racismo
Dorrit Harazim: O Brasil tem caráter?
De início, Carrefour decretou o fechamento da unidade por um dia em respeito ao morto. Não parece ter entendido o tamanho do estrago
"Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis", escreveu Bertolt Brecht às vésperas da Segunda Guerra. O dramaturgo alemão referia-se a crimes do Terceiro Reich que apenas pressentia. A extensão do horror só ficou explicitada quando os campos de concentração foram escancarados. E fotografados. Naquele tempo, 75 anos atrás, o telefone celular ainda estava longe de fazer parte da mão humana. Hoje tornou-se extensão do nosso existir, e a realidade parece só existir se houver seu comprovante instantâneo, de preferência com imagem em movimento. Um grande salto de engenhosidade, progresso tecnológico, totem de um futuro sem fronteiras. Ficou faltando aprimorar o essencial: o próprio bípede humano, ainda tão imperfeito e cego.
O assassinato do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas na garagem de um supermercado Carrefour gaúcho, à noite, tinha tudo para permanecer obscurecido. Só deixou de depender de versões dissonantes, querelas circunstanciais ou imprecisas, porque alguém gravou a cena esclarecendo a natureza do crime pelo celular. Assistimos assim a um assassinato a sangue quente, primitivo, sem a intermediação sequer de uma arma. O homem negro já subjugado foi espancado na cabeça e rosto até lhe faltar vida. Sua morte teve por testemunha a esposa impedida de socorrê-lo, uma penca de seguranças e funcionários do Carrefour, além da plateia global que foi se inteirando do fato. No chão da garagem respingada de sangue, sobrou de João Alberto um solitário chinelo de dedo.
Não foi, portanto, um crime invisível. Ou será que foi? Na pergunta está embutido o horror maior: apesar de saberem que estavam sendo filmados, os dois matadores profissionais (um PM e um segurança, ambos brancos) não interromperam o ato. “Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis”, repetiria Brecht sobre o crime contra a raça negra que, de tanto sustentar a construção do Brasil, se tornou invisível — mesmo quando visível.
O Brasil acabou com a escravidão e adentrou a pós-abolição sem criar leis claramente segregacionistas. Mas encontrou formas igualmente perversas de lidar com os negros, contou em entrevista à BBC, anos atrás, a historiadora Luciana Brito, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Segundo a professora, “a educação para sobreviver numa sociedade racista a partir do não dito tornou mais difícil para pessoas negras se organizarem em torno de um inimigo visível… Você entra numa loja e não é expulso, mas a vendedora a ignora. Quem não a ignora é o segurança. Até o policial negro é treinado pelo Estado para achar que todas as pessoas que se parecem com ele são criminosas. Quando está de farda, ele perde a identidade racial. Ganha uma espécie de selo de qualidade. Vira o ‘negro de bem’ ”.
As primeiras reações do Brasil oficial que despertou na sexta feira para a morte do soldador João Alberto foram as esperadas. Era o Dia da Consciência Negra, e o presidente da República estreou logo cedo elogiando Pelé. Silenciou sobre o crime que, no final da tarde, levaria o Brasil real às ruas. A Brigada Militar informou que o policial assassino é apenas “PM temporário” e que a corporação é “uma instituição dedicada à proteção e à segurança de toda a sociedade”; para Roberta Bertoldo, delegada do caso no 2º Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) de Porto Alegre, “não há indícios de racismo até o momento”. Para o vice Hamilton Mourão, “no Brasil, não existe racismo”.
O Carrefour se manifestou já de madrugada, até porque não poderia continuar dormindo. Tem no currículo, em dobradinha com os serviços de segurança que contrata, o espancamento de um deficiente físico e de outro cliente negro suspeito de estar assaltando o próprio carro, além de controlar a ida ao banheiro de funcionárias, e de ter mantido encoberto por guarda-sóis e caixotes, durante quatro horas, o corpo de um promotor que morrera numa unidade do Recife. Em nota, a empresa garantiu adotar “as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos neste ato criminoso” e, de início, decretou o fechamento da unidade de Porto Alegre por um dia em respeito ao morto. Não parece ter entendido o tamanho do estrago.
O repórter Matheus Prado, do CNN Brasil Business, ouviu dois analistas do mercado, e nenhum deles acreditava que o caso teria impacto duradouro no preço das ações do Carrefour. “Uma revolta a curto prazo, talvez”, resumiu um deles, da Guide. Bom teste para o Brasil.
Caráter, ou a disposição de aceitar responsabilidade pela própria vida, é a fonte da autoestima, escreveu Joan Didion num de seus notáveis ensaios. Se o conceito for aplicado também a países e suas sociedades, fica a pergunta: o Brasil tem caráter?
Vinicius Torres Freire: O mimimi das empresas que matam e o Carrefour
Empresas terceirizam responsabilidades para fugir da culpa, na Vale ou no Carrefour
Quando a lama da Samarco matou 19 pessoas em Mariana, em 2015, a Vale disse: "A Vale é apenas uma mera acionista da Samarco, sem nenhuma interferência operacional na administração dessa companhia, de modo direto ou indireto, próximo ou distante".
Era verdade. A Vale tinha "responsabilidade limitada" por lambanças da Samarco, embora essa limitação se torne mais e mais controversa. Já a “responsabilidade social e ambiental” foi logo para o vinagre tinto de sangue. O negócio era pegar a grana de acionista e terceirizar a imundície. Tanto era esse o caso que, em 2019, a Vale largou centenas de pessoas no caminho da lama da morte em Brumadinho.
Terceirizar a imundície é um negócio, na contratação de empresas selvagens de segurança ou de feitores que escravizam imigrantes costureiros de roupa de ricos, mas não só. O Carrefour terceirizou sua segurança para uma empresa de policiais, propriedade ilegal. Um funcionário dessa Vector matou João Alberto Freitas, aos 40 anos.
“Ah, essas empresas são quase todas assim”, talvez de milícias. Sim. Então, bota a boca no trombone, chama a Lava Jato, se vira. Para apoiar governo que sabota a democracia, faz propaganda do vírus, queima floresta e insulta “viado” vocês têm tempo e disposição, certo?
Quando dá besteira, polícia ou morte, executivos de empresas aparecem compungidos, “sofrendo”, tentando sair de fininho, seguindo o roteiro do “gerenciamento de crises”. As mais toscas dizem “não sabíamos”, “a empresa [que fez a porcaria direta] é terceirizada” ou “é caso isolado”, essas burrices sórdidas e insolentes.
Na hora de enfiar a faca no pescoço de quem atrapalha os ganhos, certas empresas vão bem. Quando se trata de evitar que enfiem o joelho no pescoço do “crioulo”, dane-se.
Quer conter risco? Até por frio pragmatismo, contrate empresas limpas. O Carrefour tem dinheiro. Faturou R$ 60 bilhões em 2019. Em 2020, está faturando 17% mais. O lucro neste ano já cresceu 49,5%. Os acionistas controladores são o Carrefour France (71,6%) e a holding Península (da família de Abílio Diniz, com 7,7%). Por falar nisso, no dia em que mataram o homem, o Ibovespa caiu e a ação do Carrefour subiu.
Além do mais, faça um contrato draconiano: pisou no pescoço, está fora. Ou, como ouvi no início deste século de um presidente de bancão: “Se o sujeito me perde tantos milhão [sic], a gente chupa o sangue dele”.
“…Queremos gerar uma experiência agradável de compra”, lê-se na introdução do “Relatório Anual de Sustentabilidade” do Carrefour, esses blablás de coach, de relações institucionais e de mendacidades socioambientais. Mas o segurança matou o homem preto.
“…Contribuímos para a inserção deles [“colaboradores”] no mercado de trabalho, priorizando segmentos historicamente discriminados”. O homem preto morreu.
“Nosso objetivo é fazer a diferença nos locais em que atuamos …através de ações de proteção ambiental, da promoção da diversidade e solidariedade”. O homem preto morreu.
Não é a primeira do Carrefour nem de supermercados e shoppings, onde volta e meia há um capanga da segurança da “sustentabilidade” dando um mata-leão em outro alguém do povaréu, tanto faz se tenha furtado um biscoito ou não. Estão preocupados com vidas à beira de uma represa da morte? Com o imigrante ou o terceirizado escravizado? Com o homem negro que morre na loja ou na “sala de massagem” (de tortura)? “Chupa o sangue” de quem barbariza, talvez o seu próprio, ou para de conversinha. Enfim, é preciso rever também a terceirização irresponsável.
Janio de Freitas: 'No Brasil não existe racismo', fala de Mourão, é a mais racista das frases
Considerar que inexiste racismo é dizer que discriminação compõe tratamento correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros
“No Brasil não existe racismo.” Essa é a mais racista das frases entre nós. Seu autor é um general, um dia eleito presidente do Clube Militar como reconhecimento às suas manifestações extremistas. Com a elevação à liderança do radicalismo de direita, no mesmo ano foi indicado pelo comando do Exército para completar a candidatura de Jair Bolsonaro, assim chegando à mais alta condição atual de um militar brasileiro —general-vice-presidente da República.
Considerar que inexiste racismo no Brasil é dizer que toda a discriminação social sofrida pela negritude, sua desvalorização remuneratória, a maior vitimação nas ações policiais, a proporção maior na pobreza, e tanto mais, compõem um tratamento correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros. Em tal caso, o que é racismo, raiz da violência mais disseminada no tempo e no planeta, seria considerado o humanamente normal e o legalmente adequado para os negros. É o que a sentença do general-vice proclama.
Nos últimos anos, temos convivido com uma forma de poder em que se combinam a anti-ideia, a obturação dos canais da percepção, a disfunção da experiência, a recusa ao conhecimento e à compreensão. Não é exclusividade do Brasil, Trump e metade dos Estados Unidos mostram-se com autenticidade, para engasgo dos que jamais quiseram vê-los como são. Aqui, porém, chega a parecer que os últimos anos cumprem programas perversos para exibir as cruezas da realidade.
É o que faz o batalhão de generais na ativa do governo e adjacências. Caso houvesse um programa para arruinarem a imagem do Exército, não seria diferente do que nos mostram. O Exército que chegou ao governo Bolsonaro era um, outro é o que a opinião pública vê. Bolsonaro, até na volta ao “capitão”, e Exército se entrelaçam. A noção, entre militares, desse dano institucional ficou perceptível em referências à desvinculação entre Exército e governo. Embora sem efeito, que palavras não desfazem esse nó muito cego.
Ao contrário, a coisa até se complica. Como as eleições de agora insinuam. Os resultados suscitam muitas interpretações diferentes, mesmo opostas, e ainda assim não desprezíveis. Está visto que o centrão e a direita tiveram segmentos de ganho, o status do DEM elevou-se e fortaleceu-o bastante. Mas Boulos, Manuela D’Ávila e Marília Arraes, entre outros, revelam recuperação de saúde surpreendente, e promissora, da esquerda. É muito e não é tudo. Só com o segundo turno haverá maior nitidez da nova disposição de forças. Exceto em um caso, que dispensa a espera.
Bolsonaro é o derrotado. O importante, no entanto, é não se tratar só dele, em pessoa. É o dispositivo de que ele é o ativador, nem sabe por quê. O crescimento de partidos como o PSL, o PP e o PSD é de correntes que, apesar de identificações ideológicas, são caras e inconfiáveis. Dos candidatos que apresentaram o sobrenome Bolsonaro, só o filho Carlos se elegeu, em devastadora perda de energia do símbolo no eleitorado. Perdas e inseguranças assim são numerosas.
E outras serão decorrentes.
As perspectivas para 2021 não são simpáticas a soluções dos problemas que crescem. Não o são também, portanto, à rejeição a Bolsonaro, já em 50% em São Paulo, e ao derrotado dispositivo. Lembra o lugar-comum que Bolsonaro passa e o Exército fica. Caso não haja mesmo a recuperação, as perdas não serão iguais para as duas partes enlaçadas. Daí que Exército não deva se ligar a governo, sendo instituição do Estado. Ideia clássica e lembrada agora, com muito aplauso na imprensa, pelo comandante do Exército. Mas não foi na história do Brasil que o general Edson Pujol se baseou.
CO-AUTORIA
O governo do Rio Grande do Sul também é responsável pela monstruosidade que assassinou João Alberto Silveira Freitas. Policial militar temporário é excrescência. Inconstitucional e já repudiada pelo Supremo. Apesar disso, mantida pelo governador Eduardo Leite, para ver agora, na pessoa de um temporário assassino, o resultado de sua própria excrescência.
Elio Gaspari: Há racismo e também demofobia
Desigualdade não explica assassinato de Beto Freitas em Porto Alegre
Só na semana que vem será possível medir o impacto eleitoral do assassinato de João Alberto Silveira Freitas pela milícia formalizada da rede francesa Carrefour em Porto Alegre. No dia 9 de novembro de 1988 uma tropa do Exército matou três operários que ocupavam a usina de Volta Redonda. Seis dias depois, para surpresa geral, a petista Luiza Erundina foi eleita para a Prefeitura de São Paulo.
Como disse o vice-presidente, Hamilton Mourão, João Alberto, o Beto, era uma “pessoa de cor”. Seu assassinato aconteceu no mesmo dia em que o Carrefour anunciava na França sua disposição de boicotar os produtos brasileiros vindos de áreas desmatadas do cerrado. Beleza, em Paris milita-se na defesa das árvores enquanto em Porto Alegre mata-se gente.
Esse tipo de comportamento é velho e disseminado. Em 2001 a milícia formalizada da rede Carrefour prendeu duas mulheres no Rio de Janeiro e entregou-as à milícia informal de traficantes de Cidade de Deus. Foram espancadas, mas os bandidos não cumpriram a ameaça de queimá-las vivas. Quando o caso foi denunciado, o embaixador francês era o professor Alain Rouquié, um conhecido intelectual parisiense. Ele foi ao governador Anthony Garotinho e reclamou do noticiário que prejudicava a imagem internacional do Carrefour.
Pelos critérios americanos do século 19 e sul-africanos do 20, Mourão é uma “pessoa de cor”. A escrava de Thomas Jefferson com quem ele se acasalava era mais branca que o general.
Segundo o vice-presidente e muita gente boa, no Brasil não existe racismo, existe desigualdade. O que pretende ser uma explicação é um agravo. Desigualdade não explica esse tipo de assassinato. Eles são produto da demofobia, onde o racismo tem um papel funcional, pois a cor identifica as pessoas sem direitos. Se Mourão tivesse razão, a coisa funcionaria assim: se você é pobre, ferra-se, se ainda por cima é negro, dana-se. Pelo menos um dos três mortos de Volta Redonda era branco.
Brincando com computadores
O presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Luiz Fux, anunciou que “nós precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos, principalmente porque estamos lançando, pelo CNJ, o Juízo 100% Digital.”
Atrás desse nome bonito está a ideia de colocar todos os processos do país numa rede de computadores. Coisa de sonho. Como ensina a cartilha do CNJ: “Os magistrados poderão dar vista às partes para que digam se concordam com a tramitação de ação já distribuída de acordo com o rito do ‘Juízo 100% Digital”.
Entre a ficção de Brasília e a realidade de Pindorama, o projeto perfilhado por Fux equivale a uma cerimônia na qual o prefeito de Macapá anuncia um novo sistema de iluminação pública para a cidade.
O sistema foi exaltado durante a primeira reunião do Comitê de Segurança Cibernética do Poder Judiciário, criado do dia 11 de novembro. A porta havia sido arrombada uma semana antes, quando a rede do Superior Tribunal de Justiça foi invadida e a corte ficou vários dias fora do ar. Quatro dias depois o computador do Tribunal Superior Eleitoral engasgou, atrasando por algumas horas o resultado da eleição de domingo.
O problema seria despiciendo se não tivesse sido precedido por promessas megalomaníacas de pontualidade que chamavam o equipamento de “supercomputador”. Investigado, o acidente revelou-se consequência de um atraso na entrega de máquinas que deveriam ter chegado em março e só vieram em agosto.
Um Judiciário 100% digital é boa ideia, mas precisa de muita transparência e pouca pressa. Essa panela está no fogão do CNJ desde o ano passado e começou a andar depressa em julho, no meio da pandemia.
A iniciativa depende da utilização de um programa de integração das varas, criando um padrão que deverá ser seguido por todos os tribunais. Não se conhece o detalhamento da demanda. É coisa grande e tramita no sistema de reuniões virtuais dos ministros. Felizmente, a ministra Maria Thereza Assis Moura, corregedora nacional de Justiça, pediu que assunto fosse discutido numa reunião presencial. Ela deve se realizar na terça-feira (24).
O escurinho de Brasília já produziu um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando computadores, laptops e notebooks para os alunos da rede pública. A Advocacia-Geral da União mostrou que a licitação estava viciada e que os 255 alunos de uma escola mineira receberiam 30.030 laptops. Até hoje não se sabe quem botou esse jabuti na árvore.
O “Juízo 100% Digital” precisará de software. Sem ameaçar a segurança da rede, o CNJ tem meios para divulgar as exigências técnicas para equipá-lo. Além disso, está embutida na ideia um discutível encanto pelo trabalho remoto.
Fux tem toda razão quando diz que “precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos”. Quem já comprou um computador ou já contratou um serviço sabe que a melhor maneira para fazer isso é estudar direito as propostas, para cantar vitória depois. Em Brasília cultiva-se outro modelo: havendo um problema, lança-se um novo projeto.
Até tu, OAB?
A Ordem dos Advogados do Brasil se mete em tudo. Agora a Operação Biltre da Polícia Federal bateu em doutores que mexiam com processos do Tribunal de Ética e Disciplina da sua seccional paulista. Segundo as denúncias, a tarifa era de R$ 250 mil.
Diante dos mandados de busca e apreensão a seccional informou que “em razão da investigação a que tivemos notícia nesta data foi determinada a imediata apuração interna sendo que a OAB e o seu Tribunal de Ética e Disciplina estão cooperando com as autoridades competentes”.
Ótimo, mas o uso da expressão “está cooperando” tornou-se uma girafa desde quando foi usada pela Odebrecht.
No caso da Odebrecht, como se viu, o problema estava no fato de que a colaboração só começou quando chegaram os homens da Federal.
Para o bem de todos, a OAB de Raymundo Faoro não deixará essa história sair a preço de custo.
MADAME NATASHA
Natasha não perde uma fala de Bolsonaro e acredita que ele merece uma sugestão astroidiomática. A senhora acredita que deve pensar duas vezes antes de usar diminutivos.
Na metade de março, quando a Covid havia matado menos de dez pessoas, ele falou em “gripezinha” e “resfriadinho”. Na sexta-feira, 13, quando já haviam morrido mais de 160 mil pessoas, ele disse que “agora tem essa conversinha de segunda onda”. Na véspera a pandemia teve um pico, com 908 mortes.
Natasha é supersticiosa e suspeita que os diminutivos do capitão chamam desgraças.
Vera Magalhães: João Alberto e as urnas
Casos de grande comoção às vésperas de pleitos podem influenciar o voto
Casos como o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, por espancamento seguido de asfixia numa loja do Carrefour em Porto Alegre, ocorrido na última quinta-feira, quando acontecem próximos de eleições, costumam ter o condão de virar tema das campanhas e mobilizar setores do eleitorado.
O exemplo recente mais rumoroso vem dos Estados Unidos e tem muitos pontos de contato com o caso João Alberto: foi o assassinato de George Floyd por asfixia por policiais em Minneapolis, em maio. Lá como aqui, a ação dos assassinos foi filmada. A frase repetida por Floyd, “I can’t breath”, que significa “Eu não posso respirar”, virou mote de manifestações que cobriram o país.
O movimento Black Lives Matter, ou Vidas Pretas Importam, surgido anos antes, ganhou dimensão nacional e deu força a grupos locais, que tiveram grande engajamento nas eleições presidenciais e peso real na vitória de Joe Biden sobre Donald Trump em Estados como a Geórgia.
No Brasil, os casos mais conhecidos de comoção nacional às vésperas de pleitos são a greve da siderúrgica CSN em Volta Redonda, em 1988, e o massacre do Carandiru, em 1992, em que 111 presos foram chacinados pela Polícia Militar para conter uma rebelião.
No primeiro, operários da Companhia Siderúrgica Nacional, ainda estatal, entraram em greve por reajuste salarial e redução de jornada e tomaram a planta de Volta Redonda (RJ). Quatro dias depois do início da greve, em 9 de novembro, o Exército e a PM invadiram a empresa e três grevistas foram assassinados.
As eleições municipais nas capitais ocorreram no dia 13 e, em São Paulo, venceu Luiza Erundina, feito inédito do PT numa capital. As pesquisas até as vésperas apontavam vitória tranquila de Paulo Maluf, e cientistas políticos e historiadores veem grande peso de Volta Redonda na virada.
Quatro anos depois, o massacre do Carandiru ocorreu na noite de 2 e outubro, a sexta-feira anterior à eleição. Ali, no entanto, a tragédia não teve influência no pleito, porque a Secretaria de Segurança Pública abafou os dados. Paulo Maluf venceu e o candidato do governador Luiz Antonio Fleury Filho, Aloysio Nunes Ferreira, ficou em terceiro lugar.
E agora, como o caso João Alberto vai ecoar nas urnas? Em Porto Alegre, onde ocorreu o assassinato, Manuela D’Ávila (PC do B) enfrenta uma eleição dura, em que foi, ao longo de toda a campanha, alvo de ataques ferozes dos adversários e agora aparece nas pesquisas em desvantagem em relação a Sebastião Melo (MDB). Ela se engajou de imediato nos protestos pela morte de João Alberto.
Em São Paulo também pode haver influência do crime. Foi aqui que ocorreu o maior protesto depois do assassinato, com o quebra-quebra numa loja do Carrefour nos Jardins. Guilherme Boulos não participou. O candidato do PSOL tem lutado na campanha contra a pecha de “radical”. As urnas mostraram que candidaturas em defesa de direitos civis, equidade e diversidade encontraram um eleitor disposto a investir nessas agendas, antes tachadas pejorativamente de “politicamente corretas” ou “identitárias”.
A sanha com que Jair Bolsonaro oprimiu minorias, ou mesmo maiorias sem representatividade política, provocou reação oposta dois anos depois de sua eleição. No caso João Alberto, o presidente só se manifestou 24 horas depois, para negar racismo no ocorrido e sem mencionar o nome da vítima nem se solidarizar com sua família.
Os próximos dias vão mostrar se o caso João Alberto vai virar tema central da campanha ou se os protestos vão perder fôlego. E o que terá mais peso: o voto de protesto contra a recorrência de fatos como esse ou a reação maior de parte da sociedade ao que ela chama de “vandalismo” que ao assassinato em si?
Eliane Cantanhêde: Nosso Floyd, nosso Trump
Por mais absurdo, Camargo faz sentido num governo negacionista e 'daltônico'
O presidente Jair Bolsonaro e o vice Hamilton Mourão têm posições divergentes numa série de questões, inclusive na política externa e na importância das vacinas contra a covid-19, mas em algo eles estão perfeitamente em sintonia: ambos dizem abertamente que não há racismo no Brasil. Nesse caso, o negacionismo não é exclusividade do presidente.
Ao se dizer “daltônico”, Bolsonaro admite que não consegue ver a realidade, os fatos e estatísticas, mostrando, por exemplo, que 75% das mortes violentas no país que governa são de pretos e pardos. Para disfarçar, tira pilhas de fotos com o deputado Hélio Negrão. E Mourão, que já chocou ao falar em “malandragem dos africanos”, voltou à carga. Quando? No dia da Consciência Negra, quando João Alberto foi assassinado brutalmente, como George Floyd nos EUA, por… ser negro.
“Digo com toda a tranquilidade: não existe racismo no Brasil”, declarou Mourão, que chama negros de “pessoas de cor” e, depois de morar nos Estados Unidos, garante que “racismo tem é lá”, aqui “a sociedade é misturada”. Como não é ignorante, muito pelo contrário, deveria olhar os dados oficiais sobre desigualdade, escolas, prisões, violência policial, mercado de trabalho. O racismo é real, massacrante.
A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, criticou duramente a morte de João Alberto, o Beto, mas sem usar a palavra “racismo” e sem sequer dizer que ele era negro – aliás, como omitiu a própria ocorrência policial. E o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, um negro doentio que nega o racismo, diz que a escravidão foi boa e acusa os movimentos negros de “escória maldita”, fez ainda pior. Em vez de repúdio ao massacre do Beto por dois seguranças brancos – o que não mereceu um gesto ou manifestação dele –, Camargo pregou o fim do Dia da Consciência Negra, porque “não existe racismo estrutural no País”. Partindo de brancos já é inadmissível; de um negro, é imoral. E um negro que preside o órgão responsável pelo rico acervo da história dos afrodescendentes no Brasil.
Por mais absurdo que Camargo seja, porém, ele faz todo sentido num governo que nomeia um cidadão que jamais pisara na Amazônia para o Meio Ambiente, um embaixador júnior de textos e discursos sem nexo para o Itamaraty, uma mulher que é contra os avanços civilizatórios para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
E na Educação? Um estrangeiro que se atrapalhava com o português, um desqualificado que ameaçava prender os ministros do Supremo, um fraudador de currículos e agora um pastor para quem os gays são fruto de “famílias desajustadas”. Sem falar, claro, de um general intendente para o Ministério da Saúde em plena pandemia e de um secretário de Cultura que usava eventos oficiais para divulgar textos e símbolos nazistas. Camargo, portanto, está em casa.
Uma única palavra resume tudo isso: negacionismo. Porém, ministros e secretários não passam de meros papagaios e executores de políticas que aterrorizam o mundo e o novo presidente dos EUA, Joe Biden, mas vêm “de cima”. Embriagado pela ideologia e por uma desconcertante ignorância sobre tudo, o presidente nega racismo, pandemia, queimadas, ciência, estatística e, principalmente, bom senso e bons modos.
Não, Bolsonaro não é culpado pelo assassinato do Beto, mas ele precisa admitir que o racismo existe, é imoral e criminoso e que o Dia da Consciência Negra é um grito de alerta, de socorro e de Justiça. Mulher branca, eu jamais seria trucidada por dois brutamontes covardes num supermercado. Beto foi por ser um homem negro e pobre, como tantos filhos, pais, irmãos e maridos trucidados neste País todos os dias, toda hora. É racismo, sim! Vidas negras importam!
Ricardo Noblat: Exortação à brava gente brasileira
Longe vá temor servil
Racismo não existe. Tampouco desmatamento da Amazônia e, nesse caso, embaixadores de países europeus puderam conferir ao vivo. Pantanal em chamas? Que é isso? Começou a chover por lá. Quanto à pandemia, não passou de exagero da Organização Mundial de Saúde. Foi uma gripezinha. Só os mais fracos, que mais dia, menos dia, morreriam, de fato morreram.
E antes de dar por findo o rol de fake news criadas pelos verdadeiros inimigos do Brasil – sim, os extremistas de esquerda -, acrescente-se que ditadura militar, por aqui, nunca houve. Nem assassinatos de inimigos de um regime que, no limite, pode ser chamado de autoritário. Necessariamente forte na época em que o comunismo ameaçava a civilização ocidental e cristã.
Resta desmentir o apagão que deixou às escuras 13 dos 16 municípios do Amapá esquecido durante 14 anos pelos governos do PT e de Michel Temer. Exagero chamar de apagão o que ocorreu por lá. Um raio queimou duas subestações de energia. Quem pode prever um raio e o local onde ele vai cair? De imediato, o governo federal tomou as providências cabíveis.
Diga-se que o governo federal nada teria a ver com isso. A responsabilidade é do governo local. Mas o presidente da República não ficaria de braços cruzados enquanto uma fatia dos brasileiros enfrentasse dificuldades mesmo que temporárias. Em breve, a luz voltará a iluminar o Amapá. E as vozes isoladas que, ontem, hostilizaram o presidente se calarão arrependidas.
O país está em ordem. Reina a paz. E dará em nada a tentativa em curso de importar o vírus da segregação social para se jogar irmãos contra irmãos só porque dois policiais mal treinados mataram sem querer uma pessoa de cor. Somos todos daltônicos, e assim deveremos ser. As cores que enxergamos são o verde e o amarelo. Nossa bandeira jamais será vermelha. Deus acima de tudo!
Bernardo Mello Franco: O negacionismo no poder
A Amazônia não está em chamas. O aquecimento global é uma ficção. O Brasil nunca teve ditadura. A Covid é só uma gripezinha. Não há mais corrupção no governo.
Na sexta-feira, o vice-presidente Hamilton Mourão deu uma nova contribuição à galeria de mentiras oficiais. “No Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar”, afirmou o general.
O negacionismo é um dos pilares do bolsonarismo. O capitão e seus aliados travam uma guerra permanente contra a verdade. Não se trata de discordar do politicamente correto. A ordem da extrema direita é desacreditar os fatos, a ciência e as instituições que fiscalizam o poder: imprensa, universidades, organizações não governamentais.
Mourão negou a existência do racismo no Dia da Consciência Negra, criado para lembrar o que figuras como ele tentam esconder. Neste ano, a data foi banhada de sangue. Na véspera do feriado, dois seguranças brancos espancaram um homem negro até a morte numa filial do Carrefour em Porto Alegre.
A negação do racismo é coerente com o histórico de declarações do general. Em agosto de 2018, ele culpou a miscigenação por uma suposta aversão dos brasileiros ao trabalho.
“Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem, nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano”, afirmou, numa palestra em Caxias do Sul.
Dois meses depois, Mourão fez uma piada racista ao elogiar a aparência do neto. “Meu neto é um cara bonito, viu ali? Branqueamento da raça”, disse, em Brasília.
O crime do Carrefour escancara o que hoje é chamado de racismo estrutural. João Alberto Silveira Freitas pode não ter sido morto por ser negro, mas provavelmente estaria vivo se fosse branco. Brasileiros pretos e pardos sabem o que é entrar numa loja e serem tratados como suspeitos em potencial. Estão mais expostos a revistas, humilhações e espancamentos.
A rotina de discriminação se reflete nas estatísticas da violência. Negros têm 2,7 vezes mais chances de serem assassinados, informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Representam 56% da população e 74% das vítimas de homicídio doloso no país. Oito entre dez brasileiros mortos pela polícia são pretos ou pardos. João Alberto foi espancado até a morte por um PM e um segurança particular.
O racismo sempre esteve entre nós, mas agora se instalou no gabinete presidencial. Bolsonaro já responsabilizou os negros pela escravidão, chamou a política de cotas de “coitadismo” e equiparou quilombolas a animais que têm o peso medido em arrobas. A Procuradoria-Geral da República o denunciou por crime de racismo, mas o Supremo arquivou o caso às vésperas da eleição de 2018.
Cada ofensa que permanece impune vira um novo incentivo à violência. No poder, o capitão entregou a Fundação Palmares a um provocador profissional, cuja única tarefa é atacar ativistas negros. O general Mourão não está na Vice-Presidência por acaso. Apesar das divergências eventuais, ele é um legítimo representante da turma.
Cristina Serra: O racismo nosso de cada dia
Mal celebramos o avanço da diversidade (ainda que insuficiente) nas eleições de 2020, vem o cotidiano violento do Brasil e nos dá um soco no estômago com o assassinato de João Alberto Freitas por dois seguranças brancos a serviço do Carrefour, em Porto Alegre. O sangue no chão, os gritos da vítima e a sequência de agressões nos lembram que ter a pele negra, no Brasil, é uma sentença de morte.
Todos os componentes da cena mostram o quanto o racismo está entranhado na medula da nossa sociedade. Uma funcionária filma o assassinato com naturalidade e tenta impedir que outra pessoa continue gravando. Em off, dá para ouvir vozes justificando o espancamento. Nada justifica o assassinato de João a sangue frio. Aceitar a lei da selva nos dilacera como sociedade e é um atestado do nosso fracasso civilizatório.
O assassinato de João está permeado de ironias amargas. Foi na capital gaúcha que, nos anos 1970, o movimento negro se articulou para instituir o Dia da Consciência Negra em 20 de novembro, data da morte de Zumbi, em 1695, líder da resistência no quilombo de Palmares.
O crime ocorreu na loja de uma corporação global que, no Brasil, é reincidente em casos semelhantes de violência contra negros. Mais uma ironia é que a rede tenha planejado lançar uma campanha manifestando o “orgulho” de ter clientes “de todas as raças e etnias”. Será que a matriz, na França, tem algo a dizer sobre o tratamento aos clientes no Brasil? Em episódios anteriores, a rede rompeu o contrato com a empresa de segurança em questão e/ou demitiu funcionários e ficou por isso mesmo. Não basta. A rede e as empresas de segurança são co-responsáveis por esses crimes. É a impunidade que reproduz o ciclo de violência.
Mais de um século após a abolição, a primeira vereadora negra eleita em Joinville (SC), Ana Lúcia Martins, recebeu ameaças de morte. Ela respondeu com a determinação que deve nos guiar no combate ao racismo: “Nós iremos até o fim. Ninguém vai nos impedir de ocupar esse lugar”.
Ricardo Noblat: A segregação, no Brasil, é social, racial e dissimulada
O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, casado, pai de quatro filhos e negro
Subiu o preço das ações do Carrefour no fechamento da Bolsa de Valores de São Paulo. O motivo, segundo analistas do mercado financeiro: os maiores fornecedores de produtos da rede de supermercados não reagiram ao assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, negro, espancado até morrer por dois seguranças do Carrefour na Zona Norte de Porto Alegre.
Em pronunciamento de cinco minutos, Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, só chamou o morto pelo nome uma vez. Falou em “excesso de violência” como causa da morte, o que permite concluir que se não tivesse havido excesso seria um episódio menor. Disse que “os excessos serão apurados”. E por duas vezes referiu-se ao ato como “crime” e “fato lamentável”.
No início da tarde, o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, lamentou a morte de João, mas negou que exista racismo no Brasil: “Não, para mim no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar, isso não existe aqui. Eu digo para você com toda tranquilidade, não tem racismo”. O presidente Jair Bolsonaro escreveu no Twitter perto da meia-noite:
“O Brasil tem uma cultura única entre as nações. Somos um povo miscigenado. Brancos, negros, pardos e índios compõem o corpo e o espírito de um povo maravilhoso. […] Aqueles que instigam o povo à discórdia, fabricando e promovendo conflitos, atentam não somente contra a nação, mas contra nossa própria história. Quem prega isso está no lugar errado. Seu lugar é no lixo!”
Qual será o lugar de quem tratou a pandemia como gripezinha, prescreveu remédio que não curava a doença, e nega tudo o que o contraria? Em aparições públicas passadas, Mourão referiu-se a negros como “pessoas de cor”, associou indígenas a “certa herança de indolência” e revelou ter um neto bonito devido ao “branqueamento da raça”. Presidente e vice se merecem.
Fazem parte do currículo de Bolsonaro as seguintes declarações:
– Ele [o deputado Hélio Lopes, negro] demorou pra nascer e deu uma queimadinha.
– Eu não aceitaria ser operado por um médico cotista.
– Não sou racista. Tenho até um cunhado negro.
– O afrodescendente mais leve pesava sete arrobas [sobre os quilombolas].
Informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública: a quantidade de mortes entre pessoas de pele preta ou parda cresceu 33% entre 2007 e 2017. Entre não negros, subiu apenas 3,3%. Ou seja: dez vezes menos. Em 2019, a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 75 eram negras. A chance de um jovem negro ser assassinado é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco.
Nos Estados Unidos, os negros representam 13% da população, mas são 25% dos mortos pela polícia. No Brasil, a soma de pretos e pardos representam 55%, mas são 75% dos mortos pela polícia. Ainda que a população norte-americana seja maior que a brasileira, a polícia de lá matou no ano passado 1.099 pessoas. A de cá, em igual período, 5.804, quase seis vezes mais.
No país que foi o último das Américas a abolir a escravidão, a soma dos deputados federais eleitos há dois anos que se autodeclaram pretos (21) e pardos (104) cresceu 5%. Os brancos são 75% da Câmara. Há uma indígena. Somente daqui um quarto de século o quadro de juízes no país será composto por, pelo menos, 22,2% de pessoas negras e pardas, segundo o Conselho Nacional de Justiça.
A primeira transmissão da televisão no Brasil ocorreu há 70 anos. Desde então, e por curto período de tempo, o país teve um negro como dono de uma concessão de TV, de acordo com uma pesquisa da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. O jornalista Roberto Marinho foi até hoje o mais poderoso empresário da área de comunicação. Sabem como a ele se referiam seus desafetos?
Africano (alcunha criada por Assis Chateaubriand, fundador do Grupo Diários Associados); Neguinho (Leonel Brizola, uma vez governador do Rio Grande do Sul, duas do Rio); Crioulo (Manoel Francisco do Nascimento Brito, dono do Jornal do Brasil); e Marinho Quase Negro (Carlos Lacerda, o político que derrubou dois presidentes da República, Getúlio Vargas e Jânio Quadros).
Em 2018, pretos e pardos eram apenas 13,5% dos jornalistas em postos formais no estado de São Paulo, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Ganhavam, em média, salários 30,4% menores do que os pagos aos colegas brancos. Em 2019, homens negros não passavam de 2% dos colunistas da Folha, O Estado de São Paulo e O Globo.
“Não há como concorrer de igual para igual quando não se tem oportunidades de vida iguais”, observou a primeira colocada no vestibular para medicina da Universidade de São Paulo em 2017. E acrescentou: “A casa-grande surta quando a senzala vira médica”. Se a senzala não se rebela, a casa-grande jamais reconhecerá seus direitos – entre eles, o da igualdade.
A segregação, no Brasil, é social, racial e, como tudo aqui, dissimulada.
Míriam Leitão: O futuro chega muito devagar
O sangue de João Alberto ficou no chão do supermercado e ele sem vida já não gritava. Essa foi a cena final. Aos 40 anos, Beto foi morto por asfixia, depois de espancamento. Como na escravidão. Foi em Porto Alegre, horas antes do dia da Consciência Negra. O racismo é o nosso pior defeito. Quando a gente pensa que o país está evoluindo, vem um soco no estômago. O Carrefour repudiou o ato, mas os funcionários da empresa terceirizada se sentiram autorizados a espancar uma pessoa até a morte, em cena pública.
Há fatos a comemorar nos últimos tempos. Mulheres negras foram eleitas para diversas câmaras de vereadores. Empresários e executivos negros, novas formas de contratação, começam a mudar o mundo corporativo. A propaganda, a moda passaram a ter vergonha de ter apenas modelos brancos. Há duas histórias para contar no Brasil, a dos crimes do racismo estrutural, a da resistência antirracista. Dias atrás, nas ruas de Curitiba, uma jovem candidata a vereadora era saudada com gritos:
— Carol, vamos fazer história!
Carol Dartora (PT) começou sua campanha para a Câmara Municipal com o lema: “Curitiba nunca teve uma vereadora negra, não reproduza essa história.” Por isso alguns curitibanos que cruzavam com a candidata nos dias finais da campanha davam esse grito de esperança. Ela foi eleita. Conversei na última quinta-feira com uma radiante Carol e pedi que ela me contasse sua história. No relato, há as agressões, a consciência, a militância. A vereadora assumirá com a pauta extensa de mudanças com as quais sonha, que vão da passagem dos ônibus aos crimes contra os negros:
— Temos que discutir a passagem de ônibus, muito cara para a comunidade negra que foi empurrada para a periferia e que tem que pagar duas a três passagens. Temos que olhar para o extermínio da juventude negra. Trago comigo o feminismo e o feminismo negro. Como historiadora, quero discutir o passado. Como professora, a educação pública de qualidade.
Assim, cheia de sonhos, Carol se prepara para assumir. Horas depois, em Porto Alegre, João Alberto seria agredido até a morte. O racismo usa todas as formas, até o assassinato, para dizer ao negro que ele não pertence ao lugar onde merece estar. Seja num supermercado, seja numa escola.
Carol estudou em boas escolas públicas. O pai era servidor do Tribunal de Justiça, a mãe, professora:
— Eu sou preta, preta retinta. E pobre. Mas o Brasil é tão desigual que o pouco que tínhamos acabou me levando a estar sempre onde havia poucos negros. Estudei em boas escolas públicas, mesmo sendo públicas, havia principalmente brancos.
Estudiosa, ela tirava notas boas. Certa vez, uma professora mostrou o quanto isso a incomodava.
— Ela me disse: ‘você tirou nove?’ E me separou de minhas amigas, mandando eu sentar na última carteira.
Um dia, o pai comprou para ela uma bicicleta nova e ela foi para a escola com a sua bicicleta:
— Fui hostilizada a tarde inteira, pelos meninos e meninas. Era como se eu, preta, não pudesse ter uma bicicleta novinha. Quando eu estava saindo para voltar para casa, umas crianças me perseguiram, me xingando e chutando a bicicleta. Eu cheguei em casa transtornada, chorando muito. Minha mãe foi à escola, um professor disse que viu. Viu e nada fez.
Ela se formou em História disposta a entender o passado, foi dar aula numa escola pública central e renomada. Reviu, numa aluna negra, a mesma história de injúria racial que viveu. Resolveu pesquisar o cotidiano dos alunos. Seu mestrado foi sobre as adolescentes negras da escola pública em Curitiba:
—Tudo foi se juntando. Curitiba é uma cidade que se proclama como europeia, que dá aos negros a sensação de não pertencimento. A vivência das mulheres e das mulheres negras, a luta pela educação de qualidade. Eu fui consolidando o entendimento. O muro é muito alto — nunca houve uma vereadora negra em Curitiba — mas decidi escalar. Era sonho e dava medo.
Ela realizou. Há outras vitoriosas. Ana Lúcia Martins (PT) foi eleita a primeira vereadora negra de Joinville. Foi ameaçada de morte. O Brasil muda devagar. Antes de terminar, Carol quis dar um último recado:
— As pessoas me perguntam se eu acho possível superar o racismo. Eu digo que obviamente sim, porque se ele foi criado, foi inventado, foi construído, pode ser desconstruído.
Que o sonho de Carol chegue logo. Já nos atrasamos muito.
Míriam Leitão: O racismo persistente
Quando o assunto é racismo, o Brasil sempre volta à quadra um. É preciso recomeçar de conceitos que já deveriam estar absorvidos. No debate das cotas, parecia ter havido avanço no entendimento desse problema complexo e fundador do país. Se o Brasil não vencer a discriminação que pesa sobre pretos e pardos, se não houver política de inclusão, se as empresas não abrirem suas portas, é o país que fracassará. Jamais foi um problema de um grupo de brasileiros, é de toda a nação brasileira.
O debate do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 sobre a inclusão de estudantes pretos e pobres foi intenso e terminou com a confirmação pelo STF de que cotas raciais nas universidades federais eram constitucionais. Eu, neste espaço, defendi a adoção das cotas. Houve uma avalanche de argumentos contrários. Seria a derrota da meritocracia, seria melhor investir na educação básica, iria “criar” o racismo reverso, geraria conflitos entre os estudantes, iria nivelar por baixo a qualidade acadêmica. Nada disso.
É evidente que é preciso melhorar a educação brasileira, ninguém defende o contrário. As cotas permitiram ao país dar um passo numa longa caminhada para encontrar a si mesmo. Somos um país profundamente preto, do ponto de vista cultural e étnico. O racismo fere a natureza do país. Que julgamento de mérito pode ser feito entre um jovem de classe média que frequentou bons colégios, pré-vestibulares e cursos de inglês, e um jovem da periferia que fez seu caminho para a escola se desviando das balas? Serão julgados pela mesma régua? O jovem pobre e negro que sobreviveu para chegar na porta da universidade tem resiliência, hoje uma das habilidades mais valiosas na visão dos educadores. A convivência de diferentes entre si fez bem a todos. As universidades puderam dar aos alunos uma ampliação da visão das várias realidades do país e entregar ao mercado de trabalho jovens qualificados e com experiências diversas.
Na impactante entrevista que concedeu a Ronaldo Lemos, no evento Cidadão Global, do “Valor” e Santander, a atriz Viola Davis explicou o drama que leva tantos a morrer sem que possam realizar suas possibilidades. “Se não há oportunidade, você é invisível. Vou dizer de novo, se não há oportunidade, ou acesso a oportunidades, você é invisível. Não importa o quanto você trabalha, o quanto você é talentoso, você é invisível se não houver um veículo para literalmente demonstrar o seu talento, sua inteligência e o seu potencial.”
O que o Brasil tem que discutir sinceramente é como construiu uma sociedade com essa hegemonia de brancos em posições de poder, em todas as áreas, tendo mais da metade da população de não brancos. Com quantas desculpas esfarrapadas mantemos o muro que nos divide, nos apequena e mata tantos talentos antes que eles possam desabrochar?
Nessa vasta distopia que nos atrasa neste momento, em que os valores do respeito à diversidade são ofendidos até por quem ocupa o órgão do governo criado para promovê-los, há pelo menos uma boa notícia. Algumas empresas começam a avançar. Entenderam que um jovem discriminado não se sente nem autorizado a aparecer numa seleção de pessoas para posições de liderança de uma empresa. Há um código não escrito marcando as fronteiras que ele ou ela não deveriam atravessar. Este é um país fundado na mão de obra escravizada, indígena e africana. Superar esse passado é tarefa de todos.
Quando o Magazine Luiza tomou a decisão de abrir uma seleção exclusiva para negros provocou uma reação em que as velhas teses reapareceram. E o debate foi retomado como se não tivesse acontecido há quase duas décadas.
O Brasil muda muito devagar. A banqueira Cristina Junqueira, do Nubank, repetiu os argumentos de sempre. “Não consigo contratar executivos negros.” E ofendeu como sempre. “Não pode nivelar por baixo.” Depois ela pediu desculpas. Tomara que reflita sobre esse episódio. Em outra frase infeliz que revela preconceito classista, o banqueiro Guilherme Benchimol, da XP, disse em maio que o Brasil estava bem. “O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, a classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo.” Cristina e Guilherme são o que há de novo no mundo do capital. E ainda não entenderam o Brasil.