossos livros de história. É preciso falar de Adélia Sampaio, primeira cineasta negra a dirigir um longa-metragem. É preciso assistir a filmes feitos e escritos por negros. É preciso conhecer Viviane Ferreira (O dia de Jerusa, 2019), Camila de Moraes  (Caso do Homem Errado, 2019), Jeferson De (Bróder, 2010), Ava DuVernay (Selma, 2014; A 13a Emenda, 2016; Olhos que condenam, 2019), Ryan Coogler (Fruitvale Station, 2013; Pantera Negra, 2018) e tantos outros. É preciso contratar profissionais negros. É preciso seguir pessoas negras no Instagram, divulgar o que elas fazem, ler os livros que elas escrevem. Tudo o que, até outro dia, me soava como um exagero… Finalmente, entendi que, ao trazer pessoas negras para a cena, estamos viabilizando a criação de um círculo virtuoso, quiçá capaz de se converter em ferramenta de desconstrução da invisibilidade da negritude. 

A minissérie “Hollywood”, atualmente em cartaz na Netflix, que conta com produtores e diretores negros, permite-nos, de alguma maneira, sonhar com essa mudança. Ambientada no período pós II Guerra Mundial e baseando-se em alguns fatos e personagens reais – Hattie MacDaniel, Rock Hudson, Vivien Leigh, Scotty Bowers, Henry Willson, Anna May Wong –, o que vemos ali é um grande estúdio, sendo comandado por uma mulher branca, ousada o suficiente para aceitar o desafio de lançar um filme cujo roteirista é negro e homossexual, o diretor é filipino-americano, e a atriz principal, negra. Ao apresentar esse twist na realidade da época de ouro da meca do cinema, “Hollywood” lança a possibilidade de um outro curso para a história. E se tivéssemos tomado esse caminho, teríamos hoje mais igualdade na indústria cinematográfica?

Talvez. Mas como, por enquanto, isso não passa de ficção, resta-nos pensar sobre o que é possível ser feito hoje. Assim, ao invés de decorrer sobre o retorno dos Drive-ins, decidi usar este meu lugar de privilégio, para convidá-los a refletir sobre o racismo estrutural que, mais do que qualquer corona vírus, contagia nossa sociedade há séculos. Uma pandemia para a qual nunca se criaram vacinas, nem remédios, o único caminho sendo a conscientização e a reeducação da nossa gente. E o primeiro passo, reconhecer o racismo que habita cada um de nós.

*Lilia Lustosa é crítica de cinema


Eliane Brum: Os manifestos estão brancos demais

A classe média progressista precisa compreender que, sem enfrentar o racismo estrutural do Brasil, não há “pacto civilizatório” possível nem há democracia

Há um apagão nos dois principais manifestos que moveram o Brasil nas últimas semanas. Uma ausência que revela: 1) a qualidade da democracia que conseguimos ter após o fim da ditadura militar; 2) a dificuldade das elites (majoritariamente brancas) reconhecerem o racismo estrutural como o principal problema do país; 3) a impossibilidade de enfrentar o autoritarismo representado pelo Governo de Jair Bolsonaro sem colocar no topo da lista o enfrentamento ao racismo. Sem exterminar o racismo não há democracia. Nem há projeto civilizatório possível. Essa não é uma questão para decidir depois. Este é justamente o agora.

Para esclarecer já no início. Não me alinho a Lula (PT), que fez o desserviço de não apoiar os manifestos suprapartidários porque estaria ao lado de pessoas que ou apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff (PT) ou não lamentaram a sua prisão. Assinei o “Estamos Juntos” com pessoas que admiro muito, com quem compartilho sonhos e visões políticas, e outras que considero terem feito muito mal ao país, algumas delas me atacaram pessoalmente não muito tempo atrás. Numa frente ampla, a gente engole os sapos, segura as tripas e fecha com a única parte que todos concordam, a de lutar pela democracia. Como tantos disseram e escreveram, depois, com o processo democrático já garantido, discute-se as diferenças democraticamente. E elas são enormes, posso assegurar.

O problema é que, ao observar os textos do “Estamos Juntos” e do “Basta!”, percebe-se que há algo que não está lá e que não dá para discutir mais tarde. E este algo é o racismo. Textos de manifestos são textos de consenso, e é exercício da melhor política buscar esse consenso. Chegar à formulação divulgada certamente exigiu muito esforço e trabalho dos articuladores. Que a palavra racismo não esteja bem no alto é sinal justamente da deformação da democracia que conseguimos construir após 1985. Se isso não ficar bem compreendido neste momento, seguiremos às voltas com os déspotas da ocasião.

O que deve nos assombrar, e imediatamente nos fazer despertar, é o fato de que o enfrentamento do racismo, a esta altura, ainda não seja um consenso entre aqueles que defendem a democracia. Ainda não esteja dentro do amplo guarda-chuva de uma frente ampla suprapartidária como uma obviedade do mesmo nível de dizer que defendemos a liberdade, por exemplo. Não estou aqui jogando pedras em quem está se movendo, muito pelo contrário. Minha crítica reivindica uma mudança de rota nos movimentos de resistência ao autoritarismo liderados pela classe média progressista, autoritarismo representado por Bolsonaro, pelos generais e pela miliciarização das polícias.

O racismo é o debate inadiável não só no Brasil, mas no mundo, como os protestos nos Estados Unidos têm mostrado. O Brasil, porém, tem uma tarefa maior do que a maioria dos países porque não só foi o último país das Américas a abolir a escravidão como a fez sem nenhuma política pública de inclusão dos negros na sociedade. O racismo estrutural se manteve e, hoje, mais de 130 anos depois, os negros ocupam um lugar subalterno na sociedade em todas as áreas e morrem mais e mais cedo. Que o grito contra o racismo tenha se unido ao grito pela democracia nos protestos de rua, que não tiveram o apoio nem da maioria da classe média nem da maioria dos partidos nem dos articuladores dos principais manifestos, é bastante ilustrativo.

O argumento de evitar aglomerações devido à pandemia é totalmente respeitável ― e deve ser respeitado. Deixar de ir às ruas por temer se contaminar com covid-19 e, contaminando-se, contaminar os mais frágeis, é gesto de responsabilidade e faz todo o sentido. Afinal, até semanas atrás, ocupar as ruas e aglomerar-se numa pandemia era ato exclusivo de Bolsonaro e dos extremistas de direita, os que usam símbolos neonazistas, os amantes de armas, os antidemocratas e os defensores do autoritarismo. Ficar em casa significava, no contexto, não só cumprir as normas sanitárias determinadas pela Organização Mundial da Saúde mas também um gesto político de resistência.

A questão é que a realidade é sempre muito mais desafiadora e complexa. Ficar em casa tornou-se também uma questão política, atravessada pela desigualdade racial. Como são majoritariamente os brancos, de classe média para cima, que tem o privilégio de poder ficar em casa para se proteger do novo coronavírus, e muitos deles obrigam seus empregados a trabalhar em suas casas, não há como desconectar os protestos de rua contra o fascismo representado por Bolsonaro da desigualdade racial que impede uma parte da população, a mais pobre, majoritariamente negra, de permanecer em casa.

Essa foi a fala dos jovens negros, das jovens negras que foram às ruas, e também dos brancos e brancas que participaram da manifestação. “Tenho mais medo do racismo do que da pandemia. Obviamente o coronavírus mata, mas o racismo é muito cruel”, explicou Julia, uma jovem negra da zona sul de São Paulo que aderiu ao protesto do domingo (7/6), ao EL PAÍS. “O que adianta ficar em casa se a maior parte da população negra não esta podendo ficar em quarentena?”, justificou Tânia Aquino. Uma das lideranças declarou no carro de som: “A democracia nunca existiu. O racismo faz parte do DNA do branco, vocês são criminosos [...] Agora é hora de a pretitude tomar conta”.

Reproduzo aqui parte do melhor texto que li sobre esse impasse, de autoria do cientista social negro Deivison Mendes Faustino: “Nós, aqueles a quem não foi permitido ficar em casa, seguros/as, esperando a crise passar; Nós, que seguimos em risco: amontoados nos transportes coletivos, entregando o seu delivery ou garantindo as suas futilidades básicas; aqueles que presenciaram os filhos serem mortos pela polícia, em casa ou na casa da patroa, enquanto levávamos o seu pet para passear; Nós, a quem fizeram escolher entre a morte, sem ar, pela covid-19, ou a vida sem fôlego, por medo da fome, da violência e do desamparo; Nós, os que morrem 40% mais por corona, os 70% mais assassinados pela polícia, mas cuja representação política e poder efetivo junto aos ‘70%’ que se pretendem oposição à tragédia atual, é ínfima; Nós, enfermeiras, faxineiras, seguranças, carteiros, diaristas, ubers, entregadores, estudantes, mães e pais de filhos pretos, veados, sapatões, não binários, ou os/as militantes verdadeiros que seguem nas ruas coletando e entregando mantimentos, ajudando o velório de famílias vitimadas pela conjuntura genocida; Nós, aqueles que não podem mais respirar, há 500 anos, mas que sentimos aumentar sob o nosso pescoço o joelho militarizado do poder, cada vez mais, assumidamente genocida; Nós, que assistimos há décadas, a indignação performática, da maior parte da esquerda e de uma parcela da direita, acompanhada da negligência em relação ao racismo de lá ou de cá; Nós, diante da chance real de velar a nossa própria quase-morte, em um protesto vivo, nas ruas, neste domingo… estamos com receio: de um lado, o risco do protesto físico facilitar a exposição à covid-19… do outro lado, a ameaça real de criminalização da luta por justiça… (...) Ainda assim, uma parte de Nós, marchará neste domingo, junto com outros movimentos sociais, não por estarmos dormindo no barulho, mas por entendermos ser essa a Nossa tarefa histórica. Marcharemos por estamos cansados de ficar na arquibancada de um jogo político que nos afeta diretamente. Marcharemos porque não podemos mais respirar!”. (leia o texto inteiro aqui)

Respirar tornou-se um ato político, sua negação um gesto da desigualdade racial. Aos negros lhes falta o ar ― pelos joelhos brancos no seu pescoço, pela covid-19 que os mata mais, pela precarização da vida, pela violência da morte, pelo lugar subalterno reservado à maioria racial do país pela minoria branca. A tensão dentro do campo democrático, entre aqueles que defendiam ir para a rua e aqueles que eram contra ir para a rua, foi ― e é ― atravessada pelo racismo. Porque não se escapa do racismo no Brasil (leia “No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho).

Dizem que o vírus escancarou a brutal desigualdade social do Brasil. Essa afirmação, porém, não faz sentido. A desigualdades sempre foi escancarada. O que aconteceu com o coronavírus é que os negros e os indígenas não têm permitido que ela siga normalizada neste momento. E têm apontado, muito enfaticamente, que a desigualdade no Brasil é racial.

Ao definir o social como preponderante, neste caso há um encobrimento da ferida, na medida que a maioria dos pobres é preta. Ou seja, a pobreza tem cor. Do mesmo modo, vários projetos de expropriação das terras indígenas apontam para a conversão de indígenas em pobres urbanos, o que os lançaria na falsa homogeneidade sem cor e sem história do vasto guarda-chuva dos “pobres”. Pobres, é necessário deixar explícito, é um conceito genérico usado politicamente à esquerda e à direita para promover apagões de memórias e de identidades.

O apagão dos dois principais manifestos contra o autoritarismo é resultado do racismo estrutural que foi mantido pela democracia. O Brasil não julgou os crimes da ditadura, provocando o que, na coluna anterior, eu chamei de “fetiche da farda”: fenômeno que faz o país tremer com a opinião de cada general de pantufa que arrota do seu sofá e faz com que os generais no governo sintam-se à vontade para fazer declarações antidemocráticas e ameaças às instituições. Como seus antecessores lideraram um regime que autorizava o sequestro, a tortura e a execução de opositores políticos e nunca foram responsabilizados pelos seus atos criminosos, tanto Jair Bolsonaro, o militar que planejou colocar bombas nos quartéis nos anos 1980, quanto seu círculo verde-oliva têm a certeza da impunidade. E esta é a impunidade que fez ― e faz ― mais mal à democracia brasileira.

A questão, porém, é que, durante a democracia, uma parte da classe média enfrentou a impunidade dos militares e dos agentes de Estado. Com muita dificuldade, ainda foi possível fazer uma Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos pelos agentes do regime de exceção. Entidades importantes, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tentaram e tentam reformar a Lei da Anistia, de 1979. Uma parte das elites lembra, com alguma frequência, que crimes contra a humanidade, casos das violações praticadas por agentes do Estado a serviço da ditadura, são imprescritíveis e não estão sujeitos a anistias.

Mas há um porém. O processo democrático e seus principais agentes, a maioria deles de classe média branca, enfrentaram muito menos os crimes e a desigualdade resultantes do racismo. O racismo seguiu normalizado na construção da Nova República. A sociedade continuou compactuando com as torturas dos que são erroneamente chamados de “presos comuns” nas delegacias de polícia e nas prisões, a maioria deles pretos; com a invasão ilegal das casas do mais pobres pela polícia, a maioria deles pretos; com as condições incompatíveis com qualquer conceito de dignidade das prisões abarrotadas, majoritariamente por pretos; com as leis que lançam pequenos traficantes de drogas nestas prisões, a maioria deles pretos, e absolve os consumidores, a maioria deles brancos; e, finalmente, com o genocídio da juventude negra nas periferias e favelas.

O processo democrático e seus principais agentes não enfrentaram o racismo estrutural com a urgência que essa abominação exige. No pouco que foi feito, como na questão das cotas raciais nas universidades, houve gritaria da classe média branca, que se sentiu insultada ao perder um privilégio que confundia com direito. Para combater uma das primeiras e atrasadas políticas públicas para a inclusão dos negros na sociedade, fortaleceu a vergonhosa tese da meritocracia, como se todos, brancos e negros, partissem de bases semelhantes para disputar espaços em igualdade de condições.

Tudo isso tem consequências, obviamente. E tem consequências para a democracia, que assim jamais se completa, fragilizando-se aos autoritários de tocaia. Uma parte significativa da população têm pouca relação com a democracia porque não consegue perceber que faça grande diferença na sua vida. Não é porque são ignorantes e porque desconhecem a história. Ao contrário, eles vivem a história no cotidiano. A Polícia Militar segue lá, derrubando portas e explodindo as cabeças das suas crianças ou abatendo-as pelas costas. Seus queridos estão em prisões descritas por um ex-ministro da Justiça como “medievais”, muitas vezes sem julgamento ou porque foram pegos com 100 gramas de maconha. E, na pandemia de covid-19, eles nem têm casas que permitem o isolamento nem têm condições de parar de trabalhar nas ruas, caso dos informais, nem seus patrões brancos permitem que façam confinamento, caso da minoria empregada.

Bolsonaro, assumidamente racista em suas declarações, disse para essa população algo que nenhum branco com responsabilidade pública tinha tido a coragem de dizer antes dele: “e daí?”. A vida cotidiana no Brasil lança um grande “e daí?” sobre os negros, cuja existência é marcada por menos tudo o que é da vida e por mais mortes por doença, bala e descaso há pelo menos quatro séculos. Se são os pretos que proporcionalmente morrem mais ao contrair a covid-19 e se são os pretos os mais expostos ao novo coronavírus, porém, o “e daí?” de Bolsonaro formalizou o racismo como política de Estado e lançou a pandemia, já totalmente atravessada pela desigualdade racial, diretamente no coração da disputa política que se dá em torno da democracia.

O movimento de rua iniciado pelas torcidas de futebol, algumas delas, como a Gaviões da Fiel (Corinthians), criadas no combate à ditadura, apontam que a denúncia do racismo é que leva à luta pela democracia com apoio popular, neste momento. E não o contrário. Se a classe média progressista não compreender isso, rapidamente, estará fora da centralidade do momento. E, mais uma vez, defenderá uma democracia que nega a si mesma, ao ignorar os negros, quase 56% da população brasileira, condenados aos porões da sociedade, em todas as áreas, depois de mais de três décadas de democracia formal.

Não por acaso, entre os manifestos lançados que encontraram ressonância, o mais contundente na posição antirracista é o do “Esporte pela democracia”, ao repudiar com veemência o racismo em pelo menos três partes do texto. “A banalização da vida negra soma historicamente milhares e milhares de mortos por violência, discriminação, práticas racistas diárias bem diante dos nossos olhos”, afirma. “Pelo nosso repúdio integral ao racismo, à violência, e nosso desejo de voltar a crer num futuro possível e igualitário, hoje nos colocamos diante de questões políticas importantes. Como representar um país em que práticas autoritárias se tornam cotidianas? Em que a diversidade cultural, uma de nossas maiores riquezas, é frontalmente atacada? Como nos comportar diante do que temos vivido nos últimos tempos, da triste imagem nacional passada para o mundo? Queremos voltar a nos sentir orgulhosos de nosso país, representando em Copas do Mundo, Olimpíadas e outras competições internacionais o legado de nossa cultura, nossa história, nosso povo”.

O crescente autoritarismo do Brasil atual ― no qual Bolsonaro pode ser o ápice mas não é de forma nenhuma a origem ― dificultou mas não conseguiu interromper o movimento de pressão dos negros por protagonismo e espaços de poder. O Brasil estava no início de um debate que previa não apenas enfrentar os crimes da ditadura, mas também enfrentar as violações normalizadas no processo democrático. Ações como a criação da Comissão da Verdade sobre os Crimes da Democracia Mães de Maio, lançada em 2015 por vários movimentos de São Paulo, marcavam essa nova fase da democracia que o conservadorismo tradicional tentou interromper. Tentou interromper e, no processo, foi parte absorvido, parte atropelado pelo bolsonarismo. Marielle Franco encarnava essa irrupção das minorias que são maiorias – e foi silenciada a tiros.

A repressão a essas forças emergentes tem sido brutal, mas até esse momento não foi capaz de interrompê-las. É isso que os movimentos de rua estão mostrando, desde as campanhas de solidariedade e combate à pandemia, na base do “nós por nós”, promovidas pelos movimentos nas comunidades periféricas, até os recentes protestos de rua iniciados pelas torcidas de futebol, com o apoio no último domingo (7/6) de setores populares importantes como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e coletivos da população negra. Talvez o que a classe média progressista branca precise entender neste momento é que precisará seguir ― e não ser seguida.

O racismo estrutural do Brasil é tão explícito que a realidade o desenha com sangue. João Pedro, de 14 anos, estava dentro da casa dos tios, em 18 de maio, quando foi morto pelas costas pela polícia que invadiu a residência em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Seria mais do que suficiente para negros ― e também brancos ― se insurgirem com tanta força quanto a demonstrada pelos afroamericanos após a morte de George Floyd, nos oito minutos e 46 segundos que durou sua asfixia por um joelho branco.

O imperativo de se insurgir contra o racismo é de todos, brancos e pretos, direita e esquerda. O racismo é limite insuperável. Não há como afirmar que o Brasil é uma democracia quando a polícia invade uma casa e mata uma criança. No Brasil, Floyd não seria exceção, João Pedro não é exceção. Essa normalização é o crime além do crime. E deste todos são cúmplices.

E então, Miguel Otávio, de cinco anos, foi assassinado num prédio de luxo no Recife, em 2 de junho. É uma cena de Casa Grande e Senzala no século 21. A mãe preta, Mirtes Renata Souza, é obrigada a trabalhar na casa da patroa branca, em plena pandemia. Leva o filho, porque as escolas estão fechadas por causa da covid-19. A patroa, Sari Corte Real, primeira-dama do município de Tamandaré, manda que ela vá passear com o cachorro. Com o cachorro. Ela então deixa seu menino de cinco anos com a patroa. Mas a criança chora porque está assustada e quer ficar com a mãe, que avista pela janela passeando com o cachorro. Com o cachorro. A patroa está ocupada com a manicure, e o menino a está perturbando. Ela então o despacha sozinho no elevador. No elevador de serviço. Ele não sabe o que fazer nem como chegar até a mãe. Então desce quando a porta abre no nono andar. Escala as grades que protegem os equipamentos de ar condicionado e cai de uma altura de 35 metros. Miguel Otávio alcança a mãe. Morto. A patroa é presa, mas paga 20 mil reais de fiança e volta para casa.

A jornalista Joana Rozowykwiat desenhou em seu Facebook:

“O horror que é a morte do menino Miguel é a história com mais símbolos de que eu tenho lembrança:

A empregada que trabalha durante a pandemia;

A empregada que não tem com quem deixar o filho;

A empregada é negra;

A patroa é loura;

A patroa é casada com um prefeito;

O prefeito tem uma residência em outro município, que não é o que governa;

A patroa tem um cachorro, mas não leva ele pra passear, delega;

A patroa está fazendo as unhas em plena pandemia, expondo outra trabalhadora; A patroa despacha sem remorso o menino no elevador;

O menino se chama Miguel, nome de anjo;

O sobrenome da patroa é Corte Real;

A empregada pegou covid com o patrão;

A empregada consta como funcionária da Prefeitura de Tamandaré;

Tudo isso acontece nas torres gêmeas, ícone do processo e verticalização desenfreada, especulação imobiliária e segregação da cidade do Recife;

Tudo isso acontece em meio aos protestos Vidas Negras Importam;

Tudo isso acontece no dia em que se completaram cinco anos da sanção da lei que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil;

É muita coisa, muito símbolo”.

É mesmo muita coisa e muito símbolo.

E aí alguém diz, com genuína preocupação e muita razão, que não dá para ir para as ruas protestar numa pandemia. E esta exatamente seria a razão pela qual a mãe de Miguel Otávio não deveria estar trabalhando naquele dia. Só que este é o país da desrazão, este é o país em que uma mulher negra arrisca a sua vida para passear o cachorro da madame branca, este é o país liderado ― e representado ― pelo “e daí?” de Bolsonaro. Este é o Brasil que lidera o número de mortes pela covid-19 porque o antipresidente decidiu que é natural que uma parte da população morra mesmo. Mas os negros e os indígenas sabem que parte da população é esta, a que sempre pôde morrer na visão da parcela do Brasil que Bolsonaro representa.

Se neste momento há consenso entre os progressistas de que Bolsonaro é “uma ameaça à civilização”, é urgente compreender que, caso se trate mesmo de “civilizar” o Brasil, é imperativo exterminar o racismo. No Brasil, a barbárie tem sido a dos brancos contra os negros e contra os indígenas. Bolsonaro a exalta, mas não a inventou. Achar que dá para ter democracia com racismo é um delírio persistente de uma parcela dos brasileiros.

Por enquanto, é a juventude preta periférica politizada que está mais presente nas ruas lutando contra o fascismo/racismo. O que todos os sinais estão apontando é que, desta vez, o racismo não será silenciado na disputa política em torno da democracia. Pode até acontecer um movimento aos moldes das “Diretas Já”, que marcaram o começo do fim da ditadura militar, liderado pelos progressistas brancos de classe média, em que o racismo seja só uma nota de rodapé na luta pela destituição do maníaco do Planalto e pela restituição da democracia hoje em frangalhos. Neste caso, não será então apenas uma oportunidade histórica perdida. Será muito mais. Será uma vergonha histórica.

O novo Diretas Já (e já com outro nome), nascido nas periferias que reivindicam seu legítimo e real lugar de centros, colocado em curso por movimentos sociais e coletivos, e não mais por partidos políticos, ou será com os negros ― ou não será.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Míriam Leitão: A diversidade nas empresas

Jovem executiva negra conta a sua história, explica como as empresas devem ter diversidade e estimula outros jovens a sonhar alto

A jovem gaúcha de Pelotas Lisiane Lemos entrou na sala do executivo da Microsoft, em São Paulo, no meio do processo de seleção. Ela acalentava há tempos o sonho de trabalhar numa multinacional, e na área de vendas, apesar de ter feito Direito. Aos 23 anos, tinha acabado de chegar de Moçambique onde fora em busca de suas origens. No Rio Grande do Sul, que recebeu várias ondas migratórias, os brancos sabem de onde vieram seus antepassados, mas os negros ouvem uma história triste sobre Pelotas ter sido “o inferno dos escravos”. Ao olhar para quem a entrevistaria, ela sentiu um alívio.

— Eu fui entrevistada por um executivo negro, e aquilo foi uma grande virada na minha vida. Eu vi que queria estar naquele lugar. O fato de ele estar sentado na minha frente... Talvez quem nos assista não tenha noção da importância da representatividade. Simplesmente ter um executivo negro na frente me mostrava: eu posso — contou.

Lisiane acabou assumindo um cargo de chefia na Microsoft e hoje, aos 30 anos, é gerente de novos negócios da Google. Nesse meio tempo recebeu duas consagrações internacionais. Em 2017 foi apontada pela revista “Forbes” como uma das pessoas de menos de 30 anos mais influentes do Brasil e em 2018 a ONU a escolheu como uma das pessoas negras mais influentes do mundo, na área de negócios, com menos de 40 anos.

Eu a entrevistei na Globonews sobre diversidade no mundo corporativo. Ela é um caso de sucesso, mas raro.

— O topo é muito solitário. Você chegar onde ninguém chegou estatisticamente. O Instituto Ethos em 2016 mostrou numa pesquisa que nas 500 maiores empresas do Brasil apenas 4,6% dos cargos de liderança são ocupados por pessoas negras. E quando o recorte é mulheres negras é 0,5%. Então é meio que um lugar impossível — disse Lisiane.

As políticas de ações afirmativas ajudaram no esforço de redução do fosso social no Brasil, mas é muito grande a distância, são séculos de construção da desigualdade. Hoje há muitas empresas preocupadas em ter mais diversidade no seu quadro de funcionários, mas nem sabem por onde começar. Lisiane acha que no mundo corporativo funcionam as conexões. Por isso ajudou a fundar a Rede de Profissionais Negros, e depois foi para o Mulheres do Brasil, da empresária Luiza Trajano, para ajudar a montar o pilar da igualdade racial. Ela acha que as empresas deveriam fazer o “recrutamento ativo” e pensar também na carreira das pessoas negras:

— É importante pensar num programa de estágio? Sim. Mas nesse caso é mais fácil. Mas quem é que está no topo? Quem você lembra em algum conselho de uma grande empresa que seja negro? Ou uma mulher negra?
Lisiane recomenda que as empresas comecem a ter diversidade nas suas peças de publicidade, para que as pessoas negras se vejam:

— O segundo ponto é ser intencional, ter métodos e políticas de ação afirmativa nos programas de contratação. Depois, é ter um serviço de mentoria. Eu sou de uma família de professores, como saber como me vestir e me preparar para uma reunião de executivos estrangeiros, por exemplo? Há muito conhecimento a ser compartilhado.

Lisiane fala com objetividade sobre os códigos do mundo corporativo. Como gerente de novos negócios da Google ela tem trabalhado com marketing digital. Diz que nessa área trabalha com tudo que mais gosta, de uso de dados à inteligência artificial. Pode ajudar tanto o pequeno empreendedor quanto a grande empresa.

Ao falar da questão racial, ela se empolga. Na infância, sofreu preconceito. Mais tarde, entendeu que era herdeira de uma história difícil. Os escravizados de outras regiões eram enviados para Pelotas como punição: na charqueada, enfrentavam o frio, o castigo e o sal. Em exame de DNA descobriu que é 40% de povo originário de Angola. Quer passar um tempo lá este ano.

Aos jovens negros que sonham em entrar no mundo corporativo e fazer carreira ela deixou um recado emocionado:

— O grande recado é ‘você pode’. Por mais que a sociedade diga que não é o seu lugar, que as estatísticas estejam contra, você é protagonista da sua história e existem pessoas que podem ser seus aliados. Vai ser difícil, o racismo existe, e você muitas vezes vai pensar em desistir, mas vai valer a pena e você vai abrir portas para outras pessoas chegarem onde elas nunca imaginaram.


Revista Política Democrática || Ivan Alves Filho: Presença negra

Um dos países centrais na comunidade internacional por seu peso demográfico, por sua extensão territorial e também pela inegável importância econômica que adquiriu, o Brasil possui a segunda maior população negra do mundo. E esse é um dado fundamental para se compreender nossa realidade.

"Sem Angola, não há Brasil", vaticinou, certa vez, o Padre Antonio Vieira. E poderíamos acrescentar: sem o negro, não há Brasil. Afinal, o povo faz história pelo trabalho. E o povo negro vem carregando esse país nas costas há cinco séculos. Das atividades nas plantações de cana de açúcar, algodão e café ao chão das fábricas e construções. Isso, no plano material. Mas, no plano da cultura espiritual, não seria muito diferente. Como falar da nossa literatura sem Machado de Assis? Da nossa música sem Pixinguinha? Da nossa arquitetura sem Aleijadinho? Do esporte brasileiro sem Pelé? Das nossas rebeliões sem Zumbi dos Palmares?

Mesmo assim, há evidente exclusão social do negro entre nós. E isso mergulha suas raízes num passado não tão distante assim. Se, por um lado, o regime escravista integra o negro na economia, por outro o exclui da cidadania. E a própria Abolição, ao libertar o escravo, esqueceu-se de libertar o negro. A nossa única revolução social – até aqui, ao menos, já que reapresentou uma mudança no modo de produção – ficaria incompleta. Vale dizer: para que a Abolição cumprisse plenamente sua função histórica, ela deveria vir acompanhada de uma medida fundamental como a reforma agrária, por exemplo.

Isso significa reconhecer que a questão negra é, acima de tudo, uma questão nacional. Ou seja, uma luta de todos os brasileiros. Conforme escrevemos recentemente no livro Presença negra no Brasil, editado este ano pela Fundação Astrojildo Pereira, "a batalha pelos direitos dos negros no Brasil é parte da luta e não uma luta à parte". Com essa ótica, acreditamos ser fundamental unir o particular ao geral, uma vez que as chamadas lutas setoriais não devem ter um tratamento setorial.

Esse talvez seja o melhor caminho para combater o racismo e a exclusão. Afinal, o que denominamos por brasilidade, essa formidável síntese cultural do nosso país, repousa em boa parte na contribuição dos afrodescendentes.

 

 


Elisa Lucinda: Enchi!

Fui de novo no Jongo da Serrinha em Madureira, no Rio de Janeiro. Coisa ancestral e forte que acontece em forma de festa e samba de raiz sempre no último domingo do mês.Um bálsamo pro meu coração. A narrativa contida nas letras do que se canta ali traz um existencialismo interessante, romântico, coletivista, democrático preto e pouco ouvido por não negros nesta sociedade separatista. Faz falta a todos o que deixamos de saber da cultura negra. Nos empobrece a subjetividade. Voltei de lá nutrida de minha gente e, nesta hora em que meu coração é só tambor, escrevo.

Quem mora na Zona Sul como eu tem clareza da territorialidade que aponta e demarca a triste potência do nosso racismo e o seu mapa étnico de exclusão não deixa dúvidas: a zona em que habito é lugar de branco e de ricos ,enquanto a priori, na zona norte e nas favelas , vivem os pretos e pobres. Isso é apartheid, é isso? O que pensamos disto? Caralho! estou estupefata, que porra é essa? Socorro! Sou uma intelectual e quer sair de minha boca impropérios do fundo dos infernos. Palavrões em fila, querem saber que merda é essa. Onde estão os católicos, os evangélicos, os religiosos numa hora dessa? Os que gritam Om da Yoga, os que vão para índia, meditam em práticas orientais, onde estão os espiritualistas de plantão que não percebem que são mensageiros desse racismo do qual falo? É chocante que se vá à igreja, se comungue, que se realizem rituais judaicos e coisa e tal sem que essa fé sequer se lembre do racismo sistemático que essas famílias praticam há séculos. Como se crêssem que qualquer pecado, do racismo, do preconceito, da exclusão de qualquer ordem, que tais pecados são solventes em caridades, em dízimos, em hóstias. Ledo engano. Aliás, tenho informações certeiras de que o inferno é implacável com racistas. Soube por fonte segura que queimam no fogo da eternidade punitiva e acabam todos pretos.

Quero dizer que enchi o saco. Quero dizer que não sei falar de democracia sem falar do racismo. Que não admito mais grupos homogêneos só de héteros ou só de brancos... enfim. Não dá mais, estou escrevendo e apelando aos bons. Luther King nos advertiu do estrago que faz o silêncio dos bons. Se até nós pretos recebemos educação racista, o que será que não disseram aos brancos? Por favor, vasculhem a história. Lembre-se do nariz torcido dos seus pais quando você levou o amigo preto em casa ou aquele possível namorado ou namorada. Procurem nas últimas gerações e ramificações atuais da família se há algum negro inserido, transfigurado em cunhado, ou sobrinho.

É grave. Escolas ricas não tem preto, podemos afirmar. E cuidado, para agora, durante essa leitura, você não se lembrar daquele único coleguinha negro da turma do seu filho. Porque ,se só tem um ,é exatamente quando a exceção confirma a regra. Sinceramente, o príncipe ou a princesa que você sonha pro seu filho ou sua filha, são negros? Há algum lugar para essa imagem no campo simbólico brasileiro? É permitido sonhar no desejo com um preto ou uma preta? Fora o escondido, o proibido? A objetificação do corpo mais barato do mercado continua em ação. Estamos todos com a mão suja desse sangue, minha gente! Não acredito em democracia feita por racistas. Não me venha com argumentos de Sorbone, justificando seu nariz em pé, seu francês fluente, seu analfabetismo do mundo africano, mesmo sendo o povo constituinte dessa nação. É muita viagem pra Miami, meu Deus de céu! E não é só Portugal que fala português não, são sete países! Quantos que você conhece?

Enchi! O pote esburrou. Se você quer um mundo melhor e a favor duma vida mais justa para o povo brasileiro, não dá mais para entrar no restaurante onde só tem brancos e não reparar nisso. É preciso constranger os clubes que têm uma plaquinha num banheiro reservado escrito Babás; é preciso ficar constrangido por estar numa festinha de criança portando uma escrava vestida de uniforme branco para cuidar do amiguinho do aniversariante enquanto a mãe toma champangne com os outros adultos. A escravidão acabou, alô alô. É feio. Tem criança no evento. O que estamos ensinando à ela com essa cena? E por que a própria mãe ou o pai, ou os dois não levam só eles sua criança à festinha, sem a babá? Quero abrir os olhos dos meus amigos, seguidores, leitores, meu queridíssimo público enfim.

Uma das grandes “maestrias” da cultura da discriminação racial é justificar seus atos cruéis com algum argumento que os libere de culpa. Centrados no eurocentrismo, confiou-se no conteúdo teórico que apregoava que os negros eram uma sub-raça, como se não fôssemos humanos direito. Fôssemos quase.Tal fundamento fuleiríssimo foi ministrado com pitadas científicas, de modo que não se duvidou. Como resultado, alguns negros acreditaram realmente que eram inferiores, e os brancos, em sua maioria avassaladora até hoje se entendem como superiores. O resultado é essa senzala espalhada pelas calçadas, na fila dos hospitais públicos, nas filas do desemprego, nas cadeias. O retrato de um país dividido assumidamente entre área nobre e área da ralé sem vergonha de dos anúncios que estampam: Seu ap na área nobre da cidade! (ó, tristeza).

Estou procurando casa estarrecida com a expressão “3 quartos e dependências .Por que não são 4 quartos? Uma arquiteta amiga me explicou: “Quarto tem que ter 3 metros e a dependência, recebemos essas orientação pela faculdade, é de 1x80 a 2 metros e não precisa ter janela.” ( que loucura , uma senzalinha em casa).Reparando mais, percebi em geral que o chuveiro do banheiro de empregada, é posto levemente em cima do vaso e jamais tem box. Quem ali se banhar, sabe que vai ter que enxugar o chão e a privada, todos os dias. São os requintes da crueldade escravagista cujas famílias exibem em suas salas de jantar altas esculturas e pinturas da última ceia de Cristo (ó, tristeza).

Ontem, me vi banhada em lágrimas no meio do samba na Rua Compositor Silas de Oliveira. (Quem não conhece procure saber a obra desse compositor). Me senti em casa, no meio da romântica Madureira: cada um com sua moda, gente gorda, magra, homem, mulher, gays, sapatas, travestis, trans, cabe todo mundo, água no feijão que chegou mais um. Tudo que se cantava, Luis Carlos da Vila, Nei Lopes, Beto sem braço, Almir Guineto, Dona Ivone Lara, tudo era voz de uma gente que não é ouvida, gente silenciada. Mas não ali, ali é resistência, ali está garantido o grito, a maioria negra, e ninguém torce nariz pra branco não. Fiquei pensando, se ali, no meio do samba, estivesse uma moça loirinha, de olhos azuis, com uniforme de babá e um nenezinho preto no colo, o que pensaríamos? Teríamos pena da pobre babá? Oferecíamos à ela o nosso olhar de piedade ao moldes do que sentimos com a gata borralheira? Eu pergunto, se nos sinais de trânsito do Brasil houvesse uma criancinha loirinha pedindo esmola, não comoveria mais?

Enchi! Quero que arranquemos a venda que não deixa que enxerguemos a realidade cruel em que nos metemos trazendo até aqui a escravidão. Agora não passarão. Hoje Lucélia Santos não poderia ser escalada para viver a Escrava Isaura. Não passaria. Hoje estamos de olho e novela que se passava Bahia deixando o negro fora da trama principal causa estranheza antes da estreia. Não foi assim com Tieta e outras adaptações de Jorge Amado. Hoje um apresentador de TV tem que pensar três vezes antes de se revelar racista, sob risco de perder o emprego; Hoje, cada vez mais mulheres negras estão falando em literatura e na música sobre sua vida, sua história, sua sexualidade, suas peculiaridades e não só outras vozes falam por nós; por conta das políticas de inclusão dos recentes governos que antecederam ao golpe, há uma leva de intelectuais negros produzindo pensamentos, narrativas, e a sociedade tem que se preparar para tanto.

Faz parte dessa preparação uma convocação aos humanistas de plantão, em especial os brancos gente boa. Angela Davis é explícita no tema:” não basta não ser racista ,é preciso ser anti-racista!”

Chega. Encheu! Enchemos! Os tapetes chiques da casa grande se confirmam insuficientes para guardar tantos séculos de sujeira, escrotidão e homicídios.

Recentemente, ( pasmem vcs), na porta de uma academia , uma senhora cujo marido é grande empresário, me abordou. Nos conhecíamos superficialmente:
- Elisa, você é lá do Espírito Santo, né? Você ainda tem contato?
⁃ Claro, minha família é de lá. Vou sempre...
- Ah, você não traz uma menina de lá pra mim não?
- Você quer uma menina, como assim?
- Uns doze, treze anos...
- Ai, que bacana, criança grande... Que bom. Você quer adotar, né?
- Nãao, não é isso. Eu quero uma pessoa assim quase mocinha...sabe? É que a minha filha me arrumou uma neta!!! O casamento deu xabu, já viu,né? Estão lá em casa. E eu preciso de uma menina para me ajudar a cuidar da minha neta, porque a mãe dela trabalha, e eu daria comida, casa, tudo direitinho, quartinho pra ela, né? Até estudava...
- Ah, você quer para trabalhar?
- É por isso que eu quero de longe. Porque aí ela vem morar,né? Que aí, se eu precisar sair tem alguém para ficar com a criança...
-Eu acho que isso não pode mais não.
- O que??!
- É lei. A OIT pode ir atrás de você. Você pode ser acusada de tráfico de pessoas. Eu não vou entrar nessa não. Sou contra ,sabe?
E ainda será considerado, de acordo com estatuto da criança e do adolescente, como trabalho infantil.
- Meu deus, Elisa, onde é que a gente vai parar? Corre para um lado é a lei das domésticas, do outro é negócio de trabalho infantil, assim não dá não. Onde é que isso vai parar?
- Na igualdade, minha senhora, vai parar na igualdade.

Enchi.

(Elisa Lucinda, Outono da matamoforse, 2O18)


Cacá Diegues: A pedra perdida

A sociedade brasileira de brancos segue atirando pedras nas cabeças de desempregados e necessitados que, não tendo como reagir, apostam naqueles que têm pior pontaria

O Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, assim como a ditadura militar de 1964 a 1985, foram duas formas de vandalismo político. E, no entanto, Vargas sempre foi (e continua sendo) um herói popular, consagrado e seguido mesmo depois de sua morte, em 1954. Por outro lado, muita gente hoje pede a volta dos militares, mesmo que não tenham coragem de pedir expressamente a volta da ditadura. E o Bolsonaro não é o único a professar esse projeto.

Nós, brasileiros, nunca tivemos mesmo um padrão de reconhecimento em relação ao que nos acontece politicamente, agimos sempre no espaço entre um certo sentimentalismo mágico e aquilo que nos dizem com mais convicção dramática.

Converso com as pessoas nos botequins e na rua, ouço os taxistas com sincera atenção, leio as pesquisas de opinião que procuro entender. E não vejo nenhuma vontade de novidade política no que me dizem ou me mostram. Nenhuma vontade real de mudança. Os mais citados são sempre os mesmos ex-presidentes ou ex-governadores, os políticos ou ex-políticos que não almejam mais nada de diferente em suas vidas. Se continuarmos assim até outubro, vamos novamente viver de tosca esperança por mais quatro anos. Vãs esperanças.

Entre intelectuais e ideólogos, todos querem o centro que nos conforta e bloqueia o sobressalto. O centro da esquerda vai de um populismo de cordel para esquecer os anos desastrosos de Dilma, até as análises sofisticadas de impotência que justificam um certo muro. O centro da direita passou a agir, em vez de apenas observar por trás das cortinas, como era seu hábito. Mas, ainda assim, se divide entre o militar sem uniforme e volta dos uniformes militares ao poder.

Gostamos mesmo é de tudo aquilo que parece nos proteger, como o populismo que mais uma vez ameaça nosso progresso político. O partido que se preparou, durante toda a sua formação, para ser o mais ideológico e construtivo possível, exemplo de um partido democrático disposto a tudo para construir o novo do que ruía à sua volta, deixou de ser um partido político para, como disse um de seus líderes arrependido, “uma seita guiada por uma pretensa divindade”, uma definição contemporânea para nosso populismo atrasado.

Em 1808, o Rio de Janeiro se tornou, quase que por acaso, a capital do país. Dom João VI, obrigado a se mudar para a colônia com sua Corte, estava de saco cheio da sujeira e do calor da Bahia, para onde o haviam levado. Dos 60 mil habitantes do Rio de então, mais da metade era de escravos, a maior concentração deles no mundo ocidental. Os membros da Corte, a origem de nossa elite nacional, tratavam esses negros como desprovidos de humanidade, pior que seus bichos domésticos. Portanto, gente sem direito à vontade.

Os rapazes da Corte inventavam jogos e brincadeiras em que podiam usar os afro-brasileiros, seus escravos, como melhor entendessem. Uma das brincadeiras mais comuns era a da “pedra perdida”, em que os rapazes, a pé ou montados em seus cavalos, atiravam pedras nos negros que passassem ao largo. A ideia era sobretudo a de lhes atingir a cabeça e assim ganhar mais pontos para seu time.

A sociedade brasileira de brancos segue atirando suas pedras nas cabeças de desempregados e necessitados que, não tendo como reagir, apostam naqueles que têm pior pontaria ou que prometem, depois das pedras, cuidar do sangue derramado. A pedra talvez lhe doa menos, se tiver a promessa de uma sopa na porta dos palácios onde não entram.

Ninguém mais se sente representado politicamente no Brasil, a desconfiança em relação aos políticos em atividade é absoluta. Mas cada vez que tratamos desse assunto, escolhemos sempre negar a importância da política, eliminá-la do concerto das ideias que podem mudar a sociedade. A política é o universo dos maus políticos que conhecemos de sobra, portanto é preciso evitá-la. Se possível, eliminá-la de nossa vida.

E, com isso, damos origem ao nosso especial populismo, aquele que reconstrói, com um sorriso nos lábios e um abraço apertado, a dependência em que vivemos e que não deixamos nunca de cultivar.
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Está em cartaz, no Rio e em São Paulo, a 23ª edição do festival internacional de documentários. É Tudo Verdade, dirigido por Amir Labaki. Aliás, “dirigido" é muito pouco para explicar o que Amir Labaki tem feito pela cultura documentarista em nosso país. É Tudo Verdade, o maior evento dessa natureza na América Latina, tem ajudado nossos documentaristas a descobrir os mestres da atividade. Dessa vez, o festival deu grande espaço em sua programação a documentários brasileiros, realizados por cineastas consagrados ou jovens iniciantes. No Rio, a inauguração do festival ocorreu na tradicional sala do Museu de Arte Moderna, com a exibição de “Carvana”, filme de Lulu Corrêa, sobre nosso grande ator e cineasta.

 

* Cacá Diegues é cineasta

 


Elisa Lucinda: Convocação à luz dos novos tempos!

 

Quero reafirmar que à luz dos novos tempos velhas narrativas não mais passarão.Não sobreviverão provérbios retrógados e retóricos e, menos ainda ,tradicionais omissões. Quando eu disse que “ coisa de preto” era subtexto de grande parte da mente nacional e muitas vezes das mentes do mundo, eu não estava fazendo uma hipótese. Estou falando de uma teoria filha da prática de uma experiência de existir numa sociedade racista, sendo muitas vezes a única negra não funcionária daquele ambiente, o que me dá um lugar muito particular que eu faço questão de compartilhar. Inúmeras vezes já ouvi e vi essa legenda gritando no olhar do meu julgador, depois de uma gargalhada, depois de uma coisa mais surpreendente, mais espontânea , de alguma coisa mais “exótica” , mais espalhafatosa, menos “comportada”.

Já vi esse olhar muitas vezes: “Coisa de preto, só podia ser preto”. O olhar sussurra pra si mesmo e eu escuto. É claro que fui criada num país multicolor, é claro que acreditei na democracia racial, mas só até entender a bipolarização fragrante entre brancos e pretos exposta como uma hemorragia atuante e invisível em todos os lugares que frequentei sendo a única negra do colégio de freiras, sendo eu e meus irmãos os únicos negros dos clubes, das colônias de férias dos funcionários da Vale do Rio Doce, e mais tarde , a única negra de muitos elencos. Uma espécie estranha de solidão. Então está posto o que é estrutural, o que é endêmico, o que é constituinte desta educação racista brasileira estendida a todos sob o manto da famosa “democracia racial.”

Balela.

Não sou eu, é o IBGE que afirma por cálculos concretos: da multidão de desempregados que perambula pelas ruas da desesperança no país 66% são negros. Os salários dos brancos são 55% maiores que os salários dos pretos, formando assim enormes corredores de exclusão preenchendo o quesito da subutilização da força de trabalho brasileira.Gerações e gerações de mulheres negras são multiplamente mais assassinadas que as não negras. O Brasil desperdiça seus filhos e têm especial predileção em desperdiçar as filhas e os filhos pretos.

Não os reconhece. Disso tudo sabemos e nos debatemos sem compreender a profundeza da teia racista que, impingida na cabeça de cada brasileiro, produz este estrago ,essa matança. O brasileiro ignorante histórico ,aquele ingênuo que cresceu sem se estarrecer com o ter existido o cruel tráfico humano nos navios carniceiros negreiros, cresceu achando bonito o quadro triste e trágico da primeira missa no Brasil, o retrato da primeira missa jesuíta; o ignorantemente histórico é aquele que aprendeu a gostar daquela Tragédia: índios nus nos cantos da igreja, tomando banho de vergonha, vivendo a violenta catequização, o extermínio de uma cultura , amargando a escrota e danosa fundação da culpa sendo por ela contaminados até não mais reconhecerem mais o que era Liberdade.

Pois é, meus senhores, o pretensioso domínio branco primou por dizimar, por encher de sangue a história do país a partir de sua predatória colonização. Agora, neste momento em que a República está em chamas e os poderes estão de costas para o povo, estamos por nossa conta e precisamos amadurecer como sociedade, lavar os preconceitos das escadarias da alma, uma lavagem forte, uma exigência do Axé.

É de tarde. Entro no carro, o taxista que me aguardava, com um bom desconto de 30% , me disse: “Eu esperava que vc saísse por esse portão aqui”. Era o portão da esquerda que ,na minha casa é o dos fundos, e é igualzinho ao da direita, portanto ele não podia supor, obviamente. Mas mesmo assim brinquei: Não, aquela, meu senhor, é a entrada dos fundos, a entrada dos brancos. Ele então, deu um sorriso muito sem graça, e eu completei : É estranho, né, para o senhor que é branco pensar assim? Ele disse: “É verdade, a gente não tá acostumado a pensar isso não”. E eu: Já pensou na televisão, numa novela , um elenco de 40 atores, 38 serem pretos e só 2 brancos?

E ele: “Já pensou, tudo ao contrário?”. Incrível, “ao contrário”, ele disse. Normatizamos tanto o preconceito que achamos normal uma situação de opressão. O certo perde a referencia. É ao contrário. Esse tema tem que vir para as mesas, tem que ser discutido e estar dentro da educação brasileira como conteúdo. Nem percebe-se que , dos 200 indicados na lava a jato todos os ladrões são brancos.Tem nenhum preto . A maioria infratores reincidentes. Mas nem se repara, nem comentamos.

É hora de lavarmos os olhos .Por isso a importância da disciplina de relações étnico raciais, nas universidades, nas escolas, na formação de professores. Urge.

Toda essa minha conversa, meus queridos, é a base para uma convocação,pois chegamos a um limite. O silêncio dos não racistas brancos tem feito falta nessa luta.

E está pegando mal. Vem constrangendo bons brancos.

José Bonifácio deixou muitos herdeiros, tratava-se de um homem branco, abolicionista, que não admitia escravos, pagava a quem contratava os serviços, um revolucionário. Onde estão seus descentes?

Um amigo louro meu me disse que havia na sua infância um garotinho que morava na rua de trás com quem ele gostava muito de brincar e que era o filho do dono da borracharia onde o pai consertava os pneus. Ainda assim seu pai dizia: “Não quero você brincando com esse menino”. Por que papai?” Quando você crescer entenderá; a gente trata bem, mas não deve se misturar. Você vai entender.”

Perguntei então a esse amigo hoje, se ele, agora que é grande já cresceu ,se ele entendeu. E , se entendeu , que escreva sobre isso, quero ler tais depoimentos. Os que receberam a educação escravagista da Casa Grande e não concordam com ela, não podem mais se calar. Foram proibidos de sonhar com a igualdade, treinados a produzir desigualdades, ensinados à ideia de uma “natural “ supremacia. Foram adestrados profundamente no seu imaginário de modo a não lhes ser permitido amar e casar com uma mulher ou um homem negro.

E aí ? Vai ficar por isso mesmo? Vão passar a mesma educação para as crianças de hoje? Continuará sendo perpetuado o racismo assim, na cara do século 21 e com essa contribuição destes silêncios? Pensará também assim a geração filha da esquerda brasileira, filha dos sociólogos, pesquisadores, antropólogos, engenheiros, ecologistas , médicos e artistas ? Filhos da elite branca e dita de esquerda deste país? Como vai ser isso?

Por isso a minha proposta no mês da Consciência Negra é chamar a todos os não negros que reflitam publicamente sobre a educação racista que receberam.Quando foi que perceberam que havia um plano diabólico e separatista envolvendo suas vidas? E o que vão fazer pra limpar a própria barra?

É isso mesmo,se não se pronunciam ,é natural que pensemos que todos os brancos são racistas ,a não ser que estes mesmos provem que não. Eis a minha proposta, ponham a mão neste vespeiro, contem aquilo que foi passado durante sua educação de forma sistemática , mas também como uma espécie de segredo,como algo do qual não se fala nunca, quase nunca abertamente.Será libertador.

Pela saúde geral , falem meus brancos, contem, libertem ,descubram se houve algum negro ou negra , ou mesmo um branco revolucionário em sua árvore genealógica ,ao qual trataram de esconder na névoa do tempo. Vamos abrir a caixa preta do silêncio branco até aqui.

Que se indague. Se investigue.O que terá ficado oculto nas partes escondidas , historicamente?

Vamos à está reflexão? É urgente. Quem diz é nossa antiga gente: Se posicione pois quem cala consente.

 

 

 


Germano Martiniano: William Waack e as redes sociais

Minha primeira reação a ver o vídeo de William Waack dizendo, “preto, coisa de preto”, foi condená-lo, afinal um jornalista do seu porte não poderia dar uma brecha dessas. Depois, repensando o caso, conversando com amigos, lendo opiniões na internet, comecei a questionar o limite entre a vida pública e a vida privada, e como as redes sociais interferem neste processo.

Para compreendermos melhor o caso de Waack precisamos, antes de tudo, definir algumas situações: piadas e expressões cotidianamente usadas em nossa vida PARTICULAR devem ser condenadas publicamente e passível de punições, como no caso do jornalista da Globo? Vamos aos argumentos possíveis:

1) Usando o caso de Waack, os que o condenam por racismo poderão dizer, “mesmo as piadas particulares ajudam a perpetuar, ainda que inconscientemente, um conceito de superioridade ou inferioridade de raça, que a acaba por se transferir para vida pública”.

2) Os que defendem não o comentário de Waack, porém que ele não seja execrado pela opinião pública e que não seja demitido pela Globo, podem afirmar, “mas, como iremos controlar o que cada pessoa diz em sua vida particular?”.

Precisamos analisar as possibilidades. No primeiro caso, o discurso de que piadas e expressões transferem para vida pública o pré-conceito tem fundamento, porém leva, inevitavelmente, para o segundo caso e o problema fica maior: definir o que é moralmente aceito ou não na vida particular das pessoas.

O mundo atual, defensor ferrenho das liberdades individuais, neste caso de Waack discute: ele merece punição? Se ele dissesse ao vivo, para o povo brasileiro, sim! Mas, ele disse em seu particular. Temos de convir, que ainda que discordemos do que as pessoas dizem na vida privada, como condená-las publicamente e exigir punições? Não seria querer estabelecer um padrão de comportamento que é paradoxal com o intuito das liberdades individuais?

Não se analisa aqui conteúdo em si, pois como dito Waack vacilou, estamos analisando a vida privada das pessoas, na qual cada cabeça é um universo que necessita ser respeitado, desde que o mesmo não cerceie a individualidade alheia e respeite as leis sociais. Ou seja, desde que palavras, piadas, expressões etc., não se tornem em atos públicos que irão reduzir os direitos de certos grupos sociais!

Redes Sociais

Com o advento dos “super-celulares” que todas as pessoas possuem e são capazes de registrar e investigar a vida alheia e também com o discurso do politicamente correto que impera nos dias atuais, o limite entre vida pública e privada está, cada vez mais, confuso. Se o mundo passar a ser um lugar de “detetives de plantão” com smartphones, teremos de julgar e condenar a maioria da população.

Outro problema em se julgar situações a partir de vídeos, textos, fotos e áudios em redes sociais é que, na maioria das vezes, o contexto da situação que se espalhou é ignorado. A pessoa acusada é perseguida por um ato isolado sem que se análise sua vida no geral e até mesmo o fato originou a acusação. Sem falar nas edições de vídeos, imagens e áudios, nas quais se pode “planejar o crime perfeito”.

Como disse a jornalista Lúcia Boldrini, citada em texto de Reinaldo Azevedo em defesa de Waack, “no dia em que os esfoladores conseguirem acabar também com o nosso sarcasmo privado, só sobrarão eles, os esfoladores”.


Roberto Freire: A marcha do ódio e um alerta para o mundo

Todo o mundo permanece estarrecido e acompanha com enorme preocupação as consequências dos acontecimentos do último fim de semana em Charlottesville, no Estado da Virgínia (Estados Unidos). As ruas da pequena cidade norte-americana, de cerca de 50 mil habitantes, foram palco de uma série de atos de violência perpetrados por grupos de supremacistas brancos de corte claramente neonazista, xenófobo e racista, e de confrontos com manifestantes que protestavam justamente contra os extremistas de direita. Ao menos uma pessoa morreu e dezenas ficaram feridas.

Historicamente considerada progressista, Charlottesville é a cidade onde viveu Thomas Jefferson (1743-1826), o terceiro presidente dos Estados Unidos e um dos mais emblemáticos “pais fundadores” da nação norte-americana, principal autor da Declaração da Independência e defensor do republicanismo. Os grupos extremistas de direita, aliados a neonazistas e adeptos da famigerada Ku Kux Klan, foram às ruas para protestar contra a retirada de uma estátua do general Robert E. Lee, um dos símbolos dos movimentos escravocratas e líder dos confederados na Guerra Civil Americana (1861-1865) – batalha sangrenta que opôs estados do sul (escravagistas) e do norte, deixando mais de 600 mil soldados mortos.

O que se pode observar das cenas que o mundo todo acompanhou nos últimos dias é a manifestação de um nacionalismo exacerbado que insufla discursos de ódio, intolerância e preconceito. Os grupos que tomaram as ruas de Charlottesville e protagonizaram cenas de horror são movidos pela xenofobia, pelo racismo, pela tentativa de anulação do outro. Não aceitam a diversidade e pretendem eliminá-la de qualquer forma, seja com socos, pontapés, paus, pedras, barras de ferro ou tiros.

Se em qualquer tempo, em qualquer época e sob qualquer circunstância esse tipo de violência é inaceitável, é evidente que ela se torna ainda mais ultrajante no mundo globalizado do século XXI, em que vivemos em uma “aldeia global” e estamos plenamente interconectados. Muitas vezes as pessoas vivem e trabalham longe de suas cidades ou mesmo de seus países de origem. Internacionalista que sou, não posso tolerar a xenofobia, a perseguição aos imigrantes ou refugiados, o extremismo que não aceita a convivência com o estrangeiro. O mundo de hoje, afinal, caminha para não ter mais fronteiras.

Como se não bastasse tamanho radicalismo, o que temos observado, especialmente nas redes sociais, é uma tentativa de parte da direita brasileira de relacionar o nazismo à esquerda. Evidentemente, trata-se de um raciocínio enviesado e desprovido de qualquer embasamento histórico. Guardadas as devidas proporções, essa estultice talvez só seja comparável à invencionice de alguns supostos intelectuais que chegaram às raias do absurdo ao negar a existência do Holocausto – o genocídio de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, extermínio atroz praticado pelo estado nazista.

O horror nas ruas de Charlottesville não deixa dúvidas sobre os responsáveis pelo recrudescimento dessa horda radical e segregacionista. A origem de tais movimentos está justamente em grupos neonazistas da direita norte-americana, que felizmente enfrentam forte reação da parcela amplamente majoritária dos cidadãos daquele país. Grosso modo, a população dos Estados Unidos, independentemente de suas colorações partidárias, repudia com veemência os ideais racistas e xenófobos dos supremacistas e de uma espécie de “nova roupagem” da Ku Kux Klan – que nada tem de novidade, ao contrário, alimenta velhos preconceitos e o reacionarismo que sempre marcaram suas ações.

Traçando um paralelo com a realidade brasileira, por mais que os acontecimentos em Charlottesville nos pareçam distantes, temos de estar atentos para que esse tipo de manifestação não ganhe força também por aqui. Já existem no Brasil uma extrema-direita e parcelas da esquerda que não têm nenhum compromisso com a democracia. O principal líder de uma nova organização partidária possivelmente denominada “Patriotas” é um notório defensor da ditadura militar brasileira que infelicitou a nação por mais de 20 anos e entusiasta, inclusive, da tortura por ela praticada. Por outro lado, como se sabe, há uma parte da esquerda que apoia abertamente o regime ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela.

Nossa missão é trabalhar pela construção de uma candidatura que unifique o campo democrático e evite que, nas eleições de 2018, a disputa pela Presidência da República se polarize entre duas alternativas autoritárias e descomprometidas com os valores democráticos. Nesse diapasão, tenho acompanhado com entusiasmo o debate fomentado por organizações suprapartidárias e movimentos da sociedade civil sobre qual seria a melhor alternativa para aglutinarmos o campo do centro democrático em torno de um verdadeiro projeto de país.

Que o horror em Charlottesville sirva como um sinal de alerta não só para o Brasil, mas para todo o mundo. Nenhum país está a salvo do extremismo e dos discursos vazios que oferecem soluções simples e equivocadas para questões complexas. Em resposta ao ódio, pregamos a paz. Contra o racismo, defendemos a igualdade. No combate ao preconceito, propomos a tolerância. Para cada rompante autoritário, valorizamos ainda mais a democracia. A civilização sempre vencerá a barbárie.