racismo
Cacá Diegues: Um prefeito
Zé Pelintra se impôs ao ódio ao carnaval
Temos finalmente um prefeito, coisa que nos faltava há quatro anos. O deputado Pedro Paulo já nos deu más notícias de como vai encontrar as contas da cidade. Mas pelo menos não somos mais obrigados a ver na televisão a cara do bispo tentando iludir não sei quem, com aquela voz e trejeitos de falsa realidade virtual. Seu coração não se partirá mais, o Zé Pelintra se impôs a seu ódio ao carnaval. Agora vamos trabalhar para recuperar a cidade de tanta crueldade com ela e seus (bons) costumes.
As mortes de João Alberto, assassinado num supermercado em Porto Alegre, e de Carlos Eduardo, vítima da tuberculose no chão de uma padaria em Ipanema, bem ilustram a violência brasileira. Não se trata apenas da morte de dois negros. Mas da morte de dois negros pobres que certamente não seriam assassinados, nem deixados sob um plástico às costas de insensíveis, se tivessem algum dinheiro para se virar. Não se trata apenas de racismo, mas de discriminação social agravada pelo racismo. A desigualdade, segundo o Índice Brasileiro de Privação (IBP), um IDH nacional criado pela Fiocruz, responde hoje por 30% da mortalidade de crianças de até 5 anos.
“A cultura é a própria identidade do Rio”, diz o plano do prefeito eleito anunciado antes da eleição. “Ela presta homenagem à memória de nossa cidade.” E ainda é objeto de uma economia bem-sucedida. “Vamos refundar a Riofilme, que voltará a ter um papel de protagonista na produção audiovisual carioca.” Um papel que a produção carioca sempre teve no audiovisual brasileiro, desde sempre. No passado, Eduardo Paes garantiu ao setor 1% do orçamento municipal, o suficiente para manter nossos filmes sendo produzidos com sucesso.
O Brasil é um país múltiplo e diverso, sua melhor tradução pode estar num igarapé amazônico, nas areias de praia baiana, nos Pampas, numa cidade histórica de Minas, na Avenida Paulista. Ou nas favelas do Rio. Cabe aos criadores representá-lo como julgarem mais conveniente, não existe verdadeira cultura brasileira sem diversidade. Com a pandemia, pobreza e desigualdade cresceram, vizinhanças inteiras não têm esgoto, nem acesso à água, não importa se o cara é preto ou branco. Segundo o IBGE, o Brasil é hoje o nono país mais desigual do mundo.
Isso talvez devesse ser tema eleitoral da esquerda. Mas a esquerda preferiu disputar a eleição por hegemonia em seu campo. Se a simpática Benedita, a heroica Martha e Renata, a herdeira de Marielle, tivessem acertado uma aliança, seus votos somados teriam colocado a candidatura de esquerda no segundo turno, em vez da velha direita satânica do doutor Crivella. O vencedor escolheu a concertação, em vez da polarização doutrinária, entendeu que o pessoal está querendo é trabalhar em paz (quando tem emprego e, portanto, trabalho). Agora estão ameaçados de não poder se imunizar, porque o presidente não gosta de vacina. Para ele, já está bom se sobrarmos alguns para levantar a economia até 2022 e para morrer de Covid sem encher a paciência do Estado. E daí? Todo mundo morre, e o presidente não é coveiro.
A maioria desses “invisíveis” é hoje administrada por paramilitares ligados ao tráfico de drogas e às milícias. Desde que passou a ser desrespeitada a decisão do STF determinando que operações policiais em favelas só fossem realizadas em situação excepcional, o Rio conheceu 237 ações nas comunidades, mais de uma por dia. Ao todo, 145 pessoas foram mortas por policiais no mês de outubro, um aumento de 179% em relação a setembro. Entre as vítimas, crianças e adolescentes que não tinham nada a ver com isso.
Nunca se levam em conta experiências como as do Favela-Bairro ou das UPPs, que começaram bem e foram desmobilizadas pela própria polícia, pela corrupção e pelos governantes que não se interessaram em executar a melhor parte dos programas, a montagem nas comunidades de centros urbanos com atividades comerciais, de entretenimento e utilidade pública. Dez anos atrás, em novembro de 2010, os traficantes foram expulsos do Alemão com estardalhaço e show na televisão. Com isso, instalaram-se ali, entre outros serviços, agências de banco, salas de cinema e um teleférico para servir à população obrigada a subir o morro. Quando, pouco depois, os bandidos voltaram, tudo isso foi abandonado por falta de segurança. O teleférico é hoje uma ruína enferrujada, monumento morto à incompetência e ao arranjo.
Bem depois da Abolição, Joaquim Nabuco escreveu: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Não é necessário ler Karl Marx para entendê-lo. Veja como, há um século e meio, a Suécia era muito mais desigual que o Brasil de hoje e, no entanto, deram um jeito nisso, sem gulags nem massacre de milhões. Para ser um bom prefeito, nem precisa saber nada disso. Basta sensatez e, quem sabe, um bom coração.
Folha de S. Paulo: Negros são minoria no serviço público federal e ocupam apenas 15% de cargos mais altos
Salários de servidores brancos são mais elevados e disparidade é ainda maior no topo da hierarquia do funcionalismo
Bernardo Caram, Folha de S. Paulo
Observada no setor privado, a sub-representação de negros também marca a estrutura da administração pública. Dados do governo mostram que, embora sejam aproximadamente 55% da população, negros ocupam 35,6% dos postos no serviço público federal.
A disparidade fica ainda mais visível quando é feito o recorte por hierarquia de cargos e nível de escolaridade. Pretos e pardos ocupam apenas 15% das cadeiras mais altas.
O governo federal não deixa disponível para consulta pública estatísticas de pessoal com recorte por cor e raça. O dado detalhado mais recente, referente a 2018, foi compilado pela Enap (Escola Nacional de Administração Pública), vinculada ao Ministério da Economia.
No entanto, informações preliminares da pasta, que ainda não foram disponibilizadas ao público, indicam que o cenário pouco mudou de 2018 até agora.
Em outubro de 2020, entre os que fizeram a declaração, a parcela de servidores negros na administração federal ficou em 36,8%.
Mestre em desenvolvimento econômico e participante do Programa das Pessoas de Ascendência Africana do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, Clara Marinho Pereira, 36, faz parte dessa minoria.
Servidora federal desde 2013, com passagem pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ela foi aprovada em novo concurso, em 2017, para assumir vaga de analista de Planejamento e Orçamento do Ministério da Economia.
"Nos lugares onde trabalho, eu sou a única ou uma das poucas pessoas negras. Isso é muito frequente. No meu departamento, por exemplo, eu sou a única mulher negra", disse.
"É uma realidade gritante, a despeito de nossos representantes máximos dizerem que não existe racismo no Brasil", afirmou.
Em seu último concurso, Pereira foi aprovada por meio da política de cotas. Em 2014, entrou em vigor no país a lei que reserva para negros 20% das vagas oferecidas em concursos públicos.
"As cotas são importantes, mas não suficientes. Elas foram aprovadas em 2014, mas justamente naquele ano começou a desaceleração econômica e o ritmo de contratações no serviço público diminuiu. É uma pena que as ações afirmativas no serviço público não tenham chegado antes", disse.
Segundo o levantamento da Enap, a disparidade salarial entre brancos e negros no serviço público caiu lentamente ao longo dos anos, mas ainda persiste.
Em 2018, dado mais recente, brancos e amarelos ganharam em média 14% a mais do que negros e indígenas.
Os números consideram os servidores que declararam sua raça ou cor. Do total de funcionários públicos, 11,9% não prestaram essa informação naquele ano.
Evoluir na formação escolar e acadêmica também gera mais benefícios para brancos no serviço público.
Entre os servidores com pós-graduação, mestrado ou doutorado, 42% dos brancos têm salário superior a R$ 12 mil. Com a mesma formação, apenas 28% dos negros têm remunerações superior a esse patamar.
Além da diferença salarial, quanto maior o nível de formação dos servidores, menor o número de negros que ocupam esses cargos.
Do total de funcionários públicos que estudaram até o ensino fundamental, normalmente ocupando cargos de nível mais baixo, 60,9% são negros e 31,2%, brancos. A partir do ensino médio a proporção se inverte, com tendência de ampliação da desvantagem para negros.
Pretos e partos são 50,5% dos servidores com ensino médio. Entre os que fizeram ensino superior, eles representam 31% do total. No grupo dos pós-graduados no serviço público, os negros são 29,7%.
Mesmo nos cargos comissionados de livre nomeação, o padrão da sub-representação também aparece.
Nas cadeiras de DAS (direção e assessoramento superior), que podem ser ocupadas por servidores ou pessoas de fora da administração, 29,6% dos funcionários são negros. Para os cargos DAS-6, o nível mais alto, a participação cai para 15%.
No recorte por órgão, o Ministério de Relações Exteriores tem a menor proporção de negros em seus quadros. Entre diplomatas, por exemplo, 5,9% se declaram pretos ou pardos.
"A diversidade no serviço público é condição para o melhor atendimento à sociedade. Não basta apenas aumentar a presença dos negros na base da pirâmide dos servidores. É preciso garantir que os mecanismos do racismo estrutural não limitem a progressão dos negros nas carreiras e a presença em cargos de decisão", disse Joyce Trindade, analista de diversidades do instituto República.org, que organiza a campanha "Onde estão os negros no serviço público?".
Dados reunidos pelo instituto República.org mostram que esse retrato não é exclusivo da administração federal. No município de São Paulo, os negros são 37% da população, mas ocupam 28,6% dos postos na prefeitura.
Em alguns órgãos, a presença de negros é ainda menor. Eles são 7,8% dos servidores na Procuradoria-Geral do município, por exemplo. Nas chefias de gabinete da prefeitura, estão em 10% dos postos.
De acordo com o instituto, São Paulo é a única capital do país a divulgar ativamente estatísticas de cor e raça de seus servidores.
Sobre os dados federais, o Ministério da Economia disse que está trabalhando para disponibilizar o recorte por cor e raça no painel estatístico de pessoal, sistema que apresenta um raio X do serviço público federal. A pasta não informou qual a previsão de data para o lançamento.
Trindade afirmou que a realidade racial no serviço público não é diferente da iniciativa privada. No entanto, ela disse acreditar que cabe ao Estado o papel de dar exemplo para um sistema do qual também é fiscalizador.
"Para cobrar o setor privado, o Estado e os poderes públicos devem ser espelhos daquilo que desejam para a sociedade", afirmou.
Miguel Reale Júnior: Cegueira deliberada
Fazer de conta que não há racismo não é daltonismo, é imensa hipocrisia
João Alberto Silveira Freitas, negro de 40 anos, soldador, foi massacrado por dois seguranças, um deles policial militar fazendo bico numa loja do Carrefour em Porto Alegre. Caído ao chão, João foi espancado e esmagado até morrer asfixiado, sob a supervisão de fiscal do supermercado. É tristemente reiterada a violência praticada contra pessoas negras pelas autoridades, no caso, os “seguranças” particulares fardados.
A exclusão do exercício de direitos da população negra, vítima de discriminação ao longo da História, traz à tona a constatação do racismo estrutural vigente no Brasil. Com o racismo instala-se a inferiorização do outro, que se considera diverso, não se lhe atribuindo a possibilidade de estar “entre nós”, gozar dos mesmos direitos. É uma manifestação cultural, fruto do sistema social, político e econômico, presente no comportamento cotidiano produtor da diminuição de determinadas pessoas por causa de sua cor, orientação sexual, etnia, religião.
O racismo em razão da cor da pele é fato inconteste na História e na realidade social e econômica de hoje. Os brancos privilegiados, como eu, têm o dever maior de primeiramente reconhecer a existência do racismo: dizer o contrário perpetua a odiosa discriminação.
Durante séculos, pretos eram tratados como coisas. Segundo Jacob Gorender, o escravizado era propriedade privada de outro indivíduo, trabalhava sob coação física e o produto de seu trabalho pertencia ao dono (A Escravidão Reabilitada, São Paulo: Ática, 1991, pág. 87). Reduzido ficticiamente o homem a objeto de propriedade de outro homem, como dizia Perdigão Malheiros, o escravo era vendido como semovente, alugado, doado, dado em penhor, separado de seus parentes e sua mulher, pois o “escravo não tinha família”, não se casava, apenas se unia, sem exercer pátrio poder sobre seus filhos. A pena de açoites, proibida pela Constituição imperial, era, todavia, prevista no artigo 60 do Código Criminal para os escravos.
Reconhecia-se o direito do senhor de pôr o escravo que perdera a perna a esmolar na rua, ficando, porém, o proprietário com o resultado da caridade prestada ao preto deficiente físico. Autorizava-se que moças pretas fossem a mando do senhor se prostituir, ficando o resultado do comércio carnal em poder do seu dono.
O Tribunal da Relação de Fortaleza, em 24/2/1887, decidiu que “a favor de escravo não tem lugar o recurso de Habeas-corpus por não ser cidadão e ter restrictos os direitos criminaes e civis…”.
O Ministério Público de Pernambuco, em nome da escravizada Honorata, de 13 anos, pessoa miserável, propôs ação penal contra o senhor que a estuprara. A condenação de primeira instância foi revista, pois Honorata era miserável, mas não pessoa.
Essa exclusão de pretos da possibilidade de vida digna, em todos os planos, estendeu-se no tempo, porque a Abolição, sem medidas de auxílio ao escravizado liberto, tornou-o um miserável na sociedade competitiva.
A desvantagem persiste. O Observatório Afro-Brasileiro, com base em estudo do IBGE de 2000, destaca que de todo o rendimento, somando salários, aposentadorias, programas de renda mínima e aplicações financeiras, 74,1% ficam com os brancos. A população negra (pretos e pardos), quase 60% dos brasileiros, tem apenas um quarto dos resultados econômicos (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2011200315.htm).
No estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE, de 2019, há significativa constatação: “Enquanto as mulheres receberam 78,7% do valor dos rendimentos dos homens, em 2018, as pessoas de cor ou raça preta ou parda receberam apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca. O diferencial por cor ou raça é explicado por fatores como segregação ocupacional, menores oportunidades educacionais e recebimento de remunerações inferiores em ocupações semelhantes” (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf). Em suma, as pessoas negras receberam ainda menos do que as já discriminadas mulheres.
São inaceitáveis as declarações do presidente da República e do vice. Disse Bolsonaro: “Somos um povo miscigenado. Brancos, negros e índios edificaram o corpo e espírito de um povo rico e maravilhoso. Foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo. Contudo há quem queira destruí-la. E colocar em seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças. Sempre mascarados de lutas por direitos, igualdade ou justiça social. Tudo em busca de poder”. O vice negou veementemente haver racismo no Brasil.
Como diz Sueli Carneiro, o argumento da miscigenação dá suporte ao mito da democracia racial na medida em que o intercurso sexual seria o indicativo de nossa tolerância sexual, omitindo-se o estupro colonial (Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, pág. 55).
Fazer de conta que não há racismo é imensa hipocrisia, especialmente quando se acusa quem aponta a verdade como destruidor da “simpatia” brasileira. Não é daltonismo, é cegueira deliberada.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Cristovam Buarque: “Eu não sou brasileiro?”
''Educação é um direito de cada brasileiro e, também, o vetor para o progresso de todos os brasileiros. 'Eu não sou brasileiro?' é um grito tão importante moralmente quanto 'vidas negras importam' e tão relevante politicamente quanto 'independência ou morte', 'viva a República', 'queremos democracia'"
Ao assistir pela televisão um homem negro sendo espancado até à morte, imaginei-o gritando: “eu não sou brasileiro?”. Foi o grito de um negro perguntando “eu não sou um ser humano?” que despertou o movimento contra a escravidão, na Inglaterra, no século XIX. Se ele era um ser humano, como puderam arrancá-lo de sua família e de sua vila na África, forçando-o a caminhar por centenas de quilômetros, jogando-o em um navio fétido, por meses no mar, através do Atlântico, vendendo-o como animal e obrigando-o ao trabalho forçado por toda sua vida, assim como a seus filhos e netos? Milhões de pessoas negras viveram e morreram nessas condições, sob a aceitação dos brancos.
Aquela pergunta ajudou a despertar os ingleses para a indecência da escravidão, a incentivar a luta abolicionista e a provocar a emancipação dos escravos em 1834, em todas as colônias inglesas. No Brasil, a pergunta não foi ouvida. Esperamos ainda meio século, para sermos o último país do Ocidente a abolir a legalidade da escravidão. A Lei Áurea proibiu, em 1888, a venda e a compra de pessoas, impedindo que negros fossem propriedade de brancos.
Mas quando, em 2020, olhamos as estatísticas de assassinatos, pobreza, violência, renda, desemprego, moradia, saúde, educação, um brasileiro negro tem razão em perguntar: “eu não sou brasileiro?”. Igualmente se justifica a pergunta de milhões de crianças pobres, brancas ou negras: “se sou brasileira, como podem me negar escola com a mesma qualidade da escola de outras crianças brasileiras?”.
A escravidão se faz sob a forma do cativeiro ou negando-se educação; a primeira escraviza o corpo, a outra o intelecto. De qualquer forma é escravidão, porque o ser humano tem corpo e mente: a liberdade exige o fim da escravidão do corpo e o acesso da mente à educação.
A Lei Áurea proibiu a comercialização de vidas negras, mas manteve as algemas do analfabetismo e da baixa educação que ainda aprisionam, devido à falta de conhecimento e consequente desemprego, forçando trabalhos em condições desumanas com salários insuficientes, impedindo a liberdade plena para todos os pobres, cuja imensa maioria é descendente dos escravos. Impede também o Brasil de se beneficiar do trabalho com alta produtividade graças à educação da mão de obra. Por isso, cada adulto pode se perguntar: “se eu também sou brasileiro, por que me negaram uma educação de qualidade no passado, e no presente fazem o mesmo com meus filhos? Por que 132 anos depois da Abolição, Escolas-Casa-Grande para uns e Escola-Senzala para nós?”
“Eu não sou brasileiro?” pode ser perguntado por cada um dos 12 milhões que não sabem ler o lema na bandeira do Brasil e por dezenas de milhões que sabem ler palavras, mas não conseguem entender plenamente um livro com a história do país; e pelos milhões sem coleta de esgoto em suas casas, sem comida para seus filhos.
Ao ver a fartura nos bairros ricos, o pobre brasileiro tem razão em perguntar “eu não sou brasileiro?”, tanto quanto os negros da África do Sul se perguntavam “eu não sou sul-africano?”, ou os judeus, durante o holocausto, indagavam “eu não sou ser humano?”. Na ótica da escravidão, do apartheid e do nazismo, nem todos eram considerados seres humanos. Na hipocrisia da nossa democracia, dizemos que todos os brasileiros têm o mesmo direito, mas as crianças que ficam em Escolas-Senzalas, que aprisionam o futuro delas, têm direito à pergunta de todos os que sofrem holocaustos – na escravidão, no apartheid, no nazismo, ou no holocausto educacional que incinera cérebros no Brasil, dizendo que são cérebros de brasileiros.
Essas perguntas se justificam do ponto de vista moral, por alguns, mas também do ponto de vista patriótico, por todos nós. Porque negar escola de qualidade é deixar milhões de cérebros para trás, sem desenvolver o potencial de cada um deles; é imoral, como última trincheira da escravidão, e é uma estupidez por ser um muro contra o progresso nacional.
Educação é um direito de cada brasileiro e também o vetor para o progresso de todos os brasileiros. “Eu não sou brasileiro?” é um grito tão importante moralmente quanto “vidas negras importam”, e tão relevante politicamente quanto “independência ou morte”, “viva a República”, “queremos democracia”. Ela pode despertar a consciência, tanto do ponto de vista moral do direito de cada criança, quanto do ponto de vista político do interesse nacional, do conjunto de todos os brasileiros.
Pena que ainda não descobrimos a força dessa pergunta, feita por um escravo na Inglaterra, 200 anos atrás.
*Cristovam Buarque professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Cristiano Romero: A guerra civil brasileira
Mais de 600 mil negros foram assassinados desde 2000 no Brasil
Uma das mais lamentáveis e equivocadas tentativas de explicar o fracasso do Brasil é a ideia de que o país não deu certo porque não enfrentou guerras. Trata-se de mistificação concebida a partir da história de países como os Estados Unidos, que, além das batalhas travadas com outras nações para conquistar o território que tem hoje, amargou sangrenta guerra civil entre 1861 e 1865, quando se estima que mais de 600 mil pessoas morreram.
Entre 1979, quando a série começou a ser apurada, e 2018, último dado disponível, 1.583.026 brasileiros foram assassinados, segundo o “Atlas da Violência”, elaborado pelo Ipea. A violência não para de crescer. O número de homicídios tem mudado de patamar a cada dez anos - em 1979, 11.217 pessoas foram assassinadas; em 1990, 32.015; no ano 2000, 45.433; em 2010, 53.016; em 2018, 57.956 perderam suas vidas em decorrência do arbítrio de outrem (e ainda há quem defenda a adoção da pena de morte nestes tristes trópicos).
Alguém notará que o ritmo de crescimento de homicídios está diminuindo. Em 2017, 65.602 cidadãos foram mortos de maneira violenta, a maioria, por arma de fogo (71% dos casos). Portanto, houve queda de 11,7% no número de assassinatos no ano seguinte. O problema, mostra o “Atlas da Violência 2020”, é que não se pode mais confiar cegamente no “termômetro” usado para contabilizar as mortes.
O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, é a única fonte de dados com abrangência nacional, consistência e confiabilidade metodológica sobre a evolução da violência letal desde 1979. Ocorre que o SIM é alimentado por informações repassadas pelos Estados, e a qualidade desses dados tem caído de forma assombrosa.
“Entre 2017 e 2018, o número de MVCI (mortes violentas com causa indeterminada) aumentou 25,6%. A perda de qualidade das informações em alguns estados chega a ser escandalosa, como no caso de São Paulo, que, em 2018, registrou 4.265 MVCI, das quais, 549 pessoas vitimadas por armas de fogo, 168 por instrumentos cortantes e 1.428 por objetos contundentes. Nesse estado, a taxa de MVCI foi de 9,4 por 100 mil habitantes, superior à taxa de homicídios, que foi de 8,2”, diz o último “Atlas da Violência 2020”.
No total, 12.310 brasileiros foram assassinados em 2018, mas as autoridades não sabem quem os matou nem o porquê. Estes são os cidadãos invisíveis cuja existência só interessou a quem lhes tirou a vida. São dispensados nas ruas como se faz com o lixo de casa. Na maioria dos casos, são enterrados como indigentes, sem identidade ou o conhecimento da família. Fazem número na estatística MVCI.
Pesquisa feita em 2013 por Daniel Cerqueira, coordenador do Atlas da Violência, estima que 73,9% das mortes violentas causa indeterminada são, na verdade, homicídios ocultos. Conclusão: o número de assassinatos cometidos neste gigantesco território pode ser até 20% superior ao número informado.
Definitivamente, no Brasil viver não é preciso. De 2008 a 2018, 628.595 brasileiros foram mortos de forma violenta. Do total, 437.976 eram negros (70%), a maioria, jovem e pobre. Enquanto o número de negros vitimados pela violência vem escalando - em 2018, eles foram 75,7% dos casos de homicídio -, o de não negros está cedendo. Entre 2008 e 2018, houve alta de 11,5% no número de negros vítimas de assassinato e declínio, no caso dos não negros, de 15,4%.
Mais uma estatística aterradora: desde o ano 2000, 660.252 negros foram assassinados no Brasil. Não calcule a média anual do período porque, como o número casos está em franca expansão, o percentual encontrado não refletirá a realidade indisfarçável: vivemos num país onde a maioria da população é negra (56%, segundo o IBGE), mas onde também predomina o racismo estrutural, que, como os números mostram, tem aumentado de forma veloz.
Apenas em 2018, os negros (soma de pretos e pardos, conforme classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios - taxa de assassinatos por 100 mil habitantes de 37,8. Comparativamente, entre os não-negros (soma de brancos, amarelos e indígenas), a taxa foi de 13,9, o que significa que para cada indivíduo não-negro morto em 2018, 2,7 negros foram assassinados.
Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não-negras (ver gráfico).
“Este cenário de aprofundamento das desigualdades raciais nos indicadores sociais da violência fica mais evidente quando constatamos que a redução de 12% da taxa de homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou mais entre a população não negra do que na população negra. Entre não negros a diminuição da taxa de homicídios foi igual a 13,2%, enquanto entre negros foi de 12,2%, isto é, 7,6% menor”, informa o Atlas da Violência.
O Brasil está promovendo há décadas um verdadeiro genocídio, um crime contra a humanidade. A guerra civil americana foi deflagrada porque os produtores rurais do Sul não aceitavam o fim da escravidão dosa negros. No Brasil, a escravidão chegou bem antes e se tornou a principal característica de nossa sociedade. Aqui, a guerra civil nunca acabou.
João Gabriel de Lima: O telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour
O crime recente envolvendo racismo no Brasil poderá influenciar pleitos municipais?
Uma história envolvendo racismo mudou uma eleição e, no longo prazo, toda a política americana. No dia 19 de outubro de 1960, três semanas antes do pleito presidencial que opôs John Kennedy a Richard Nixon, um grupo de ativistas negros invadiu uma loja de departamentos no sul dos Estados Unidos. Era um protesto contra a segregação racial no restaurante da loja.
Todos foram presos e soltos em seguida. Menos um: o reverendo Martin Luther King Jr., maior ativista de direitos civis da história americana. Dias mais tarde, ele seria transferido para uma prisão de segurança máxima. Coretta, mulher de Luther King, entrou em desespero. Temia que o marido fosse vítima de violência dentro da cadeia. Ela ligou para Harris Wofford, conselheiro da campanha de Kennedy. Wofford – que narra o fato num episódio da série Race for The White House, produzida pela CNN – disse que ia ver o que poderia fazer.
Em 1960, o partido mais próximo do movimento dos direitos civis era o Republicano. Os democratas eram identificados com movimentos racistas do sul, entre eles a Ku Klux Klan. Nixon conhecia Luther King pessoalmente, e ligou para a Casa Branca pedindo que intercedessem pelo ativista. Não foi atendido. Nixon ficou em silêncio – não quis fazer uma declaração pública sobre um assunto tão delicado. Bob Kennedy, irmão de John e coordenador de sua campanha, defendia que os democratas também deveriam guardar silêncio para não afastar os eleitores do sul. Wofford sabia disso. Fez com que a informação sobre Coretta chegasse a John por meio de um assessor, sem que Bob soubesse.
Num misto de impulso e cálculo político, John ligou para Coretta e apresentou sua solidariedade. A imprensa noticiou o fato, e Bob ficou irado, achando que o gesto custaria a eleição do irmão. Pouco depois, percebeu que havia ali uma oportunidade. Passou ele próprio a defender Luther King. O ativista foi solto, e o voto dos negros americanos acabou sendo decisivo para que Kennedy ganhasse uma eleição apertada contra Nixon. Os democratas, que tinham a pecha de racistas, viram seu partido se tornar, aos poucos, o campeão dos direitos civis.
Mudanças de trajetória em partidos políticos são comuns nas democracias, já que eles existem para representar tendências e ideias que surgem na sociedade. No minipodcast da semana, o cientista político português António Costa Pinto fala sobre o assunto. Conhecedor da vida americana – ele lecionou em Stanford e Berkeley – Costa Pinto aponta os novos desafios dos democratas. No século 21, o partido deu outra virada, tornando-se a sigla da nova economia e dos jovens urbanos. No caminho, perdeu os operários e a classe média dos rincões. Precisa recuperá-los na guerra contra o derrotado (mas ainda bem vivo) Donald Trump.
Em tempos de eleições, o telefonema de Kennedy deixa uma pergunta no ar. O episódio recente envolvendo racismo no Brasil – o crime do Carrefour – poderá influenciar os pleitos municipais? A resposta, ao que tudo indica, é negativa. O País não se dividiu. A imensa maioria dos candidatos, da esquerda à direita, de Sebastião Melo a Manuela D’Ávila, de Guilherme Boulos a Bruno Covas, tuitou contra o crime bárbaro e nomeou sua motivação: racismo. Sessenta anos se passaram entre o telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour. O racismo não morreu, mas algo mudou na política. Uma vitória do movimento dos direitos civis.
Maria Hermínia Tavares: O muro invisível do racismo
Todos reagiam com espanto diante da possibilidade de suas condutas serem discriminatórias
"Pois é, professora, ele não tinha cara de aluno da USP", comentou comigo o policial militar, meio sem graça, em particular. Estávamos no fim de uma reunião entre representantes da corporação e a Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. Tratava-se de saber por que o policial havia dado um empurrão no único negro que se envolvera em um incidente menor com um grupo de estudantes.
Fui ouvidora-geral da USP entre 2014 e 2017. Nesse período, recebi queixas semelhantes de alunos abordados pela segurança do campus ou a quem um professor perguntava se realmente faziam parte daquela classe. Tinham em comum apenas a condição de serem negros. Tampouco eram brancos alguns daqueles cujo comportamento alunas viam como assédio. Não eram acontecimentos frequentes. A rigor, foram raros nos quatro anos em que ali atuei. Mas sempre me chamou a atenção o fato de envolverem jovens que, por serem negros, não pareciam estar no lugar certo numa instituição de ensino superior que, naqueles anos --hoje nem tanto--, era muito, muito branca.
Não me cabia investigar a autenticidade das denúncias. Pelo sim, pelo não, sempre as tratei como verdadeiras. Chamava os envolvidos, explicava o que pesava contra eles, ouvia o que tinham a dizer e lhes informava que racismo é crime --inadmissível na universidade e em qualquer outro lugar. Todos reagiam com espanto diante da possibilidade de que sua conduta pudesse ser interpretada como discriminatória.
Nenhuma das pessoas com quem falei --alunas, professores, membros da guarda universitária ou da PM-- se reconhecia racista. E não creio que fosse por cálculo ou cinismo. Parecia-lhes razoável desconfiar da presença de quem não pertencia àquele lugar, por sua cor e decerto por destoar dos códigos compartilhados do vestir ou do agir.
Talvez seja essa a melhor tradução do que se tem chamado racismo estrutural. A abominação se materializa nos processos e mecanismos impessoais que distribuem de forma desigual entre negros e brancos, pobres e ricos, não só renda e riqueza, mas acesso a escolas e universidades de bom nível, serviços essenciais, pontos de consumo e de lazer --entranhando formas segregadas de convívio social. Mas, muito especialmente, configura padrões mentais, maneiras de ver a si, os seus e os outros, que naturalizam o preconceito a ponto de torná-lo inconsciente.
Como lembrou nesta Folha no último domingo o empresário negro Ian Black, "o pior do nosso racismo não está no sujeito que xinga uma pessoa negra na rua, mas na estrutura invisível que a impede de entrar nos lugares em que hoje os brancos são maioria".
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Cristiano Romero: Luta contra racismo é a reforma mais importante
Brasil nunca dará certo se combate ao racismo não for 1º item da agenda
O enfrentamento do racismo é muito mais urgente do que a aprovação de qualquer reforma no Brasil. Nada funcionará se o combate institucional ao racismo não se tornar o primeiro item da agenda do Estado brasileiro, sua missão precípua, independentemente do governo do momento.
A adoção de medidas de reparação à população negra (56% dos habitantes deste país) devido à infâmia dos 400 anos de escravidão e dos 120 subsequentes em sua versão 2.0 (dissimulada, covarde e violenta) deveria ser uma rubrica inviolável dos orçamentos públicos. Políticas afirmativas - mais amplas e efetivas que as já previstas em lei - precisariam ser implantadas enquanto, paralelamente, o Estado, em todos os seus níveis, ocupar-se-ia da batalha diuturna e incessante contra a discriminação racial e todas as outras formas de discriminação.
Olhadas de perto, as outras formas de discriminação também derivam dos hábitos e costumes da sociedade escravagista que predominou entre nós (e ainda predomina para a maioria dos brasileiros). A Ilha de Vera Cruz jamais será uma nação se seus habitantes não se reconhecerem no outro, independentemente da origem étnica de cada um. A terrível chaga da escravidão - usada como fator de acumulação de capital desde a chegada dos portugueses - impediu que o país com maior diversidade étnica do planeta criasse uma nação justa, igualitária, pacífica, um “povo novo” na acepção de Darcy Ribeiro e o “país do futuro”, na de Stephan Zweig.
É de um cinismo atroz justificar, com argumentos econômicos, a necessidade de se colocar o racismo no topo da agenda nacional. O que está em discussão são direitos e garantias fundamentais de 109 milhões de brasileiros (56,10% da população, segundo a pesquisa Pnad do IBGE). De toda forma, é de se esperar que, após alguns anos de enfrentamento radical, institucional, do racismo, os índices médios de escolaridade da população cresceriam e a consequência disso na economia seria a elevação da produtividade da economia.
Combater o racismo deveria tornar-se a rotina de todos os cidadãos brasileiros, mesmo que uns não queiram fazer isso. Muitos formadores de opinião, integrantes das elites do Brasil (empresarial, financeira, política, cultural, sindical, da máquina administrativa e estatal), não percebem que o que está em jogo é a sobrevivência da democracia e, portanto (atenção, “farialimers”), da economia de mercado.
Democracia prescinde de igualdade de oportunidades, assim como economias de mercado, de concorrência entre as empresas. Neste imenso país, a população negra e pobre não chega nem ao ponto de avistar oportunidades - sua ambição, antes de mais nada, é viver, existir, sair cedo de casa e voltar vivo. Não há regime democrático, República, portanto, economia saudável, que sobreviva a essa tragédia ad infinitum. Basta ver o desafio pelo qual nossa jovem democracia passa neste momento.
Para quem considera uma mistificação, seguem alguns dados aterradores sobre o extermínio cotidiano a que estão submetidos os negros no Brasil, principalmente, os jovens entre 15 e 24 anos (os dados são do Atlas da Violência, elaborado anualmente pelo Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
- Em 2018 (último dado disponível), 57.956 brasileiros foram assassinados;
- do total das vítimas, 75,7% eram negras;
- o risco de a vítima ser um negro, na pesquisa de 2018, foi 74% maior para homens negros e 64,4% maior para as negras;
- do total de mortos, 30.873 (53,3% do total) eram jovens (atenção, economistas que se debruçam sobre os baixos índices de produtividade da economia brasileira!); o país assiste, passivamente, ao “assassinato” de seu futuro;
- em 2018, homicídio respondeu por 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos; 52,2% na faixa entre 20 e 24 anos; e 43,7% das mortes os jovens entre 25 e 29 anos.
O Estado brasileiro, evidentemente, precisa ser reformado para cumprir a Constituição, que, admitamos, encerra um projeto de nação. Todos sabemos que, mesmo tornando o enfrentamento do racismo a prioridade do país por décadas, levaremos gerações até chegar a um lugar menos injusto.
O desafio é enorme, mas tudo indica que a pandemia, ao escancarar o racismo, as desigualdades sociais, a inaceitável concentração de renda, acordou parte da sociedade. Não as elites, com raras exceções. O que se vê por parte de muitas empresas, ainda que se reconheça o aumento da filantropia nesta terrível crise sanitária, são ações marcadas por estratégias de marketing, destinadas, portanto, a valorizar as marcas das empresas num momento de perda e dor para milhares de famílias. Isto, sem mencionar o sofrimento decorrente do empobrecimento brutal provocado pela recessão na qual a pandemia jogou o PIB.
Filantropia deveria ser uma virtude realizada em silêncio, do contrário, soa a oportunismo. Ademais, as doações não deveriam ser abatidas do Imposto de Renda das companhias. Mas, filantropia no momento em que vivemos é muito pouco perto da crise social vivida pela maioria dos brasileiros.
Quem está acordando para a dura realidade é a periferia das grandes cidades, habitantes de Estados de exceção, governados por milicianos e o crime organizado. Em oportuno artigo intitulado “É preciso derrubar o apartheid brasileiro”, Paulo Sérgio Pinheiro indaga: “Por que se sucedem esses horrores em supermercados e shoppings? Porque a instituição da democracia, em trinta anos de plena constitucionalidade, não conseguiu debelar, apesar de políticas afirmativas e quotas raciais, o apartheid que prevalece em todos espaços da vida da população negra, agora maioria de 56% no Brasil”, disse ele. “Não pode haver democracia consolidada com negras e negros sendo executados nas periferias das metrópoles pelas PMs e torturados nas prisões; ausentes de todos os lugares de poder, como o executivo, o legislativo, judiciário, o ministério público; recebendo salários inferiores aos brancos; sendo alvos de racismo no quotidiano.”
Pablo Ortellado: Racismo no Carrefour
Conservadores dizem que alegação de racismo em agressão em Porto Alegre é prematura. Estatísticas sugerem racismo estrutural
Até mesmo o torpe assassinato de Beto Freitas em um supermercado em Porto Alegre foi capturado pelas guerras culturais, com vozes conservadoras acusando os progressistas de enxergar racismo onde não havia e dividir uma sociedade racialmente integrada.
A principal crítica desses conservadores tem sido quanto ao emprego do conceito de racismo estrutural. Para eles, o racismo se restringiria apenas àqueles episódios de preconceito e intolerância com motivação racista manifesta.
Seria preciso, então, entender as circunstâncias que levaram à morte de Beto Freitas: se havia algum fato anterior que pudesse justificar o uso excessivo de força e se haveria evidência de motivação racista, como alguma injúria racial que tivesse sido proferida. Sem esses elementos, a alegação de racismo seria prematura e injustificada e mostraria apenas um esforço da esquerda em promover a divisão em uma sociedade conhecida por ter uma integração racial bem-sucedida.
Não é, no entanto, o que dizem as estatísticas. Raça é importante, mesmo quando comparamos índices dentro de uma mesma classe de renda. Entre negros de baixa renda, por exemplo, 42% relatam terem sido desrespeitados pela polícia (contra 34% dos brancos de baixa renda): 35% já receberam agressões verbais e 18% sofreram agressões físicas (contra 27% e 12% dos brancos de baixa renda).
Enquanto 56% da população brasileira é negra ou parda, negros e pardos são 67% dos encarcerados e 76% das vítimas de homicídio. Esses não são números de uma sociedade não racista.
Independentemente das circunstâncias que levaram os seguranças a agredir Beto Freitas, é incontestável que houve uso excessivo de força, já que as agressões foram desproporcionais e não cessaram quando ele foi rendido.
O uso da força pelos seguranças teria chegado a esse grau de excesso e violência se Beto Freitas fosse branco? Quinze pessoas assistiriam passivamente um homem branco ser covardemente espancado e asfixiado por seguranças sem tentar impedi-los? Provavelmente não.
É esse racismo insidioso, não explícito e não manifesto que condiciona as ações individuais e o funcionamento das instituições que vemos atuar em casos como esse. É ele que anui, que consente o exercício de uma violência brutal contra um homem negro que dificilmente seria autorizada contra um homem branco.
É esse racismo furtivo, enfim, que faz com que negros sejam mais interpelados pela polícia, sejam mais encarcerados, sejam mais agredidos e sejam mais assassinados. As estatísticas não são fruto do acaso.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Hélio Schwartsman: Um país racista ou desigual?
Brasil é as duas coisas ao mesmo tempo
O Brasil é um país desigual ou é um país racista? Ele é as duas coisas ao mesmo tempo, e destrinchá-las não é trivial. São conhecidas as estatísticas do IBGE que informam que trabalhadores brancos ganham quase 70% mais do que negros. A dificuldade com esse dado, da forma que costuma ser apresentado, é que ele soma os efeitos da desigualdade social com os do racismo e põe tudo na conta do segundo.
Há motivos legítimos para explicar diferenças salariais, como história educacional, cargo exercido, tempo de casa etc. Quando comparamos grupos semelhantes, isto é, negros e brancos com o mesmo grau de instrução, ou que ocupem postos no mesmo nível hierárquico, as disparidades diminuem. O problema é que só diminuem, sem desaparecer, sinal de que a cor da pele também faz diferença.
Há interessantes trabalhos, como o de André Salata (PUC-RS), que tentam separar os efeitos diretos do racismo dos indiretos, mediados por pobreza, educação.
E o mercado de trabalho é só uma das esferas em que o racismo estrutural se manifesta. Estudos mostram que negros também sofrem discriminação no sistema de Justiça (é mais provável um jovem negro apanhado com maconha ser enquadrado como traficante do que um branco flagrado na mesma situação) e até em hospitais (o controle de dor é mais precário para pacientes negros).
É raro encontrarmos um racista empedernido, daqueles que vestem lençóis na cabeça, por trás desse tipo de discriminação, que se materializa por canais mais sutis, como vieses e estereotipias, que afetam o comportamento das pessoas sem que elas se deem conta.
Combater o que acontece abaixo do radar da consciência é difícil. O reconhecimento do problema é o primeiro passo. A sociedade brasileira já parece tê-lo dado. Quiçá isso um dia chegue às escolas militares que formaram Bolsonaro, Mourão e outros que ainda acham que não existe racismo no Brasil.
Míriam Leitão: Truque da negação mantém o racismo
A estratégia mais velha do racismo brasileiro sempre foi negar a própria existência. Fica mais difícil combater um inimigo que se camufla. Por isso, as atitudes do presidente e do vice-presidente do Brasil na morte de João Alberto são tão lesivas, porque elas fortalecem a maneira como o racismo sempre prevaleceu no país. O caso revela também um defeito do mundo corporativo que é a inclusão em seus índices de qualidade, de sustentabilidade e diversidade, de empresas sem qualquer compromisso com os valores que aqueles indicadores representam. Engana-se assim o distinto público.
O Carrefour só agora foi expulso da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e, apesar de não fazer parte do índice de sustentabilidade da B3, estava em outro indicador internacional, em parceria com a bolsa americana S&P, o Brazil ESG Index. Agora, terá a participação revista. A pergunta é o que a rede de supermercados, que já tem tantos antecedentes, fazia nesses indicadores. A B3 tirou a Vale do índice de sustentabilidade apenas depois do desastre de Brumadinho. Esses selos de qualidade acabam servindo para enganar.
Os indicadores corporativos atraem investidores e consumidores. O problema é a mistura entre empresas realmente comprometidas com o enfrentamento das desigualdades sociais, raciais, e com a defesa do meio ambiente, com empresas que usam esses índices e iniciativas apenas como maquiagem.
A desculpa do Carrefour de que o crime foi praticado por uma terceirizada não a exime. Toda empresa faz exigências na contratação de seus fornecedores e é responsável por eles já que a atuação se dá no ambiente de trabalho. Até por uma preocupação reputacional as empresas teriam que impor código de conduta às empresas fornecedoras. O que se viu naquela cena revoltante foi um conluio entre o supermercado e a firma terceirizada para o uso da violência contra um cliente. Nada há que diminua a culpa do Carrefour e tudo isso coloca em dúvida os critérios dos indicadores de responsabilidade corporativa. Existem para informar ou para enganar?
Quanto à dupla Bolsonaro e Mourão, ninguém ficou surpreso com essa reação, porque essa é a estratégia mais usada para a perpetuação do racismo. No governo militar chegou-se ao absurdo da eliminação da pergunta cor e raça no questionário do Censo de 1970, deixando uma cicatriz nas estatísticas. A invisibilidade do problema que atravessa a sociedade brasileira é a forma de dar sobrevida a ele.
As declarações de Bolsonaro e Mourão, mesmo previsíveis, não deixam de ser revoltantes. Elas agridem os negros e ofendem a realidade. Os pretos e pardos brasileiros têm os piores indicadores sociais, enfrentam as barreiras do preconceito onde quer que tentam entrar, são atacados por injúrias raciais que vão minando a autoconfiança e são os alvos mais frequentes da violência policial. Segundo os dados do último Atlas da Violência, um jovem negro tem 2,7 vezes mais risco de morrer vítima da violência do que um jovem branco. Antes de ser eleito, Bolsonaro referiu-se a moradores de quilombo usando uma medida de peso que se usa com animais e afirmou que nem para “reprodutor” eles serviam. Já Mourão disse que o brasileiro tem a indolência do indígena e a malandragem do negro. Mais racistas não poderiam ter sido.
São tantos, tão diários, tão frequentes e visíveis os atos de discriminação a que pretos e pardos estão expostos no Brasil que o presidente e o vice-presidente só conseguiram demonstrar que o governo vive divorciado do país. Governam de costas e agarrados a velhas desculpas esfarrapadas.
O racismo tem uma coleção de sofismas para continuar existindo no Brasil e fazendo seu trabalho de dividir os brasileiros pela cor da pele dando mais oportunidades aos brancos e mais riscos aos pretos. Um desses é que o Brasil é miscigenado e por isso não tem discriminação. É mesmo, o que torna ainda mais absurdo o preconceito. Outro é de que nos Estados Unidos houve segregação e aqui não. O Brasil criou um conjunto tão grande de barreiras que segregou os negros mesmo sem ter uma lei.
Não entender o racismo brasileiro é não entender o Brasil, é aliar-se ao que houve de pior na nossa história para que as desigualdades permaneçam. Há muito tempo tenho exposto neste espaço a minha profunda convicção de que lutar contra o racismo é tarefa de cada um de nós, brancos e negros. É uma luta em favor do Brasil e que tornará o país economicamente mais próspero, e com uma democracia mais sólida.
Não entender o racismo é não entender o Brasil, é aliar-se ao que houve de pior na nossa história para que desigualdades permaneçam.
Ruy Castro: O crime com vídeo e áudio
Os gritos de dor de Beto Freitas são a trilha sonora de um filme que muitos fingem não ver
O assassinato de Beto Freitas no estacionamento do Carrefour, em Porto Alegre, na quinta-feira (19), foi gravado pela câmera afixada de frente para a porta, com visão total da cena. É uma sequência de 17’09’’, com começo, meio e fim. Mostra o cenário vazio, a chegada dos personagens —o homem negro, os dois seguranças e a fiscal do supermercado— e o que aconteceu em seguida.
Vê-se quando, ao entrar detido, Beto reage por algum motivo a um deles, desprende-se e tenta agredi-lo. Os dois, em total vantagem, o seguram, e, com ele já contido, o espancam. Durante dois minutos aplicam-lhe chutes, socos e joelhadas no rosto, cabeça e costelas, até abatê-lo no chão.
A fiscal parece filmar tudo com um celular. Pessoas se aproximam. Ela os afasta e ameaça alguém que também tentava filmar. Uma senhora pede clemência, em vão. Um careca, de terno, pisa no homem caído e vai embora. Outras 15 pessoas entram e saem do quadro, com maior ou menor interesse, mas a tempo de ver o homem ser brutalmente imobilizado, com um dos seguranças pressionando um joelho sobre suas costas. Beto só tem agora pequenos lampejos de movimento com os pés. Aos 4’30’’ do vídeo, deixa de se mover por completo. Já não reage, mas, pelos dez minutos seguintes, o segurança continua com todo seu peso sobre ele, como para certificar-se de que não sairá vivo dali. Conseguiu. Beto morreu por asfixia.
Homens e mulheres negros são vítimas diárias de toda espécie de violência, mas esse crime é um divisor de águas. Foi filmado, tem dezenas de testemunhas e não há atenuante possível. Mais vídeos surgirão, de novos ângulos, com os gritos de dor de Beto Freitas. Mais do que o choro, o samba ou o funk, esses gritos são a verdadeira trilha sonora dos negros brasileiros.
Para Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, presidente e vice, não há racismo aqui. Escutamos isso e sentimos nojo deles e de nós mesmos.